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Resenha de:

POLANYI, Karl. O mercado auto-regulável e as mercadorias fictícias: trabalho, terra e


dinheiro. In: A grande transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro:
Compus, 2000.
Fausto Cafezeiro

A leitura de Karl Polanyi resgata alguns temas do pensamento marxista: a


desnaturalização do mercado presente na economia política de Adam Smith e do
pensamento liberal clássico, para o qual a constituição do livre mercado seria
consequência da evolução e do progresso da sociedade; a mercantilização das relações
sociais sob o sistema capitalista; a relevância do papel do Estado para criar as condições
coercitivas que garantem o funcionamento do livre mercado.
Polanyi fala de uma transformação que se dá no âmbito da sociedade: a
subordinação das relações sociais às leis de mercado, algo que só passa a existir na
vigência do próprio capitalismo. Os ercados são experiências construídas nas sociedades
desde os tempos antigos, tanto no sentido material, das mercadorias, como no sentido
simbólico, das trocas de experiências sociais, trocas afetivas, etc. No entanto, quando as
relações mais elementares da vida humana, como trabalho e terra passam a ter valor no
mercado, a ter preço para compra e venda é que ocorre a transformação que implica na
sociedade capitalista e nas mercantilização da vida humana.

(...) o trabalho e a terra nada mais são do que os


próprios seres humanos nos quais consistem todas as sociedades, e o
ambiente natural no qual elas existem. Incluí-los no mecanismo de mercado
significa subordinar a substância da própria sociedade às leis do mercado.
(POLANYI, 2000, p.93)

A partir dessa experiência de mercantilização é que se naturalizam as relações de


troca: como tudo passa a ter preço e ser produzido para a compra e venda, fica
parecendo que terra e trabalho, sem o que não há sistema social possível, são
mercadorias.

(...) de acordo com a definição empírica de urna mercadoria, eles não são
mercadorias. Trabalho é apenas um outro nome para atividade humana que
acompanha a própria vida que, por sua vez, não é produzida para venda mas
por razões inteiramente diversas, e essa atividade não pode ser destacada do
resto da vida, não pode ser armazenada ou mobilizada. Terra é apenas outro
nome para a natureza, que não é produzida pelo homem. Finalmente, o
dinheiro é apenas um símbolo do poder de compra e, como regra, ele não é
produzido mas adquire vida através do mecanismo dos bancos e das finanças
estatais. Nenhum deles é produzido para a venda. A descrição do trabalho, da
terra e do dinheiro como mercadorias é inteiramente fictícia. (...) Os
mercados de trabalho, terra e dinheiro são, sem dúvida, essenciais para uma
economia de mercado. Entretanto, nenhuma sociedade suportaria os efeitos
de um tal sistema de grosseiras ficções, mesmo por um período de tempo
muito curto, a menos que a sua substância humana natural, assim como a sua
organização de negócios, fosse protegida contra os assaltos desse moinho
satânico. (POLANYI, 2000, p.95)

É possível aí enxergar o espírito de época das proposições de Polanyi. O após-


guerra foi um período em que, sem a intervenção direto do Estado para frear “os
assaltos desse moinho satânico”, não teria sido possível nem a reconstrução das
economias nem o chamado Estado de Bem-Estar Social. O choque com as
consequências nefastas da política imperialista do século XIX e início do XX é algo
que, de alguma forma, influencia toda a produção das ciências sociais do período. É
nesse contexto que pensar mecanismos de controle ao “mercado autorregulável” emerge
como ideia central para a manutenção dos vínculos sociais. Contudo, é cabível pensar
que a o próprio Estado de Bem-Estar Social também é, de alguma maneira, fruto de uma
outra exploração: ou a dos imigrantes africanos e asiáticos que vão para a Europa no
contexto das guerras de independência ou a continuidade mesmo do sistema
imperialista, cujas últimas colônias só se tornam formalmente independentes a partir das
décadas de 1960/1970. É preciso lembrar que a Crise do Petróleo, prenúncio da falência
do Estado de Bem-Estar Social é uma crise no Oriente Médio também decorrente do
controle econômico que as antigas metrópoles mantiveram sob suas ex-colônias. Deste
modo, a política assistencialista de Estado que foi construída no pós-guerra e que
sucumbe ao neoliberalismo é também fruto de uma expropriação, para usar o termo de
Harvey. Não que as propostas de Polanyi não tenham seu mérito, mas, na prática,
mesmo que o Estado atue para minimizar os efeitos corrosivos do mercado, isso
depende também da acumulação.
Os outros dois textos propostos para a aula cumprem a função de auxiliar na
compreensão das ideias de Polanyi. Benjamin (2012) nos apresenta as filiações políticas
e acadêmicas de Polanyi, além de resumir seu pensamento e suas inquietações. Já o
texto de Michele Cangiani (2012) se preocupa em localizar Polanyi no pensamento
social e em propor uma interpretação sobre a ideia de economia “desenraizada”. Ela
propõe que não se trata de um binarismo propriamente, em que a sociedade de mercado
desenraizaria algo que é enraizado. Trata-se do que Paul Singer diz no video, usando o
termo “corrosivo”: a forma como o mercado desfaz as relações de troca anteriores e
submete a sociedade às suas próprias leis.

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