Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ABSOLUTISMO POLÍTICO E
LIBERALISMO ECONÔMICO: O
REFORMISMO ILUSTRADO DE JOSÉ DA
SILVA LISBOA (1800-1821)
Rio de Janeiro
mai/ago. 2020
Absolutismo político e liberalismo econômico:
o reformismo ilustrado de José da Silva Lisboa (1800-1821)
47
Resumo: Abstract:
Em países como França e Inglaterra, mas tam- In countries that include France, England,
bém Portugal e Espanha, o processo de constru- Portugal and Spain the process of state building
ção do Estado, em suas respectivas épocas, foi in their respective times was marked by the
marcado pela coincidência entre absolutismo coincidence between political absolutism and
político e mercantilismo econômico. Essa pos- economic mercantilism. The possibility of
sibilidade era complexa no contexto da América both systems was complicated in the context
Ibérica da primeira metade do século XIX, que of Iberian America in the first half of the 19th
passou a sofrer cada vez mais a influência da century, which began to suffer increasingly
hegemonia ideológica do liberalismo vigente no the influence of the ideological hegemony of
Atlântico Norte desde, pelo menos, a ocupação the liberalism prevailing in the North Atlantic.
napoleônica da Península Ibérica. As possibili- The possibilities and limits of conservatism at
dades e os limites do conservadorismo do pe- that period can be observed during the reign
ríodo podem ser observados no caso do Brasil of John VI in Brazil, in which the construction
joanino, em que a construção do Estado luso- of the Portuguese-Brazilian state suffered the
-brasileiro, iniciada por dom João VI, sofreu os constraints arising from the alliance with Great
constrangimentos decorrentes da aliança com a Britain against Napoleon. In seeking to reconcile
Grã-Bretanha contra Napoleão, que impunha, the illustrated absolutism in the political sphere,
entre outras cláusulas, a de nação mais favore- with the defense of liberalism in the economic
cida do ponto de vista alfandegário. A exigên- context, the work of José da Silva Lisboa, future
cia de fazer o absolutismo ilustrado, no âmbito Viscount of Cairu, exemplifies the dilemmas
político, conviver com a defesa do liberalismo and ambiguities of reformism illustrated in the
econômico encontrou na obra de José da Silva peripheral context of the subcontinent.
Lisboa, futuro visconde de Cairu, sua expressão
paradigmática. O modo como ele buscou con-
ciliar fórmulas aparentemente contraditórias é
exemplar dos dilemas ou das ambiguidades do
reformismo ilustrado no contexto periférico do
subcontinente.
Palavras-chave: reformismo ilustrado; reinado Keywords: illustrated reformism; reign of Don
de Dom João VI; José da Silva Lisboa; Visconde João VI; José da Silva Lisboa; Viscount of
de Cairu. Cairu.
Introdução
É possível explicar os diferentes tons assumidos pelo Esclarecimen-
to nos três países analisados – Inglaterra, França e Portugal –, em fun-
ção de suas diferentes posições no circuito do poder geopolítico e dos
igualmente diversos momentos por eles atravessados em seus respectivos
processos de construção nacional. O Iluminismo de Bolingbroke2, Hume3
e Burke4 coincidia com a consolidação do Estado de direito britânico,
firmado em 1688 e marcado pela ascensão da opinião pública como regu-
lador do governo representativo, o que explica seu caráter liberal e mo-
derado. O Iluminismo de Montesquieu5, Voltaire6 e Rousseau7 coincidia
com o período de contestação à ordem absolutista na França, fornecendo
fórmulas de emancipação de sua sociedade civil da tutela do Estado. Já o
periférico Iluminismo de intelectuais portugueses, como o próprio mar-
quês de Pombal8, Ribeiro Sanches9 e Melo Freire10 não visava dar livre
curso a uma moderna sociedade que ainda não existia nem lhe proporcio-
nar meios de emancipar-se. O absolutismo ilustrado hegemônico no reino
luso pretendia construir o Estado de que o reino carecia para reformar sua
arcaica sociedade e para restaurar o prestígio perdido desde a União Ibéri-
ca. O direito público universal, baseado no conceito de soberania absoluta
do príncipe, servia para organizar um direito positivo coerente, em que o
secular e o temporal estivessem separados e estivessem garantidos os di-
reitos e os deveres dos reis e dos súditos. O Iluminismo ibérico assumiu,
assim, a forma de um discurso autoritário de caráter pedagógico, cien-
tífico, técnico, econômico, voltado principalmente para a maximização
da eficiência administrativa, tributária e comercial. Orientado pelo valor
da autoridade e não da liberdade, o reformismo de Pombal não seguia
o exemplo de Sir Robert Walpole, o liberal primeiro-ministro britâni-
co, mas do cardeal de Richelieu, responsável pela construção autoritária
do Estado francês, no século anterior. A Real Mesa Censória manteria
fora de circulação livros críticos do absolutismo e da Igreja, como os de
Montesquieu, de Rousseau e de Voltaire. O público deveria se contentar
com jusnaturalistas absolutistas, como Grócio11, Pufendorf12, Heinécio13
e outros autores da Europa central, cujo mundo era mais assemelhado ao
português.
Por outro lado, nos países cêntricos como França e Inglaterra, mas
também periféricos como Portugal e Espanha, o processo de construção
do Estado foi marcado pela coincidência entre absolutismo político e mer-
cantilismo econômico. Em Portugal, Pombal favorecera o fomento eco-
nômico, estabelecendo uma legislação voltada para estimular a produção
agrícola ou manufatureira, nas quais já se insinuavam, é certo, elementos
da economia política fisiocrata e até liberal. Pombal se familiarizara com
aquelas doutrinas quando embaixador na Inglaterra (1739-1743), época
em que se aproximou do círculo da Royal Society e formou uma biblio-
teca pessoal contendo os livros mais representativos daquela literatura22.
19 – SCHULTZ, Kirsten. Versalhes tropical: império, monarquia e a corte real portu-
guesa no Rio de Janeiro, 1808-1821. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Civili-
zação Brasileira, 2008, p. 127.
20 – Idem, ibidem, p. 325.
21 – BETHELL, Leslie. A independência do Brasil. In: Leslie Bethell (org). História da
América latina. Da independência a 1870. Volume III. Tradução de Maria Clara Cescato.
São Paulo, EDUSP, 2001, p. 194-198.
22 – CARDOSO, José Luís & CUNHA, Alexandre Mendes. Discurso econômico e po-
lítica colonial no Império luso-brasileiro (1750-1808). Revista Tempo (UFF), volume 17,
nº 31, p. 73.
23 – SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Cultura letrada e cultura oral no Rio de Janeiro
dos vice-reis. São Paulo, UNESP, 2013, p. 115.
24 – SANTOS, Antonio Cesar de Almeida. Luzes em Portugal: do terremoto à inaugu-
ração da estátua equestre do reformador. Topoi, v. 12., n. 22, jan-jun. 2011, p. 75-95.129.
SANTOS, J.J. Carvalhão. Literatura e política: pombalismo e antipombalismo. Coimbra,
Livraria Minerva, 1991, p. 129. CARDOSO & CUNHA. Discurso econômico e política
colonial no Império luso-brasileiro, op. cit., p. 76.
Conclusão
A transferência da Corte para o Brasil produziu efeitos ideológicos
ambivalentes. Por um lado, ao se tornar a artífice do Estado brasileiro, a
monarquia lusitana naturalizou o reformismo ilustrado como ideologia
própria à modernização de um país cujo fabuloso potencial contrasta-
76 – Idem. Estudos do bem comum e economia política ou Ciências das leis naturais e
civis de animar e dirigir a geral indústria e promover a riqueza nacional. Parte I. Rio de
Janeiro, Tipografia Régia, 1819, pp. 6-9.
77 – Idem, ibidem, p. 143.
78 – Idem, ibidem, p. 186.
79 – Idem, ibidem, p. 66.
80 – VILHENA, Luís dos Santos. Pensamentos políticos sobre a colônia. Rio de Janei-
ro, Arquivo Nacional, 1987, p. 39.
81 – ARMITAGE, John. História do Brasil: desde o período da chegada da família de
Bragança, em 1808, até a abdicação de D. Pedro I, em 1831. Belo Horizonte, Itatiaia,
1981, p. 30.