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D I R E I TO TR I B UTÁR I O

Hélcio Corrêa

O CONCEITO LEGALISTA
DE RENDA 5

THE LEGALISTIC CONCEPT OF INCOME


Hugo de Brito Machado

RESUMO ABSTRACT
Intenta demonstrar que Rubens Gomes de Sousa, notável es- The author aims at demonstrating that Rubens Gomes de
tudioso do Direito Tributário, não defendia o conceito legalista Souza, a remarkable tax law scholar, did not support the
de renda, que veio a influenciar decisões judiciais equivocadas. legalistic concept of income, one which has given rise
Afirma que aceitar a liberdade do legislador ordinário para de- to many wrong rulings.
finir o conceito de “renda e proventos de qualquer natureza” He states that acceptance of the ordinary legislator’s
é destruir inteiramente a superioridade hierárquica do Código discretion to determine the concept of “income and any
Tributário Nacional e da própria Constituição. other kind of earnings” would equal ruining the hierarchical
superiority of both the Brazilian Tax Code and the Constitution.
PALAVRAS-CHAVE
Direito Tributário; renda; provento; legislador; Código Tribu- KEYWORDS
tário Nacional; imposto de renda; Rubens Gomes de Sousa; Tax Law; income; earning; legislator; Brazilian Tax Code;
conceito legalista. income tax; Rubens Gomes de Sousa; legalistic concept.

Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 5-9, out./dez. 2009


1 INTRODUÇÃO proventos de qualquer natureza, implica tar aquela liberdade do legislador. Com
Já escrevemos mais de uma vez so- negar inteiramente a utilidade da discri- efeito, no próprio texto em que se refere
bre o conceito jurídico tributário de ren- minação constitucional das competên- ao conceito legalista de renda, Gomes de
da, entretanto, sentimos a necessidade cias impositivas e a própria supremacia Sousa escreve: É claro que essa conclu-
de voltar ao tema especialmente para constitucional. são pragmática é muito pouco satisfa-
demonstrar a grave injustiça que tem tória para os espíritos animados, ainda
sido feita ao Professor Rubens Gomes de 2 O CONCEITO DE RENDA NA que modestamente, por um desejo de
Sousa pelos que a ele imputam a dou- DOUTRINA DE GOMES DE SOUSA precisão científica. Interessa, portanto,
trina do denominado “conceito legalista Mesmo nos estudos daqueles que pesquisar em que termos e em que me-
de renda”. imputam a Gomes de Sousa o denomi- dida seria possível conciliar a análise da
legislação fiscal – aceita como situação
[...] se as palavras empregadas nas normas da Constituição de fato – com os dados teóricos em que
respondem ao desejo de integrar os co-
pudessem ser livremente definidas pelo legislador ordinário, a
mandos do direito positivo num quadro
supremacia constitucional não seria mais que um simples sistemático. (SOUSA, 1970, v. 14, p. 339).
ornamento da literatura jurídica. A propósito da liberdade do legisla-
dor na formulação do conceito de renda,
Rubens Gomes de Sousa tem sido nado “conceito legalista de renda”, já po- que na doutrina de Gomes de Sousa não
citado, no Brasil e no estrangeiro, como demos encontrar de certa forma limites tinha de nenhum modo o alcance que
um dos expoentes da doutrina que atri- ao legislador. Antonio Manuel Gonçalez, se tem pretendido dar, é bastante elo-
bui ao legislador inteira liberdade para por exemplo, depois de se reportar a quente sua lição a propósito da natureza
definir o significado da palavra “renda”1. conceitos de renda na Ciência Econômi- jurídica da obrigação tributária. Depois
E em razão de sua indiscutível autoridade ca, assevera: Entretanto, como diz Ru- de se reportar a manifestações dos que
como conhecedor do Direito Tributário, bens Gomes de Sousa, ‘o Direito não de- viam na obrigação tributária uma simples
essa doutrina chegou a influenciar de- pende da Economia, nem de qualquer relação de soberania, ou de poder, escla-
cisões judiciais equivocadas, como é o outra ciência, para se tornar obrigatório. rece: Entretanto, essa argumentação já
caso da decisão proferida pelo antigo Tri- A renda para fins tributários é determi- está respondida desde 1926 pelo jurista
6 bunal Federal de Recursos na Apelação nada livremente pelo legislador, segun- alemão NAVIASKY; o Estado utiliza-se da
em Mandado de Segurança n. 114.287- do a comodidade técnica da arrecada- sua soberania tão somente para fazer a
RJ, da qual foi relator o Ministro Ilmar ção” (citado por Sylvio Feliciano Soares, lei, até esse ponto, trata-se efetivamente
Galvão2. Trata-se, porém, de injustiça ao Imposto sobre a Renda e Proventos de de uma relação de soberania, porque
notável Professor, que foi, com certeza, o Qualquer Natureza, in Noções de Direito somente o Estado tem o poder de fazer
maior estudioso do Direito Tributário em Tributário, LTr Editora, São Paulo, 1975, leis; mas uma vez promulgada a lei, ces-
nosso País. pág. 116). (GONZALEZ, 1986, p. 48). sam os efeitos da soberania, porque o
É certo que, em estudo publicado no Como se depreende do contexto no Estado democrático, justamente por não
Brasil em 1970, embora escrito cerca de qual Gomes de Sousa manifestou-se, a ser autoritário, fica ele próprio subme-
20 anos antes e publicado na Europa3, liberdade do legislador, a que ele se refe- tido às leis que promulga. Portanto, se
Rubens Gomes de Sousa afirmou que os riu, é apenas para escolher entre dois ou a lei se aplica por igual ao particular e
resultados da arrecadação prevalecem mais conceitos elaborados no âmbito da ao próprio Estado, as relações dela de-
sobre a preocupação com o aprimora- Ciência Econômica. Por outro lado, me- correntes são relações jurídicas: por ou-
mento científico do sistema tributário. E rece consideração o fato de que, àquela tras palavras, o particular fica obrigado
acrescentou: Não seria, portanto, exage- época, não se questionava a hierarquia a pagar o tributo na forma da lei, mas
rado ampliar a definição para dizer que das normas no sistema tributário. por sua vez também o Estado só pode
o imposto de renda é aquele que incide Realmente, é da maior importância cobrá-lo exatamente na forma da lei.
sobre o que a lei define como renda. registrarmos que a doutrina de Rubens (SOUSA, 1975, p. 85).
(SOUSA, 1970, v. 14, p. 339). Gomes de Sousa foi elaborada quando Daí se vê claramente que Rubens
Isso, porém, não quer dizer que o não se dava destaque à colocação das Gomes de Sousa colocava a lei como
referido Mestre considerasse aceitável tal questões jurídicas à luz da Constituição. a primeira manifestação do Estado, li-
conceito legalista de renda, nem muito Em outras palavras, época na qual ainda mitando o seu poder de tributar, o que
menos que tenha sido um conceito por não se havia desenvolvido o constitucio- evidentemente não se compadece com
ele sustentado. Assim, voltamos ao as- nalismo e não se buscava na Constitui- um Estado que adota uma Constituição,
sunto com o propósito de demonstrar ção a necessária proteção dos cidadãos colocando-a como norma fundamental
que: a) Rubens Gomes de Sousa não contra o arbítrio estatal expresso pela voz de seu ordenamento jurídico, e nela es-
defendeu o conceito legalista de renda, do legislador. Nem se tratava o ordena- tabelece regras a respeito da relação jurí-
e ainda b) aceitar essa liberdade do le- mento jurídico como sistema hierarqui- dica tributária. Em um Estado que adota
gislador ordinário para definir o que se zado de normas. Mesmo assim, vê-se uma ordem jurídica hierarquizada, tendo
deve entender como renda, para fins manifestada por Gomes de Sousa a pre- a Constituição em seu patamar superior,
de incidência do imposto sobre renda e ocupação com o sistema jurídico, a limi- e nesta coloca regras a respeito da tribu-

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tação, é nela e não na lei ordinária que reside a primeira e mais legais, todos os dispositivos da lei maior poderiam ser alterados
importante limitação do poder de tributar. pelo legislador ordinário.
Assim, é indiscutível que a liberdade do legislador para defi- Como qualquer intérprete de normas jurídicas, o legisla-
nir renda, na doutrina de Gomes de Sousa, deve ser entendida dor, um intérprete da Constituição, goza de relativa liberdade
como a liberdade daquele que faz a regra da Constituição, cui- ao interpretar qualquer de seus dispositivos. Desta forma, goza
dando da tributação da renda ou de qualquer outra realidade de liberdade relativa para formular o conceito de renda. Pode
econômica que lhe parecer conveniente tributar. É a liberdade escolher entre os diversos conceitos fornecidos pelos economis-
de quem edita a regra jurídica de maior hierarquia no sistema, tas e financistas, procurando alcançar a capacidade contributiva
em face das diferentes definições de renda, viáveis no âmbito e tendo em vista considerações de ordem prática. Não pode,
da Economia. todavia, formular, arbitrariamente, um conceito de renda, ou de
proventos de qualquer natureza.
3 A DISCRIMINAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS TRIBUTÁRIAS Nem se diga que o legislador pode estabelecer um conceito de
A rigor, depois de promulgada a Constituição, se nela existi- renda por ficção legal. Como assevera Valdir de Oliveira Rocha,
rem regras a respeito do poder de tributar, deste já não se pode- esse fazer de conta não pode subsistir6. É da maior evidên-
rá falar como algo que pode ser exercido sem limites jurídicos. cia que, se assim não fosse, ruiria inteiramente todo o sistema
Em outras palavras, o poder do legislador, sua liberdade para jurídico-constitucional.
tributar, estará sempre submetida a limites jurídicos. É evidente, portanto, que a liberdade do legislador para de-
A propósito da Constituição como primeira manifestação do finir a hipótese de incidência do imposto sobre renda e proven-
Estado que limita o seu poder político, e da nação das compe- tos de qualquer natureza não vai além da liberdade que tem o
tências tributárias já escrevemos: Organizado juridicamente o intérprete para escolher uma das significações razoáveis dessa
Estado, com a elaboração de sua Constituição, o Poder Tribu- expressão. Se, no exercício dessa liberdade, o legislador trans-
tário, como o Poder Político em geral, fica delimitado e, em põe o quadro, ou moldura, que a Ciência do Direito estabelece,
confederações ou federações, dividido entre os diversos níveis definindo como renda o que renda não é, em qualquer de seus
de governo. No Brasil o poder tributário é partilhado entre a significados aceitáveis, agride a Constituição. E como qualquer
União, os Estados-membros, o Distrito Federal e os Municípios. lei, também aquela que direta ou indiretamente define o alcan-
Ao poder tributário juridicamente delimitado e, sendo o caso, ce da expressão “renda e proventos de qualquer natureza”,
dividido dá-se o nome de competência tributária. está sujeita ao controle de constitucionalidade.
O instrumento de atribuição de competência é a Constitui- 7
ção Federal, pois, como se disse, a atribuição de competência 5 O CONCEITO DE RENDA NO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
tributária faz parte da própria organização jurídica do Estado. O Código Tributário Nacional cuidou de estabelecer uma
Evidentemente só às pessoas jurídicas de Direito Público, dota- definição de renda. É uma lei ordinária, porque, à época de sua
das de poder legislativo, pode ser atribuída competência tribu- edição, não existia a lei complementar como espécie normati-
tária, posto que tal competência só pode ser exercida através va formalmente caracterizada. Entretanto, por tratar de matéria
da lei. (MACHADO, 2009, p. 30) hoje atribuída à lei complementar, como tal deve ser considera-
Ao fazer a discriminação das competências tributárias, nos- do. E assim podemos dizer que exerce a função de lei comple-
sa Constituição Federal estabelece que compete à União insti- mentar, nos termos do art. 146, inc. III, da vigente Constituição.
tuir imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza 4 .
A norma atributiva de competência à União certamente im- O Código Tributário Nacional cuidou de
põe limites à parcela do Poder Tributário a ela outorgado, e, em estabelecer uma definição de renda. É uma lei
razão da posição hierárquica que ocupa no sistema, impõe-se
ao legislador, limitando, indiscutivelmente, a liberdade deste no
ordinária, porque, à época de sua edição, não
exercício dessa competência tributária. existia a lei complementar como espécie
normativa formalmente caracterizada.
4 OS CONCEITOS E A HIERARQUIA DAS NORMAS
Quem quer que estude Teoria Geral do Direito sabe que os Com efeito, o Código Tributário Nacional estabelece: Art. 43.
conceitos utilizados em norma jurídica de hierarquia superior O imposto, de competência da União, sobre a renda e proven-
não podem ser livremente alterados pela norma de hierarquia tos de qualquer natureza tem como fato gerador a aquisição
inferior. Se a lei ordinária pudesse definir casa como a edificação da disponibilidade econômica ou jurídica:
com mais de mil metros quadrados e piso de mármore ou gra- I – de renda, assim entendido o produto do capital, do
nito, certamente estaria anulada a regra da Constituição segun- trabalho ou da combinação de ambos;
do a qual a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela II – de proventos de qualquer natureza, assim entendido os
podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso anterior.
caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, Dessa forma, o Código Tributário Nacional estabeleceu
ou, durante o dia, por determinação judicial5. duas limitações ao legislador ordinário. Primeira, quando de-
Realmente, se as palavras empregadas nas normas da finiu renda como acréscimo patrimonial. E a segunda, quando
Constituição pudessem ser livremente definidas pelo legislador estabeleceu que o fato gerador do imposto sobre renda e pro-
ordinário, a supremacia constitucional não seria mais que um ventos de qualquer natureza é a aquisição da disponibilidade
simples ornamento da literatura jurídica. Mediante definições econômica ou jurídica da renda ou dos proventos.

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Tais limites, que não podem ser trans- 18), los lenguajes naturales contienen que, como aspecto, é inerente ao fato
postos pelo legislador ordinário em face palabras vagas. Con esto quiero gerador. Não pode ser desligado deste.
da hierarquia normativa, são de enorme referirme al siguiente fenómeno: No caso do imposto de renda das
importância prática. Significam que o le- muchas veces el foco de significado es pessoas físicas, existe uma tabela para
gislador ordinário não pode estabelecer único, y no plural ni parcelado, pero el o cálculo correspondente, que indica o
fórmulas que impliquem a tributação do uso de una palabra tal como de hecho denominado “mínimo isento” e acima
que não é renda, ou melhor, que impli- se la emplea, hace que sea incierta o deste as faixas de renda submetidas a
quem a tributação do que não seja aqui- dudosa da inclusión de un hecho o de determinadas alíquotas. O mínimo isen-
sição da disponibilidade de renda ou de un objeto concreto dentro del campo to, ou mínimo existencial, é o valor dos
proventos. Assim, não pode determinar de acción de ella. Hay casos típicos ganhos do contribuinte que se presume
a incidência do imposto sobre indeniza- frente a los cuales nadie en su sano indispensáveis à sua subsistência e, por
ções – por exemplo, porque indenização juicio dudaría en aplicar la palabra en isto mesmo, não constituem acréscimo
não é acréscimo, mas simples restabele- juego. Hay casos claramente excluidos patrimonial. No dizer de Mary Elbe Quei-
cimento do patrimônio – nem pode ve- del campo de aplicación del vocablo. roz: O mínimo existencial não se confi-
dar a dedução de certas despesas, limitar Pero hay otros que, a diferencia de los gura como acréscimo ou riqueza nova.
os seus montantes dedutíveis –pois isto primeros y de los segundos, no están Ele é, exatamente, a mínima quantia im-
implica tributar o que não é renda – ou claramente incluidos ni excluidos. prescindível à manutenção da vida, e a
mesmo tributar, de forma autônoma,
certos ganhos, como se eles pudessem Mesmo diante da definição de renda e proventos de qualquer
ser considerados acréscimo patrimonial
natureza, formulada pelo Código Tributário Nacional, ainda
independentemente de outras alterações
positivas e negativas do mesmo patrimô- tem o legislador ordinário certa liberdade na definição das
nio ao qual se ligam. A respeito dessa hipóteses de incidência do imposto em questão.
última questão, aliás, já nos manifes-
tamos faz algum tempo, sustentando a Seguindo-se esse raciocínio, tem-se que quantidade ínfima para que o indivíduo
inconstitucionalidade da tributação autô- alguns fatos podem ser seguramente e sua família possam atender às suas
noma de ganhos em operações de renda incluídos no conceito de acréscimo pa- necessidades vitais e viver com dignida-
fixa e operações em Bolsas de Valores. trimonial, e outros fatos dele podem ser de. (QUEIROZ, 2004, p. 58).
8
(MACHADO, 1993, p. 162-164). excluídos. A liberdade do legislador ordi- Para que se tenha o valor sobre o
nário ficará, então, restrita àqueles cuja qual são aplicadas as alíquotas e assim
6 O FATO GERADOR DO inclusão, ou exclusão, seja duvidosa e determinada a quantia do imposto de
IMPOSTO DE RENDA deva ser por isto mesmo objeto de uma renda devido, algumas quantias devem
Mesmo diante da definição de renda decisão política. ser deduzidas do valor dos rendimentos.
e proventos de qualquer natureza, for- É admissível, igualmente, a liberdade Algumas com valor fixado em lei, que se
mulada pelo Código Tributário Nacional, do legislador para estabelecer normas re- presume ser o mínimo indispensável,
ainda tem o legislador ordinário certa guladoras da determinação do montante como ocorre com a manutenção de de-
liberdade na definição das hipóteses de da renda, tendentes a evitar práticas frau- pendentes. Outras, a depender de com-
incidência do imposto em questão. Não dulentas. Não pode ele, porém, a esse provação em cada caso, como é o caso
se pode, todavia, dizer que esse legislador pretexto, criar ficções legais absolutas. das despesas com honorários de médi-
desfruta de total liberdade em face da im- Nem pode, de qualquer outro modo, cos e dentistas, por exemplo.
precisão dos conceitos utilizados pelo art. regular de tal forma a determinação da O imposto de renda das pessoas físi-
43 do Código Tributário Nacional. base de cálculo do imposto, que este cas em nosso país já foi muito mais racio-
Não se diga, a pretexto de justificar termine por ser devido sem que tenha nal. A legislação classificava os rendimen-
a liberdade do legislador ordinário na ocorrido o fato renda, vale dizer, acrés- tos por cédulas segundo a origem ou a
definição do significado da expressão cimo patrimonial. natureza da fonte produtora, indicando
“acréscimo patrimonial”, que se trata de Existem, ainda, outros aspectos do as deduções admitidas em cada cédula,
expressão de sentido vago, ou ambíguo. imposto de renda a serem considerados. vale dizer, as despesas que podiam ser
Afirmar que as palavras e expressões Vejamos, por exemplo, o que ocorre com deduzidas dos rendimentos brutos de
jurídicas são, em regra, ambíguas e im- o cálculo do imposto de renda das pes- cada cédula, todas ligadas à produção do
precisas não quer dizer, porém, que não soas físicas. rendimento. Considerava renda bruta a
tenham elas significado determinável. Os impostos geralmente são calcula- soma dos rendimentos líquidos de cada
(GRAU, 1988, p. 60). Por isto mesmo, a dos mediante a aplicação de uma alíquo- cédula e autorizava fossem abatidos des-
afirmação da vaguidade, ou ambiguida- ta sobre determinada expressão econô- sa renda bruta os gastos relacionados à
de, de uma palavra, ou expressão, utiliza- mica denominada “base de cálculo”, que pessoa do contribuinte, que eram os
da em uma norma jurídica, não se presta é um aspecto do fato gerador do impos- abatimentos da renda bruta. Hoje, po-
como fundamento para justificar a inteira to. É o aspecto material que nos permite rém, já não prevalecem esses conceitos
liberdade de seu intérprete, ou aplicador. dimensionar o imposto, determinar o nem existem tais distinções, que torna-
No dizer de Genaro Carrió (1971, p. seu montante. Desnecessário é dizer-se vam o imposto de renda mais racional e

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mais justo. A pretexto de simplificar, o legislador aboliu o que 4 Constituição Federal de 1988, art. 153, inc. III.
5 Constituição Federal de 1988, art. 5º, inc. XI.
havia de mais racional e mais justo no imposto, inclusive sua
6 Repertório IOB de Jurisprudência, n. 7/88, p. 100.
progressividade. Daí por que Mary Elbe Queiroz afirma, com
razão, que: Os primados constitucionais foram tão desfigura-
dos que hoje a exação que incide sobre rendas e proventos
REFERÊNCIAS
não mais guarda qualquer conexão com o Imposto sobre a BALLEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14. ed. Rio de
Renda e Proventos de Qualquer Natureza como está previsto Janeiro: Forense, 1987.
na Constituição. (QUEIROZ, 2004, p. 408) BELSUNCE, Horácio A. Garcia. El concepto de crédito en la doctrina y en el
derecho tributário. Buenos Aires: De Palma, 1967.
No âmbito do imposto de renda das pessoas físicas, o esta- CARRIÓ, Genaro. Algunas palabras sobre las palabras de la ley. Buenos Aires:
belecimento de limite para a dedução de gastos com educação Abeledo-Perrot, 1971.
na base de cálculo pode ser mencionado como exemplo das FONROUGE, Carlos M. Giuliani; NAVARRINE, Suzana C. Impuesto a la renta.
Buenos Aires: De Palma, 1973.
mais flagrantes violações da Constituição Federal. GONÇALEZ, Antônio Manoel. O fato gerador do imposto sobre a renda e pro-
ventos de qualquer natureza. São Paulo: Resenha Tributária, 1986.
7 LIBERDADE DO LEGISLADOR COMPLEMENTAR GRAU, Eros. Direito, conceitos e normas jurídicas. São Paulo: Revista dos Tri-
bunais, 1988. p. 60.
Finalmente, resta-nos examinar a questão de saber se a de-
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30. ed. São Paulo: Ma-
finição de renda, albergada pelo art. 43 do Código Tributário lheiros, 2009.
Nacional, pode ser alterada pelo legislador complementar, de ______________. Tributação autônoma de operações de renda fixa e opera-
forma que o imposto possa incidir sobre algo que não cabe no ções em bolsas. Repertório IOB de Jurisprudência: Tributário, Constitucional e
Administrativo, São Paulo, n. 8, 2. Quinz., p. 162-164, abr.1993.
conceito de renda ali definido. QUEIROZ, Mary Elbe. Imposto sobre a renda e proventos de qualquer nature-
O legislador constituinte teve a liberdade para atribuir à za. Barueri: Manole, 2004.
União competência para instituir imposto sobre renda e pro- RODRIGUES, Marilene Talarico Martins. Imposto de renda: pessoa física. In
MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coord). Curso de direito tributário. São Paulo:
ventos de qualquer natureza, ou sobre qualquer outra forma Saraiva, 1982.
de expressão de capacidade contributiva. Preferiu autorizar a SOUSA, Rubens Gomes de. A evolução do conceito de rendimento tributável.
instituição de imposto sobre a renda. Instituiu-se, assim, limi- Revista de Direito Público, São Paulo, v. 14, p. 339, 1970.
_______________.Compêndio de legislação tributária. Ed. póstuma. São
te à liberdade do legislador complementar. A liberdade deste, Paulo: Resenha Tributária, 1975.
agora, para definir renda e proventos de qualquer natureza
não vai além da liberdade que tem o intérprete para escolher Artigo recebido em 13/10/09.
uma das significações razoáveis dessa expressão. Admitir que o 9
legislador complementar tem ampla liberdade para estabelecer
o significado dessa expressão é destruir inteiramente a superio-
ridade hierárquica da Constituição.

8 CONCLUSÕES
Em face do exposto, podemos firmar as seguintes conclusões:
1ª) – O contexto no qual Rubens Gomes de Sousa afirmou
que a renda para fins tributários é determinada livremente pelo
legislador, segundo a comodidade técnica da arrecadação,
não nos permite concluir que ele tenha defendido o conceito
legalista de renda, como muitos afirmam.
2ª) – Em face do atual ordenamento jurídico brasileiro,
afirmar que o legislador ordinário pode dizer livremente o que
significa a expressão renda e proventos de qualquer natu-
reza é destruir inteiramente a superioridade hierárquica do
Código Tributário Nacional, e em última análise, da própria
Constituição Federal.
3ª) – A liberdade do próprio legislador complementar para
alterar a definição de renda albergada pelo Código Tributário
Nacional não vai além dos limites decorrentes do significado da
expressão renda e proventos de qualquer natureza, utilizada
pela Constituição Federal para atribuir competência impositiva
à União.

NOTAS
1 Cf. Balleiro (1987, p. 312); Rodrigues (1982, p. 237); Fonrouge-Navarrine
(1973, p. 26-27); Belsunce (1967, p. 186-188).
2 Revista do Tribunal Federal de Recursos, n. 147, p. 303-305.
3 Veja-se a nota do autor na edição brasileira de seu texto, na Revista de Direito Hugo de Brito Machado é desembargador federal aposentado
Público, RT, São Paulo, 1970, vol. 14, p. 339 e ex-presidente do TRF da 5ª Região.

Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 5-9, out./dez. 2009

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