MOÇAS DA DÉCADA DE 50
Palmira Heine
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entre a língua e seu exterior. Assim, a língua é uma relação direta entre realidade e
o veículo no qual se materializam os efeitos linguagem, esta última é opaca e marcada por
ideológicos, é a partir dela que os sujeitos se fatores de ordem ideológica. É a ideologia que
constituem como tais, interpelados pela constitui os elementos do discurso. Não
ideologia. existe sujeito fora da ideologia, pois, para se
Da teoria das ideologias, Pêcheux se constituir como tal, é preciso ser desde
debruça, inicialmente, sobre as ideias de sempre interpelado, desde sempre constituído
Althusser, quando o referido teórica fala dos por ela. Segundo Orlandi (1994)
Aparelhos ideológicos do Estado, concebendo
a ideologia como mola mestra da constituição A ideologia é, pois, constitutiva da relação
dos sujeitos e dos sentidos. O autor se do mundo com a linguagem, ou melhor, ela
debruça sobre o materialismo histórico, é condição para essa relação. Não há
retomando a noção de superestrutura relação termo-a-termo entre as coisas e a
ideológica. Ele não concebe a ideologia como linguagem. São ordens diferentes, a do
mundo e a da linguagem. Incompatíveis em
simples conjunto de ideias, mas afirma que suas naturezas próprias. A possibilidade
esta tem uma "materialidade específica", e mesma dessa relação se faz pela ideologia.
que tal materialidade está relacionada à (ORLANDI, 1994, p. 56)
materialidade econômica; É a ideologia que
faz com que o sujeito, sem se dar conta disso, Sendo assim, a língua, compreendida à luz
possa ocupar um determinado lugar na esfera da discursividade não é um simples sistema
dos grupos sociais vigentes. formal, mas é, ao contrário disso, marcada de
Da psicanálise, a partir de uma releitura de modo inexorável pela exterioridade que a
Lacan, problematiza a noção de sujeito como constitui. Quando o sujeito enuncia, está em
constituído pelo inconsciente, deslocando a jogo uma gama de sentidos que não são
ideia cartesiana que concebia o sujeito como originados nele, mas que são construídos
marcado pela consciência total. O historicamente, derivados do já-dito. A
inconsciente constitui o sujeito que não pode atividade discursiva pressupõe uma relação
mais ser visto como sujeito onipotente, do que não tem, de direito, início, uma vez que
"penso logo existo", mas deve ser visto como os enunciados se ligam sempre a enunciados
marcado por vozes e discursos sociais que anteriores, eles estão sempre em relação com
estão armazenados no inconsciente. O sujeito o "já-la", com o pré-construído.
não se dá conta que está sendo marcado pelo O discurso sempre se conjuga a partir do
inconsciente e acredita que é a origem do já-dito, sendo constituído a partir do
dizer. Pêcheux e Fuchs, desse modo, afirmam interdiscurso, que funciona como a base, o
que a interpelação do indivíduo em sujeito se pano de fundo do processo discursivo, ou
dá: seja, do que se chama de intradiscurso: o nível
da formulação, o fio do discurso. Por
(...) de tal modo que cada um seja interdiscurso se entende o conjunto do todo
conduzido, sem se dar conta, e tendo a complexo com dominante (Pêcheux, 2009) de
impressão de estar exercendo sua livre formações discursivas, ou seja, o conjunto de
vontade, a ocupar o seu lugar em uma ou
outra das duas classes sociais antagonistas
tudo o que já foi dito e esquecido que
do modo de produção (PECHEUX e constitui a base da atividade discursiva.
FUCHS, 1997, p. 166). Assim, é possível afirmar que as formações
discursivas derivam do interdiscurso e são
O funcionamento da ideologia se dá a dele dependentes, o que permite a
partir do interpelar do sujeito, ou seja, a partir compreensão da ideia pecheutiana que todo
do assujeitamento desse sujeito à língua e da discurso se conjuga a partir de um já-dito.
interpelação do mesmo, fazendo com que ele Nas palavras de Pêcheux:
ocupe determinado lugar na estrutura social,
lugar este que é refletido no discurso. Não o processo discursivo não tem, de direito,
existe discurso sem ideologia, pois não há início: o discurso se conjuga sempre sobre
um discurso prévio, ao qual ele atribui o
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papel de matéria-prima, e o orador sabe que aos sentidos que já existem, mas também,
quando evoca tal acontecimento, que já foi podem ressignificar esses já-ditos, colocando-
objeto de discurso, ressuscita no espírito se no jogo polissêmico da linguagem.
dos ouvintes o discurso no qual este Partindo-se do princípio de que os sentidos
acontecimento era alegado, com as
das expressões linguísticas são derivados das
deformações que a situação presente
introduz e da qual pode tirar proveito.”
formações discursivas nas quais essas
(PÊCHEUX,1997, p.77) expressões se inserem, é possível inferir sobre
os sentidos da ideia de mulher nas reportagens
Buscando afirmar o fato de que as analisadas. Os mesmos não se restringem a
estruturas linguísticas não podem ser vistas um conceito dicionarizado, mas ganha novas
isoladamente como propunham as teorias nuances ligadas ao momento histórico em que
formais, Pêcheux mostra a importância de se as revistas circularam. Tal fato revela que o
colocar em relação a língua com o que ele sistema linguístico não é completamente
chamou de condições de produção. Assim, o autônomo, e que entender a língua como
referido autor mostra que um mesmo sistema estritamente formal não é suficiente
enunciado, palavra ou frase, pode ter seu para explicitar as relações de sentido na
sentido modificado a partir de condições de mesma. Pêcheux e Fuchs (1997, p. 169) já
produção diferentes. Ao comentar sobre as diziam que "o sentido de uma sequência só é
condições de produção e o modo como estas materialmente concebível na medida em que
interferem na geração de sentidos dos se concebe essa sequência como pertencente
enunciados, Pecheux falando sobre o discurso necessariamente a esta ou aquela formação
de um deputado, afirma que o mesmo pode ter discursiva". Tal afirmação já revelava ideia
sentidos diferentes em condições de produção pecheutiana de que a língua é um sistema que
diversas, a depender do lugar que ele ocupa. não possui completa autonomia, pois é
Para Pêcheux o que o sujeito diz: constitutivamente marcada pela história e pela
ideologia. Os sentidos, portanto, não são
(...) não tem o mesmo estatuto conforme o preexistentes às estruturas linguísiticas nem
lugar que ele ocupa, a mesma declaração são presos às palavras. Assim, Pêcheux
pode ser uma arma temível ou uma comédia assevera:
ridícula segundo a posição do orador e do
que ele representa, em relação ao que diz. [...] as palavras, expressões, proposições
(PÊCHEUX 1997, p. 78) etc., mudam de sentido segundo as posições
sustentadas por aqueles que as empregam, o
Como se pode notar, o sentido não está nas que quer dizer que elas adquirem seu
palavras nem nos sujeitos, mas deriva das sentido em referência a essas posições, isto
posições ocupadas por tais sujeitos no é, em referência às posições ideológicas [...]
discurso. Os sujeitos, apesar de terem ilusão (PÊCHEUX, 2009, p. 146-147).
de que são origem do dizer, efetivamente não
o são. Ao contrário, os processos discursivos Como já foi dito anteriormente, todo
se realizam através sujeitos, mas esses não discurso é ideológico, porque não há discurso
são responsáveis por criar intencionalmente sem sujeito e não há sujeito sem ideologia.
sentidos, nem têm o poder de controlá-los. Os Então, é possível afirmar que os gêneros
sentidos se realizam nos sujeitos porque se jornalísticos, dentre eles as reportagens,
relacionam com a posição ideológica que os veiculam ideologias diversas, funcionando
mesmos ocupam. Essa posição remete a uma como grandes instrumentos de difusão
inscrição ideológica que faz com que se diga ideológica que têm como função "naturalizar"
de determinada forma ou de outra, que as os sentidos e também homogeneizar as
palavras ditas signifiquem de determinado diferenças sociais, pretendendo difundir a
modo ou de outro. Os sujeitos não são os ideia de homogeneidade e naturalidade das
primeiros a dizerem algo, eles se submetem relações sociais.
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de aprender as técnicas “do bom andar”. Isso mulher”, colocando-as num lugar diferente
indica um funcionamento ideológico que dos homens.
coloca a mulher no seu devido lugar, Segundo Bassanezi (2008, p. 609), as
classificando como belas ou elegantes aquelas revistas femininas funcionavam como:
que aprendessem as técnicas do “bom andar”. “conselheiras, fonte importante de informação
Essas questões serão analisadas mais adiante. e companheiras de lazer - a TV ainda era
incipiente no país -, as revistas influenciaram
A revista como veículo ideológico a realidade das mulheres de classe média de
seu tempo (...)”. Sendo assim, os conselhos
Partimos do princípio, nesse artigo, de que que traziam sobre comportamento, vida
as revistas fazem parte dos Aparelhos doméstica, maternidade, dentre outros, eram
Ideológicos do Estado, funcionando como um seguidos à risca por aquelas que queriam ser
dos elementos dos Aparelhos ideológicos da bem vistas socialmente. Surgida em 1914, a
informação. Althusser (1998) afirmava que os revista Jornal das Moças circulou até 1961,
Aparelhos ideológicos do Estado funcionam com edição semanal, dirigindo-se,
prioritariamente pela ideologia, enquanto que principalmente às moças da classe média
os Aparelhos repressivos do Estado brasileira.
funcionam primordialmente pela violência 1. A representação feminina na época girava,
Assim, cabia aos Aparelhos ideológicos do então, sobre a ideia de mulher como “rainha
estado a reprodução da ideologia dominante, do lar”, sendo os temas relacionados ao
que funcionava como uma espécie de mercado de trabalho (que elas começavam a
“cimento social”, homogeneizando sujeitos. ocupar) discutidos timidamente e ainda de
As revistas femininas que circulavam na maneira bastante superficial. Assim, a
década de 50, não eram simples veículos de ideologia da mulher como essencialmente
informação, mas funcionavam como veículos afeita ao lar, ao casamento e à maternidade
difusores de ideologias, sendo utilizadas na era amplamente difundida nas revistas, em
educação de mulheres da época. Essas contraposição às representações masculinas,
revistas, inclusive a que estaremos analisando, uma vez que os homens eram considerados
o Jornal das Moças, traziam conselhos de como “chefes de família”, provedores,
moda, beleza, comportamento da mulher, cabendo a eles o trabalho fora de casa e o
propagandas de eletrodomésticos e móveis, sustento da família.
dicas para ser uma boa mãe e uma boa dona O funcionamento ideológico que colocava
de casa, conselhos para manter o casamento, a mulher essencialmente na esfera doméstica
receitas, novelas. A análise dos temas ali poderia ser notado inclusive nas propagandas
abordados já revela um posicionamento que circulavam nas revistas. Havia
ideológico que constitui a noção de propagandas de cosméticos, produtos para o
feminilidade nas referidas revistas: o mundo lar, produtos para crianças e bebês, cursos
feminino girava ao redor desses temas, profissionalizantes que permitiam que a
considerados “adequados” para as mulheres. mulher estudasse sem sair de casa, sendo
Não há discussão sobre questões políticas, comuns nos anúncios direcionados às moças,
sociais ou econômicas, apesar do Brasil estar com cenas de casamento, de noivos ou ainda
passando por um grande período de com a apresentação de mulheres no ambiente
desenvolvimento econômico e social, na doméstico, como mães ou cozinheiras.
década de 50. Assim, as revistas transmitiam
a ideologia dominante sobre o que era “ser
1
Apesar de afirmar que os aparelhos ideológicos do
Estado funcionavam primordialmente através da
ideologia, e os Repressivos funcionavam a partir da
violência, o autor deixa claro que tanto um quanto
outro possuem um duplo funcionamento: funcionam
pela ideologia e pela violência.
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A reportagem traz um tom de conselho e domesticação do corpo, uma vez que para
lista os passos que devem ser dados na alcançar um andar gracioso, a mulher
direção de um andar elegante. O título da precisará seguir alguns passos, elencados na
mesma já indica o objetivo ali presente: reportagem: “Para ter seus movimentos livres,
fornecer uma receita sobre como andar de uma mulher deve ter as pernas ágeis, os
modo gracioso, tornado-se, portanto, atraente. tornozelos leves, os pés em perfeito estado.
Podemos observar o funcionamento Durante a toalete, você fará bem em esfregar
ideológico que constitui a representação da os pés com uma escova, a fim de ativar a
mulher em todo o texto, mas tal circulação do sangue e desembaraçar a
funcionamento se destaca logo no trecho pele das células mortas”.
inicial: “a elegância de uma mulher é marcada Retomando as ideias de Foucault (1987)
pela sua boa linha, harmonia de toalete e sobre a disciplina, notamos que há no trecho
também pelo seu modo de andar. A em destaque todo um ritual que deve ser
importância desse fato não deve escapar a seguido para alcançar o objetivo de ter um
nenhuma mulher.” Chama a atenção no andar gracioso. O corpo é coagido a se tornar
trecho, o uso do verbo deve, indicando uma leve, os pés devem estar em prefeito estado.
ordem, da qual não se pode escapar. Tal verbo As expressões “você fará bem”, “deve ter
revela uma marca discursiva em relação ao pernas ágeis” etc, indicam o tom de ordem, da
sexo feminino, indicando o modo pelo qual é qual a mulher não pode fugir. O
preciso agir para se tornar mulher, em outras comportamento também é moldado: é preciso
palavras, para que alguém se constitua esfregar os pés com uma escova, para evitar
mulher, deve obrigatoriamente se preocupar problemas de circulação. Há aí o
com a estética, coisa que não deve escapar a atravessamento do discurso científico em
nenhuma mulher. A mulher, para ser relação à questão da manutenção de uma boa
considerada mulher de verdade (disso não saúde, mas tal objetivo não é o primordial, já
pode escapar), deve seguir os ensinamentos que a manutenção de uma boa circulação nos
sobre o “andar bem” presentes na reportagem. pés está à serviço da estética, de um certo
É a ideologia que constitui, então, a ideia de modo de andar. O uso dos verbos no
mulher de verdade (indicando as coisas das imperativo indica esse funcionamento da
quais ela não pode escapar), condicionando as disciplina do corpo.
mulheres a se colocarem na posição daquelas A tentativa de homogeneização do corpo,
que fatalmente se preocupam com a estética. tornando-o padronizado, também é visível na
Retomando as idéias de Pêcheux (2009), a última parte da reportagem no trecho que diz:
noção de mulher não equivale aqui, àquela “a extremidade das unhas deve ter um
que é representante do sexo feminino, apenas. formato arredondado. Nem muito longa, nem
O sentido de mulher é discursivizado, muito curta (...) tome os pés entre o polegar e
ganhando, então, outras nuances: a mulher os quatro dedos da mão e, alternativamente,
não é apenas o ser humano do sexo feminino, com uma das mãos, pois a outra deverá
mas é aquela que se preocupa com a beleza, massagear o pé, passe os dedos sobre o
que anda de determinado modo, que cuida dos tornozelo. Massageie igualmente o tornozelo
problemas estéticos (como vemos na imagem, e o calcanhar”.
uma perna feminina, exposta aos cuidados Ao estabelecer o formato das unhas e ao
estéticos, tema que se repete na reportagem e indicar os passos que devem ser atingidos
durante toda a revista). para que se tenha um andar gracioso,
Para ser mulher, ou ao menos, para ser a percebemos o modo de construção do corpo
mulher construída pela revista, fruto das feminino, a partir da coerção: a mulher que
posições ideológicas representadas por este não possuir as unhas no formato indicado ou
veículo midiático, ela terá que andar aquela que não fizer a massagem como
“graciosamente”, o que a fará entrar no grupo explicitado na reportagem, não alcançará o
das mulheres elegantes e belas. Retomamos objetivo do bom andar e poderá sofrer
aqui a ideia de Foucault (1987) sobre a sanções como ser vista como uma mulher
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MÉTODO EFICAZ
sobre a cabeça. Os especialistas em beleza mesmo com outros temas que não sejam
feminina recomendam a adoção de tal beleza e lar. Tal repetição nega, através do
exercício que poderá ser feito nas horas silenciamento, às mulheres da época a
vagas seja na cozinha ou na sala de estar, possibilidade de participação em processos
desde que as mulheres evitem andar sobre
políticos e sociais e as reduzem aos cuidados
tapetes.
com a estética e a aparência física.
As condições de produção da época
Além de possuir um rosto bonito, estatura
permitiam que houvesse a supervalorização
adequada e corpo com formas harmoniosas, a
da beleza física e a pouca valorização do
mulher deveria ser elegante para entrar no rol
desempenho intelectual feminino, uma vez
das mulheres bonitas (“Possuir um belo rosto,
que se considerava que as mulheres tinham
formas proporcionais e harmoniosas e uma
capacidade intelectual inferior a dos homens,
perfeita estatura, tudo isso não é suficiente
aos quais cabia a preocupação com temas de
para que uma mulher possa ser considerada
relevância social e política.
elegante...”) Assim, há uma retomada da ideia
A construção do sujeito mulher passa mais
que estava circulando no exemplo anterior, da
uma vez pela construção do corpo, que deve
revista de 1952: a mulher, para ser bonita,
ter “formas harmoniosas e estatura perfeita”, e
deveria ser elegante e, ser elegante,
do treinamento que pressupõe a aprendizagem
significava saber andar de forma harmoniosa.
do modo de andar com leveza e elegância.
O enunciado citado anteriormente mostra a
Mais uma vez retomados a ideia de Foucault
enorme cobrança colocada sobre as mulheres:
(1987) quando o autor ressalta a questão do
elas precisavam ser bonitas e desejadas,
treinamento e da repetição que são elementos
seguindo rituais de domesticalização do
utilizados para disciplinar o corpo. Neste
corpo. O sentido da mulher deriva da
caso, o treinamento consiste na repetição do
formação discursiva que considera a beleza
exercício de andar com o livro sobre a cabeça
como fator fundamental, uma vez que, como
para atingir movimentos leves, comparando
já diziam Pêcheux e Fuchs (1997), os sentidos
as mulheres comuns a bailarinas, artistas de
derivam das formações discursivas com as
cinema ou de TV. Isso fica visível no trecho:
quase os sujeitos se identificam. E, no caso da
“nas escolas de modelos de alta costura, bem
revista, a formação discursiva da beleza como
como nos cursos para artistas que se destinam
fundamental à mulher era a dominante e a
ao Teatro ou ai Cinema, e ainda às futuras
mais difundida. Havia aí uma retomada da
bailarinas e coristas as alunas treinam
ideia de que era “obrigação da mulher ser
continuamente os exercícios de
bonita”. Ora, se à mulher não era legítimo
aprimoramento do andar.” Assim, o corpo
realizar muitas tarefas fora de casa, deveria se
coage a mulher que, para entrar na cadeia da
cuidar em casa, para que pudesse manter o
mulher bonita, é produzida, a partir da
casamento ou atrair os olhares de futuros
coerção de seus movimentos corporais,
pretendentes (caso fosse solteira), daí a ideia
através do modo de andar.
dos exercícios propostos poderem ser feitos
No trecho: “Os especialistas em beleza
no ambiente doméstico.
feminina recomendam a adoção de tal
A mulher construída nesse trecho deveria
exercício que poderá ser feito nas horas vagas
se assemelhar às modelos, ter rosto e corpo
seja na cozinha ou na sala de estar” indica,
belos. Tal discurso ainda é comum nos dias
a partir do enunciado seja na cozinha ou na
atuais, apesar de vermos movimentos de
sala de estar, o lugar efetivamente ocupado
contraidentificação e desidentificação dos
pelas mulheres da época: Na impossibilidade
sujeitos ao romperem com essa ideia e
de romper com o ambiente doméstico, os
reivindicarem a valorização da beleza natural
exercícios do “bom andar” deveriam ocorrer
e não presa a modelos. Vemos a repetição da
dentro de casa, na cozinha ou na sala.
ideia de que a mulher deve se preocupar com
As duas reportagens mostram o
a beleza, num funcionamento ideológico que
funcionamento do interdiscurso (a partir dos
liga o mundo feminino ao mundo da beleza
já ditos sobre a feminilidade) que se
física e silencia a possibilidade de ligação do
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