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Marcelo Calegare
Renan Albuquerque
Organizadores

Processos psicossociais
na Amazônia:
reflexões sobre raça, etnia,
saúde mental e educação

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Comitê Científico - Alexa Cultural
Presidente
Yvone Dias Avelino (PUC/SP)
Vice-presidente
Pedro Paulo Abreu Funari (UNICAMP)
Membros
Alfredo González-Ruibal (Universidade Complutense de Madrid/Espanha)
Ana Paula Nunes Chaves (UDESC – Florianópolis/SC)
Barbara M. Arisi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Benedicto Anselmo Domingos Vitoriano (Anhanguera – Osasco/SP)
Carmen Sylvia de Alvarenga Junqueira (PUC/SP – São Paulo/SP)
Claudio Carlan (UNIFAL – Alfenas/MG)
Cristian Farias Martins (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Denia Roman Solano (Universidade da Costa Rica)
Diana Sandra Tamburini (UNR – Rosário/Santa Fé – Argentina)
Edgard de Assis Carvalho (PUC/SP – São Paulo/SP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR – Porto Velho/RO)
Fábia Barbosa Ribeiro (UNILAB – São Francisco do Conde/BA)
Fabiano de Souza Gontijo (UFPA – Belém/PA)
Gilson Rambelli (UFS – São Cristóvão/SE)
Graziele Acçolini (UFGD – Dourados/MS)
Heloisa Helena Corrêa (UFAM – Manaus/AM)
José Geraldo Costa Grillo (UNIFESP – Guarulhos/SP)
Juan Álvaro Echeverri Restrepo (UNAL – Letícia/Amazonas – Colômbia)
Júlio Cesar Machado de Paula (UFF – Niterói/RJ)
Karel Henricus Langermans (Anhanguera – Campo Limpo - São Paulo/SP)
Kelly Ludkiewicz Alves (UFBA – Salvador/BA)
Leandro Colling (UFBA – Salvador/BA)
Lilian Marta Grisólio (UFG – Catalão/GO)
Lucia Helena Vitalli Rangel (PUC/SP – São Paulo/SP)
Luciane Soares da Silva (UENF – Campos de Goitacazes/RJ)
Mabel M. Fernández (UNLPam – Santa Rosa/La Pampa – Argentina)
Marilene Corrêa da Silva Freitas (UFAM – Manaus/AM)
María Teresa Boschín (UNLu – Luján/Buenos Aires – Argentina)
Marlon Borges Pestana (FURG – Universidade Federal do Rio Grande/RS)
Michel Justamand (UFAM – Benjamin Constant/AM)
Odenei de Souza Ribeiro (UFAM – Manaus/AM)
Patricia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Paulo Alves Junior (FMU – São Paulo/SP)
Raquel dos Santos Funari (UNICAMP – Campinas/SP)
Renata Senna Garrafoni (UFPR – Curitiba/PR)
Rita de Cassia Andrade Martins (UFG – Jataí/GO)
Thereza Cristina Cardoso Menezes (UFRRJ – Rio de Janeiro/RJ)
Vanderlei Elias Neri (UNICSUL – São Paulo/SP)
Vera Lúcia Vieira (PUC – São Paulo/SP)
Wanderson Fabio Melo (UFF – Rio das Ostras/RJ)
Conselho Editorial da Obra
Ana Cristina Alves Balbino (UNIP – São Paulo/SP)
Leandro Infantini (UAlg – Portugal)
Patrícia Bayod Donatti (LAP/UNICAMP – Campinas)
Patrícia Sposito Mechi (UNILA – Foz do Iguaçu/PR)
Rita Juliana Poloni (UFPEL – Pelotas/RS)

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Marcelo Calegare
Renan Albuquerque
Organizadores

Processos psicossociais
na Amazônia:
reflexões sobre raça, etnia,
saúde mental e educação

Embu das Artes - SP


2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS
CONSELHO EDITORIAL

Presidente
Henrique dos Santos Pereira

Membros
Antônio Carlos Witkoski
Domingos Sávio Nunes de Lima
Edleno Silva de Moura
Elizabeth Ferreira Cartaxo
Spartaco Astolfi Filho
Valeria Augusta Cerqueira Medeiros Weigel

COMITÊ EDITORIAL DA EDUA


Louis Marmoz Université de Versailles
Antônio Cattani UFRGS
Alfredo Bosi USP
Arminda Mourão Botelho Ufam
Spartacus Astolfi Ufam
Boaventura Sousa Santos Universidade de Coimbra
Bernard Emery Université Stendhal-Grenoble 3
Cesar Barreira UFC
Conceição Almeira UFRN
Edgard de Assis Carvalho PUC/SP
Gabriel Conh USP
Gerusa Ferreira PUC/SP
José Vicente Tavares UFRGS
José Paulo Netto UFRJ
Paulo Emílio FGV/RJ
Élide Rugai Bastos Unicamp
Renan Freitas Pinto Ufam
Renato Ortiz Unicamp
Rosa Ester Rossini USP
Renato Tribuzy Ufam

Reitor
Sylvio Mário Puga Ferreira

Vice-Reitor
Jacob Moysés Cohen

Editor
Sérgio Augusto Freire de Souza

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Pós-Graduação e Ação Conjunta
A pós-graduação hoje, no país, passa por um momento de
desafio. Traduzir todo um esforço de trabalho científico em publica-
ções de qualidade e com impacto é uma atividade de enfrentamen-
to e alta responsabilidade. Não raro que muitos docentes e dis-
centes tenham de dedicar inúmeras horas de suas vidas na labuta
de revisar dados, coletar amostras e sistematizar procedimentos.
Trata-se de um ato solidário, por fim.
Outrossim, temos certeza que é a partir do apoio con-
junto, das atividades em grupo e das perspectivas coletivas que
estamos avançando na seara do trato responsável com a pesquisa
de qualidade em nosso país. Esperamos, com isso, contribuir para
a produção de ciência e a formação de quadros profissionais de
ampla competência.

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© by Alexa Cultural
Direção
Gladus Corcione Amarop Langermans
Nathasha Amaro Langermans
Editor
Karel Langermans
Capa
K Langer
Revisão Técnica
Michel Justamend e Renan Albuquerque
Editoração Eletrônica
Alexa Cultural
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
C371t CRUZ T, S,
C148m - CALEGARE, Marcelo
A319r - ALBUQUERQUE, Renan

Processos psicossociais na Amazônia: reflexões sobre raça, etnia,


saúde mental e educação, Marcelo Calegare e Renan Albuquerque
- organizadores, Alexa Cultural: São Paulo, 2018

14x21cm - 316 páginas

ISBN - 978-85-5467-053-5
1. Antropologia - 2. Psicologia Social - 3. Sociologia - 4. Com-
portamento - I. Índice - II Bibliografia

‘ CDD - 300

Índices para catálogo sistemático:


Psicologia Social
Sociologia
Antropologia
Todos os direitos reservados e amparados pela Lei 5.988/73 e Lei 9.610

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores. As opiniões


neles emitidas não exprimem, necessariamente, o ponto de vista da editora e dos
organizadores.

Alexa Cultural Ltda Editora da Universidade Federal do Amazonas


Rua Henrique Franchini, 256 Avenida Gal. Rodrigo Otávio Jordão Ramos, n.
Embú das Artes/SP - CEP: 06844-140 6200 - Coroado I, Manaus/AM
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alexacultural@terra.com.br Filho, Centro de Convivência – Setor Norte
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www.alexaloja.com E-mail: ufam.editora@gmail.com
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Prefácio

Uma produção
comemorativa e essencial

Foi com muita satisfação que aceitei o convite para fazer


este prefácio, pois considero que a experiência de ler trabalhos dos
colegas foi especial, dado que aprendemos muito com as escolhas
das temáticas de pesquisas que compõem este livro, bem como
também nos impõe a retomada de reflexões sobre algumas ques-
tões. Vamos a elas.
A primeira diz respeito ao aparecimento de uma pro-
dução coletiva depois de dez anos de existência do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Amazo-
nas, o qual fui uma das fundadoras. A segunda é que a coletânea
foi organizada por dois pesquisadores coordenadores de PPGs a
quem tenho muito apreço e nos quais também trabalho como co-
laboradora. A terceira diz respeito a uma questão das produções
na pesquisa social: a conjugação do rigor metodológico, que per-
mita o entendimento de como o conhecimento foi produzido, com
o rigor criativo, que impede a acomodação em simples e acrítico
cumprimento de regras que a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes) nos aponta enquanto Programas
de Pós-Graduação para a necessidade de produção científica per-
manente.
O fundamental, nesses textos, que podemos classificar
como formidáveis, é que revelam caminhos não lineares. Eles fo-
ram produzidos com soberba competência investigativa de docen-
tes e discentes de curiosidade intelectual e forte aprimoramento
intelectual. Este livro é composto de textos, fruto de pesquisas do
Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Amazonas
(PPGPSI) e da intersecção de parcerias com outros programas
como: Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
(PPGCCOM); Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura
na Amazônia (PPGSCA); Programa de Pós-Graduação em Antropo-
logia Social (PPGAS); Programa de Pós-Graduação em Psicologia

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(MAPSI) da Universidade de Rondônia; Programa de Antropologia
Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janei-
ro (PPAS-MN-URFRJ); e Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (IP-USP).
Destacamos o esforço coletivo de profissionais que atuam
nesses programas, no sentido de fazer o desvelamento de temáti-
cas fundamentais da sociedade regional contemporânea. Sem o es-
forço deles, compromisso e forte capacidade científica pela prática
de pesquisa na área das ciências sociais e humanas, teria sido difí-
cil reunir artigos de ampla criatividade, capacidade inventiva e sa-
gacidade. Na busca de nexos daquilo que aparentemente está dado,
mas que, visto com profundidade, é sempre desafiador, a obra re-
vela um tanto além daquilo que realmente pretendeu mostrar.
Lembro-me do esforço conjunto da maioria desses pro-
fessores pioneiros para organizar e fundamentar o Programa de
Pós-Graduação em Psicologia na Universidade Federal do Amazo-
nas. Foi um ato conjunto, do qual participei e ajudei a coordenar,
e necessário de ter sido realizado. Tratou-se de uma atividade im-
portante, junto a Capes, para a obtenção da autorização de funcio-
namento.
Atualmente, o professor Marcelo Calegare, coordenador
do PPGPSI, tem almejado fortalecer de modo essencial o mestrado,
buscando a participação coletiva de docentes e discentes parcei-
ros, bem como de jovens doutores que aceitam o desafio de tra-
balhar em grupo, sobretudo porque a publicação está em torno de
três eixos: i) Raça e Etnia na Amazônia, ii) Processos Psicossociais
e Saúde; e iii) Processos Educacionais. Trata-se de um esforço lou-
vável.
Lembro também que a presente coletânea é uma mostra
profícua de pesquisas psicológicas da Universidade Federal do
Amazonas e de demais pesquisadores de programas convidados, o
que revela o compromisso do PPGPSI na produção do conhecimen-
to e consequentemente na transformação da sociedade.
Por fim, deixo o convite à leitura do livro.
Certamente, ele será capaz, por si só, de dizer muito mais
do que foi possível a mim dizer até aqui.

Dra. Rosimeire de Carvalho Martins


Professora Fundadora da Faculdade de Psicologia da Ufam

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Sumário

PREFÁCIO
Uma produção comemorativa e essencial
Rosimeire de Carvalho Martins
-9–

APRESENTAÇÃO
Sobre parcerias, ações interinstitucionais e publicações qualificadas
Marcelo Calegare, Renan Albuquerque
- 15 –

Discussões teóricas sobre a construção identitária das mulheres


negras no Brasil
Andreza Cristina da Costa Silva, Cláudia Regina Brandão Sampaio
- 25 -

Racismo, reconhecimento social e os efeitos psicossociais


Carlos Vinicius Gomes Melo, Alessandro de Oliveira dos Santos
- 49 –

O outro dos outros: a problemática da identidade indígena


Christian Ferreira Crevels
- 67 –

Psicologia e povos indígenas: breves apontamentos sobre as


produções em psicologia e a constituição da pessoa Yepa Mahsã
Felippe Otaviano Portela Fernandes, Marcelo Gustavo Aguilar Calegare
- 87 –

Comunidade Sol Nascente: problemáticas comunitárias de povos


indígenas na cidade
Marcelo Gustavo Aguilar Calegare, Mayara dos Santos Ferreira, Diana Kássia Oliveira
de Almeida Silva, Elizabete Amancio de Senna Silva, Janaína Léia Passos da Silva, Kássia
Pereira Lopes, Rayza Sousa Ramos, Renata Fernanda Cabral Ramos, Rosa Mirtes Araujo,
Simone da Graça Campelo
- 105 –

- 11 -
Indígenas em Manaus: a manutenção da identidade étnica no
meio urbano
Marlise Rosa
- 129 –

A construção da clínica psicossocial no Brasil e as práticas de


cuidado e promoção de autonomia nos serviços de Saúde Mental
contemporâneos: uma revisão teórica
Adriana Rosmaninho Caldeira de Oliveira, Juliana de Souza Izidio do Padro
- 151 –

Práticas emergentes em psicologia: uma experiência de


intervenção com slackline e tecido circense
Consuelena Lopes Leitão, Igor Brelaz
- 175 –

Em benefício de quem? Desafios à participação social em


associações de moradores na Amazônia
Lílian Caroline Urnau, Jéssica Fabrícia Silva Lima, Angélica de Souza Lima, Ana Paula
Farias Ferreira, Ana Maria Souza Brito, Lua Clara Melo Fernandes
- 193 –

Notas sobre o universo psi de pessoas “baldias” do centro de


Manaus/AM
Noélio Martins Costa, Renan Albuquerque
- 215 –

Atribuições causais sobre o rendimento escolar de estudantes


manauaras
Gisele Cristina Resende, Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas
- 233 –

Caminhos percorridos pela infância: conhecer, compreender,


proteger
Kelly Cristina Costa Albuquerque, Maria Ivonete Barbosa Tamboril
- 253 –

- 12 -
Pesquisas em políticas educacionais nos programas de pós-
graduação em psicologia da região norte
Marli Lucia Tonatto Zibetti, Marcela Abiorana do Nascimento
- 271 -

Heteronormatividade, lgbtfobia e suas implicações subjetivas
Norcirio Silva Queiroz, Denise Machado Duran Gutierrez
- 295 -

Sobre autoras & autores


- 311 -

- 13 -
- 14 -
APRESENTAÇÃO

Sobre parcerias,
ações interinstitucionais
e publicações qualificadas

MARCELO CALEGARE
(Coordena o Programa de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Amazonas. Possui doutorado em
Psicologia Social pela USP/2010. Realizou pesquisa pelo Pro-
grama de Desenvolvimento Científico Regional no Inpa/2011
2014)

RENAN ALBUQUERQUE
(Coordena o Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Universidade Federal do Amazonas. Pos-
sui doutorado em Sociedade e Cultura na Amazônia pela
Ufam/2013. Realizou estágio pós-doutoral em Antropologia
pela PUC-SP/2017)

A obra é resultante de pesquisas de discentes e docentes


do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Fe-
deral do Amazonas (PPGPSI-UFAM). Textos inseridos no livro são
oriundos de parcerias estabelecidas com demais PPGs da Ufam,
como o Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação
(PPGCCom), o Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cul-
tura na Amazônia (PPGSCA) e o Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social (PPGAS). Igualmente, há escritos a partir de
diálogos com docentes e discentes de outros Estados, tal e qual o
Programa de Pós-Graduação em Psicologia (MAPSI) da Universida-
de Federal de Rondônia (UNIR), o Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ) e o departamento de Psicologia
Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de
São Paulo (PST/IP-USP). Trata-se de uma construção em rede, na
firmeza de concretizar cada vez mais as ações.

- 15 -
Tudo começou pelo nosso antigo contato com o prof. Dr.
Alessandro Oliveira da Silva, do IP-USP, que em uma de suas visitas
a Manaus/AM sugeriu realizar evento conjunto para tratar de te-
mas ligados à psicologia e às relações étnico-raciais. Após algumas
trocas de sugestões de datas, mesas e temáticas, realizamos entre
10 e 12 de abril de 2017 o “I Seminário Amazonense de Psicolo-
gia e Relações Étnico-Raciais”. O evento, organizado em parceria
com o núcleo Manaus da Associação Brasileira de Psicologia Social
(ABRAPSO), discutiu relações étnico-raciais sob perspectiva inter-
disciplinar e, mediante vertente da Psicologia, abordou questões
de negritude e de povos indígenas na Amazônia. Contamos com
a participação de antropólogos indígenas e não indígenas do PPG
em Antropologia Social da Ufam e do Museu Nacional da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro, com uma historiadora do PPG
em História da UFAM, com o prof. Alessandro e um doutorando do
IP-USP, bem como discentes do nosso PPGPSI. Como resultado dos
profícuos debates, convidamos palestrantes a escreverem textos
de suas falas, o que foi atendido por uma parte deles e que constam
na primeira seção deste livro.
Para tornar a obra interessante e veículo de divulgação
das produções dos PPGs, estendemos o convite para discentes e
docentes de nosso programa e do MAPSI-UNIR, uma vez que já es-
tamos mantendo contatos e parcerias há um tempo e ainda não
havíamos produzido um livro em conjunto. Assim, o segundo e
terceiro eixos da coletânea tratam de pesquisas empreendidas na
região Norte e em demais regiões brasileiras, na busca pelo forta-
lecimento de laços acadêmicos e trazendo ao público produções
de impacto. Desta feita, a intenção foi mostrar que os únicos dois
PPGs em Psicologia da Amazônia Ocidental, mediante ações estra-
tégicas, têm realizado investigações importantes para a nossa rea-
lidade regional e que, por sua vez, poderão servir como essenciais
subsídios da a estudantes, pesquisadores e profissionais que lidam
com o contexto amazônico.
Feitas as considerações, cabe destacar que, na primeira
parte da coletânea, apresentamos o eixo “Raça e Etnia na Amazô-
nia”, envolvendo discussões acerca de problemáticas inerentes a
autodeclaração e autoimagem, entre demais questões implicadas
em similar âmbito. O viés é de ampla significância atualmente, so-

- 16 -
bremaneira dada a conjuntura nacional e latino-americana. Ao ini-
ciarmos o eixo, com o estudo de Andreza Silva e Cláudia Sampaio,
intitulado “Discussões teóricas sobre a construção identitária das
mulheres negras no Brasil”, chamamos atenção para duas pergun-
tas fundamentais: i) o que é ser mulher negra no Brasil? e ii) como
se constrói a identidade marcada pelos componentes ideológicos
de gênero e raça? O artigo apresenta conceitos de identidade que
permitem operar com a ideia de movimento, transformação, iden-
tidade política e identidade coletiva em relação à temática aborda-
da. Pressupostos teóricos que orientam o olhar de Silva e Sampaio
estão fundamentados na Psicologia Social Crítica, que concebe
processos identitários forjados em enlaces sociais e culturais, onde
dialeticamente sujeitos atuam e produzem.
Carlos Melo e Alessandro Santos assinam “Racismo, reco-
nhecimento social e os efeitos psicossociais”, ensaio teórico em que
são apresentadas relações étnico-raciais por meio da Teoria Crítica
frankfurtiana, com aportes da noção de reconhecimento social de
Axel Honneth (2015). Melo, doutorando do Programa de Psicolo-
gia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo
(IP-USP), e Santos, docente do Departamento de Psicologia Social e
do Trabalho do IP-USP, analisam como a incongruência e o desres-
peito a este reconhecimento pode impactar pessoas no contexto de
racismo, produzindo, nestas, efeitos psicossociais negativos, como
o preconceito, a discriminação e a humilhação social. Apresentam
ainda, como conclusão, o benefício e a limitação do uso desta no-
ção para compreender o fenômeno das relações étnico-raciais no
Brasil.
Em “O outro dos outros: a problemática da identidade
indígena”, Christian Crevels, membro do Conselho Indigenista Mis-
sionário Regional Norte I, traz à tona discussão acerca de identida-
des indígenas, conforme tem sido abordada na antropologia, em
uma linguagem que possa ser apreendida também pelas demais
áreas de conhecimento que se encontrem diante do trabalho ou
estudo com povos indígenas, onde o debate é diretamente perti-
nente. A intenção é mostrar que a problemática da identificação
deve ser entendida como uma relação simbólica entre interações
sociais e políticas históricas que incidem tanto no plano ideológico
da construção de categorias sociais e também diretamente na vida
dos povos indígenas.

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Felippe Fernandes e Marcelo Calegare, em “Psicologia
e povos indígenas: breves apontamentos sobre as produções em
psicologia e a constituição da pessoa Yepa Mahsã”, abrem espaço
para um diálogo da Psicologia Cultural com a cultura Yepa Mahsã.
O texto foi impulsionado também por discussões realizadas entre
participantes do 1º Seminário Amazonense de Psicologia e Rela-
ções Étnico-Raciais, realizado em abril de 2017, como destacamos.
Os autores abordaram caminhos metodológicos e tendências de
estudos de psicologia na temática, em âmbito nacional e interna-
cional. Outrossim, almejaram reflexões a partir de marcos teóricos
da ciência não indígena com a cultura Yepa Mahsã, apostando em
pensar possíveis caminhos para o fazer da psicologia junto a povos
indígenas amazônicos e entendendo a existência de pontos de vis-
ta alternativos ante cenários acadêmicos.
Em “Comunidade Sol Nascente: problemáticas comuni-
tárias de povos indígenas em ambientes de cidade”, Marcelo Ca-
legare, Mayara Ferreira, Diana Silva, Elizabete Silva, Janaína Silva,
Kássia Lopes, Rayza Ramos, Renata Ramos, Rosa Araújo e Simone
Campelo descrevem cenário relacionado à migração de povos indí-
genas para cidades, o que tem caracterizado situações precárias de
modos de vida e subsistência. As autoras e o autor entendem se-
rem comuns assentamentos estabelecidos em áreas de ocupação,
com dificuldades acerca de falta de saneamento básico, regulariza-
ção de água e energia elétrica, legalização da terra e moradias em
áreas de risco, além de problemas de dimensão psicossocial. Dian-
te disto, através de um Projeto de Extensão foi realizado estudo
no Assentamento Indígena Sol Nascente, levantando os problemas
enfrentados e elaborando um plano de ação. Através de Pesquisa
Ação Participante, foram realizadas visitas semanais, entrevistas e
conversas informais com moradores e líderes comunitários.
O fenômeno da migração de indígenas para a cidade tem
crescido significativamente nos últimos anos, tanto que, atualmen-
te, estima-se que 36% da população indígena brasileira resida em
áreas urbanas. Considerando o suposto, Marlise Rosa, no texto “In-
dígenas em Manaus: a manutenção da identidade étnica no meio
urbano”, por meio da reconstrução das narrativas de um grupo de
mulheres indígenas – de diferentes etnias – residentes na periferia
da cidade de Manaus (Amazonas), busca refletir sobre o cotidiano

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de nativos nas cidades, demonstrando dificuldades de adaptação
ao modo de vida urbano. Rosa, doutoranda no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, na Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ), destaca que
ser indígena na cidade requer a constituição de um novo modo de
vida, que não os torna “menos indígenas”, mas que os distingue
de seus parentes que permaneceram em suas comunidades, e, até
mesmo, em cidades menores. Viver na cidade, entre brancos, não
significa viver como brancos, tampouco deixar de ser indígena.
Na segunda parte da coletânea, o eixo norteador é “Pro-
cessos Psicossociais e Saúde”, que engloba discussões acerca da
saúde mental e de processos participativos em ambientes urbanos.
Aqui, objetivamos destacar a relação de profissionais da psicologia
com diferentes públicos, seja na própria área psi ou em segmentos
correlatos. Sobre os papers sublinhados, o primeiro deles destaca
a problemática da efetivação e legitimação da reforma psiquiátri-
ca brasileira, baseada no paradigma psicossocial de reabilitação e
promoção da autonomia dos sujeitos. Tomando o suposto como
hipótese, Adriana Rosmaninho de Oliveira e Juliana Prado, em “A
construção da clínica psicossocial no Brasil e as práticas de cuida-
do e promoção de autonomia nos serviços de saúde mental con-
temporâneos: uma revisão teórica”, almejaram pensar o caminho
percorrido para a ideia de construção do paradigma psicossocial
e clínica de reabilitação, tendo em vista contextualizar o cenário
de onde partem discussões sobre os rumos atuais da reforma psi-
quiátrica no país. A partir de então, as autoras discutem desafios,
limites e possibilidades de desenvolvimento de práticas no cotidia-
no dos serviços que se propõem substitutivas à lógica manicomial.
Consuelena Leitão e Igor Brelaz, em “Práticas emergen-
tes em psicologia: uma experiência de intervenção com slackline e
tecido circense”, exploram vieses referentes a ações do projeto de
extensão “Maria Jiquitaia”. O projeto é parte das atividades do La-
boratório de Pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento Humano
e Educação (LADHU), da Faculdade de Psicologia da Universidade
Federal do Amazonas (Fapsi/Ufam), e é realizado em uma Poli-
clínica do SUS e em espaços de uma comunidade situada na zona
sul de Manaus. A partir de experiências no campo da clínica social
ampliada e da psicologia social comunitária, as atividades se cons-

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tituem também como ações de práticas emergentes no campo do
atendimento psicológico e psicossocial. Porquanto, o artigo tende
a apontar para interpretações psicossociais incidentes no referido
contexto.
Em sequência, temos o estudo “Em benefício de quem?
Desafios à participação social em associações de moradores na
Amazônia”, de Lílian Urnau, Jéssica Lima, Angélica Lima, Ana Paula
Ferreira, Ana Maria Brito e Lua Clara Fernandes, que analisaram
limites e possibilidades de organização social e participação em
associações de moradores da Amazônia Ocidental. Foram realiza-
das entrevistas semiestruturadas. O estudo contemplou cinco as-
sociações de cinco bairros populares da cidade de Porto Velho-RO,
contando com a participação de pelo menos uma liderança e dois
moradores de cada um dos lócus, totalizando seis lideranças e 14
moradores entrevistados. A análise das informações destacou que:
i) sobressaem os limites sobre as possibilidades de participação
nas associações investigadas, ii) predominam a gestão pela hete-
ronomia, a personificação e centralidade do poder dos presidentes
das organizações civis e iii) a utilização destas como instrumentos
de clientelismo e barganhas eleitorais por agentes políticos.
O doutorando do Programa de Pós-Graduação em Socie-
dade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) da Ufam, Noélio Martins
Costa, em parceria com o docente Renan Albuquerque, professor
permanente do PPGSCA e coordenador do Programa de Pós-Gra-
duação em Ciências da Comunicação (PPGCCom), fecham o eixo
“Processos Psicossociais e Saúde”, assinando o texto “Notas sobre
o universo psi de pessoas ‘baldias’ do centro de Manaus/AM”. O ar-
tigo descreve implicações do cotidiano psicossocial de indivíduos
que moram nas ruas do centro de Manaus/AM. A meta foi mos-
trar como se ocupam pessoas em situação de rua (PSR) que têm
trajetos estabelecidos em razão de suas vivências específicas e até
que ponto tais trajetos engendram constituições psicossociais. Foi
utilizada a etnografia como aporte metodológico para se buscar
aproximações concernentes ao estudado, conforme imersão em
contexto social, via observação participante. O que se vivenciou
foram atravessamentos do dia-a-dia dessas pessoas. A intenção foi
descrever retratos de vidas que, apesar do sofrimento psicossocial,
teimam em existir, em serem quem são. Foi meta ainda registrar

- 20 -
como trabalham, onde residem e como se alimentam as PSR que,
por vagarem pelas ruas, são tratadas como “baldias”.
O terceiro eixo da coletânea foi denominado de “Proces-
sos Educacionais” e busca aglutinar reflexões em torno da interfa-
ce entre psicologia e educação. São textos que nos remetem a uni-
versos acadêmico-científicos e escolares, trazendo debates acerca
do fazer educacional e suas consequências para a formação de es-
tudantes em diferentes níveis de ensino. No capítulo “Atribuições
causais sobre o rendimento escolar de estudantes manauaras”, que
inaugura a terceira parte, Gisele Resende e Suely Mascarenhas ob-
jetivaram identificar engendramentos concernentes ao rendimen-
to escolar de estudantes do 9º ano do ensino fundamental da rede
estadual da cidade de Manaus. A amostra foi de 1.011 estudantes
e o instrumento utilizado foi o Questionário das Atribuições para o
Rendimento Escolar (QARE de ALMEIDA & MIRANDA, 2008, adap-
tado por MASCARENHAS, 2010), cujas propriedades mostraram-
se adequadas neste domínio das ciências humanas. Utilizou-se
abordagem quantitativa para a análise dos dados. As causas apon-
tadas para o rendimento escolar foram verificadas pelo método
de análise fatorial. Concluiu-se que a identificação e explicação de
atribuições causais sobre o rendimento escolar pode favorecer a
elaboração de ações interventivas na escola e que o QARE é um
instrumento inovador no domínio da psicologia escolar, gerando
indicadores conceituais que podem contribuir para a revisão do
currículo de formação de docentes e gestores da educação.
Sequencialmente, a pesquisa de Kelly Albuquerque e
Maria Ivonete Tamboril, intitulada “Caminhos percorridos pela in-
fância: conhecer, compreender, proteger”, é uma projeção para se
pensar delineamentos acerca do processo histórico de construção
da infância no universo conceitual científico, apresentando tam-
bém a temática em nível nacional. Para isso, utiliza-se de pesquisa
bibliográfica e documental com foco em dados estatísticos. Como
conclusão, as autoras apontam que políticas públicas para o seg-
mento infantil devem ser repensadas e/ou aprimoradas, no senti-
do de que a efetivação de saberes e fazeres mereça maior atenção,
pois políticas públicas existentes pouco atendem às necessidades,
muitas vezes por conta de maus gerenciamentos de autoridades
do setor. No entanto, destacam as professoras, não só às autorida-

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des deve-se delegar a responsabilidade da seguridade dos direitos
da infância. A família e a sociedade são agentes ativos e possuido-
res de deveres compartilhados.
Em “Pesquisas em políticas educacionais nos Programas
de Pós-Graduação em Psicologia da Região Norte”, Marli Zibetti e
Marcela do Nascimento tiveram como meta levantar e analisar te-
ses e dissertações produzidas em Programas de Pós-Graduação em
Psicologia da Região Norte, no período de 1996 a 2017, voltadas
ao estudo de políticas educacionais. Os resultados indicam que a
região conta com apenas cinco PPGs, sendo que três oferecem so-
mente mestrado e dois oferecem mestrado e doutorado. O maior
número de trabalhos foi produzido como dissertação de mestrado,
oriundas do programa da Universidade Federal de Rondônia. Teo-
ricamente, predominam referências à Psicologia Histórico-Cultu-
ral e à Psicologia Escolar Crítica. Metodologicamente, as pesquisas
foram desenvolvidas sob abordagem qualitativa. Aponta-se para a
importância dos estudos sobre políticas educacionais sob a ótica
da psicologia, para a análise dos processos de elaboração, imple-
mentação e apropriação dessas políticas por parte de seus desti-
natários de maneira que se possam compreender elementos inter-
ferentes no desenvolvimento de programas e ações em contextos
educativos.
No estudo que encerra o terceiro eixo, denominado “He-
teronormatividade, LGBTfobia e suas implicações subjetivas”, Nor-
cirio Queiroz e Denise Gutierrez discutem os meios pelos quais
permissões são socioculturalmente concedidas para a instauração
e manutenção da discriminação LGBTfóbica, associadas à exclu-
são simbólica no âmbito escolar. Por vezes, essas permissões se
dão de modo sutil; em outras, o despreparo ético, moral, técnico
e emocional do quadro profissional da escola em lidar com situa-
ções que envolvem diferentes sexualidades acaba por perpetuar
preconceitos e acentuar a invisibilidade, mudez e marginalização
de alunos diferentes da normativa. Legitimada por um contexto
histórico, cultural e ideológico, a LGBTfobia continua se mantendo
e vem sendo perpetuada no contexto escolar, seja na ausência de
representatividade em livros e apostilas didáticas, seja em discri-
minação disfarçada de brincadeira, seja, ainda, pela agressão físi-
ca. Faz-se importante que escolas mudem a cultura em relação a

- 22 -
alunos LGBT, dando voz e espaço para que diferenças sejam vistas
e respeitadas. Além disso, mudanças precisam integrar aspectos
ideológicos e culturais para que se possa discutir diferenças se-
xuais nas escolas, principalmente a partir do preparo do corpo téc-
nico-profissional para atuar de maneira ética e respeitosa.
Por fim, cabe destacar que acreditamos ser a coletânea
uma mostra eficaz daquilo que atualmente se realiza enquanto in-
vestigação científica no Norte do país e como tem se efetivado o
diálogo de profissionais da área psi com discentes, docentes e pes-
quisadores de demais áreas e localidades brasileiras. Desta feita,
desejamos uma boa leitura e que venham novas coletâneas.
Paz e bem.

Manaus, 11 de setembro de 2018.

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- 24 -
Discussões teóricas sobre a construção
identitária das mulheres negras no Brasil
Andreza Cristina da Costa Silva
Cláudia Regina Brandão Sampaio

Introdução
Os estudos da Psicologia acerca das relações étnico-ra-
ciais incluem temáticas cuja presença no campo das ciências gera
certa discussão. Seriam tais temáticas recentes neste campo ou
inexistentes até pouco tempo? Autores como Santos e Fernandes
(2015) Munanga (2015) e Masiero (2005) defendem a presença
efetiva dessa temática antes mesmo da consolidação da Psicolo-
gia no Brasil, todavia pontuam que são recentes as produções mais
críticas, sobretudo no campo da Psicologia. Partilhando da mesma
perspectiva dos autores citados, buscamos conhecer os caminhos
trilhados pela Psicologia em torno das questões étnico-raciais
para, a partir de então, compreender aspectos relativos à constru-
ção identitária das mulheres negras no Brasil.
Conforme Masiero (2005), os estudos realizados no fim
do século XIX e início do século XX baseavam-se numa postura co-
lonizadora e hierarquizada de olhar a população negra enquanto
objetos destoantes e desviantes. Esta postura era também atra-
vessada por uma ideologia de enquadre e melhoramento da raça
nacional, a qual foi estruturada por um racismo científico muito
difundido pelo mundo.
Nesse sentido, quando trazemos para a discussão o pro-
cesso identitário da mulher negra, percebemos essa construção
entrelaçada a uma história de subalternação social, discrimina-
ção, violência e apagamento, não só pela conjuntura racista, mas
também pelo sistema patriarcal. Como estratégia a esses sistemas
é necessário enfatizar os enfrentamentos diários, as conquistas,
potências e narrativas de mulheres negras que imbricadas nesse
cenário social, resistem.

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Contexto histórico da mulher negra no Brasil
Período Colonial no Brasil (1530-1888)
A presença das mulheres negras na história do Brasil ini-
cia a partir da diáspora africana, processo onde homens, mulheres
e crianças de diferentes troncos linguísticos da África foram força-
damente traficados enquanto mercadoria para uso de mão de obra
escrava em diversos países. No Brasil, este período compreendeu
de 1530 a 1888, quando é abolida a escravatura. Foi na história do
Brasil colonial que a estas mulheres negras, oriundas de grupos
distintos do continente africano, foram tomadas como escravas e
a elas atribuídas sentido de inferioridade intelectual e afins. Em
face às influências culturais e científicas do hemisfério norte, foi
racializada a cor da pele, definindo, classificando, demarcando lu-
gares, assim como intervindo na maneira de tratar e ser tratada em
função dos matizes.
Conforme aponta Maria da Silva (2010), os estudos so-
bre a história da população negra no Brasil, sobretudo da mulher
negra no período colonial, vêm sendo recorrentes por parte dos
pesquisadores da historiografia social da escravidão, tais como
Giacomini (1988) e Pereira (2012). De acordo com as autoras, as
mulheres negras escravizadas, eram tratadas como objeto de com-
pra, “coisa”, moeda de venda e troca, condições desumanas em que
o sistema escravista alimentou para o seu pleno funcionamento no
período colonial. É também Giacomini (1988) quem aponta que o
trabalho exercido pela mulher escrava não correspondia aos pa-
péis de gênero feminino. Ao contrário, trabalhavam ombro a om-
bro com os homens em serviços braçais. Sua atuação era presente
também na casa patriarcal com trabalho doméstico, como amas-de
-leite e como objeto sexual de seus senhores, representando com
isso em figura de lucro reprodutivo de novos escravos.
As formas de resistência nesse período foram inúmeras,
embora não relatadas nos livros de história. De acordo com Eduar-
do Paiva (2012), esses registros encontram-se no anonimato, sen-
do necessário buscar rastros nos arquivos, museus e bibliotecas.
O autor traz histórias de mulheres negras libertas na escravista e
mestiça capitania das Minas Gerais, mostrando biografias curtas
como a de Joana da Silva, mulher que antes de morrer deixou regis-
trado em testamento os seus bens materiais, transferindo-os para

- 26 -
pessoas com estreitos laços afetivos mantidos durante a sua vida.
Seus bens materiais foram acumulados através de suas andanças
de Recife a Minas Gerais, mobilidade que na época era bastante
perigosa. Traz também a história de Anastácia, mameluca (filha de
português e de índia), mulher que criou seus filhos sem a presença
do companheiro Requeixo, o qual é apresentado pela mesma como
homem agressivo e violento, motivo pelo qual atravessava cami-
nhos perigosos e alternativos para não encontrá-lo, mudando seu
nome para Francisca no intuito de reconstruir sua vida.
As mulheres escravizadas que conquistavam suas alfor-
rias e que acumulavam riquezas recorriam a inúmeras estratégias
para a assegurar sua própria existência, como também contri-
buíam, através de seus testamentos, para o alcance de melhorias
nas condições de vida dos seus pares. Enquanto processos de luta
em face ao cenário social, elas teciam através de suas histórias
orais, nas suas andanças perigosas, na mudança de nome, na dan-
ça, comida e etc., maneiras diversas de resistir e existir.
Desta feita, ao realizarmos o resgate de nossa própria
história enquanto mulheres negras penetramos em universos de
mulheres que viveram a experiência de terem tido sua identidade
invisibilizada, terem sido submetidas a violências diversas, mas
que também empreenderam ações de resistência ao sistema (SIL-
VA, 2010). Logo, tanto as opressões exercidas às mulheres negras
incidiam sobre os processos identitários pela força da violência
que lhes eram impostas, quanto as saídas e os modos de enfrenta-
mento igualmente constituíam suas identidades.
Dentre todos os direitos negados à mulher negra, o de
constituir família e criar a sua prole também foi retirado pelas im-
posições de poder e violência exercidos, sendo possível vislumbrar
mudanças desse cenário após a Lei do Ventre Livre de 1870, que
declarava liberdade aos filhos nascidos após a promulgação da lei.
Esta lei tinha como objetivo reduzir num processo lento e gradual
os impactos da escravatura no Brasil. As crianças nascidas a par-
tir da promulgação ficavam sob responsabilidade dos senhores de
suas genitoras ou do governo até os 21 anos de idade. Infelizmente,
sob a tutela dos feitores ou do Estado, suas condições de sobrevi-
vência pouco se modificaram e os impactos entre ter nascido antes
ou após a lei não se tornaram tão expressivos. Em função desse

- 27 -
cenário muitas mulheres praticaram o aborto, não somente como
forma de não querer que seus filhos vivenciassem as mesmas con-
dições subumanas, mas também como um ato de resistência e au-
tonomia.
O resgate histórico, tendo como eixo norteador os pro-
cessos identitários na questão das ideologias de raça e gênero,
leva a nos depararmos não apenas com os grandes demarcado-
res – promulgação de leis, mudanças no cenário social e político
– mas com as micro revoluções, com os embates empreendidos na
intenção de construir maneiras de existir, resistir e reexistir. Em
linhas gerais, trata-se de uma ferramenta que possibilita promover
reflexão crítica e potencializar as virtudes das mulheres negras na
história do país.

Período pós-abolição no Brasil-República (1888-


1940)
A autora Patrícia Maria Melo Sampaio (2011) nos lembra
que o passado é, de algum modo, sempre presente. Assim, a his-
tória colonialista escravocrata e a hierarquização de gênero atra-
vessaram e permaneceram atualizadas no período da república, da
industrialização até a contemporaneidade. Os processos identitá-
rios de mulheres negras sofrem a reprodução de práticas racistas
e misóginas, incidindo no seu autoconceito de beleza, inteligência,
afetividade, impondo um único modo ser.
Com o advento da abolição e a efervescência do capitalis-
mo, a imagem de subserviência e inferioridade da população negra
não se transformou: ao contrário, fomentou um cenário de com-
petição que definia cada vez mais comportamentos e lugares atri-
buídos à condição de ser negro. Não houve medidas ou um plano
de ação proveniente do Estado em favorecer melhores condições
de vida para as pessoas negras libertas, mas sim uma política de
manutenção dos lugares subalternos e inferiores. Essa suposta ne-
gligência do Estado, mas que se consolidava como uma política nas
práticas sociais, resultou na ocupação acelerada da população às
margens das cidades construindo os cortiços, favelas e conglome-
rados, bem como na incidência nos altos índices de pobreza, doen-
ças e vigilância constante pelo o Estado.
Diferente da conquista dos direitos civis nos EUA e do fim
do apartheid na África, o Brasil construiu um processo histórico

- 28 -
com suas particularidades no que tange aos direitos do povo ne-
gro. Dentre as suas particularidades, cabe evidenciar que através
de grande pressão da Inglaterra e de outros países, foi o último
país do ocidente a aderir a abolição, além de pontuar a influência
de processos como a miscigenação, o contínuo de cor e a demo-
cracia racial no desenvolvimento do Brasil. Estes aspectos tradu-
zem a política de manutenção dos lugares de subalternização da
população negra adotada no país. Norteou-se no estabelecimento
de uma tríade das relações raciais: a miscigenação, o colorismo e a
democracia racial.
A miscigenação foi um fenômeno social realizado atra-
vés de estupro contra mulheres negras e indígenas com interesses
na reprodução de novos escravos sem custo, no silenciamento e
como estratégia no fortalecimento de uniões inter-raciais para o
embranquecimento da população brasileira. Em outras palavras,
a miscigenação foi um episódio que se utilizou da violência para
produzir e manter outras violências contra as mulheres negras.
Dessa maneira, a miscigenação tornou-se uma ferramen-
ta útil para os interesses pós-abolicionistas do governo, um projeto
de sociedade que se amparava na justificativa de identidade na-
cional mais homogênea (branca) para o progresso do país. Foram
inúmeros os incentivos: a ciência contribuiu com as suas produ-
ções estigmatizadoras de raças inferiores, eugênicas incidindo um
processo de exclusão sobre os negros, como o Estado na produção
de leis que caminhavam no sentido de cercear a vivência humana,
através da patologização, marginalização, encarceramento e geno-
cídio da população negra no Brasil.
Em busca dessa identidade nacional, solidificava-se a
ideologia de que quanto mais próximo do ideal branco, mais huma-
no tornava-se o indivíduo. Como resultado da miscigenação, o co-
lorismo surge e torna-se ferramenta para continuidade dos privi-
légios e desvantagens de pessoas negras e não negras. O colorismo
em linhas gerais, trata-se da discriminação em face das diferentes
pigmentações de cor de pele, possuindo como parâmetro de nor-
malidade a branquitude.
Nesse sentido quando falamos sobre o que é ser mulher
negra no Brasil, precisamos nos localizar geograficamente e so-
cialmente pois falamos de uma realidade que contempla mais de

- 29 -
30 tons de pele negra, fruto da miscigenação. Dessa forma, é ne-
cessário destacar a pluralidade dessas identidades que abarcam
não somente os diversos tons de melanina, mas todo um aparato
histórico que se atualiza rotineiramente na classificação do que é
belo e feio, certo e errado, normal e patológico. Nesse caminhar, é
curioso como várias ideias e práticas desumanas oriundas desse
período mantiveram-se com o passar do tempo, e mais do que isso,
foram “compradas” pela população negra enquanto verdade acer-
ca da inferioridade racial, impactando no processo de construção
identitária.
O que chamamos de “artimanha brancocêntrica” foi in-
teriorizada pela mulher negra, compreendendo que para ser acei-
ta enquanto pessoa, precisaria anular-se, extinguir-se para cor-
responder aos interesses desse sistema. O uso do dispositivo do
embranquecimento está presente não só na estética negra, mas
nas relações afetivas, sociais, sobretudo, no intelecto, na práti-
ca do pensar e das produções elaboradas pelas mulheres negras.
No campo da estética, essas ferramentas revelam-se no cotidiano,
por exemplo, pelo uso de química relaxante no cabelo afro como
possibilidade de acesso à “boa aparência” solicitada nos anúncios
de emprego. O pensamento crítico aqui não se dá em torno de um
juízo de valor sobre fazer ou não uso de químicas relaxantes ou
outras técnicas de alisamento capilar, mas se esta prática, realizada
por um número expressivo de mulheres negras, se dá como exer-
cício de liberdade ou necessidade de anular demarcadores étnico
-raciais. Já no campo das relações afetivas, revela-se na busca em
manter relações com homens brancos com o intuito de “clarear o
sangue da família”, e assim, possibilitar aos seus descendentes pri-
vilégios que até então eram preteridos.
Todavia, seguindo ou não as premissas do embranqueci-
mento, tudo que é produzido ou realizado pelas mulheres negras
não é considerado digno ou apropriado, criando-se uma invisibili-
dade acerca de seus feitos. A miscigenação racial no Brasil enquan-
to ferramenta da tríade atua de maneira a endossar o discurso
“somos todos iguais” proposto pela democracia racial. Contudo,
ao invés de promover relações igualitárias, fortalece a invisibilida-
de de negros e negras como identidades plenas, bem como torna
eficaz as tentativas de embranquecimento. Como afirma Sueli Car-

- 30 -
neiro (2011a) é um dispositivo a serviço dos interesses políticos e
ideológicos, que mantém a ausência de identidade racial ou con-
fusão racial, impedindo o reconhecimento da identidade negra e o
sentimento de pertença que poderiam ser utilizados para fins de
reivindicações coletivas para equidade racial.
Em outras palavras trazer o discurso da miscigenação
como sinônimo de “somos todos humanos” na tentativa de uma
identidade nacional homogênea, alimentando uma falsa ideia de
harmonia e paraíso racial, é invisibilizar a discussão acerca da in-
fluência direta dos povos da África e da maneira como os afro-bra-
sileiros se mobilizaram e permaneceram vivos. Conhecer a própria
história é um movimento necessário para o reconhecimento de si.
A política adotada pelo Estado homogeneizava de forma
negativa o que significava “ser negro” e acirrou a marginalização
dos afro-brasileiros. Mesmo em face a esse quadro de vulnerabi-
lidade no período pós-colonial, a mulher negra exerceu um papel
significativo o qual é necessário enfatizar, a despeito da ausência
do Estado e a vinda de imigrantes asiáticos e europeus para ocu-
parem o espaço de trabalho deixados pela mão de obra escraviza-
da. Tendo em vista a dificuldade dos homens libertos conseguirem
trabalho, as mulheres negras exerceram uma dupla jornada: traba-
lhavam fora para manter a subsistência de seus membros familia-
res, exercendo atividades como vendedoras, domésticas, quitutei-
ras e prostitutas, tornando-se figura principal na família. Teceram,
assim, uma história com recorte de gênero e raça que não dialoga-
va com o modelo familiar hegemônico, onde os papéis sociais de
homem e mulher tinham uma funcionalidade para a sociedade da
época.
Como bem coloca Boaventura de Souza Santos (1999)
esse tipo de invisibilidade e apagamento de nossos feitos pode
receber o nome de epistemicídio. O epistemicídio refere-se ao si-
lenciamento e apagamento das ciências, práticas e produtos cons-
truídos pelos distintos grupos culturais humanos, neste caso em
especial as mulheres negras, onde se desenvolve a negação da legi-
timidade de distintas formas de conhecimento, dos saberes produ-
zidos e do reconhecimento delas enquanto sujeitos do saber e não
meros objetos passíveis de subordinação.
Nessa perspectiva, o olhar do colonizador é que deter-
mina o que é válido. É interessante destacar que a autora Neusa

- 31 -
Souza (1983) entende que, embora a tríade das relações raciais
no Brasil tenha produzido sofrimento e negação do eu, também
possibilitou condições de ascensão do povo negro. No entanto, é
importante questionar os mecanismos da ascensão social da mu-
lher negra no cenário racista vigente, tendo em vista que utilizar
as ferramentas do embranquecimento não isenta de sofrimento
do racismo na sociedade. Dessa maneira, a própria ascensão social
realizada através do embranquecimento permitiria leituras para
além da possibilidade de resistência, já que inclui em si negação e
submissão.
Mulheres negras apropriaram-se e apropriam-se desse
cenário buscando maneiras de fugir dos lugares demarcados como
subalternos, sujos, violentos e marginais, agindo sobre as limita-
ções históricas enquanto modo de sobrevivência. É certo que a
ideologia do embranquecimento, a democracia racial e o coloris-
mo não oferecem nenhuma vantagem humana positiva, pois utiliza
como pano de fundo de normalidade a branquitude, hierarquizan-
do e classificando a pluralidade étnica-racial como inferior.
Nesse sentido, a ascensão social da mulher negra basea-
da na miscigenação, no colorismo e na democracia racial sucedeu-
se através do distanciamento e negação de sua própria história, da
sua ancestralidade e das suas potencialidades. Logo, endossar um
discurso a partir dessas estruturas impacta todas as relações so-
ciais: não só marginaliza os que não se enquadram nesse modelo,
mas também produz efeitos na subjetividade dos que são privile-
giados por esse padrão, promovendo desde a banalização e natura-
lização da hierarquia racial até posturas intolerantes, desumanas
e de ódio.
Desta feita, a identidade da mulher negra perpassa por
fenômenos históricos que negam o reconhecimento de si, proje-
tando em outros modelos de identificação que não dialogam com a
sua realidade, provocando a morte de si. Concomitante, os enlaces
subjetivos construíram maneiras de enfrentar as adversidades só-
cio-históricas e favoreceu a emersão de potências que auxiliaram
na ressignificação e resistência política.

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Modernidade - Contemporaneidade (1940 - 2018)
A presença da mulher negra no Brasil é registrada nes-
ses marcos históricos como sombras, meras coadjuvantes de uma
sociedade eurocêntrica escrita por brancos. Onde estão as mulhe-
res negras que construíram o país? Quem são elas? Dessa forma,
é importante evidenciar os trabalhos de mulheres negras que são
grandes inspirações e exemplos de luta.
Iniciamos com Carolina Maria de Jesus, nascida em 14
de março de 1914 em Sacramento/Minas Gerais falecida em 13 de
fevereiro de 1977 em São Paulo. Carolina Maria de Jesus era uma
mulher negra pobre e analfabeta, autora de 8 obras registradas
sendo mais reconhecida pelo livro “Quarto de despejo: Diário de
uma favelada” publicado em 1960, nesse livro Carolina retrata o
seu cotidiano e denuncia as condições sociais em que vivia.
Outro destaque é dado a Lélia Gonzalez, antropóloga e
militante negra e criadora do feminismo afrolatinoamericano, nas-
ceu em 1° de fevereiro de 1935 em Minas Gerais e faleceu no dia
10 de julho de 1994 no Rio de Janeiro. Lélia graduou-se em história
e filosofia, foi fundadora do Movimento Negro Unificado (MNU),
do Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (IPCN-RJ), do Nzin-
ga Coletivo de Mulheres Negras-RJ e de outras entidades voltadas
para questão do povo negro, em especial das mulheres negras.
A filósofa e doutora em educação Aparecida Sueli Carnei-
ro Jacoel é a fundadora do Instituto da Mulher Negra – Geledés,
criado em 30 de abril de 1988. Sueli Carneiro nasceu em 14 de
junho de 1950 em São Paulo, é autora das obras “Racismo, sexis-
mo e desigualdades no Brasil” publicado em 2011 e “Mulher negra:
Política governamental e a mulher” em 1985 com Thereza Santos e
Albertina de Oliveira Costa.
Raimunda Nilma de Melo Bentes, mulher negra afroama-
zônida, é uma das fundadoras do Centro de Estudos e Defesa do
Negro no Pará – CEDENPA, nos de 1980, e idealizadora da Mar-
cha das mulheres negras que ocorreu em Brasília em novembro de
2015. Nilma Bentes é paraense nascida em 28 de janeiro de 1948
em Belém, é militante dos direitos da população negra no estado,
sobretudo da mulher negra nesta região do país.
Beatriz Nascimento, historiadora, ativista negra, partici-
pante do grupo de trabalho André Rebouças na Universidade Fe-

- 33 -
deral Fluminense. Nasceu no dia 12 de julho de 1942 em Aracaju/
Sergipe e faleceu no dia 28 de janeiro de 1995 no Rio de Janeiro.
Sua atuação foi além dos muros da universidade, sendo militante
do movimento negro da época e na construção de núcleos de estu-
do com ativistas negras e negros no estado.
Dentre as mulheres negras destacadas no cenário bra-
sileiro, finalizamos com Virgínia Bicudo, socióloga, psicóloga e
psicanalista, nascida em 21 de novembro de 1910 em São Paulo
e falecendo em 2003 na mesma cidade. É referência nos estudos
raciais e na construção da psicanálise no Brasil, sendo a primeira
psicanalista não medica do Brasil e a primeira pessoa a escrever
uma tese sobre relações raciais no país.
São inúmeras as participações das mulheres negras na
construção do país. Suas histórias que impactaram e influenciaram
no seu contexto social e nas projeções atuais. Todavia, suas memó-
rias e produções continuam invisibilizadas e silenciadas enquanto
realidade legítima. Estudos recentes estão sendo realizados volta-
dos para o cotidiano de mulheres negras brasileiras, e dessa ma-
neira, propiciando maior visibilidade de suas trajetórias de vida e
de suas reais demandas.
Através de um levantamento bibliográfico, foi possível
observar temas como: a solidão da mulher negra; concepções e re-
presentações da corporeidade; protagonismo e autonomia; acesso
ao mercado de trabalho e educação; corpo e cabelo como símbolos
da identidade; representações das mídias; publicidade e literatura,
dentre outros temas. Todos estes favorecem a discussão sobre as
possibilidades da construção identitária, tornando e denunciando
as condições sociais racistas e machistas em que vivem e, sobre-
tudo, das estratégias de resistência e criatividade em tais circuns-
tâncias.
Os movimentos sociais surgem no cenário vinculados
aos trabalhos mais críticos que vem sendo realizados na temáti-
ca da mulher negra. Igualmente as posturas mais atuantes contra
as condições desfavoráveis as quais vivenciam as mulheres negras
estão intrinsecamente ligadas nas conquistas empreendidas pelos
movimentos sociais. Frente a este dado, percebemos a importân-
cia da participação dos movimentos de efetivação dos direitos da
mulher negra, na mobilização dos coletivos sociais e no processo

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identitário que vem se ancorando mais no movimento inverso à
política do embranquecimento: o enegrecimento.

Movimentos sociais e mulheres negras


É importante trazer para a discussão o papel fundamen-
tal realizado pelos movimentos sociais, onde as mulheres negras
protagonizaram, em especial no Movimento Negro e no Feminismo
Negro, ações de combate ao racismo, sexismo e suas intersecções,
além de buscarem a inclusão social da população negra em face
das desigualdades no país. De acordo com Petrônio Domingues
(2007), o movimento negro inicia logo após a promulgação da Re-
pública em 1889 com a criação de clubes e associações com propó-
sito de buscar melhores condições de existência. Em contrapartida
Nilma Bentes, mulher afroamazônida, acrescenta em uma entre-
vista realizada em 27 de julho de 2017 para o Geledés1 (Instituto
da Mulher Negra) que as mobilizações iniciaram na África, quando
pessoas africanas guerrearam para não serem embarcadas encon-
trando meios de enfrentamento, e destaca que as mulheres negras
sempre estiveram e estarão dispostas a lutar.
O feminismo negro no Brasil, por sua vez, tem o seu início
no final da década de 1970, com o objetivo de pautar as demandas
das mulheres negras que foram invisibilizadas pelos interesses do
feminismo. Através das influências norte-americanas de mulheres
negras como bell hooks2, Sojourner Truth e Patricia Hill Collins, e
no Brasil com as referências de produção intelectual de Lélia Gon-
zalez, Luíza Barros, Sueli Carneiro, Matilde Ribeiro, Edna Roland,
Fátima Oliveira, Jurema Werneck entre outras, foi possível uma
mobilização de crítica ao feminismo (branco) e a construção do
feminismo negro pautando sua postura nas interseccionalidades
presentes na vida das mulheres negras. Entre meados dos anos de
1970, as mobilizações sociais tornaram-se mais salientes, sobretu-
do em função do período histórico da ditadura militar que perdu-
rou por vinte e um anos (1964-1985).
A necessidade de buscar um movimento que contem-
plasse a realidade vincula-se por diversos fatores: no acesso à
1 Entrevista realizada pelo Instituto da mulher negra – GELEDÉS, disponível em https://www.
geledes.org.br/tag/nilma-bentes/.
2 O nome bell hooks será escrito em letras minúsculas neste artigo respeitando o interesse da
ativista negra americana que acreditava na construção social das identidades. Seu nome é Gloria
Jean Watkins e usa o pseudônimo de bell hooks em virtude de ser o nome de sua bisavó materna.

- 35 -
educação devido aos baixos índices de escolarização das mulheres
negras, sobretudo no ensino superior, nas melhores condições de
trabalho tendo em vista as precárias circunstâncias laborais, na
saúde com o despreparo das equipes médicas e dos profissionais
da área nos atendimentos a população negra. Um exemplo disso,
são os altos índices de violência obstétrica sofrida pelas mulheres
negras com o não uso de anestesia no parto sustentado num este-
reótipo racista de que ela é forte e suporta a dor.
Nesse sentido, a participação e atuação de mulheres ne-
gras nos movimentos sociais, sobretudo àqueles voltados ao mo-
vimento negro e o feminismo negro, foram de extrema importân-
cia na busca da efetivação dos direitos e equidade social. Foram
mobilizações que favoreceram o protagonismo e autonomia, como
já afirmava Neusa Souza (1983) uma das forma de exercer auto-
nomia é possuir um discurso sobre si mesmo, e a partir disso as
mulheres construíram redes de enfrentamento, articulando atra-
vés dos coletivos ações que transformassem a realidade em que
viviam/vivem.
Não cabe aqui criar outra epopeia do processo histórico
do país, mas sim trazer para a boca de cena a real participação de
personagens que foram apagadas da memória social, como as que
citamos anteriormente. Embora em nossa história carreguemos
marcas de violência e opressão, ser mulher negra no Brasil deve
sobretudo contemplar as estratégias de enfrentamento, as narra-
tivas de luta diária, pois permanecer viva numa sociedade racista
e machista é resistência, é conquista de direitos, é balançar toda
a estrutura social. Assim como Angela Davis3 traz em seu discur-
so quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da
sociedade se movimenta com ela. E é nesse caminhar, enquanto
base da pirâmide social que precisamos destacar e potencializar as
nossas vivências.

Cenário de desigualdade: mulher negra base da pirâ-


mide social
Segundo o Censo Demográfico realizado em 2010 pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os índices e
3 Discurso proferido por Angela Davis na Universidade Federal da Bahia na Conferência intitulada
“Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”, em 25 de julho de 2017.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1ddyxOQ45jI.

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indicadores sociais apontam que a população negra ainda sofre
com a desigualdade racial, seja no acesso à saúde, à escolarização
de qualidade, à alimentação, ao mercado de trabalho e renda. Além
disso, somos a maioria populacional, contabilizando 49,7% as mu-
lheres e 51,8% os homens, porém as iniciativas de atenção e trans-
formação dessa realidade são minúsculas.
Quais seriam os motivos por trás desses resultados?
Quando essa desigualdade é atravessada pelo gênero, os resulta-
dos são bem mais preocupantes. Essa não valoração dos feitos da
mulher negra está relacionada, lamentavelmente, ao passado es-
cravista. Como bem coloca Sueli Carneiro (2003), a mulher negra
ainda é vista como subalterna em termos de gênero, raça e agente
histórico.
Em função de tais condições, percebemos que os papéis
sociais hegemônicos acerca da masculinidade e feminilidade não
contemplam as vicissitudes do ser negro, ou seja, há uma quebra
com esse sistema. As mulheres negras não são vistas nem tratadas
como as mulheres brancas, nem tampouco os homens negros são
vistos como chefes de família ou referência familiar, pois suas his-
tórias foram tecidas em um contexto macro de subalternação e hi-
persexualização. Dessa forma é importante que essas pluralidades
de existência sejam observadas pelo crivo da interseccionalidade.
Reitera-se que, compartilhando do pensamento de Neusa Souza
(1983), ser mulher negra é um tornar-se, é uma construção social
e cultural e não uma condição biológica e natural.
Articulando essa realidade brasileira com a que escritora
negra norte-americana bell hooks (1995) acrescenta, recai sobre
a mulher negra não só a imagem negativa de irracional, primitiva
e animalística da raça negra que é herança do período escravocra-
ta, mas também por seu gênero feminino, ou seja, a mulher negra
vivencia uma dupla alteridade inferiorizada por sua cor e por seu
gênero. Isso reflete até os dias de hoje o modo como o Brasil inclui
em sua agenda política ações para promover políticas públicas e
estratégias afins para acolher a pluralidade e demandas da popu-
lação preta e parda.
De acordo com Pereira (2012), as mulheres negras escra-
vizadas sofriam outras opressões de seus trabalhos, sendo explo-
radas como empregadas, mães-pretas e objetos sexuais na repro-
dução biológica de escravos. Mesmo após o abolicionismo, essas

- 37 -
ocupações das mulheres negras mantiveram-se, estas não tinham
abertura para adentrar outros espaços que não o trabalho nos
bairros planejados e nos cortiços e favelas que moravam.
Deste modo, conforme Beatriz Nascimento (2007), não
houve acessos com outras possibilidades de atuação na socieda-
de, mantendo-se a figura da mulher afro ligada a tarefas braçais,
subservientes e hipersexualizadas. As marcas desses processos
históricos são cicatrizes na carne que até hoje causam sofrimen-
to, relações opressoras e desiguais que perpetuam de geração em
geração.
Em 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
(IPEA) elaborou um dossiê (MARCONDES; QUEIROZ; QUERINO;
VALVERDE, 2013) no qual retratava as condições de vida das mu-
lheres negras no Brasil. Nele, cinco eixos foram explorados, como o
acesso ao ensino superior, a participação no mercado de trabalho,
as disparidades de raça e gênero no acesso a bens e exclusão digi-
tal, a pobreza e desigualdade de renda e a vitimização por agressão
física segundo cor e raça no Brasil. Os resultados não foram sur-
preendentes, no entanto revelam indicadores que podem evocar
reflexões e estratégias de enfrentamento. Em face ao quantitativo
de mulheres negras distribuídas nas regiões do Brasil, o dossiê re-
vela que a maior concentração se encontra no norte e nordeste do
país, elencados no Pará, Amazonas e Piauí. O livro “O fim do silên-
cio: presença negra na Amazônia” e outros trabalhos de Patrícia
Sampaio (2011, 2012) endossam a existência e participação ativa
de escravos negros, livres e libertos desde o período da colônia,
império e república, tornando visível para além da imagem que o
espaço geográfico carrega de apenas indígenas nativos, a existên-
cia de negros na Amazônia.
No que tange ao acesso ao ensino superior a autora Edi-
lza Sotero (2013) expressa que a ampliação da presença da mu-
lher negra nos espaços acadêmicos dá-se pela política de ações
afirmativas realizadas nos últimos anos. Em contrapartida, revela
que esse resultado deva passar por um crivo da perspectiva hierar-
quizante em função das diferenças valorativas entre cursos e ins-
tituições, bem como a distribuição das mulheres negras e brancas
nessas camadas.
No que concerne a desigualdade de gênero e raça no
mercado de trabalho brasileiro, Márcia Lima, Flávia Rios e Danilo

- 38 -
França (2013) indicam que apesar do movimento de redução das
desigualdades entre mulheres brancas, mulheres negras, homens
brancos e homens negros, há de se considerar que as categorias de
raça e gênero continuam determinantes na inserção no mercado
de trabalho e na remuneração salarial, concluindo que a herança
sociocultural brasileira mantém-se a operar na posição de subal-
ternização de mulheres negras. Sobre o acesso a bens e serviços,
Layla Carvalho (2013) afirma que embora as categorias apresen-
tem uma melhora significativa, o papel subordinado de mulheres
negra e brancas e de homens negros na conjuntura social, mos-
tram-se evidentes e estáveis.
Os temas referentes à pobreza e desigualdade de renda
analisados por Tatiana Dias Silva (2013), mostram que as situa-
ções de pobreza são vivenciadas de formas diferentes dependendo
do grupo social de pertença. Com isso, defende a implementação
de ações afirmativas para reversão desse cenário, bem como a re-
configuração de estratégias de intervenção pública com o recorte
de gênero e raça. Por fim, Jackeline Romio (2013) retrata sobre
vitimização e acesso à justiça, procurando evidenciar as especifi-
cidades da violência sofrida por mulheres negras a fim de romper
com a universalização do fenômeno, e buscar soluções e suporte
do Estado para o combate de inúmeras violências sofridas. Interes-
sante pontuar que a maioria dos autores partem de um referencial
da interseccionalidade e do feminismo negro, visualizando gênero,
raça e classe não como categorias desconexas, mas relacionadas
entre si que tecem formas diversas de vivências.

Identidades: conceitos e apontamentos

No Brasil e na América Latina, a violação colonial perpetrada


pelos senhores brancos contra as mulheres negras e indíge-
nas e a miscigenação daí resultante está na origem de todas
as construções de nossa identidade nacional, estruturando o
decantado mito da democracia racial latino-americana, que no
Brasil chegou até as últimas consequências.
Sueli Carneiro (2011b)

A identidade enquanto categoria adjacente desse ensaio,


é pensada a partir de teorias que possibilitam integrar os nuan-
ces históricos e subjetivos de ser mulher negra na contemporanei-

- 39 -
dade. Para isso, reúnem-se alguns conceitos e apontamentos que
podem nortear o caminho e auxiliar na compreensão desse fenô-
meno, funcionando enquanto uma ferramenta de partida e não de
enquadre. Com esse intuito selecionamos as perspectivas de Stuart
Hall (2011) e Aluísio Lima e Antônio Ciampa (2012) para dialogar
acerca da construção identitária da mulher negra no Brasil.
Pensar o movimento identitário da mulher negra atra-
vessados pelos períodos históricos e subjetivos é um processo
complexo, no sentido sistêmico enquanto paradigma que se opõe
ao reducionismo e determinismo e possibilita uma nova perspec-
tiva de compreender a identidade. É nesta perspectiva que com-
preendemos a proposta apresentada por Lima e Ciampa (2012). A
temática da identidade ocupa um lugar de destaque nas pesquisas
com enfoque da Psicologia Social Crítica. Ainda assim, os autores
falam sobre a dificuldade operacional que encontram no conceito
de identidade cunhado por diversas áreas do conhecimento. A difi-
culdade estaria centrada especialmente na pluralidade de concei-
tos. Na Psicologia, em particular, as teorias tradicionalmente orien-
tadas tendem a carregar uma noção de fixidez atrelada à ideia de
identidade.
A partir da crise da Psicologia Social brasileira (CALE-
GARE, 2010), muitos pesquisadores e estudiosos buscavam um
movimento contrário aos modelos positivistas e tradicionais de se
fazer ciência. Trabalhos de Leontiev e Vigotsky foram fundamen-
tais na sistematização de categorias à Psicologia, como a Atividade,
a Consciência e a Personalidade. Em 1977, Ciampa exibiu os seus
primeiros resultados sobre a temática da identidade, apontando
a relação desta com a sociedade. Através de sua perspectiva seria
possível analisar tanto problemas sociais como buscas emancipa-
tórias, sendo evidenciado o seu traço mais importante: assumir
que o produto científico deve estar relacionado diretamente com
a práxis. O amadurecimento desta ideia fez emergir, segundo Lima
e Ciampa (2012), a concepção de identidade como metamorfose
humana.
Com o processo de metamorfose da identidade tem-se a
necessidade de abordar criticamente a aparência de permanência,
percebida pelos autores como a “mesmice”, utilizando-se do feti-
che para a reposição de personagem, criando uma estabilidade

- 40 -
identitária consciente e busca à compulsão inconsciente. O grande
problema da reposição e da estabilidade é que impede a emanci-
pação, do ser-para-si. Em contrapartida, temos outro movimento
chamado de “mesmidade”, este responsável pela emancipação e
alteridade. De acordo com os autores, mesmidade significa supera-
ção da identidade reposta, como a expressão de outro que também
sou eu, que conjuntamente com a alteridade, influenciam direta-
mente na concepção de que a identidade é uma questão política.
Nestes termos, a construção da identidade é percebida enquanto
um processo: uma metamorfose que através dos seus movimentos
de mesmice e mesmidade podem direcionar para a emancipação
identitária ou para a compulsão inconsciente.
Tomando a perspectiva de identidade enquanto meta-
morfose, podemos compreender que ser mulher negra envolve
movimentos diferentes e plurais tanto historicamente como sub-
jetivamente, em uma relação dialética que demarca modos diver-
sos de existir. Em função disso, a contemporaneidade vivenciada
por mulheres negras em um cenário desigual, com altos índices de
violência, dificuldades no acesso ao ensino superior, condições de
trabalho degradantes e outras limitações, faz com que múltiplas
vivências sejam construídas nesse tecido social, permitindo com-
preender o processo identitário em movimentos e contradições.
Ainda na perspectiva de movimento e historicidade, des-
tacamos um dos mais proeminentes teóricos que abordam a iden-
tidade na contemporaneidade. Hall (2011) compreende a identi-
dade como resultado de um traçado histórico ocidentalizado que
demarca as diferentes maneiras de ver o Homem. Dessa maneira,
afirma que as identidades contemporâneas estão sendo fragmen-
tadas e descentradas, contrastando com os modelos sólidos oriun-
dos da modernidade. Com a fragmentação e instabilidade das iden-
tidades na contemporaneidade, a mulher negra se depara com a
dificuldade de afirmar uma identidade constante e homogênea,
criando assim, a crise de identidade. De acordo com o autor, essa
crise instaura-se pela descentração do indivíduo no mundo social,
cultural e sobre si mesmo, e é a partir dessa mudança que constitui
um processo de transformação nas esferas sociais e subjetivas.
Três concepções de identidade são esboçadas por Hall
(2011), a saber: sujeito do iluminismo, em quem a identidade era
baseada na individualidade; o sujeito sociológico que discutia a

- 41 -
relação interativa; e o sujeito pós-moderno que percebia a iden-
tidade na sua dinamicidade e transformação, sendo essa última
objeto de discussão. Nesse caminhar, o descentramento da iden-
tidade da mulher negra na contemporaneidade inclui a pluralida-
de de discursos que fragmentam as formas de relação e o pensar
de si. Embora a identidade da mulher negra na pós-modernidade
não esteja vinculada ao um modelo sólido, ela estimula tensões e
conflitos nessa própria dinamicidade. Questões tais como “quais
espaços sociais me pertencem?” ou “qual o meu lugar?” fazem par-
te da crise da descentração vivenciada, a exemplo de questionar o
seu lugar ou não lugar em uma sociedade que atualiza em períodos
históricos diferentes um modo único de ser.
Após o século XVIII, os conceitos de indivíduo centraliza-
do e suas demais influências já não sustentavam esse novo sujeito
dinâmico, resultando numa concepção mais social. Com isso, Hall
(2011) aponta a biologia darwiniana e o surgimento das ciências
sociais enquanto dois episódios importantes para essa nova con-
cepção de sujeito. Os grandes avanços na teoria social e nas ciên-
cias humanas foram pautados prioritariamente a descentralizar o
sujeito cartesiano, demarcados historicamente pelos trabalhos de
Marx, Freud, Ferdinand Saussure, Michel Foucault e as produções
do movimento feminista.
Uma grande contribuição do pensamento do Hall para
a compreensão das identidades, pois, é de possibilitar pensá-las
enquanto processo histórico, dinâmico, fragmentado e inacabado,
rompendo com as estruturas fixas e permanentes que remontam a
lugares cristalizados das relações opressoras. Esse movimento di-
reciona na perda de um “sentido de si” estável provocando a exis-
tência de outras identidades em uma mesma pessoa. Narrativas
identitárias que afirmam uma identidade unificada e permanente
são construções confortáveis e fantasiosas que, conforme apontam
Lima e Ciampa (2012), não possibilitam a emancipação do sujeito.
Neste aspecto, ambas perspectivas teóricas contribuem com lentes
que asseguram capturar o movimento e historicidade presentes
nos processos identitários das mulheres negras.
As contribuições teóricas apresentadas nesta seção em-
prestam lentes analíticas que permitem deslocamentos importan-
tes à temática deste capítulo: permitem compreender que falar de

- 42 -
identidade da mulher negra é, de fato, falar de identidades, de plu-
ralidades construídas de forma coletiva e política. É um processo
de metamorfose e fragmentação em constante transformação, si-
tuados historicamente e de forma ocidentalizada, onde o racismo
e o machismo atuam enquanto estruturas fundamentais no desen-
volvimento identitário.

Considerações finais
Em função dos indicadores que expõem o cenário vigente
acerca das condições sob as quais vivem as mulheres negras no
Brasil, percebemos que há ainda um longo e árduo caminho a ser
conquistado para uma efetiva equidade social. Um dos importan-
tes papéis das ciências rumo a esta conquista consiste na produção
de quadros analítico-reflexivos que superem os modelos aprisio-
nantes ou inoperantes na construção de alternativas aos processos
sociais excludentes. No tocante aos estudos de identidade, importa
resgatar teorias que permitam acessar os registros históricos des-
velando os processos de silenciamento e apagamento das múlti-
plas possibilidades identitárias, a despeito da força das ideologias
de hierarquia racial e gênero. As mulheres negras, mesmo com to-
dos os enlaces históricos de opressão e resistência, permanecem
ativas e produtoras de modos de existência. Com isso, evidenciar
essa realidade, permitir um espaço para discussão dessa vivência
e sobretudo visibilizar as estratégias de enfrentamento, é uma pos-
tura necessária para a construção de um projeto de sociedade mais
humana.
Segundo Martín-Baró (1998, 2011), nossa postura deve
pautar-se em resgatar a historicidade, romper com as ideologias
que permanecem no imaginário dessas mulheres e potencializar
as suas virtudes, num movimento libertário que possibilite a au-
torreflexão e ressignificação das possibilidades de ser mulher ne-
gra. Este movimento de libertação passa pelo fortalecimento iden-
titário via processo reflexivo. Se assim não o for, mesmo diante da
necessária adoção de outros sistemas econômicos (superação do
capitalismo, por exemplo), os modelos de exploração continua-
rão. O estudo das relações étnico-raciais por parte da Psicologia
se configura, pois, como meta ética-política de suma importância
para pautar nossas ações na transformação social, resgatar nossas

- 43 -
potencialidades e autonomia. Assim, contribuiremos com uma ins-
trumentalização reflexiva, ética e política para que esses modelos
de desqualificação, exploração e opressão sejam combatidos diária
e concomitantemente.
Localizemos a nossa história e voltemos a ela a fim de
construir formas de superação e assim devolver à população, hoje,
um espaço com mais justiça social pautado numa perspectiva an-
tirracista e feminista sustentada através da potencialização e po-
sitivação de ser mulher negra no Brasil. O resgate das histórias de
mulheres negras que resistiram e lutaram, construindo identida-
des potente como Virginia Bicudo, Neusa Santos, Carolina de Jesus,
Sueli Carneiro, Maria Filipa de Oliveira, Mãe menininha do Gantois,
Luiza Mahin, Lélia Gonzalez, Zeferina, Antonieta de Barros, Mariel-
le Franco e um sem número de mulheres anônimas, é um modo de
fazer frente a isto, ao desconhecimento e silenciamento de vozes
fundamentais para nossa libertação.
Uma postura política que questione as ideologias hege-
mônicas que tendem a silenciar o que é diferente exige embasa-
mento teórico e ético que recupere o que vem sendo silenciado,
que reintroduza o que tem sido historicamente excluído. O movi-
mento da identidade da mulher negra direcionada para a estabili-
dade, reflete sobre os estereótipos e estigmas que são, lamentavel-
mente, vivenciados no cotidiano, sustentados nas relações sociais
de raça-etnia e gênero, enquanto única possibilidade de ser: uma
ideia fixa e pré-concebida que impossibilita enxergar outras mani-
festações identitárias. A Psicologia Social Crítica deve, pois, incor-
porar de modo irreversível a dimensão das relações étnico-raciais
e de gênero para que possa firmar de modo mais sólido o compro-
misso assumido em prol da transformação social. E neste sentido,
o estudo dos processos identitários das mulheres negras contribui
para trazer à cena da discussão dos mecanismos sociais de opres-
são, histórias de resistências de mulheres que fazem parte de mais
da metade da população brasileira.

- 44 -
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Racismo, reconhecimento
social e os efeitos psicossociais

Carlos Vinicius Gomes Melo


Alessandro de Oliveira dos Santos

Introdução
Este texto explora a noção do reconhecimento social de
Honneth (2015), apresentando suas dimensões (afetivas primá-
rias, do direito e da solidariedade) para a constituição da identi-
dade e integridade humana, a associação entre o desrespeito a es-
tas dimensões e os efeitos psicossociais produzidos pelo racismo
(preconceito, discriminação e humilhação social). Ao final, o texto
expõe os benefícios e limitações do uso desta noção para a com-
preensão das relações étnico-raciais brasileiras.
Entendido como um sistema de crenças e de imposição
de valores e ideologias, o racismo limita e exclui pessoas e grupos
de acordo com seu pertencimento étnico-racial ao acesso a recur-
sos da sociedade, status e liberdades civis. Ele caracteriza-se por
ser dinâmico, adaptativo e como uma permanente constelação de
pensamentos regidos por sistemas de crenças estereotipadas, que
conduzem a atitudes afetivas e, por sua vez, a comportamentos dis-
criminatórios (BHUI, 2002; CLARK et al., 1999; LIMA; VALA, 2004).
O racismo pode ser institucional, por induzir, manter e
condicionar a organização e a ação do Estado, das políticas públi-
cas ou de instituições privadas, produzindo e reproduzindo uma
hierarquia que garante a exclusão seletiva de grupos conforme seu
pertencimento étnico-racial. Além disso, garante a produção de ri-
quezas para determinados grupos da sociedade, ao mesmo tempo
em que ajuda a manter a fragmentação social e a desigualdade em
outros grupos (GELEDÉS, 2013; LÓPES, 2012).
O racismo também pode ser ambiental, observado atra-
vés da privatização de territórios, contaminação de solo por resí-
duos tóxicos e exploração desenfreada de recursos naturais, assim
como pelo desmatamento de flora nativa, em função de megaem-

- 49 -
preendimentos da monocultura e de grandes obras de infraestru-
tura, como construção de hidrelétricas, que interferem nos cursos
dos rios e contaminam lençóis freáticos. Fala-se de racismo am-
biental quando tais impactos ambientais causam danos irreversí-
veis na vida de povos indígenas, de remanescentes de quilombos,
ciganos e de outras populações tradicionais. No ambiente urbano,
o racismo ambiental se apresenta através da luta de classes, pela
violência urbana e pobreza que estão concentradas em uma topo-
grafia territorial periférica marginalizada (PACHECO, 2008). Estas
diferenças territoriais são caracterizadas por aglomerados de po-
pulações não brancas que vivem em condições comparativamente
reduzidas de direitos, com relação a saneamento, acesso à água
potável, coleta de lixo, equipamentos urbanos adequados, incluin-
do escolas e postos de saúde, e que estão mais sujeitas a riscos de
deslizamentos ou de contaminação química, dentre outros índices.
Na esteira deste entendimento, A. Santos et al. (2016) defendem
que a noção de racismo ambiental pode ser ampliada para todos
os grupos de pertencimento étnico-racial do planeta que vivem em
situação de desigualdade no acesso aos recursos naturais e de ex-
posição a diferentes formas de risco ambiental nas áreas em que
vivem.
No Brasil, o racismo está estruturado no quadro insti-
tucional das organizações e das interações entre grupos sociais,
que decorrem do processo de colonização. No entanto, enquanto o
racismo e sua herança na estrutura social escravagista podem ser
historiograficamente compreendidos como os principais deter-
minantes das desigualdades brasileiras, no senso comum, o mito
da democracia racial é tomado como crença, escamoteando essas
desigualdades e suas causas. Em contextos onde há a manifesta-
ção sutil e quase imperceptível do racismo, as situações flagrantes
de ofensas são pouco inteligíveis no âmbito das relações interpes-
soais. Porém, quando são feitas leituras institucionais ou análises
demográficas, a raça-etnia é um determinante das disparidades
sociais encontradas, como por exemplo, nos indicadores sobre vio-
lência, sobre acesso a educação, sobre renda familiar e distribuição
de riquezas, dentre outros fatores.
Lima e Vala (2004) classificam o racismo brasileiro como
cordial ou sutil, caracterizado por uma polidez superficial que re-

- 50 -
veste atitudes afetivas e cognitivas negativas e comportamentos
discriminatórios. Suas atitudes e comportamentos se expressam
nas relações sociais e interpessoais através de piadas, ditos po-
pulares e brincadeiras de cunho racial com efeitos psicossociais
sobre a pessoa alvo do racismo. Diferente do racismo clássico,
abertamente manifestado e observado na forma de preconceito
flagrante, no racismo indireto não há diretamente os elementos de
discriminação, de cerceamento de direitos ou de naturalização das
diferenças (LIMA; VALA, 2004; PETTIGREW; MEERTENS, 1995;
SANTOS, W. et al., 2006).
Esta feição do racismo característico no Brasil o torna
uma equação potente na manutenção e ampliação da desigualda-
de social. Tal característica quase ininteligível na manifestação do
preconceito e discriminação racial estabelece as relações de po-
der no quadro institucional de interações entre grupos sociais. Tal
quadro de relações remete, espacial e temporalmente, aos domí-
nios da vida social, política, econômica, familiar, intelectual, que,
por sua vez, influencia diretamente nas constituições de identida-
des, relações interpessoais e reconhecimento social.
O reconhecimento e o não reconhecimento social, indivi-
dual e coletivo, no Brasil sofrem interferência do racismo que, con-
sequentemente, produz efeitos psicossociais em função das viola-
ções, desrespeitos e sentimento de rebaixamento. Produzir esta
linha de raciocínio auxilia o entendimento sobre os sofrimentos
causados pelo não reconhecimento social nas relações étnico-ra-
ciais, impactando socialmente nas relações de confiança, respeito
e estima e, psicologicamente, na construção de autoconfiança, au-
torrespeito e autoestima.

Noção de reconhecimento social segundo Axel Hon-


neth
Para Honneth (2015), a integridade do ser humano sus-
tenta-se em padrões de reconhecimento, pela constituição das
identidades do “Eu” através das relações de confiança, de respeito
e de estima social. Quando tal padrão não ocorre, pode-se observar
o papel dominante do desrespeito ou de reconhecimento recusado
no desenvolvimento psicológico de autoconfiança, autorrespeito
e autoestima daqueles que se veem rebaixados. São os desrespei-

- 51 -
tos nas instâncias relacionais que expressam de forma injusta o
impedimento dos sujeitos de sua liberdade de ação, infligindo-lhes
danos à compreensão positiva de si mesmos adquirida de maneira
intersubjetiva pela socialização.
Segundo essa perspectiva, o reconhecimento das identi-
dades humanas é constituído através de três diferentes dimensões.
A primeira diz respeito ao reconhecimento emocional nas relações
primárias de amor e amizade, a segunda, ao reconhecimento do
respeito cognitivo do direito comum e inalienável a todos e, a ter-
ceira, à estima social ligada a comunidades de valores e solidarie-
dade (HONNETH, 2015).
Para Honneth (2015), a base das relações sociais de reco-
nhecimento está na primeira dimensão, o nível de reconhecimento
que seria estruturante para a autoconfiança e para a identidade
pessoal, pois estão estabelecidas através das relações primárias
afetivas de amor e amizade. O caráter de assentimento e encoraja-
mento afetivo está ligado de maneira necessária à existência cor-
poral e é associado ao apego ou ao que os estudiosos de Winnicott1
descrevem como simbiose pelo estado interno de “ser-um”. A par-
tir do estágio no qual se demonstram sentimentos de estima espe-
cial entre si, implicado na autonomia de desligar-se da dependên-
cia simbiótica, se promoveria, psicologicamente, a autoconfiança
(HONNETH, 2015). A autoconfiança individual é a base indispen-
sável para a participação autônoma na vida.
Já a segunda dimensão se refere ao reconhecimento de
respeito cognitivo do “direito”. Trata-se do reconhecimento deri-
vado da normatização social e da aquisição de direitos e deveres
junto à esfera social, o qual é representado pela imputabilidade
moral e alienável do direito comum. Nesta dimensão, há o desen-
volvimento da relação prática do respeito e da autorrelação prática
de autorrespeito, percebida pela circunstância de que só se pode
chegar a uma compreensão de si mesmo como portador de direi-
tos positivos com a perspectiva normativa de um “outro generali-
zado”. Tal apropriação se dá pelo reconhecimento dos outros mem-
bros da coletividade como portadores dos mesmos direitos que o
“eu”. O nível de reconhecimento do direito jurídico ou cognitivo
1 Donald Winnicott (1986-1971) foi um pediatra e psicanalista inglês referência na área do desenvolvimento
humano na fase da relação simbiótica mãe-bebê pré-edípica, conhecido também pelas noções de “Self
verdadeiro e Self falso” e “Objeto de transição”.

- 52 -
designaria uma relação de respeito mútuo como sujeitos de direi-
to, intermediado por normas socialmente legitimadas. No entanto,
estas determinações normativas apenas assumem formas de reco-
nhecimento sob as premissas dos princípios morais universalistas
(HONNETH, 2015). Eis, sob o julgo de direitos universais, o que
Raz (2004) afirma como dificuldade de conceber o reconhecimen-
to de si e de outros como formas distintas de viver, especialmente
se estes estão em relações de iniquidade.
Raz (2004) concebe o “valor” como um laço comum da
humanidade e a esperança na crença da universalidade, vital para
a perspectiva de esperança no futuro. Entretanto, essa perspecti-
va valorativa deve admitir a diversidade no interior da universa-
lidade, percebendo os seus limites. Com isso, há a necessidade de
compreender e conciliar a crença na universalidade com as parcia-
lidades advindas da diversidade real dos valores, fruto das expe-
riências vividas.
O respeito e o autorrespeito são para a relação jurídica o
que a confiança e a autoconfiança são para a relação primária amo-
rosa. Isto sugere que, da mesma forma que o “amor” pode ser con-
cebido como a expressão de confiança em uma dedicação afetiva,
os “direitos” podem ser concebidos como significado do respeito
social (HONNETH, 2015).
A terceira e última dimensão, resultante das duas primei-
ras formas de reconhecimento trazidas por Honneth (2015), seria
a do reconhecimento pela estima social que estaria ligada às comu-
nidades de valores e solidariedade. As capacidades e propriedades
humanas aqui desenvolvidas seriam a individuação e a equaliza-
ção. Ou seja, as relações sociais de estima simétrica ou solidárias
entre sujeitos individualizados (no sentido de autônomos), mas
regidos por valores comunitários. Isto significa se reconhecer recí-
proco ao “outro” dessemelhante. Este autorreconhecimento é fun-
damental para a própria constituição, tanto da identidade pessoal
como também da identidade coletiva e social, à luz de valores que
tornam esse “outro” significativo para a práxis comum (HONNETH,
2015).
A relação solidária, estabelecida entre o si e o “outro”, não
somente proporciona uma relação de respeito, mas também o in-
teresse afetivo pela particularidade deste outro. Com base neste

- 53 -
nível de reconhecimento estabelecido é possível “experienciar” a
si mesmo neste “outro”, o que vem a ser um fator valioso para a
estima social. Para Honneth (2015), esta vivência produziria, psi-
cologicamente, além de uma real estima social para com o “outro”,
uma autorrelação prática de autoestima consigo.

O racismo como desrespeito ao reconhecimento so-


cial
Como visto, o reconhecimento social da identidade hu-
mana, para Honneth (2015), é constituído sob as dimensões do
reconhecimento pelas relações afetivas, do reconhecimento pelo
direito comum a todos e do reconhecimento pela estima social. Po-
rém, quando o reconhecimento é recusado ou desrespeitado, ocor-
re: 1) maus tratos e violações, 2) privação de direitos e exclusão e
3) degradação pública ou política e ofensas.
Os maus-tratos e violações resultam do desrespeito no
nível de reconhecimento na dedicação efetiva de amor e amizade,
infligindo violações a integridade corporal e física, o que impacta
psicologicamente nas relações de confiança com o outro e de au-
toconfiança consigo (HONNETH, 2015). O racismo expresso como
desrespeito ao primeiro nível de reconhecimento pode ser exem-
plificado com os indicadores comparativos de violência de brancos
e negros.
Ao traçar o mapa da violência, a partir de dados entre os
anos de 1998 a 2008, destaca-se que o número de vítimas brancas
diminuiu na ordem de 22,3%, enquanto, entre os negros, o número
de vítimas de homicídio aumentou o equivalente a 20,2%. O nú-
mero de homicídios de jovens brancos caiu significativamente no
período de 2002 a 2008, numa queda de 30%. Já entre os jovens
negros, os homicídios aumentaram em 13%. Com isso, a diferença
de mortalidade entre brancos e negros cresceu 43%. Com esse di-
ferencial entre brancos e negros, o assassinado de pessoas negras
se eleva drasticamente, pois em 2002 morriam proporcionalmente
45,8% mais negros do que brancos, em 2005, esse indicador foi
para 77,8% e, em 2008, chegou a atingir 127,6% (WAISELFISZ,
2011).
Quando o não reconhecimento ocorre na segunda di-
mensão, pela transgressão no respeito ao direito comum a todos

- 54 -
e pela imputabilidade moral, o resultado é a privação de direitos
e exclusão. A violação à integridade moral culminará em morte
social, pela exclusão, e na consequente incapacidade de formação
de juízo moral. Tal desrespeito exclui o sujeito da posse de alguns
direitos e está associado ao sentimento de não ser possuidor do
mesmo status (igual valor) de um parceiro de interação. O racismo
se manifesta como recusa a esta segunda dimensão através, por
exemplo, dos indicadores de acesso e nível educacional, compara-
tivos entre brancos e negros.
Segundo dados da Universidade Federal da Bahia (UFBA,
2010), o analfabetismo dentro da população negra (preta e parda)
é de 22% do seu total, enquanto que na população branca é de 9%.
No ensino médio essas taxas desiguais também se apresentam,
pois em 2011, do total de pessoas negras de 15 a 17 anos, 45,3%
eram estudantes, enquanto que do total de pessoas brancas, com
esta mesma faixa etária e nível educacional, 60% eram estudantes
(IBGE, 2012). Quanto ao total de pessoas negras de 18 a 25 anos
de idade, 7,7% frequentaram o curso superior, enquanto que do
total de pessoas brancas esta proporção é de 20,3% (IBGE, 2009).
Já com o ensino superior concluído, em relação à população de 25
anos de idade ou mais, em 2008, dentre os negros esta proporção é
de 4,7% do seu total. Em contrapartida, dentre os brancos, 14,7%
concluíam o ensino superior (IBGE, 2009).
Por último, quando o reconhecimento social não é res-
peitado na terceira dimensão, ou seja, o da estima social da parti-
cipação na esfera pública, ocorre degradação e ofensa. Este des-
respeito à dignidade e à honra produz recusa pública e política,
degradação cultural e vexação e sentimento de rebaixamento e
vergonha pública (HONNETH, 2015). Para ele, a recusa pública e
política seria a negação de participação como um integrante nas
decisões e transformações políticas dos ambientes públicos. A de-
gradação cultural estaria como uma degradação valorativa de de-
terminados padrões de autorrealizações, ou seja, uma desqualifi-
cação da honra, dignidade e status de uma pessoa pela sua maneira
de autorrealização no horizonte de sua própria tradição cultural,
por ser considerada como de menor valor pela forma de vida ou
modo de crença. E a vexação e sentimento de rebaixamento e a ver-
gonha pública, seria um sentimento que não se refere apenas à ti-

- 55 -
midez, mas a um conteúdo emocional que consiste em uma espécie
de rebaixamento do sentimento do próprio valor, vindo a ser um
sujeito na experiência de recusa de sua ação e com lesões no seu
ideal de ego. O que em termos psicológicos interfere nas relações
sociais de estima e de autoestima (HONNETH, 2015).
O racismo pode ser ilustrado pela degradação pública
ou política através de dados de sub-representatividade no cenário
das decisões políticas dos poderes executivos e legislativos, assim
como no quadro do rendimento socioeconômico, observando-se
uma situação indiscutivelmente mais favorável aos brancos com-
parado aos negros.
Segundo Sardinha (2014), sobre a representatividade
política à luz do recorte raça/cor nas eleições de 2014, dos 1.627
candidatos eleitos, 1.229 se declararam brancos (76%). Dos elei-
tos, 342 eram pardos, 51 eram pretos, três amarelos (de origem
oriental) e dois indígenas. A lógica das urnas é similar a das em-
presas e repartições públicas, pois quanto mais alto o cargo, me-
nor a chance de uma pessoa de cor de pele não branca ocupá-lo.
Dos 27 governadores eleitos em 2014, 20 são brancos, não haven-
do nenhum preto, pardo ou indígena. No Congresso, de cada 100
cadeiras, 80 são ocupadas por políticos que se autodefinem como
brancos. Dos 540 congressistas eleitos, 81 deputados e cinco sena-
dores se declararam pardos e 22 eleitos deputados se identifica-
ram como pretos (SARDINHA, 2014).
Quanto à distribuição de renda, em um contexto em que
o poder de capital e de consumo é reconhecido como “valor” para
uma estima e aceitação social, segundo o IBGE (2009), entre os
10% mais pobres no Brasil, 25,4% eram brancos, enquanto 73,7%,
pretos e pardos. Essa relação se inverte entre o 1% dos mais ricos
do país, composto por 82,7% de pessoas brancas e 15% de cor de
pele preta e parda.
Além da recusa e degradação pública e política obser-
vada pelos dados de representatividade política e distribuição de
renda, o desrespeito à terceira dimensão de reconhecimento se
apresenta também pelas ofensas raciais. Embora não seja comum
pelo perfil oculto do racismo brasileiro, a manifestação ofensiva do
preconceito também ocorre e com o intuito de rebaixar ou atingir
a integridade ou a dignidade da pessoa alvo da ofensa.

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Como afirmado por Honneth (2015), o desrespeito ou a
recusa do reconhecimento geram nas interações sociais a ofensa
e o rebaixamento público. Estas são caracterizadas pelas ofensas
manifestadas por alguém contra outro e pelo sentimento de rebai-
xamento deste outro alguém frente às ofensas. Quando revelado
nas relações étnico-raciais, as ofensas e os sentimentos de rebaixa-
mento e vergonha podem ser observados através dos efeitos psi-
cossociais do racismo, descritos por A. Santos et al. (no prelo). Tais
efeitos se apresentam pelas situações cotidianas de manifestação
do preconceito e discriminação, com a finalidade de diminuir ou
depreciar a integridade da pessoa pelo seu pertencimento étnico
-racial, gerando nesta o sentimento de rebaixamento, vergonha e/
ou humilhação social.

Os efeitos psicossociais do racismo e do não reconhe-


cimento
A. Santos et al. (no prelo) descrevem os efeitos psicosso-
ciais do racismo a partir da análise psicológica e social sobre os fe-
nômenos do preconceito, da discriminação e da humilhação social.
Para eles, o sentimento de humilhação é o efeito produzido pela
condição de ser alvo de atitudes preconceituosas e de comporta-
mentos discriminatórios.
Tanto os privilégios quanto as desvantagens materiais
e simbólicas herdadas, histórico e geracionalmente, são a base
estrutural das desigualdades sociais de um grupo sobre outros.
Comas (1970) afirma que a estratificação social na América teve
como base a discriminação racial, sendo o preconceito baseado em
mitos raciais, como o “mito do sangue puro” e o “mito da inferiori-
dade dos mestiços”, a justificativa passional para tal estratificação.
O preconceito se refere a um predicado atitudinal, ou
seja, a uma predisposição para a ação. Trata-se de uma resposta
emocional de antipatia, ansiedade, raiva, ressentimento, hosti-
lidade, aversão ou repugnância, com base em um julgamento in-
fundado e não facilmente modificável, podendo ser sentido e/ou
expresso em relação a um grupo ou a uma pessoa que se supõe
ser membro desse grupo (ALLPORT, 1979; SANTOS, A. et al., [no
prelo]; STANGOR, 2009).
Para Adorno et al. (1965), o preconceito está diretamen-
te relacionado a uma tendência fascista presentes no etnocentris-

- 57 -
mo, antissemitismo e discriminação política e religiosa, manifes-
tado como autoritarismo e personalidade autoritária. Para eles, o
autoritarismo, é uma inclinação a colocar-se em situação de domi-
nação e/ou submissão frente a um sujeito de autoridade por con-
formar-se acriticamente às normas. Esta predisposição, segundo
eles, organiza a personalidade do indivíduo e suas condutas com
base em ideologias autoritárias da estrutura social. A rigidez ou es-
tereotipia são usadas para manejar um excesso de ansiedade para
a organização do “ego”, motivado pela necessidade de dar sentido
ao mundo que o rodeia e pela necessidade de aceitação social. Os
autores ainda destacam que as personalidades estruturadas com
traços fascistas têm características neuróticas narcisistas2, trazen-
do como resultado uma tendência ao sadomasoquismo, ou seja,
tendência por relações que se estabeleçam pela imposição do so-
frimento físico ou moral.
Para analisar o preconceito, nesta perspectiva, a psico-
dinâmica sobre o indivíduo necessita ser compreendida também
pela psicodinâmica do grupo, pois as condutas individuais são ex-
plicadas pelas circunstâncias sociais antecedentes e concomitan-
tes. Para os autores, este fenômeno deve ser entendido analisando-
se a ideologia, a sociedade e a personalidade no mesmo nível, por
esta última ser um produto social (ADORNO et al., 1965).
Conforme o desencorajamento social de sua demonstra-
ção, as pessoas tentem a inibir ou controlar a expressão de atitu-
des preconceituosas para não serem condenadas pelas convenções
morais e legais. Pelo gerenciamento desta impressão, as pessoas
não se afirmam com preconceito, porém, mesmo com essa inibição
ou controle do preconceito, a atitude preconceituosa perdura, ope-
rando de forma sutil e indireta os comportamentos discriminató-
rios (SANTOS, W. et al., 2006).
Por causa da possibilidade de controle do preconceito,
Gouveia et al. (2011) afirmam que a maioria dos estudos sobre o
fenômeno tem como indicadores a correlação com outras variá-
veis. Por exemplo, é possível fazer correlação na investigação sobre
o preconceito com a Escala de Motivação Interna e Externa para
Responder Sem Preconceito. Ela é composta por um conjunto de
afirmações que possibilita mapear as regulações de controle e ini-
2 Para a psicanálise se trata de um estado neurótico profundo, que dificulta ou impossibilita a capacidade
de empatia para com outras pessoas (STRATTON; HAYES, 2003).

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bição da expressão do preconceito que são motivados por razões
externas ou internas. Os esforços de controle por razões externas
são motivados pela normativa social, pela avaliação negativa de pa-
res e pela desejabilidade social. Já as razões internas são motiva-
das através do autovalor pelo autoconceito e autoimagem, ou seja,
quando, por exemplo, devido valores pessoais o indivíduo crer ser
errado usar estereótipos. Segundo os autores, quanto maior for à
motivação interna para o controle do preconceito, menor será o
nível de preconceito, já que quando o oposto, maior será o nível de
preconceito (PALMA; MAROCO, 2009).
Gouveia et al. (2011) ainda expõe algumas outras medi-
das que contribuem na investigação sobre o preconceito, como por
exemplo, a escala de fascismo (Adorno et al., 1965), a de adesão a
valores tradicionais3, de contato social4, dentre outras.
A discriminação, descrito por A. Santos et al. (no prelo)
como um efeito psicossocial do racismo, cria, mantém ou reforça
vantagens para alguns grupos e seus membros, à custa de desvan-
tagens para outros grupos/membros. Refere-se à diferenciação
nas formas de tratamento e de acesso aos bens públicos e priva-
dos e é derivada do estereótipo e do preconceito (ALLPORT, 1979;
THORNICROFT et al., 2007). Blank, Dabady e Citro (2004) afirmam
que a maioria dos discursos sobre a presença da discriminação
(especificamente, sobre a discriminação étnico-racial) a assume
como um fenômeno que ocorre em um momento e em um proces-
so isolado individualmente. Contudo, para os autores, a discrimi-
nação pode ter efeitos cumulativos de desvantagens e desigual-
dades, tanto individualmente como também pelas gerações. Esta
definição teórico-conceitual de Blank, Dabady e Citro (2004) sobre
a discriminação pode ajudar a compreender o caráter cumulativo
e geracional das desvantagens apresentadas tanto no desrespeito
ao reconhecimento social pela degradação e ofensa (HONNETH,
2015), como pela humilhação social (GONÇALVES FILHO, 1998,
2004, 2005, 2007).
Por sua vez, humilhação social é um conceito, desen-
volvido por Gonçalves Filho (1998, 2005, 2007), que diz respeito
3 GOUVEIA, V. V. et al. Correlatos valorativos das motivações para responder sem preconceito. Psicol.
Reflex. Crit., v. 19, n. 3, p. 422-432, 2006.
4 VASCONCELOS, T. C. et al. Preconceito e intenção em manter contato social: Evidências acerca dos
valores humanos. Psico-USF, v. 9, p. 147-154. 2004.

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ao sentimento de rebaixamento e vergonha pública, ligados a re-
lações de dominação e opressão, que impede o direito à cidadania
e é capaz de produzir a depreciação da integridade das pessoas
rebaixadas. A humilhação social ou política é um problema social
e temporal que abarca vários mediadores, atingindo os indivíduos
no tempo presente. No entanto, este sentimento ou condição já ha-
via atingido outros indivíduos de sua ancestralidade/ascendência
familiar, étnico-racial, grupal, de classe, de nação ou de povo. Ainda
que a humilhação se apresente como um sentimento de uma pes-
soa é um fenômeno eminentemente social, não podendo ser anali-
sado de forma isolada ou individualizada.
Gonçalves Filho (2004) descreve ainda que a humilhação
é a angustia fruto dos vários golpes físicos de maus-tratos (violên-
cia material) e dos contínuos golpes morais sob a linguagem de
inferiorização (violência simbólica), que está associada a um am-
biente político de dominação e que age de forma crônica como sen-
timento de não possuir direitos.
Tal nível de desigualdade política produz exclusão, degra-
dação e invisibilidade pública, que, por sua vez, gera o sofrimento
combustível para o sentimento de rebaixamento e servilismo a
uma suposta autoridade. No caso brasileiro, por várias gerações,
este sofrimento começou por golpes de espoliação e servidão so-
bre nativos, africanos e depois por imigrantes baixo-assalariados,
através das violações da terra, perda de bens, ofensas contra cren-
ças e ritos, trabalho forçado, dominação nos engenhos e depois nas
fazendas e fábricas. Assim, o sentimento de rebaixamento se torna
a moeda de troca na tensa relação entre soberbos e subordinados,
concretizada nas relações escravocratas entre “senhores” e “escra-
vos”, herança para a atual relação empregatícia entre “patronato”
e “proletariado”, que se deram, no passado, e ainda se dão, no pre-
sente, sob estratificação étnico-racial (GONÇALVES FIILHO, 2004).
Com base nas definições de Honneth (2015) e de Gonçal-
ves Filho (1998, 2004, 2005, 2007), é possível fazer uma relação
entre o desrespeito na terceira dimensão do reconhecimento, pela
degradação e ofensa, e o conceito de humilhação social. Am-
bos se caracterizam pelo sentimento de rebaixamento e vergonha
pública e são ocasionados pelo não reconhecimento ou pelo seu
desrespeito. Este sentimento é derivado de privações de direito

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à cidadania, sendo vivenciadas tanto na história pessoal como na
desvantagem histórica, cumulativa e geracional.
A. Santos et al. (no prelo) destacam que o racismo é um
processo que se transforma histórica e contextualmente nas rela-
ções entre indivíduos na vida cotidiana. Estas relações pode ser a
expressão das formas como Honneth (2015) reflete sobre os reco-
nhecimentos afetivos, do direito comum e da solidariedade ética,
assim como os desrespeitos por via dos maus-tratos, da privação
de direitos e exclusão e da degradação e ofensa étnico-racial fruto
do racismo.
O desrespeito vivenciado pela desigualdade de recursos
ambientais, materiais, simbólicos e valorativos fazem com que, por
exemplo, os negros busquem, consciente ou inconscientemente,
uma identificação com a supremacia racial branca. Disto decorre
o fenômeno do branqueamento e com este o sentimento de an-
gústia e frustração pelo não autorreconhecimento neste ideal de
ego branco imposto e incorporado (SANTOS, A. et al., [no prelo]). A
vulnerabilidade psicológica descrita agora, decorrente do racismo,
pode se relacionar ao que Honneth (2015) descreve como violação
às dimensões de reconhecimentos, impossibilitando a constituição
saudável das autorrelações de autoconfiança, autorrespeito e au-
toestima consigo mesmo.
Assim, de um modo geral, é possível analisar que o ele-
mento afetivo do racismo, vigente no preconceito, está diretamen-
te ligado ao julgamento regido pela atitude de desconfiança e a
manifestação dos indicadores de violência no homicídio de bran-
cos e negros. Já o elemento comportamental do racismo, relativo
à discriminação, é orientado pelo desrespeito que se manifesta
como privação de direitos e exclusão, apresentado nos indicado-
res educacionais comparativos entre brancos e negros. E, por fim,
o elemento valorativo, exemplificado pelos indicadores de repre-
sentatividade política e de distribuição de renda, se associa ao
sentimento de rebaixamento ou humilhação que é norteado pela
degradação e ofensas preconceituosas desferida contra a estima
de determinados grupos e pessoas.

À guisa de crítica
Em um contexto no qual o racismo opera pelo precon-
ceito sutil e discriminação indireta, o benefício de utilizar a noção

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de reconhecimento social de Honneth (2015) na leitura sobre as
violações de direitos vivenciadas nas relações étnico-raciais está
na capacidade de elucidação do fenômeno dos efeitos psicossociais
gerados pelo racismo através do processo de socialização no Brasil.
Assim, as relações sociais e interpessoais se configuram no que é
ou não é reconhecido socialmente como confiável, respeitado e es-
timado. O assentimento social, promovido através destas relações
de confiança, respeito e estima, influencia e, consequentemente,
introjeta-se como identidades, concebendo-se pelos elementos so-
ciais valorativos atribuídos enquanto autoconfiança, autorrespeito
e autoestima.
No entanto, atinente à utilização deste referencial da
Teoria Crítica da Sociedade, há uma possível limitação para enten-
der das relações étnico-raciais brasileiras, em especial, tratando-se
de experiências de algumas comunidades indígenas. Tal limite se
apresenta, pois Honneth (2015) concebe o reconhecimento social
através do desenvolvimento da identidade pela individuação do
“Eu”. Este, contudo, é um fenômeno questionável quanto à sua uni-
versalidade.
Essa reflexão surgiu a partir da apresentação do trabalho
Reconhecimento social e produção de sofrimento: refletindo sobre a
atuação dos/as psicólogos/as no tema das relações raciais, ocorrido
no dia 12 de abril de 2017, em Manaus/AM. Uma estudante da Uni-
versidade Federal do Amazonas, de ascendência indígena tukano,
interpelou sobre a premissa epistemológica da noção do reconhe-
cimento de Axel Honneth utilizada. Ela expõe que para a cultura
dela e de muitas comunidades indígenas, o aprisionamento do ser
e um “Eu” individualizado é sinônimo de sofrimento, não sendo
então um fenômeno aspirado.
Esse questionamento leva a Dumont (1985), quando ele
afirma que a linguagem de percepção do mundo e de viver nele,
produto da modernidade, é o que faz o humano moderno ser de-
finido pelo isolamento individual do “Eu”. Ele ainda alega que esta
configuração de humano direciona toda a força psicológica, orien-
tada pela meritocracia e ética protestante, como estímulo para
integração das pessoas em uma sociedade hegemônica moderna
estruturada pela divisão social do trabalho. Elias (1994) destaca
que este humano singular e multifacetado produto do pressuposto

- 62 -
estrutural da modernidade, é resultado do longo processo de subs-
tituição de regulação externa pela regulação interna da conduta,
edificando um tipo humano uniforme e universal, seja na concep-
ção de sua organização afetiva, racional ou valorativa.
Com base na reflexão sobre este “Eu” individual, implíci-
to na noção de reconhecimento social adotada, faz-se necessária
uma suspeita crítica racional-acadêmica ante a realidade das di-
versas experiências no âmbito das relações étnico-raciais, pois há
a tendência de apropriação de tais experiências por um conceito,
através de um juízo sintético e universal da realidade.
Por ser considerada uma das principais teorias contem-
porâneas sobre o reconhecimento social, esta noção pode ser uti-
lizada como uma qualificada referência clássica da teoria social
crítica para discutir a linguagem dos direitos de cidadania (COSTA,
2016). Contudo, a psicologia brasileira também necessita orientar-
se sob uma postura crítica e de comunicação que melhor aproprie
sua atuação junto às populações assistidas. Os seus cientistas e
profissionais devem considerar, além das epistemologias clássicas,
o processo de colonização que moldou a modernização brasileira
e os efeitos decorrentes das suas relações sociais de desigualda-
de. Como crítica, esta atitude precisa ser de respeito e estima na
apreensão teórico-conceitual das diversas realidades, sejam elas
de cosmologias tradicionais ou modernas e suas experiências de
conceber o mundo, viver nele e construí-lo.
Assim, recomenda-se para os/as profissionais da psico-
logia compreender o fenômeno do não reconhecimento social e
do racismo também sob as perspectivas do pós-colonialismo la-
tino-americano e africano, da perspectiva do indigenocentrismo,
do movimento negro brasileiro, do feminismo negro brasileiro, do
mulherismo africano e outras que vão além dos entendimentos he-
gemônicos comumente usados pelo método e filosofia acadêmica.

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- 66 -
O outro dos outros:
a problemática da identidade indígena1

Christian Ferreira Crevels

Comecemos pelo começo. O que é identidade indígena?


A pergunta colocada desta forma direta traz desconforto.
E creio que a isto se deve um motivo, e disso deriva uma necessi-
dade. O motivo é que ultimamente a pergunta assim posta, sem
rodeios, faz parte talvez de um conjunto de perguntas que não se
deve fazer. Por um lado, a grande politização da questão indígena
e o maior policiamento que as minorias sociais e seus defensores
têm feito sobre discursos preconceituosos levam em geral os de-
tentores e propagadores destes discursos a tomarem algum maior
cuidado antes de se manifestarem – o que não impede que o façam,
todavia. Por outro lado, a pergunta traz certo desconforto outro,
baseado no desconhecimento de como os próprios indígenas (to-
dos eles) responderiam, e em uma virtual impossibilidade desse
conhecimento: não seriam identidades indígenas, no plural? Cada
qual com sua especificidade? Como seria possível reduzi-las a uma
generalidade? Diante deste desafio, é a vez daquelas pessoas preo-
cupadas em não incorrerem em preconceitos se calarem. Contudo,
é justamente da inflexão destes dois lados que se faz a necessidade.
Muito embora seja grande o consenso na antropologia (e noutros
campos também) de que não existe algo como uma identidade in-
dígena genérica e geral, por fora daí fala-se disso. Fala-se de iden-
tidade indígena, fala-se em identidade indígena. Fala-se como se
houvesse uma identidade indígena. A necessidade que pleiteio aqui
não é, então, a de responder à pergunta, mas de voltar-se a ela,
refleti-la, já que ela é o problema.
Pois voltemos a ela. O que é identidade indígena? Supõe-
se que seja a característica imanente em ser indígena, seja isso o
que quer que seja. Mas quem o supõe certamente que não são os
próprios indígenas, a não ser na medida em que isso se interpõe
1 Agradeço a Marcelo Calegare, Eric Crevels, Adriana Huber e Gabriel Soares pela leitura prévia,
revisão textual e considerações.

- 67 -
a eles. Pois é uma questão eminente do outro, que não o indígena.
Sabemos bem, e muito bem, que antes da chegada dos europeus e
invasão de seus territórios, os povos que aqui já estavam se conhe-
ciam e identificavam de diversas maneiras, e não como “indígenas”,
ou “índios”, como foram eventualmente chamados. Em bem ver-
dade, Viveiros de Castro (2017) nos aponta que nem mesmo Pero
Vaz de Caminha, em sua célebre carta ao rei de Portugal, se refere a
“índios”, mas a “gentes”. Diz-se que “índio” surge do erro inicial dos
portugueses por acharem ter-se encontrado à Índia, destino que
almejavam. Não obstante o equívoco ser logo percebido, o termo se
mantém e é projetado, é generalizado para todas aquelas popula-
ções que estavam no continente, mesmo aquelas que então não se
havia ainda encontrado – ainda hoje, são chamados índios mesmo
os povos em isolamento voluntário com os quais não é possível in-
dagar como se autodenominam.
Índio é a primeira nomeação que se dá a esses povos de
uma forma generalizante. Ainda que antes houvessem sido chama-
dos de “gentio”, “gentes”, “brasis”, estes termos anteriores não pres-
supunham uma generalidade, enquanto “índios” sim o faz. Índios
se tornam então todos os que ali estavam, segundo um critério ex-
cludente: quem não era europeu – português, francês, holandês ou
espanhol, era índio (mesmo que não soubesse). “No Brasil, todo
mundo é índio, menos quem não é”, diz Viveiros de Castro (2017),
muito acertadamente. Pressupõe também uma alteridade, de ou-
tra ordem e além daquelas alteridades europeias, diferente, por-
tanto, das diferenças que portugueses e franceses viam entre si.
Um novo Outro para os europeus. Concepção alheia ao fato de que
poderiam ser “outros”.
A partir daí, já é possível que se suponha que há um ser
índio – não ser europeu por essas bandas, e já se faz possível fa-
lar como se houvesse uma identidade indígena. O Papa Paulo III em
bula de 1534 já havia estabelecido que se tratavam de humanos,
faltava então localizar essa parcela da humanidade, visivelmente
diferente, ao mapa da(s) humanidade(s) do imaginário europeu –
onde figuravam já alguns “outros”, por exemplo os pagãos. E é por
essa diferença visível que isso será primeiramente feito. Voltare-
mos a isso em breve.

- 68 -
Primeiro, deixaremos mais claro os termos com que li-
damos, buscando alguns referenciais conceituais de como a temá-
tica é abordada na antropologia, que necessitamos para voltarmos
a uma breve historiografia de como os indígenas são vistos pela
sociedade branca. Após essa quebra, vou interpretar as relações
simbólicas da problemática para indicar na seção seguinte as im-
plicações sobre a política indigenista. Ao final, realizo algumas sis-
tematizações e propostas tanto teóricas como pragmáticas para
lidar com a questão da identidade.

Identidade, etnicidade, relações interétnicas


O problema abordado neste artigo é que, antes do ser in-
dígena, existe toda uma problemática colonial e classificatória que
constrói, narrativa e simbolicamente, um mundo em que existem
indígenas para assim o serem, e que este ser o é porquanto existe
um outro, não indígena, que o denomina apesar e à revelia de como
os indígenas se identificam. Essa problemática não é nova, senão
sua relevância em ser mais uma vez tratada possui uma emergên-
cia social atual.
A questão da identidade enquanto objeto de estudo an-
tropológico se expande na medida em que a disciplina se torna
reflexiva sobre a situação colonial dos povos que investiga e sua
própria posição nestes contextos. Frederick Barth (1969/1998)
figura como um dos marcos na consolidação deste tema quando
elabora sua teoria de “identidades contrastivas”, que, resumindo,
aponta o caráter eminentemente relacional dos critérios pelos
quais os povos associam o pertencimento de seus indivíduos. No
Brasil, suas ideias geram um debate frutífero ao redor da década
de 1970 e promovem a criação de uma série de conceitos e catego-
rias de entendimento, como o de “fricção interétnica”, por exemplo.
Essa corrente de investigação antropológica fica conhecida como
“estudos interétnicos”. Em seu princípio, abordava a questão de
forma essencialista e culturalista (Guerrero, 2002), e a preocupa-
ção era de criar modelos de entendimento funcionais para a re-
lação interétnica enquanto fenômeno abstrato de contato entre
culturas diferentes. Aos poucos trabalhos como os de Cardoso de
Oliveira (1974) vêm evidenciar que as relações interétnicas não
podem ser consideradas de forma abstrata, pois são pertinentes de

- 69 -
conjunturas sócio-históricas. Entende-se que, ao menos no Brasil,
falar de relação interétnica é falar não apenas de identidade, mas
de poder, uma vez que a interação entre um grupo étnico e a socie-
dade nacional não se dá simetricamente. A partir dessa discussão,
um conceito interessante que emerge para delinear as formas de
identificação que os próprios grupos elaboram sobre si, mas tendo
em vista também que essas elaborações acontecem em contextos
históricos de relação interétnica, é o de etnicidade.
Etnicidade é o fenômeno de pertencer a uma coletividade
específica, diferenciada, da humanidade enquanto entidade gené-
rica, que se chama então de coletividade étnica, ou grupo étnico
(GUERRERO, 2002; MAYBURY-LEWIS, 2003). A elaboração dos cri-
térios e características de etnicidade em um discurso é chamada
“identidade étnica”.
Quis mostrar os diferentes domínios de alguns dos con-
ceitos da vasta bibliografia que trata, de uma forma ou de outra,
esse assunto. Quero atentar para a redutibilidade da problemática
identitária em uma equação básica: qualquer elaboração identifi-
catória de um povo ou sociedade lida com estabelecer fronteiras
entre o que é o “nós”, causando, ao mesmo tempo, um limite míni-
mo a partir dos quais figuram os “outros”. No cenário interétnico
há então, logicamente, ao menos duas concepções de identificação
em oposição, cada uma a estabelecer o que está dentro de si segun-
do critérios muitas vezes embasados na própria existência dessa
oposição – como propôs Barth (1969/1998).
Acontece que identidade é uma construção discursiva
necessariamente interna, é um discurso sobre si, sobre o que é ser
“eu” ou “nós”, mesmo que engendre um discurso paralelo sobre o
que não é ser “nós”, portanto, o que é ser “outro”. A forma como a
sociedade branca “vê” ou “imagina” os indígenas, não se trata, na
verdade, de uma identidade propriamente dita, mas de uma repre-
sentação ou imagem externa a esses povos. Representação própria
das operações narrativas da sociedade branca em seus discursos
sobre o que é sua própria identidade.
A antropologia e a psicologia social desdobram da noção
de identidade, que em muito possui um referencial individual, a
identidade social. Cardoso de Oliveira (1974) retoma de maneira
clara o diálogo entre estas duas áreas de saber em seu trabalho

- 70 -
“Um conceito antropológico de identidade”2. O autor cita Goode-
nough para atentar a uma definição francamente relacional das
identidades sociais propondo que se fale de “relações de identida-
de”, de operação gramatical “complementar”: lembra que a iden-
tidade “médico” necessita de um par compreensível para poder
fazer sentido, como “paciente”. Em outros casos, em oposição à “es-
posa”, ainda no exemplo dado, a identidade “médico” não possui-
rá sentido, sendo que a identidade-par de “esposa” deva ser algo
como “marido” ou “esposo”, mesmo que se trate da mesma pessoa
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1974).
Para a identidade social, aquela que se remete a grupos,
povos, etnias, enfim, a coletividades, pode-se considerar que este
caráter gramatical também é operante, embora possua suas es-
pecificidades. Em seu livro “A invenção da cultura”, Roy Wagner
(1979) aponta o duplo caráter de criação semântica inerente ao
exercício desta gramática identitária: ao mesmo tempo em que se
diferencia do “paciente” enquanto “médico”, consolida categorias
de pessoas identificáveis entre “pacientes” e “médicos”.
O que chamo aqui de problemática da identidade indíge-
na é então o conjunto de operações simbólicas engendradas em
toda situação que envolve os povos indígenas, acerca do que é ser
indígena. Vivido pelos não indígenas, por um lado, como represen-
tação, de modo a guiar suas ações, projetos, e suas expectativas; e
pelos indígenas, por outro, como um campo simbólico que se pro-
jeta sobre eles, e com o qual precisam invariavelmente lidar. Assim,
o estudo desta problemática supõe não só uma análise semântica
de campos simbólicos de identificação – própria e mútua – mas
trás também um aspecto de historicidade em que precisa ser (de)
composto. Ambos os recortes, semântico e histórico, percorrem
tanto as identidades sociais quanto as representações, e incidem,
por vezes, mesmo nas autoidentificações de povos (KELLY, 2005;
PACHECO DE OLIVEIRA, 2004). A partir de agora, falaremos sobre
essas representações.

2 Que vale a pena revisitar pela clareza com que aponta a área de ação de cada categoria, e as
relações entre elas. O autor também traz outros conceitos em seu artigo: “cultura de contato”
“ideologia étnica”, que não trabalharemos aqui para não sobrecarregar o texto, e por necessitarem
de uma revisão crítica mais elaborada.

- 71 -
Representações dos índios em uma história política3
Visões simplistas e redutoras sobre cultura e identidade
foram historicamente utilizadas de acordo com sua consequência
prática de justificar políticas indigenistas específicas, mais e me-
nos intervencionistas, de acordo com a agenda colonial momentâ-
nea4. Nas primeiras décadas após a chegada dos portugueses, em
que Portugal estava mais interessado no Oriente e suas possibili-
dades lucrativas, mal se elaboram representações sobre os povos
que haviam encontrado aqui (CARNEIRO DA CUNHA, 2009). Faz-
se, no entanto, uma leitura de ingenuidade, projetando a ideia de
“tábula rasa” sobre os povos, carentes de tudo, “sem fé, sem lei e
sem rei”, propagandeando a intenção de Colombo de uma facilida-
de dos reinos de se dominarem aquelas terras e aquelas pessoas.
Clastres (1978/2017) irá apontar que essa “antropologia da falta”
é um dos tópicos classificatórios principais que usam os Estados
Nações para definir seus “outros internos” – por não terem insti-
tucionalização do poder coercitivo, não teriam política; por não te-
rem economias voltadas à acumulação e lucro, seriam “sociedades
de subsistência”, etc.
Da segunda metade do século XVI em diante, o discurso
sobre os indígenas será regido fundamentalmente de acordo com
a agenda cristã sobre o que se debruça Eduardo Viveiros de Castro
no ensaio “O Mármore e a Murta”, em que apontará um fortaleci-
mento das representações dos povos “sem fé, sem lei e sem rei”.
É nesse período que surge uma primeira grande divisão classifi-
catória para os indígenas, opondo aos “tupinambás”, em contato,
os “tapuia” arredios sobre os quais se projeta toda uma sorte de
atributos negativos – belicosos, violentos, desumanos, etc.
Em 1757, Marquês de Pombal inaugura o que virá a ser
durante séculos a ideologia central da política indigenista oficial
brasileira. O Diretório de Pombal extingue os aldeamentos de or-
dem religiosa, colocando-os à condição de colônias rurais, nos
quais acredita que os indígenas irão, mediante o trabalho junto à
sociedade, gradativamente se deixar integrar à civilidade. Seu dis-
curso verbaliza a visão dos povos indígenas sob a ótica do evolu-
3 Para outro momento, é necessário ainda investigar detalhadamente essa história. Tenho a
impressão de que essa história se encontra entre uma arqueologia das representações e uma
genealogia da política de alteridade colonial.
4 Para excelentes e mais detalhados trabalhos sobre a história da política indigenista ver os
escritos de Manuela Carneiro da Cunha (2009 e 2012)

- 72 -
cionismo cultural, na qual era entendido que suas culturas viriam
“naturalmente” a “progredir” até alcançar o patamar já atingido
pelas sociedades europeias. Em termos administrativos, para a
colônia seria desejável acelerá-los no processo, condizente com
o “destino natural” – e elencando a necessária mão de obra para
a colonização dos interiores do país. Essa resolução evolucionis-
ta de inclusão compulsória dos povos indígenas à sociedade ficou
conhecida como integracionismo ou assimilacionismo. Algumas
décadas mais tarde, D. João VI resgata a noção de “guerras justas”
para justificar o ataque e a escravidão de populações indígenas que
se recusassem a aceitar a inserção à cultura ocidental e ao trabalho
assalariado, tornando a ideologia pombalina em lei de sangue.
Um século e meio depois do Diretório, o Decreto 8.072
de 1910 cria o Serviço de Protecção aos Indios e Localização de
Trabalhadores Nacionaes – SPILTN, com uma visão não muito dis-
tinta. No mesmo tom se faz a constituição da FUNAI, em substitui-
ção ao SPI (antigo SPILTN), em 1967. Entre suas atribuições, estão:
“promover a educação de base apropriada do índio visando à sua
progressiva integração na sociedade nacional” (grifos meus). Tam-
bém presente no Estatuto do Índio, Lei 6.001 de 1973: “Art. 1º Esta
Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comu-
nidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e
integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional”
(grifos meus).
O diretório é revogado pela Carta Régia de 12 de maio de
1798, mas sua retórica de civilização segue por outras vozes até
ecoar hoje. Seu entendimento é utilizado por D. João VI nas suas
Cartas Régias da “guerra justa”; adentra o Império com os “Aponta-
mentos para a Civilisação dos Índios Bravos do Império do Brazil”
de José Bonifácio (1823/1965); através da tentativa de estabeleci-
mento de um “Plano Geral de Civilização dos Índios”; das insólitas e
variáveis legislações imperiais do século XIX; continua perceptível
pelas diversas Constituições Federais da primeira metade do sécu-
lo XX, na criação do SPI e da FUNAI, no Estatuto do Índio de 1973,
até ser abolida, finalmente, pela Constituição Federal de 1988.

- 73 -
As vias de estigma
Preocupado com as identidades sociais, em seus estudos
sobre o estigma, Goffman (1980) nos dá algumas ferramentas de
compreensão importantes:

A sociedade estabelece um modelo de categorias e tenta cata-


logar as pessoas conforme os atributos considerados comuns
e naturais pelos membros dessa categoria. Estabelece também
as categorias a que as pessoas devem pertencer, bem como os
seus atributos, o que significa que a sociedade determina um
padrão externo ao indivíduo que permite prever a categoria e
os atributos, a identidade social e as relações com o meio (GOF-
FMAN, 1980)5.

O autor parte então a diferenciar esse “modelo de catego-


rias” externo estabelecido pela sociedade como “identidade social
virtual” (que venho chamando de representação social), oposta à
“identidade social real” que se refere ao modelo estabelecido pelo
próprio grupo ao qual ambas se destinam (GOFFMAN, 1980). Se-
gundo ele, na atividade cotidiana, ambas entrarão em síntese para
formar então o fenômeno da “identidade social”. Entretanto, em
situações de contraste de poder a síntese não acontece, e a identi-
dade social virtual torna-se total, sobrepondo-se completamente à
identidade social real – situação que define o estigma: a consolida-
ção de imagens de descrédito associadas à determinada categoria
de pessoas que projeta significado totalizante e redutor sobre ela,
encerrando-a em uma identidade virtual. Argumento que as repre-
sentações brasileiras dos indígenas conformam imagens estigma-
tizantes.
Em outra ocasião (Crevels, 2013), estudei mais de perto
uma dessas instâncias, a saber, reportagens virtuais e sua reper-
cussão imediata por meio dos comentários que geraram, publica-
dos pelos internautas nas próprias páginas de veiculação midiá-
tica. A partir desse estudo elaborei um apanhado dos elementos
constituintes destes discursos, vendo cinco atributos que norteiam
o estigma indígena: 1) Traços físicos ou representações estéticas
5 O autor fala aqui em “categorias” de uma sociedade. Não creio que possamos inadvertidamente
tomar os povos indígenas como uma categoria dentre uma “sociedade brasileira” sem cair na
armadilha simbólica que aqui critico. No entanto, argumento que, no tocante à questão, o que pode
ser sim considerado como “categoria” é a generalização dos indígenas, que venho chamando de
representação social do indígena – vejo que é assim construída, o que explica o uso de tal autor.

- 74 -
de vestimenta; 2) Comportamental individual; 3) Comportamental
coletivo 4) Existência não-aculturada ou “pura”; 5) Consangüinida-
de ou pertencimento parental mais ou menos “puro”.
É possível corresponder de certa forma essa minha de-
composição a alguns tópicos da tipologia dos “enfoques sobre iden-
tidade” de Guerrero (2002). O ponto 1, que referi também como
“diacrítico”, seria o “enfoque objetivista”: considera que a identi-
dade está necessariamente ligada a aspectos materiais ou percep-
tíveis, leva a posições ideológicas exotizantes e folclorizadas. Os
pontos 2 e 3 comporiam aspectos do “enfoque essencialista”: vi-
são para que a identidade seria uma essência supra histórica, uma
“espécie de segunda natureza” imutável e inescapável. O ponto 4,
o “enfoque culturalista”: que parte de um conceito mecanicista e
imóvel de cultura, e ignora sua construtividade histórica. O pon-
to 5 seria o “enfoque primordialista”: semelhante ao essencialista,
no entanto vincula diretamente a questão de filiação e genealogia.
Guerrero ainda aponta mais dois enfoques: “subjetivista”, e “cons-
trutivista e relacional”, que não aprofundarei.
Conklin (1997) também relaciona a identidade indígena
brasileira no contato com a sociedade não indígena estreitamente
ditada por signos visuais. E Pacheco de Oliveira (2003) apresenta
que, de uma forma geral, as perseguições preconceituosas seguem
o indígena sobre a pressuposição de identidade indígena ancestral,
primitiva e selvagem, inculcadas em um culturalismo ferrenho que
vem a definir o que é ou não é o indígena segundo “parâmetros de
pureza”:

A concepção naturalizada de cultura adequa-se perfeitamente


com a representação do senso comum sobre os índios, forman-
do um complexo ideológico de difícil desmontagem. A repre-
sentação cotidiana sobre o índio, como já dissemos em outras
ocasiões, é a de um indivíduo morador da selva, detentor das
tecnologias mais rudimentares e das instituições mais primi-
tivas, pouco distanciado portanto da natureza. É justamente
essa representação que informa as manifestações literárias e
artísticas, a ideologia sertanista, o estatuto legal, a política in-
digenista e ainda conforma os mecanismos oficiais de proteção
e assistência (PACHECO DE OLIVEIRA, 2003).

Já vimos antes sobre a inscrição das concepções positi-


vistas na política indigenista oficial. No plano das representações,

- 75 -
Cardoso de Oliveira (1974) assinala um movimento que chama de
“caboclismo”: semelhante à divisão entre tupinambás e tapuios,
trata-se da classificação dos indígenas em maior situação relacio-
nal com a sociedade envolvente – e a economia extrativa de avia-
mento, no norte do país como “caboclos”. Semelhante acontece no
Sul, onde o termo escolhido é “bugre”. O caboclo, ou o bugre, são
colocados em oposição aos indígenas ainda distantes do contato,
os “brabos”, e, embora não se tornem brancos, busca-se ressaltar
sua homogeneização sociológica à sociedade, como os indígenas
“já civilizados”.
Homogeneizar, no entanto, não quer dizer colocar todos
em um mesmo patamar sociológico, significa adequar todas as po-
pulações para que possa ser sobreposto sobre elas o mesmo sis-
tema. Sistema de mundo este que não é homogêneo, ao contrário,
impõe uma subordinação das diferenças em um esquema social
estratificado e hierarquizado.

Um mosaico de exclusão: índios “falsos”, “hiper reais”


e seus locais
Ainda nos atendendo à operação fenomenológica do es-
tigma, podemos perceber um aspecto peculiar. Na ocasião do dis-
curso, nem todos estes elementos precisam ser ativados, a bem di-
zer, apenas um – qualquer um – precisa ser ativado para que efetive
o estigma sobre a identidade indígena conduzindo-a a um patamar
de inferioridade. Algo como o “corpo sem órgãos”, de Deleuze e
Guattari (1973/2010), que pode se projetar sobre qualquer coi-
sa, sem sofrer contra-interferência, a ressignificá-la em um novo
registro. O estigma não necessita de qualquer de seus elementos,
engaja-os de acordo com a situação.
Isso nos leva à próxima consideração, de que estes ele-
mentos aparentam serem então artifícios retóricos da pragmática
estigmatizante. São imagens, mensagens, sobre o que é entendido
como ser indígena, ainda mais especificamente porque frequen-
temente estão a apontar o que não é próprio do ser indígena, o
que não é indígena, o que desfaz o ser indígena. Dizer o que não é
indígena. Isso nos traz a uma discussão importante: o surgimento
(relativamente) recente de discursos acusatórios de “falsos índios”.

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Ao longo da primeira metade do século passado, o con-
senso geral era de que os indígenas iriam invariavelmente desa-
parecer enquanto tais, assimilados de uma forma ou outra ao con-
junto da sociedade nacional (CARNEIRO DA CUNHA, 2009). Crença
pautada pelo positivismo, sofre um estremecimento quando, nos
anos 1970 e 1980, a população indígena brasileira passa a cres-
cer, contrariando o histórico demográfico de diminuição, e os in-
dígenas passam a se organizar politicamente (RAMOS, 2005). Ain-
da mais, grupos que se supunha extintos passaram a reaparecer,
ressurgindo de períodos de “submergência” de suas etnicidades, o
que Pacheco de Oliveira (2004) chama de “processos de etnogêne-
se”. A sociedade branca não consegue compreender ou aceitar que
“caboclos”, “bugres” e “tapuios” tornem a se identificar indígenas,
pois isso contraria a ordem natural da evolução social positivista.
Mais ainda, há direitos específicos para indígenas que, se permiti-
dos esses grupos a se identificarem como indígenas, poderão aces-
sar – enquanto não há direitos para caboclos.
Negar a existência de indígenas por meio de um discurso
que desclassifica como tal aqueles que não se encontram nas situa-
ções esperadas para indígenas, assim como ocorre na negação da
existência de raça no Brasil, é uma forma de estratégia discursiva
de invisibilizar a história colonial que foi para essas populações
e povos extremamente violenta e desarticuladora, que os colocou
nas periferias da sociedade, empobrecidos e aviltados em sua au-
tonomia. Em relação aos negros, se apoia em enfoques geneticis-
tas, e o mito da miscigenação pacífica freyriano para tal (SEGATO,
2005), discurso que ressurge com virulência quando a agenda po-
lítica discute a criação de medidas de reservas de vagas para estu-
dantes negros em universidades públicas.
Em relação aos indígenas, à medida que cada povo se
afasta mais dos pressupostos constitutivos dessas representações,
maior será a assimetria de poder na relação, resultando em menor
possibilidade dos povos indígenas de fazer valer as suas representa-
ções, os seus entendimentos. A possibilidade de diálogo (ou síntese,
para retornamos a Goffman) entre as identidades sociais real e vir-
tual desta relação torna-se assim dissimuladamente nula. Ou seja,
mais difícil é para um grupo indígena conseguir se colocar como in-
dígena quanto menos se adequa ao estereótipo do indígena “puro”.

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Adequar-se menos ao estereótipo não é senão aproximar-
se mais da sociedade envolvente. Aproximar-se diacrítica,
temporal e geograficamente. Marc Augé (apud Guerrero, 2002)
utiliza o termo “alocronismo” para referir-se à postura de não con-
siderar o “outro” um contemporâneo, ao criticar a postura antro-
pológica clássica. Acredito que este termo guarda interessantes
considerações, mas gostaria de propor sua extensão para utilizá-lo
no tocante à representação social do indígena no Brasil para con-
templar não apenas o aspecto temporal (como bem aponta Pache-
co de Oliveira), mas também o geográfico e o diacrítico. Pois assim
podemos, de certa forma, resumir as bases significantes das ditas
representações: toma-se o indígena como um ser distante – no
tempo, uma figura vinculada ao passado e sem futuro; no espaço,
próprio dos recônditos da floresta, dos altos rios, no polo opos-
to ao urbano; diacrítica, visualmente distante, diferente, estetica-
mente exótico com costumes exóticos. É negar-lhe, enfim, o espaço
e a história do aqui e do agora.
Situar uma cultura ou povo fora da história é pressupor
um total determinismo cultural, ou seja, é negar-lhes a possibili-
dade dos usos e manobras sobre sua própria sociedade e cultura.
Enfim, um tipo de objetivação de sua situação, alienadora da sub-
jetividade reflexiva de qualquer povo humano. Como se a reflexão
sociológica, e antropológica, fosse uma prerrogativa “civilizada”.
Mais uma vez, o discurso de superioridade da sociedade branca
pauta a sua “civilidade” como uma vitória sobre a natureza, e se
utiliza dessa permissão moral de possuidora da verdade para im-
por aos indígenas sua própria agenda.
Enfim, o estudo das relações de identificação social dos
indígenas e dos elementos que compõem as representações ou
imagens que a sociedade cria deles nos leva a perceber que se co-
loca sobre eles uma situação de duplo vínculo, como salienta Vivei-
ros de Castro (2017). Conceito de Bateson (1956) atualizado por
Deleuze e Guattari, duplo vínculo é:

A emissão simultânea de duas ordens de mensagens que se


contradizem mutuamente (por exemplo, o pai que diz ao filho:
vamos, critique-me; mas diz isso deixando vivamente suben-
tendido que qualquer crítica efetiva, ou ao menos um certo gê-
nero de crítica, seria mal recebida). (...) a identificação neuró-
tica e a interiorização dita normativa (1973/2010, p.110-111).

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Por um lado, se projeta sobre os povos indígenas toda
sorte de preconceitos e estereótipos que elaboram uma ideia de
um “índio hiper real” (RAMOS, 1995) que não são personagens
atuais (PACHECO DE OLIVEIRA, 2003), que são distantes social,
temporal e geograficamente. Por outro, quando a realidade dos po-
vos não se enquadra nesse modelo hiper real, não é a validade dos
estereótipos que é posta em questão, e sim a identidade dos indí-
genas: apronta-se logo em julgá-los como “falsos índios”.
Joga-se aos indígenas uma armadilha cruel – se querem
ser plenos portadores dos direitos garantidos a indígenas, de-
vem buscar se comprometer a uma imagem ideal (idealizada) e
impossível do que é ser indígena, inalcançável, pois contra-devir,
anti-porvir (VIVEIROS DE CASTRO, 2017). Autonomia com aces-
so é uma combinação perigosa demais para que grupos “outros”
possuam ambos. Muito embora os direitos garantidos em lei não
estejam pautados nesses termos, mas sim em mecanismos com-
pensatórios e de reconhecimento.
Há pelo menos duas consequências diretas e comple-
mentares da problemática da identidade indígena na política in-
digenista. Por um lado, porquanto se procura estabelecer quem é
indígena e quem não o é segundo o estereótipo alocrônico, deixam-
se diversos povos fora desta categoria. Fora, portanto, da abran-
gência de políticas públicas e fundiárias. Para esses, quando não
se dispõem a conformar esta interpretação, se lhes acusam de ser
falsos índios, cínicos, charlatões interessados apenas em aprovei-
tar das políticas públicas em benefício próprio.
Por outro, aqueles povos considerados de fato como in-
dígenas são lidos segundo o modelo positivista-integracionista
como fadados à integração à sociedade, de acordo com o que lhes
é negada a participação nas decisões de políticas públicas e em-
preendimentos governamentais que possam lhes intervir na vida.
Quando os indígenas lutam por maior participação decisória, se
busca logo deslegitimar sob a alcunha de serem “empecilhos ao
bem nacional”.
O indígena nunca ocupa uma posição de igualdade para
com o branco no imaginário branco brasileiro, mesmo quando “ci-
vilizado” passa ao estatuto de “caboclo”, um “ex-índio”, “não-índio”,
que não alcança o status do branco.

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A pragmática da representação
estão expostas no segundo volume do relatório da Co-
missão Nacional da Verdade as consequências do modelo inte-
gracionista levado a cabo durante a ditadura militar. Aponta-se o
massacre de milhares de indígenas, até de povos inteiros, em favor
da execução de planos de infraestrutura e projetos de “desenvolvi-
mento”, além de remoções forçadas, esbulho das terras dos povos,
e mais inúmeras violências aos povos indígenas.
O Conselho Indigenista Missionário (CIMI, 2016) calcula
que existam um total conhecido aproximado de 1113 terras indí-
genas no país, sendo que destas, 654 possuem alguma pendência
administrativa no processo demarcatório. O atraso na regulariza-
ção de terras indígenas conhecidamente leva a conflitos frequen-
temente violentos, causando extrema vulnerabilidade aos povos
indígenas que nelas residem, ou que delas foram expulsos – como
os casos Guarani e Kaiowá, Munduruku, Kawahiva do Rio Pardo,
Mura, Raposa Serra do Sol, e muitíssimos outros.
Entre 2011 e 2017, apenas vinte e três terras indígenas
foram homologadas. A esse passo, tendo em mente o recente des-
monte orçamentário que se incide sobre a Funai, fica claro que a
demarcação das terras indígenas não é prioridade deste governo.
Aliás, a prioridade parece ser a usurpação destas terras e dos re-
cursos nelas existentes, sob o subterfúgio de projetos para o de-
senvolvimento e progresso do país.
Embora com a Constituição Federal de 1988 este discur-
so seja extinto da legislação, de modo algum é abandonado na prá-
tica administrativa ou no âmbito político. Testemunhamos isso du-
rante a construção de Belo Monte, no projeto Matopiba, na negação
do governo em demarcar as terras tradicionais Guarani e Kaiowá
no Mato Grosso do Sul. Ouvimos nos discursos preconceituosos e
repletos de ódio de figuras políticas como Luis Carlos Heinze, Ro-
mero Jucá ou Jair Bolsonaro.
Se fizermos uma observação do mapa da bacia amazôni-
ca sobreposto com as terras indígenas demarcadas, veremos um
vazio significativo próximo aos centros urbanizados e aos rios de
mais antigo processo de colonização, como o Solimões, mesmo que
estejam registradas pela Funai diversas demandas nessas regiões.
Creio não ser coincidência, mas sim um sinal de que os povos dali

- 80 -
possuem mais dificuldades de ver suas terras demarcadas6. E esta-
mos nos referindo à Amazônia, que dizer então dos vazios no Nor-
deste, Centro-Oeste, no litoral brasileiro...7.
No tocante a políticas públicas, em primeiro lugar, o
que vemos é uma “improvisação de legislação” (MOLINA, 2017)
burocrática que assume que só são indígenas dignos de direitos
aqueles que estão em terras demarcadas. É o caso pelo que pas-
sam indígenas residentes de terras que estão em reivindicação,
mas ainda não foram demarcadas: Kaninari Itixi Mirixiti, Maraguá
Paji, Lago do Piranha, Tuyuka, Baixo Tumiã, e muitas outras, para
citar apenas as que conheço a realidade pessoalmente no estado
do Amazonas. Já nas Terras Indígenas demarcadas há uma versão
atual do “sem fé, sem lei e sem rei”, em que as políticas públicas
para os povos indígenas os consideram “sem saúde, sem educa-
ção, sem organização”. As intervenções da Sesai na área da saúde
desconsideram completamente sistemas de saúde, concepções de
doença, e práticas tradicionais e próprias de cura e tratamento dos
povos indígenas. A aplicação de sistemas educacionais “específicos
e diferenciados” saiu raramente do papel e da ideia, muitas vezes
tomando-se por suficiente incluir aulas de língua materna nos cur-
rículos escolares. O respeito à organização social preconizado na
Constituição de 1988 é passado ao largo na imposição de modelos
de liderança típicos de alguns povos em outros em que não são tra-
dicionais, como a instituição de caciques e tuxauas nas comunida-
des indígenas em posição análoga à de “presidente comunitário”8;
ou na insistência para a criação de associações civis para povos ou
conjuntos de povos. Trata-se, enfim, de uma antiga retórica utiliza-
da ao longo dos séculos de colonização interna e externa do Brasil
para justificar políticas de usurpação dos direitos de autodetermi-
nação dos povos indígenas e sobre suas terras.
Com a validação da Convenção 169 da OIT pelo Decreto
5051/04, fixa-se a compreensão jurídica da autodeterminação dos
povos indígenas como via única para sua identificação. No entanto,
a existência da lei não garante, por si só, a efetividade dela sobre os
6 Para um estudo de caso do processo de (e luta por) demarcação de uma Terra Indígena em local
onde se pressupõe não ser condizente com a presença indígena legítima, ver minha monografia de
conclusão de curso pela UnB (Crevels, 2014) e também a de Silva (2011)
7 Outra observação cartográfica interessante é revisar os mapas de áreas etnográficas de Julian
Steward, Eduardo Galvão, Murdock, Mellati e Nimuendaju, cada qual com seus “vazios”.
8 Às vezes, recebendo um salário, pago pela FUNAI ou por prefeituras municipais.

- 81 -
movimentos simbólicos de representação social dos indígenas e a
política de identidade que tenta projetá-los por sobre as identifi-
cações indígenas, como vimos ao longo deste artigo. É necessário
levar em conta que identidades são processos, antes de qualquer
coisa. São discursos políticos em um mundo politizado, mutáveis
de acordo com a ocasião, com o tempo e as circunstâncias históri-
cas. É necessário manter sobre a questão da identidade olhar pró-
ximo e atento, sob constante tensão, sob o risco de que se tome
o Decreto como fim da história das identidades indígenas – como
assunto de discussão finalizado e esvaziado, e que saiamos todos
deste debate, sem perceber que ele segue, sob outros signos, ope-
rando suas políticas identitárias coloniais.

Considerações finais
As representações sociais dos povos indígenas no Brasil
são transmitidas por diversos meios, de maneira difusa. No geral,
indígena é uma categoria que figura nas salas de aula, em alguns
noticiários de televisão, documentários e produções cinematográ-
ficas fantasiosas, uma ou outra política pública, e manifestações
em busca de direitos por vezes transmitidas na mídia. Pequena é
a parcela da população que efetivamente lida com indígenas, seja
cotidiana ou profissionalmente. Entre esta pequena parcela e a
população brasileira como um todo existe uma diferença muito
grande de conhecimento e elaboração acerca de quem e como são
os indígenas. E mesmo dentre essa parcela é perigoso afirmar que
existe consenso acerca da questão.
Para os indígenas, a situação é inversa. O convívio com
a sociedade branca se faz corriqueira e estruturalmente, está nas
ações e atendimento de saúde, na busca por documentação neces-
sária para acessar benefícios sociais e previdenciários, na garantia
de posse e proteção de seus territórios, etc. “Viram cair-lhes so-
bre a cabeça uma ‘Pátria’ que não pediram”, diz Viveiros de Castro
(2017).
Há uma questão que ainda é válida de se indagar: por
que, afinal, é que toda a energia antropológica investida na discus-
são da problemática da identidade indígena, suas conclusões e o
desenvolvimento de seus conceitos, parece não alterar a reprodu-
ção e difusão das representações estigmatizantes dos povos indí-

- 82 -
genas? A resposta, obviamente, não é simples e não creio ser capaz
de finalizá-la. No entanto, é possível que isto também se deva ao
fato de que há, efetivamente, uma política de identidade indígena
engendrada e disfarçada dentre a política indigenista oficial. Por
estar a política indigenista recoberta de formalidade nas práticas
burocráticas, processos administrativos, portarias, políticas públi-
cas e etc., presume-se que esteja esvaziada de questões ideológicas
tais como é normalmente entendida a discussão acerca de iden-
tidade. Tentei demonstrar aqui e em outros lugares, (CREVELS,
2013, 2014) que este não é o caso, que preconceitos, imagens este-
reotipadas, estigmas totalizantes, adentram a prática administrati-
va para direcionar a política indigenista em sentido de um projeto
específico de usurpação territorial e de transformação dos indíge-
nas em pobres para que assim, terras e índios, tornem-se úteis ao
capitalismo.
Quis argumentar que, no âmbito das políticas ideológi-
cas, a forma é o que rege – uma ideia geral de que os “outros” são
inferiores. Ao longo da história, essa “forma” será preenchida com
conteúdo simbólico que a compreenda e a efetive na conjuntura.
No cotidiano, esse conteúdo difundido assistematicamente pela
população contraefetua a forma, retificando-a e reproduzindo-a.
A relação entre essa “forma” e esse “conteúdo”, para mim, dá-se
nos termos de “individuação” e “coletivização” de Wagner (2006).
Como aponta Skinner (1993 apud LEÃO REGO, 2002), toda época
possui seu próprio “vocabulário normativo” que cria uma espécie
de “semântica política-história” que proverá os atores políticos de
uma linguagem da legitimidade para seus diferentes projetos po-
líticos.
O estudo da problemática da identidade indígena, pressu-
posto dentro dos estudos de relações interétnicas, deve considerar
expandir seu olhar, e buscar fonte de categorias de entendimento
junto à bibliografia que se dedica aos demais “outros” da sociedade
nacional. Os estudos e movimentos pela igualdade dos gêneros e
autoras feministas começam um interessante movimento de cria-
ção conceitual acerca de cada manifestação do machismo: fala-se
de slut shaming, gas-lighting, feminicídio, e mais toda uma sorte de
termos que têm muito a oferecer na compreensão dos caminhos da
violência simbólica empreendida a uma identidade “outra”, a saber,

- 83 -
à feminina. De maneira semelhante, os estudos sobre a questão ne-
gra e racismo desenvolvem cada vez mais categorias semelhantes,
como racismo estrutural, racismo linguístico, e mais9. Falta, ainda,
correlacionar mais os estudos da problemática da identidade indí-
gena aos estudos das problemáticas de todas demais identidades
“outras”.

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- 86 -
Psicologia e povos indígenas:
Breves apontamentos sobre as
produções em psicologia e a
constituição da pessoa Yepa Mahsã

Felippe Otaviano Portela Fernandes


Marcelo Gustavo Aguilar Calegare

Introdução
No Brasil, os trabalhos de Psicologia voltados aos povos
indígenas têm crescido gradativamente, entretanto ainda há uma
carência de referenciais que possam nortear o fazer de Psicologias
para esses povos, tanto no âmbito da ciência quanto profissão. As-
sim, o 1º “Seminário Amazonense de Psicologia e Relações Étnico-
Raciais”, realizado em abril de 2017, mostrou-se como um impor-
tante espaço para apresentar os trabalhos desenvolvidos nessa
temática, conversar e refletir de forma interdisciplinar sobre ru-
mos da construção de Psicologias contextualizadas e horizontais.
Dessa feita, as reflexões apresentadas neste capítulo foram feitas a
partir de nossa dissertação de mestrado (FERNANDES, 2017), que
teve como proposta trazer reflexões do fazer de Psicologias junto
aos povos indígenas, a partir de um diálogo entre a Psicologia Cul-
tural e a cultura Yepa Mahsã. E também acrescentamos discussões
que ocorreram entre os membros da mesa e a plateia presente, a
respeito das relações étnico-raciais e povos indígenas no Amazo-
nas.
Desse modo, abordaremos primeiramente os caminhos
metodológicos seguidos na dissertação, para em seguida expor uma
breve descrição das tendências de pesquisa em Psicologia e povos
indígenas no contexto nacional e nos contextos internacionais. Feito
isso, apresentaremos o diálogo entre o marco teórico utilizado (In-
digenous Psychology e Psicologia Macro Cultural) com a cultura Yepa
Mahsã. Por fim, teceremos algumas reflexões a partir desse dialogo,
juntamente como as interações que ocorreram no evento.

- 87 -
Psicologia e povos indígenas: reflexões a partir da in-
teração com a cultura Yepa Mahsã no projeto rios e redes
A dissertação de mestrado, que deu base para as refle-
xões a respeito de Psicologias junto a povos indígenas, permitiu
vislumbrar possíveis caminhos para o fazer de Psicologias hori-
zontais que respeitem e levem a sério as diferentes visões de mun-
do das diferentes sociedades. Tratou-se de um trabalho em con-
junto com o Núcleo de estudo da Amazônia Indígena (NEAI), que
é vinculado com o Programa de Pós-Graduação de Antropologia
Social da Universidade Federal do Amazonas. O NEAI desenvolveu
pesquisas a partir do “projeto Rios e Redes”, na Comunidade São
Domingo Sávio no Rio Tiquié (Alto Rio negro), junto ao grupo in-
dígena dos Yepa Mahsã (Tukano), com o intuito de abordar antro-
pologicamente as concepções indígenas sobre os diferentes senti-
dos da relação sociedade/natureza. Esse projeto contava com uma
equipe de antropólogos não indígenas e também indígenas, que
faziam parte dos Yepa Mahsã e eram falantes da língua. A equipe
continha também pesquisadores de outras áreas do conhecimento,
tais como engenheiros florestais, cartógrafos e também o pesqui-
sador psicólogo que aqui escreve. Nossa inserção no Projeto Rios e
Redes foi como bolsista de mestrado beneficiado pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado Amazonas (FAPEAM).
Para abordar tais concepções, os pesquisadores propuse-
ram o Simpósio de Kumuã (pajés), que tinha como objetivo abordar
o universo dos Yepa Mahsã da região do Rio Tiquié e de Lauaraté,
para promover uma reflexividade acerca dos conceitos da filosofia
Yepa Mahsã, implícitos no Kihti Ukuse, Bahsese e Bahsamori. Es-
tes são três conceitos que superficialmente podem ser traduzidos
como narrativas místicas desse povo, benzimentos, e cantorias e
festividades. A partir desse trabalho de reflexividade, houve o in-
teresse em articular juntamente com tais estudos as contribuições
da Psicologia Macro Cultural. A partir desse referencial, propuse-
mos uma análise psicossocial das práticas culturais do Kihti Ukuse,
Bahsese e Bahsamori, para compreender como estas estão presen-
tes na pessoa Tukano. Lembrando que essas análises partiram do
discurso antropológico construído pelos membros da equipe do
projeto Rios e Redes.
Portanto, a pesquisa foi de cunho qualitativo, utilizando-
se de: a) dados secundários (transcrições de simpósio, relatórios

- 88 -
de atividades e materiais textuais produzidos durante o projeto);
b) de memórias escritas das reuniões grupais formais da equipe
de pesquisadores; c) de informações do diário de campo a partir
das conversas informais que ocorreram entre a equipe. Para aná-
lise dos materiais, utilizamos a análise interpretativa, de modo
que fosse possível compreender os sentidos e significados que
os referidos conceitos indígenas traziam para o entendimento da
pessoa Yepa Mahsã. Nossa atuação como pesquisador psicólogo
no contexto dessa pesquisa se configurou não apenas como um
pesquisador participante nem observador distante, mas como um
membro da equipe do Projeto Rios e Redes. Assim, auxiliamos tan-
to na construção do discurso antropológico sobre os três conceitos
Tukano, quanto na elaboração dos materiais textuais. Isso carac-
terizou nossa atuação como pesquisador no cotidiano, na acepção
de Spink (2007) e Spink (2008). Para ambos autores, o cotidiano
é entendido como os fatos, cenas e trabalhos do dia a dia, que se
mostram como importantes conteúdos para se refletir a vida em
sociedade. Desse modo, ao pesquisar inserido no cotidiano, o pes-
quisador passa a fazer parte das ações que se desdobram em espa-
ços de convivência públicos ou não.
Além disso, ao estar inserido no cotidiano o pesquisador
amplia não só a sua experiência em relação ao objeto de estudo,
mas também os seus métodos de coleta de dados, pois ele não se
prende aos formulários, ou aos momentos formais de coleta, como
entrevistas, momentos próprios de observação. Ele se utiliza tam-
bém dos conteúdos que surgem das relações que ocorrem nos es-
paços informais, que se revelam como material riquíssimo para
análise.
Nessa inserção, o papel do pesquisador torna-se flexível.
No caso do projeto Rios e Redes, além de mestrando em Psicolo-
gia, também éramos membro do grupo desse projeto. Assim, era
necessário atuar nas diferentes atribuições, tais como fazer parte
das discussões, trabalhar em materiais textuais sobre as mesmas e
auxiliar nas demais dinâmicas que o ambiente do local de trabalho
demandava, tais como lavagem de louças, trabalhos burocráticos
e organização e arrumação das salas. De acordo com Victorio Fi-
lho (2007), em meio a estas atribuições a interrogação dos senti-
dos dados à pesquisa nunca cessa, não havendo assim cisão entre

- 89 -
pesquisador e a pesquisa. Essa atuação de mestrando e membro
do projeto se mostrou ser um importante momento de reflexão.
Dessas reflexões pudemos visualizar a importância da interdisci-
plinaridade para o fazer de Psicologias contextualizadas e cultu-
ralmente horizontais. A partir da interação com outras áreas de
estudo (nesse caso, com a Antropologia), e também com a cultura
dos Yepa Mahsã, foi possível pensarmos o entorno de forma relati-
vizada, cujos componentes dos fenômenos e dos processos psico-
lógicos que até então eram tratados como universais, se diferen-
ciam nas diferentes sociedades através da cultura.

Estudos de psicologia e a temática indígena nos con-


textos nacional e internacional
A partir de uma revisão de literatura dos artigos dispo-
níveis na Plataforma CAPES, tanto do contexto nacional quanto in-
ternacional dentro do recorte temporal de 2010-2015, pôde-se ter
um vislumbre dos quantitativos das publicações nessa temática.
Nesta revisão foram estudados 14 trabalhos do contexto brasileiro
e 134 trabalhos dos contextos internacionais advindos de 28 paí-
ses diferentes. Desses trabalhos verificamos que os quatro países
que tiveram mais de 10 publicações dentro desse recorte tempo-
ral, foram respectivamente: Estados Unidos (50); Austrália (20);
Brasil (14); China (11).
A Psicologia brasileira, tendo historicamente seus alicer-
ces pautados nas tradições europeias e norte-americana, trouxe e
traz consigo dificuldades em alcançar as sociedades indígenas de
forma efetiva, submetendo as culturas indígenas a categorias ina-
propriadas para classificar os fenômenos e processos psicológicos
que acontecem no seio dessas sociedades. Desse modo se faz ne-
cessário pensar e fazer Psicologias que alcancem essas culturas.
A produção de trabalhos de Psicologia no contexto na-
cional, voltados à temática indígena, tem crescido gradativamen-
te desde 1980, sendo mais recorrentes a partir de 2000 (VITALE;
GRUBITS, 2009). Porém, se comparados com os contextos inter-
nacionais, observamos que a produção brasileira de estudos de
Psicologia e povos indígenas ainda é muito recente. Nos contex-
tos internacionais, principalmente o norte americano, é possível
observar um histórico de estudos que datam da década 1960, de

- 90 -
modo que os estudos “indígenas” (indigenous) podem ser conside-
rados uma tradição de pesquisa.
Entretanto, mesmo a Psicologia brasileira tendo um nú-
mero cada vez maior de produções, ainda carece de referenciais a
respeito da temática. E tais carências trazem dificuldades ao psicó-
logo, para a atuação tanto no âmbito da ciência quanto na profis-
são. No âmbito da Psicologia enquanto ciência, a dificuldade é de
encontrar epistemologias direcionadas a esses campos de estudo.
A resolução disso auxiliaria os pesquisadores nos modos de tratar
as demandas indígenas, sem cair em estereótipos discriminató-
rios naturalizados na visão das sociedades urbanas. No tocante do
fazer da Psicologia na atuação profissional, também se encontra
dificuldades, pois essa carência de referências faz com que os pro-
fissionais, principalmente na área da saúde, tenham dificuldades
de alcançar as culturas indígenas.
Observando a distribuição dessas produções no contexto
brasileiro mais de perto, observou-se também que os trabalhos em
sua maioria se concentravam nas regiões Centro-Oeste e Sudeste
do país. Enquanto que na região Norte, que de acordo com o censo
do IBGE (2010) apresenta o maior número de indígenas autode-
clarados (305.873) no Brasil, o contexto das produções é pratica-
mente inexistente (VITALE; GRUBITS, 2009). As quase inexistentes
produções de Psicologia e povos indígenas no contexto dos esta-
dos da região Norte permite a reflexão de possíveis causas para
esse panorama. Dentre estas, podemos mencionar a depreciação
historicamente construída a respeito dos povos indígenas, dos ca-
boclos e também da própria cultura da floresta. Além disso, consi-
deramos também: o caráter recente das discussões de Psicologia e
povos indígenas; a não problematização efetiva de epistemologias
voltadas as realidades indígenas no ensino superior de Psicologia;
se tratar de um campo de estudo especifico, o qual os acadêmicos
quase não têm a oportunidade de ter contato com essa temática
(GUIMARÃES, 2016).
Portanto, enxergar o cenário das pesquisas em outros
países podem dar importantes nortes para pensarmos Psicologias
junto aos povos indígenas. A partir da revisão de literatura realiza-
da em ambos os contextos, se observou similaridades e diferenças
nas tendências dos trabalhos de Psicologia e povos indígenas. Das

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similaridades destacamos que tanto os trabalhos do contexto in-
ternacional e do contexto brasileiro problematizavam: as questões
das minorias étnicas frente às disparidades dos serviços de saú-
de oferecidos; a apropriação que o indígena faz do espaço, trazem
consigo a necessidade desses grupos desconstruir os estereótipos
historicamente construídos pelas sociedades europeias.
A respeito das diferenças nas tendências de pesquisa,
verificamos que nos contextos internacionais há dois modos de
se abordar a temática indígena e Psicologia. A primeira diz res-
peito a trabalhos a partir da perspectiva da Indigenous Psychology
(Psicologia Indígena), que foca estudos do comportamento e/ou
a mente humana nativa de um determinado contexto cultural, em
diferentes tramas culturais seja de sociedades étnicas, seja de so-
ciedades urbanas. Nos pressupostos da Indigenous Psychology, o
conhecimento científico não é advindo de outras regiões, mas sim
formulado a partir das pessoas que desse contexto fazem parte. O
objetivo dessa abordagem é examinar conhecimentos, técnicas e
crenças que as pessoas têm sobre si, estudando esses aspectos em
seu contexto originário, no intuído de criar uma ciência com rigor
e sistematização que possam ser verificados tanto teórico como
empiricamente (KIM; YANG; HWANG, 2006). A outra tendência diz
respeito a estudos de Psicologia e povos indígenas direcionados
aos povos indígenas à luz da Psicologia, utilizando ou não a abor-
dagem da Indigenous Psychology.
A partir disso, podemos observar que o sentido de “In-
dígena” comumente utilizado nos trabalhos de Psicologia no con-
texto das produções brasileiras se refere a trabalhos direcionados
às populações indígenas. Enquanto nos contextos internacionais, o
sentido do termo Indigenous vai além desse direcionamento, abar-
cando tudo aquilo que é próprio e nativo de determinada figuração
social. Portanto, os sentidos dados ao termo indígena no contexto
internacional podem ser de grande importância para se pensar os
caminhos de fazer Psicologias horizontais. Isso porque se trata de
uma perspectiva que respeita e leva a séria as visões de mundo das
diversas sociedades humanas distribuídas no mundo.

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Diálogos entre a psicologia macro cultural e a cultura
Yepa Mahsã
A Psicologia, por ter seus alicerces historicamente pau-
tados nas filosofias judaico-cristãs e nos pensamentos greco-ro-
manos, teve dificuldades em uma aproximação efetivamente das
sociedades indígenas (ALLWOOD; BERRY, 2006). Isso fez com que
ora se inviabilizasse as tramas culturais que influenciavam os pro-
cessos psicológicos dessas sociedades, ora não se preocupassem
em de fato alcançar tais sociedades. De acordo com Ratner (2013),
a Psicologia enquanto ciência ocidental e eurocêntrica, quando im-
posta às sociedades indígenas, nega a visão que estes vivenciam
sobre determinada figuração social e sobre si mesmo.
Entretanto, no exercício de atenuar essas dificuldades,
a utilização de epistemologias psicológicas que consideram essas
influências culturais nos processos psicológicos mostra-se como
uma alternativa viável. No dialogo aqui proposto, entre Psicologia
Macro Cultural (PMC) e a Cultura Yepa Mahsã, serão utilizados al-
guns pressupostos da PMC, assim como da Indigenous Psychology
abordada anteriormente. Estas abordagens trazem também suas
limitações, porém permitem uma aproximação e respeito pelas di-
versidades culturais das diversas sociedades humanas. O intuito
desse diálogo foi compreender a pessoa Yepa Mahsã, e por conta
do pouco referencial que a Psicologia oferece para tratar tal te-
mática, considerou-se que os pressupostos trazidos por ambas as
abordagens poderiam ser eficazes para essa aproximação.
A PMC é uma meta-teoria da Psicologia Cultural, desen-
volvida por Carl Ratner, que tem forte influência da teoria ecológi-
ca de Brofenbrenner, bem como da Psicologia Histórico-Cultural
proposta por Vigotsky (ESTEBAN; RATNER, 2010). A teoria eco-
lógica, está relacionada ao pressuposto de que a mente humana
pode ser compreendida a partir dos aspectos inter-relacionais
que a constituem. Desse modo, os processos psicológicos podem
ser analisados em quatro níveis: microssistemas, mesossistemas,
exossistemas e macrossistemas.
Tais sistemas, de acordo com Martins e Szymanski
(2004), são concebidos de forma topológica, o qual cada um é con-
tido no sistema seguinte. Estes interferem entre si mutuamente e
de modo conjunto afetam o desenvolvimento da pessoa. As autoras
afirmam que:

- 93 -
• Os microssistemas se referem às interações interpes-
soais, padrões de atividades e papéis experimentados em
determinado ambiente físico e especifico. O entorno afe-
ta direta e indiretamente a vida da pessoa.
• Os mesossistemas consistem nas inter-relações entre
dois ou mais ambientes que uma pessoa participa de for-
ma ativa, podendo ser formado ou ampliado sempre que
esta passe a fazer parte de mais ambientes.
• No exossistema, a pessoa não participa de forma ati-
va, entretanto pode haver eventos que afetem a sua vida
e vice-versa, podendo também ser afetado por eventos
acontecidos no ambiente o qual a pessoa faz parte.
• O macrossistema engobla todos os outros sistemas,
formando assim uma rede de interconexões que se dife-
renciam de uma cultura para a outra.

Já a Psicologia Histórico-Cultural proposta por Vigotsky


diz respeito ao caráter culturalmente mediado da conduta huma-
na, a partir dos princípios da significação e a lei da dupla formação,
que perspectivamente dizem respeito: capacidade de o ser huma-
no governar a sua conduta parte da criação de símbolos e signos;
processos psicológicos aparecem primeiro a nível inter-psicológi-
co, para a partir da internalização aparecer no psiquismo da pes-
soa (ESTEBAN; RATNER, 2010; VIEIRA, 2009).
Desse modo, esta abordagem parte ideia de que Psico-
logia e cultura não são fenômenos distintos, mas sim dois lados
que formam uma única coisa ou dois lados diferentes de cada um.
Desse modo, Esteban e Ratner (2010), afirmam que os macrossis-
temas podem ser constatados a partir de sistemas de crença, reli-
giões, organizações políticas, sociais e econômicas de determinada
região, que influencia e modela os outros sistemas (micro, meso e
exo).
Assim, a PMC visa identificar o conteúdo cultural dos fe-
nômenos e/ou processos psicológicos a partir dos fatores macro
culturais, tais como as instituições, classes sociais infraestrutura,
artefatos e conceitos culturais que se relacionam mutuamente.
Dentre esses cinco fatores, três são considerados com os alicerces
principais: instituições; artefatos; conceitos culturais (RATNER,

- 94 -
2012; 2013). Torna-se importante ressaltar que nessa perspectiva,
mesmo as pessoas estando sujeitas às forças desse sistema, isto
não quer dizer que estas sejam passivas, pois as diferenças indi-
viduais refletem diferentes experiências culturais. Ou seja, não há
determinismo da estrutura social sobre o psiquismo. De acordo
com Ratner (2012), no entendimento da PMC quem constrói tais
fatores macro culturais são as próprias pessoas e, a partir disso,
estas tornam-se membros das próprias macroestruturas que cons-
truíram. Desse modo, a PMC não pensa nas pessoas como seres
assujeitados à cultura, mas considera que as experiências psico-
lógicas estão intimamente ligadas e condicionadas/condicionan-
tes dos fatores macro culturais. Portanto, essa abordagem enxerga
que as intencionalidades, conduta das pessoas e a cultura corres-
pondem a uma mesma coisa, que se interdependem (ESTEBAN;
RATNER, 2010).
Como já fora dito anteriormente, nesse dialogo fora uti-
lizado também aspectos da Indigenous Psychology que também
estão contidos na PMC. Trata-se justamente da valorização do en-
tendimento daqueles que vivenciam determinada figuração social
a respeito dos próprios fenômenos (RATNER, 2013).
No intuito de se utilizar da visão PMC para compreender
a pessoa Yepa Mahsã, a partir dos conceitos de Kihti Ukuse, Bah-
sese e Bahsamori, foi preciso que alguns cuidados fossem toma-
dos. Isso porque a PMC, mesmo trazendo pressupostos horizon-
tais, traz categorias que poderiam não se encaixar nos contextos
indígenas, tais como o conceito de instituições como fator macro
cultural. O termo instituição utilizado nessa abordagem diz respei-
to às estruturas físicas externas e independente das pessoas, que
carregam consigo práticas culturais. Assim, essa dificuldade nesse
diálogo foi sanada a partir da utilização do conceito de instituição
descrito por Guirado (2009), que a considera como o conjunto de
relações sociais que se repetem e se legitimam, sendo assim consi-
derada como uma construção advinda das relações cotidianas das
pessoas.
Outro cuidado que tivemos na utilização dos termos es-
teve relacionado ao entendimento de ser humano. Assim, optamos
por utilizar a categoria pessoa. De acordo com Guareschi (2010),
trata-se de uma categoria que se diferencia substancialmente de

- 95 -
categorias como indivíduo (de um paradigma liberal-capitalista)
ou peça de máquina (paradigma totalitário-coletivista), pois am-
bos termos pressupõem compreensões redutoras da condição
humana. A primeira compreende a ideia do ser humano indivisí-
vel em si mesmo e não necessitando das relações para sua defini-
ção e construção; a segunda nega as peculiaridades do ser humano
em vista de uma visão totalitária que compreende o ser humano
como peça de um grande coletivo. Já a noção de pessoa, enquanto
paradigma intermediário a estes dois, se refere ao ser humano en-
quanto fruto de suas relações. Ou seja, a pessoa é as relações. As-
sim, cada pessoa é singular ao mesmo tempo em que é social. Cada
pessoa é a comunidade a qual pertence. Cada pessoa é o conjunto
de práticas sociais vivenciadas por ela de modo particular, em in-
terface com o coletivo e a cultura.
Portanto, nesse diálogo entre a cultura Yepa Mahsã e
os pressupostos da PMC, utilizou-se três conceitos culturais Yepa
Mahsã que se mostram como importantíssimos para compreender
a pessoa Yepa Mahsã a partir de um viés psicossocial. Os concei-
tos Kihti Ukuse (narrativas místicas), Bahsese (benzimento), Bah-
samori (cantorias e festividades) se mostram não somente como
conceitos culturais, mas também como instrumentos culturais que
inserem os Yepa Mahsã na própria cultura, fundamentam os mo-
dos de perceberem o seu entorno e se autoperceberem.
Os Kihti Ukuse trazem os referenciais que os Yepa Mahsã
precisam para compreenderem não só a sua ontologia, mas também
o mundo e os fenômenos à sua volta. Isso envolve também os pró-
prios processos psicológicos, pois a partir dos conhecimentos pas-
sados gradativamente dos mais velhos para os mais novos, vai se
instituindo hábitos e crenças que serão os alicerces para interagir
com o entorno. Dentre os vários aspectos que influenciam fortemen-
te a noção de pessoa Yepa Mahsã trazidos nos Kihti Ukuse, pode-se
elencar três: a) ser uma extensão de seu criador Yepa Oake, e partir
disso viver e interagir com o entorno a partir dos conhecimentos de
Bahsese; b) ser fruto de um processo de construção e transforma-
ção advindos de tempos míticos, que diferenciam os Yepa Mahsã dos
Wai-Mahsã (seres humanos invisíveis), estes últimos não completa-
ram esse processo; c) a conexão cosmológica e cosmo-política que
os interligam com os criadores, os Wai-Mahsã e entre si.

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Os Bahsese dizem respeito a uma linguagem ou repertó-
rio de palavras e frases, veiculados através do cigarro de tabaco ou
do sopro, cujos fundamentos vêm dos Kihti Ukuse. As práticas dos
Bahsese variam de curas de doenças, limpeza de alimentos, assim
como instrumento de comunicação com os Wai-Mahsã. Estes se
mostra como um conceito cultural e instrumento de grande impor-
tância para a compreensão da pessoa Yepa Mahsã, pois explicita
aspectos como: a) interação dos Yepa Mahsã com o meio em que vi-
vem; b) as relações sociais com os Wai-Mahsã que configuram não
só as práticas de vida, mas também a percepção destes a respeito
do seu entorno; c) norteia as concepções de promoção e prevenção
de saúde para os Yepa Mahsã; d) serve como um fundamental ins-
trumento que insere os recém-nascidos à estrutura cosmológica e
hierárquica falada anteriormente.
O conceito do Bahsamori diz respeito ao conjunto de
festividades, que são realizados de acordo com um calendário de
constelações. Estes reforçam e legitimam os conceitos e práticas
culturais ligadas aos Kihti Ukuse, assim como as práticas de Bah-
sese. O Bahsamori traz a percepção de cada ciclo a partir da dispo-
sição das constelações e os comportamentos que devem ser toma-
dos a ponto de assegurar a harmonia com os Wai-Mahsã. E reforça
os laços hierárquicos trazidos nas antigas narrativas e a harmonia
na vida coletiva.
Portanto, observamos que as práticas e vivência dos e pe-
los Bahsese, assim como a realização dos Bahsamori, se mostram
como fatores macro culturais que permitem a reprodução e legiti-
mação dos conteúdos trazidos nos Kihti Ukuse, reforçando e dando
continuidade ao viver e ser Yepa Mahsã. Desse modo, a partir desse
diálogo com a cultura Yepa Mahsã pela ótica da PMC, ponderamos
que a cultura dos Yepa Mahsã explicita não só a especificidade cul-
tural de um povo indígena em si. Explicita também uma ontologia
complexa que interliga a pessoa, uma ideia de coletividade que
considera outros patamares de existência e outros tipos de huma-
nos, além da vida imersa numa natureza viva e relacional.
A partir dos Kihti Ukuse, dos Bahsese e Bahsamori, ti-
ramos importantes contribuições para o fazer de Psicologias que
abarquem os povos indígenas. Dentre estas está a própria ideia
de pessoa enquanto sendo as próprias relações sociais. Vimos no

- 97 -
caso dos Tukano que as relações ocorrem entre os diferentes tipos
de humanos nos diferentes planos de existência, fundamentando
os modos de existir e que dá ao psicossocial um atributo a mais.
O outro que a pessoa se relaciona e assim se constitui é também
aquele que habita em outro patamar de existência, nos diferentes
ambientes ao seu redor. Essas relações se pautam em percepções
e representações a respeito da relação com o entorno. Assim, são
processos que acontecem nesse ambiente que não é inerte de vida,
mas sim vivo e relacional, sendo por isso elemento ativo na cons-
trução da pessoa Yepa Mahsã.

Reflexões sobre psicologia e povos indígenas
fizemos um exercício de conhecer as tendências interna-
cionais de pesquisas de Psicologia e a temática indígena, de esta-
belecer diálogo entre a cultura Yepa Mahsã e a PMC, e acrescentar
as discussões com os colegas psicólogos que atuam profissional-
mente com questões indígenas. A partir disso, pudemos chegar a
importantes reflexões a respeito do lugar da Psicologia frente/ou
em paralelo aos conhecimentos tradicionais desses povos, assim
como do fazer de Psicologias que alcancem as sociedades indíge-
nas. A partir dessas experiências, pudemos refletir a respeito da
necessidade de fazer Psicologias culturalmente horizontais.
Destas reflexões podemos sugerir propostas para a cons-
trução de uma formação acadêmica que problematize os etnocen-
trismos das teorias ensinadas. Inicialmente, estabelecendo um
diálogo mais efetivo entre a Psicologia com a própria Antropologia.
Esta última, por ter mais experiência na temática indígena, pode
auxiliar nessa aproximação justamente por trazer críticas impor-
tantes à Psicologia e seus vícios etnocêntricos. Ainda no contexto
acadêmico, pode haver uma maior introdução aos acadêmicos às
realidades indígenas.
Além disso, se faz importante também um ensino que
explicite que a Psicologia é uma forma de conhecimento própria
de determinado contexto social. Ou seja, trata-se de uma área que
agrega um conjunto de consensos que são próprios de determi-
nada cultura e sociedade, podendo não se encaixar em outras
sociedades. Assim, é importante focarmos na importância de se
pensar em Psicologias que estejam apropriadas às noções ontoló-

- 98 -
gicas, e até com os fenômenos e processos culturais e psicológicos,
dos diferentes contextos socioculturais.
No âmbito da Psicologia no contexto do Amazonas, tor-
na-se importante trazer mais disciplinas a respeito do próprio con-
texto regional e das construções identitárias locais, de modo que
sejam valorizadas as identidades indígenas e cabocas, assim como
os conhecimentos tradicionais destas. Isso daria abertura para
se criar Psicologias que não sobreponham as culturas indígenas
com os ideais ou pressupostos puramente etnocêntricos. De um
modo geral, trata-se de formular uma Psicologia flexível às diver-
sidades humanas. Da maneira como compreendemos, ao alcançar
tais diversidades, sejam sociedades indígenas ou não indígenas, a
Psicologia está também alcançando a humanidade como um todo.
No fazer dessas Psicologias, é importante que os povos alcançados
sejam parte ativa e fundamental dessa construção, pois são estes
que vivenciam e conhecem o contexto em que vivem, consideran-
do também que estes têm toda a autonomia de escolherem ou não
uma aproximação da Psicologia.
Assim, pode-se pensar que a prática do profissional psi-
cólogo no trabalho junto a povos indígenas, deve ser pautado na
responsabilidade, constante reflexão prática e epistemológica e o
respeito às diversidades culturais. Quando nos referimos à respon-
sabilidade profissional, tratamos de um fazer que além de estar
fundamentada no código de ética do profissional, falamos também
de uma consciência crítica do psicólogo e seu lugar de fala nas re-
lações com as diversidades culturais. Cabe ao profissional a cons-
tante reflexão prática e epistemológica com as quais se posiciona
ao trabalhar com as diversidades culturais, tendo o cuidado de que
a sua atuação e modos de enxergar as realidades não sejam mera
reprodução e legitimação de relações coloniais e discriminatórias.
Quando nos referimos ao respeito, considera-se a cons-
trução de relações que não só levem em conta as diversidades de
vivência no mundo, mas também que essas diversidades sejam
levadas a sério, enquanto importante fundamento para se com-
preender os modos como as pessoas inseridas em determinada
figuração sociocultural compreendem o mundo a sua volta, os fe-
nômenos, assim como a si mesmos. Isso pode permitir que o psi-
cólogo paute a sua atuação de forma contextualizada, sem subju-

- 99 -
gar determinada cultura às categorias “prontas”. Desse modo, se
possibilita uma atuação respeitosa àquelas pessoas, assim como à
cultura que está sendo levada a sério e não “exotificada”.
Desse modo, torna-se de grande importância a reflexão
de que a prática do psicólogo juntos aos povos indígenas não se
reduza a uma atuação clínica e de categorização diagnóstica. A vi-
são e prática clínica, mesmo sendo de grande importância, muitas
vezes pode vim a trazer categorizações que fundamentam padrões
de “normalidade” que são produtos das sociedades dominantes,
ocidentais e eurocêntricas e muitas das vezes podem vir a refor-
çar estereótipos discriminatórios. Ainda com o agravante de que
por se se trata de uma prática que auxiliou fortemente na fundação
da Psicologia enquanto ciência e profissão, para o senso comum
acaba sendo entendida como atuação e função única da Psicologia.
De modo que muitas das sociedades indígenas ao se depararem
com a Psicologia em si, já atribuem ao profissional à figura daquele
que fará interpretações e diagnósticos negligentes indiscriminada-
mente.
Portanto, a prática do psicólogo junto aos povos indíge-
nas deve ser prioritariamente uma prática fundamentada na cons-
trução de vínculos e também na escuta ativa e empática. A partir
de uma escuta empática e estabelecimento de vínculos de con-
fiança e respeito, há a possibilidade de construção de ambientes
saudáveis e de confiança para se trabalhar as diferentes deman-
das levantadas pelos indígenas. Sempre compreendendo que as
diversas formas de viver mundo são validas por serem expressão
da humanidade, onde a diversas construções de relações, seja com
um ou mais de patamares de existência, se mostram como relações
autênticas que constroem a pessoa, que é relação.
Por fim, a atuação do profissional de Psicologia junto às
sociedades indígenas, principalmente no âmbito da saúde mental,
deve ser enxergada como uma alternativa complementar às prá-
ticas indígenas. Isso porque as sociedades indígenas devem ter a
liberdade de escolher o modo mais apropriado de tratar as suas
mazelas, garantindo assim sua autonomia e também que expres-
sem a sua cultura livremente.

- 100 -
Considerações finais
As discussões que ocorreram no 1º Seminário Amazo-
nense de Psicologia e Relações Étnico-Raciais, em 2017, foram de
grande importância para essa aproximação entre Psicologia e as
sociedades indígenas, tanto no âmbito da ciência quanto na pro-
fissão. Estas permitiram que fosse apresentada e discutida uma
temática que só atualmente está começando a ser discutida com
mais afinco no estado do Amazonas. Desse modo, o seminário se
mostrou como um momento que permitiu não só essa aproxima-
ção, mas também pensarmos de forma crítica a própria base epis-
temológica da Psicologia, a formação acadêmica e também a atua-
ção profissional frente às temáticas indígenas.
Além disso, a partir do vislumbre das tendências de pes-
quisa e Psicologia e indígenas nos contextos nacionais e interna-
cionais, pudemos tirar importantes reflexões. Ao considerar a Psi-
cologia enquanto uma epistemologia advinda predominantemente
do contexto das sociedades ocidentais eurocêntricas e norte-ame-
ricanas, ponderamos que esse saber se mostra apenas como uma
forma de ver o ser humano, dentre as diversas outras que podem
haver. Portanto, é uma visão não universal e que não pode sim-
plesmente ser aplicada em outros contextos de modo inadvertido
e irresponsável.
Essa problematização a respeito do fazer de Psicologias
culturalmente horizontais se mostra necessário também no âmbito
da academia, sendo importante haver maior interesse relacionado
aos povos indígenas. É preciso construir conhecimentos a respeito
de temáticas ligados a eles, já que na história da Psicologia brasi-
leira ora não eram tratadas diretamente, ora nem eram alcançadas.
No contexto amazonense especificamente, podemos apontar uma
necessidade urgente para a construção de disciplinas que abor-
dem as realidades amazônicas de modo mais efetivo. Outro fator
de grande importância é que haja um diálogo mais efetivo entre a
Psicologia e Antropologia, dado que esta última traz uma experiên-
cia maior em estudos com povos indígenas, dialogo que pode ser
de grande importância para evidenciar os vícios discursivos e até
mesmos posturas coloniais da própria Psicologia.
Outro ponto importante é justamente a necessidade de
se trabalhar com os acadêmicos de Psicologia a descentralização

- 101 -
dos pressupostos dados como hegemônicos, oferecendo os pres-
supostos clássicos da Psicologia de modo crítico e que reconheça
que estes são constructos de determinadas sociedades e não são
universais. Por outro lado, necessita-se apresentar também abor-
dagens que visem a horizontalidade cultural, o qual os processos
e fenômenos psicológicos se diferenciam a partir da cultura. Além
disso, se faz necessário que nessas construções de conhecimento
os próprios indígenas estejam envolvidos, pois eles trazer saberes
sobre as diversidades humanas.
Mudando-se esse cenário, possibilita-se que os futu-
ros psicólogos já saiam da academia com esse olhar cuidadoso a
respeito da Psicologia frente às culturas indígenas. Isso abre pos-
sibilidades à atuação profissional que considere a Psicologia como
uma alternativa capaz de trabalhar em conjunto com os conhe-
cimentos tradicionais das sociedades indígenas. Desse modo, a
atuação do psicólogo no trabalho junto a povos indígenas, deve ser
pautado na responsabilidade, constante reflexão prática e episte-
mológica e o respeito com as diversidades culturais. Assim sendo,
se assegura a autonomia das pessoas indígenas, assim como a ma-
nifestação de sua cultura.
Por fim, a partir do exercício realizado no diálogo entre a
PMC e a cultura Yepa Mahsã, foi possível constatar uma ontologia
complexa que considera a existências de outros tipos de humanos
e diferentes patamares de existência, que são parte importante da
construção psicossocial desses povos. Aspectos esses que, dentro
de certos padrões de normalidade instituídos por Psicologias mais
tradicionais, são vistos como desviantes e/ou patológicos.
Essas reflexões não se propõem a ser resposta final às
tentativas de aproximação da Psicologia junto as sociedades indí-
genas, mas sim provocações que poderão servir de ponto de par-
tida para mais discussões. E até mesmo faísca inicial para o sur-
gimento de novas epistemologias psicológicas mais efetivas. Que
a partir dos possíveis acertos e erros nessas reflexões, possamos
discutir e construir Psicologias que garantam o respeito e também
levem a sério as visões de mundo dos povos indígenas. Em suma,
falar de Psicologia frente às diversidades culturais humanas é tam-
bém falar de nossa humanidade.

- 102 -
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- 104 -
Comunidade sol nascente:
problemáticas comunitárias de
povos indígenas na cidade

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare


Mayara dos Santos Ferreira
Diana Kássia Oliveira de Almeida Silva
Elizabete Amancio de Senna Silva
Janaína Léia Passos da Silva
Kássia Pereira Lopes
Rayza Sousa Ramos
Renata Fernanda Cabral Ramos
Rosa Mirtes Araujo
Simone da Graça Campelo

Introdução
O estado do Amazonas tem sido reconhecido como a re-
gião do Brasil que integra o maior número de povos indígenas do
país. O último censo do IBGE (2010) indicou a presença de 168
mil pessoas autodeclaradas indígenas, revelando também uma
presença significativa de povos indígenas em ambientes citadinos,
cujo processo migratório vem acontecendo há 70 anos em toda
América Latina (ESTRADA; GARCÍA, 2016). Na capital do estado,
Manaus, o Censo-2010 indicou a presença residente de 3.837 pes-
soas indígenas, que segundo Souza (2013) estão divididas em 93
etnias. Entretanto, dados levantados em 2015 pela Coordenação
dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (COPIME), uma organi-
zação oriunda dos movimentos indígenas, indica que em Manaus e
arredores há aproximadamente mais de 30 mil pessoas indígenas
residentes, de 42 etnias.
A presença indígena na cidade vem indicando a vivência
de uma realidade marginalizada. Silva (2001) afirma que os po-
vos indígenas têm se domiciliado em regiões pobres e periféricas,
em sua maioria áreas de ocupação. Esta realidade é corroborada

- 105 -
principalmente pela ausência de políticas públicas direcionadas
especificamente às demandas desses povos em contexto de cida-
de (MELO, 2013; NASCIMENTO; VIEIRA, 2015). Como principais
motivações à migração, encontram-se as dificuldades de acesso às
políticas públicas de saúde e educação nas aldeias e terras indíge-
nas. Assim, é muito comum ouvir de indígenas que, de certa forma,
eles são forçados a sair de seus territórios para poder acessar os
bens e serviços sociais a que têm direito segundo a Constituição
de 1988.
Diante disto, Nunes (2010) afirma que comunidades in-
dígenas residentes em cidades têm vivenciado condições críticas
de moradia, com falta de acesso a saneamento, dificuldade na re-
gularização do fornecimento de água e energia elétrica, circuns-
tâncias de habitação indevidas, com casas construídas em lugares
de risco e materiais inseguros. Além disso, Nóbrega (2016) aponta
que estes povos também têm sofrido com o estabelecimento de um
processo de exclusão social, pautado em hierarquizações sociais
estruturadas em uma supremacia étnica-racial, que toma como pa-
drão características eurocêntricas e omite a presença e significân-
cia de outras matrizes étnicas e culturais.
Partindo disto, percebeu-se então a necessidade de ex-
plorar as condições de vida e relações das comunidades indígenas
estabelecidas na cidade de Manaus e, a partir disso, propor ações
no sentido de melhorias comunitárias e bem-estar. Para isso, pro-
pôs-se a execução do Programa Atividade Curricular de Extensão
(PACE – proc. nº 053/2017-2) da Universidade Federal do Ama-
zonas (UFAM), no Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente
– conhecida como comunidade Sol Nascente. O objetivo desse pro-
jeto de extensão foi realizar familiarização com a vida comunitária,
levantar os principais problemas enfrentados e elaboração de um
plano de ação para sua resolução. Esta comunidade está estabele-
cida em uma área de ocupação – ou invasão, de acordo com o ponto
de vista – na zona norte de Manaus, espaço até então pertencente
à Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEM-
MAS) por ser uma Área de Preservação Permanente (APP), confor-
me estabelece o Código Florestal (BRASIL, 2012).
Rosa (2016) afirma que a ocupação da área iniciou em
junho de 2013, por membros familiares da etnia Miranha, com a

- 106 -
intenção de estabelecê-la como um assentamento indígena. O pri-
meiro líder fora um cacique da etnia Mura, que logo foi destituído
em razão de permitir a entradas de pessoas não-indígenas do seu
círculo pessoal – o que não era aceito pelos demais moradores.
Em uma nova eleição fora escolhido o atual líder, cacique da etnia
Kaixana, que tem direcionado as reivindicações em torno do reflo-
restamento, da permanência de pessoas não-indígenas no local e
questões de melhorias de infraestrutura. Em suma, atualmente a
comunidade pode ser considerada pluriétnica, estando composta
por indígenas de 12 etnias e também de não-indígenas. Conside-
rando principalmente a plurietnicidade, percebe-se a existência
de divergências entre os moradores do local, que tem contribuído
para a presença de relevantes conflitos intra e intercomunitários.
O projeto de extensão foi desenvolvido através de visitas
realizadas semanalmente à comunidade por nossa equipe durante
o segundo semestre de 2017, envolvendo docente e discentes de
graduação e pós-graduação. Utilizamos o modelo de uma pesqui-
sa-ação participativa – PAP (GÓIS, 2005), metodologia que integra
teoria e prática, articulando pesquisa, extensão e intervenção. A
PAP pressupõe o envolvimento de agentes internos e externos, de
modo a aliar saberes científicos aos populares para a resolução de
problemas. Por meio da PAP, há planejamento, execução e avalia-
ção de ações – eleitas na comunidade – de modo a gerar conheci-
mento apropriado às necessidades e situações. A escolha da PAP
visou superar a hierarquia entre pesquisador e pesquisados, bem
como a separação entre teoria e prática. Assim, procuramos arti-
cular o conhecimento científico ao conhecimento popular, promo-
vendo horizontalidade e considerando os agentes internos como
protagonistas. Deste modo, a PAP é um método que envolve saber
escutar, valorizar e utilizar o saber popular de forma dialógica e
problematizadora, de modo a propiciar cada vez mais a autopes-
quisa e autogestão pelos agentes internos num processo espiral
contínuo: ação-reflexão-ação.
Conforme Montero (2006), a PAP é um método ético e
socialmente comprometido que busca não somente produzir um
saber, mas também contribuir para a transformação de uma situa-
ção. Por meio deste, as problemáticas são definidas conjuntamen-
te, construindo instrumentos para aquela realidade em questão,

- 107 -
sendo avaliada em conjunto com os membros daquela comunidade
e considerando suas potencialidades (FREITAS, 1998).
Sendo assim, neste capítulo pretendemos: a) apresentar
o cenário que encontramos na comunidade Sol Nascente com as
devidas fundamentações na literatura; b) descrever as principais
problemáticas relatadas pelos moradores; c) expor a estratégia
de intervenção adotada pelo grupo de extensão. Com isto, temos
o intuito de apresentar ainda que parcialmente a realidade indíge-
na na cidade, proporcionando a visibilidade dessa temática para a
academia e para a sociedade em geral.

Sobre territórios e ocupações na cidade de Manaus:


a luta da comunidade Sol Nascente
Os habitantes indígenas e não-indígenas das comunida-
des rurais sentiram impactos negativos ao ter maior contato com
a sociedade envolvente, a partir da década de 1960, com as políti-
cas de desenvolvimento para a Amazônia focadas em incentivar a
valorização econômica da região (RAPOZO, 2014). Essas políticas
desenvolvimentistas tinham como característica comum a descon-
sideração das particularidades de cada sub-região da Amazônia,
resultando no aumento das desigualdades sociorregionais históri-
cas e a concentração de renda e terras.
A disputa histórica por território foi e continua sendo
uma flecha pungente que atinge os povos indígenas e permeia
toda a produção do espaço citadino em Manaus, que tomou impul-
so com a implantação da zona franca, pelo Decreto-lei nº 288 de
fevereiro de 1967, e “justificada pela ditadura militar com a neces-
sidade de se ocupar uma região despovoada” (SERAFICO; SERAFI-
CO, 2005, p. 99). Essas políticas desenvolvimentistas não vieram
acompanhadas de programas de planejamento urbano de Manaus,
que previssem o acréscimo populacional e necessidade de moradia
às pessoas que migrassem do mundo rural (Tabela 1). Segundo da-
dos do IBGE (2017), de 1950 a 2017 a concentração da população
na capital cresceu de tal forma, que dos 62 municípios do estado,
somente Manaus concentra uma população estimada para 2017
que corresponde a 53,24% do total de amazonenses.

- 108 -
Tabela 1. Histórico da concentração populacional no Estado do
Amazonas em relação à capital
Histórico da concentração populacional no Estado do Amazonas em
relação à capital

Ano Estado Capital Manaus/Estado (%)


1950 514.099 139.620 27,16
2000 2.812,557 1.405.835 49,98
2010 3.483.985 1.802.014 51,72
2017* 4.001.667 2.130.264 53,24
Fonte: IBGE – Censo 2010. - *População estimada em 2017

A partir da análise da tabela, podemos verificar que o


Estado passou por uma explosão demográfica, a qual reflete em
maior pressão na capital. Como descreve Costa e Oliveira (2007),
os sentidos mais afetados dessa intensa urbanização e expansão
do tecido citadino foram as zonas leste e norte da cidade, sendo
o foco das ocupações espontâneas, conhecidas na cidade também
como invasões1. As pessoas vindas do interior do estado, fossem
elas das cidades ou das comunidades ribeirinhas ou indígenas, en-
contraram nas ocupações um modo de tomar posse dos espaços
na cidade para usufruir o direito à moradia. Essa tendência a ocu-
pação de espaços geográficos continua acontecendo até o presente
em Manaus e cidades próximas.
Dentro desse universo das ocupações, sabe-se que exis-
tem ocupadores contumazes, que se deslocam de uma ocupação
para outra e realizam a venda dos terrenos ocupados, chegando
a anunciá-los em sites eletrônicos de comércio. Por outro lado, há
os ocupadores que realmente necessitam de uma morada, por não
dispor de renda para pagar aluguel e por não estarem contempla-
dos pelas políticas habitacionais empreendidas pelo Estado.
É interessante neste momento salientar que a
comunidade Sol Nascente está localizada em uma APP e os líderes
comunitários estão conduzindo processo para demarcá-la como
Terra Indígena (TI) junto às autoridades estaduais. As APP em
meio urbano pressupõem a manutenção do patrimônio natural e
1 Ocupações ou invasões: ocupações como estratégias que os segmentos populares encontram para ter
acesso à moradia a partir da organização destas em lotes vazios. Caracterizam-se por serem ações rápidas,
o que implica o acesso imediato ao lote, possibilitando a construção contínua da moradia.

- 109 -
construído. No entanto, isso tem sido fonte de desentendimento
entre os moradores da comunidade, onde alguns destes – princi-
palmente não-indígenas – compram terrenos e desmatam a flora
visando não apenas aumentar seu espaço, mas também para dar
aparência de um espaço urbano civilizado. Os líderes da associa-
ção – todos de etnia indígena – discordam com as ações de des-
matamento, e querem manter o fragmento verde e os animais que
nele vivem por apreciá-los enquanto natureza viva e essencial à
manutenção do modo de vida indígena. Enquanto que moradores
não-indígenas visam outro modelo estrutural para a comunidade,
sem a presença de áreas verdes.
Esse processo de desvalorização de áreas verdes como
indicador de progresso civilizador não se reflete apenas entre os
não-indígenas. Podemos também refletir acerca dos processos de
exclusão/inclusão e os impactos decorrentes da aproximação de
grupos indígenas com ambientes de cidade. De acordo com Cale-
gare (2017), no ambiente citadino de Manaus onde marcadamente
ocorrem práticas urbanas2, há uma forte negação de quaisquer ele-
mentos que remetam à florestalidade3, mesmo que estes estejam
presentes e inegáveis na vida dos povos amazônicos. Isto nos ajuda
a entender porque alguns indígenas da comunidade Sol Nascente
têm apresentado certa negação de suas identidades étnica4, isto
é, envergonham-se de suas raízes indígenas. Isto tem estruturado
uma tentativa de camuflar suas origens indígenas e a íntima rela-
ção com o território, para se sentirem em vantagem ao estarem
incluídos a um contexto urbano que corresponde ao pensamento
vigente de progresso civilizatório. Desse modo, a luta pela preser-
vação da natureza não é homogênea entre os habitantes indígenas
da comunidade Sol Nascente. Tal luta ganha forte componente po-
lítico pelas lideranças comunitárias, que associam os pressupostos
de uma APP às culturas indígenas em geral, com sua indissociável
relação com a florestalidade.

2 Cidade: espaço observável. Urbano: dinâmicas subjetivas que modelam modos de vida e práticas que
ocorrem em um espaço, sejam imaginadas ou concretas, podendo se dar para além do contexto de cidade
(CALEGARE, 2017)
3 Florestalidade: termo empregado por Calegare (2017) para adaptar a discussão de ruralidades ao contex-
to amazônico. É a especificidade das relações humanas (práticas socioculturais e políticas) que ocorrem
em função das vivências e representações das florestas, rios e terras, sejam elas imaginadas ou concretas.
4 Identidade étnica segundo Bernal (2009) refere-se à dinâmica identitária e a compreensão da funciona-
lidade do fator étnico e do seu campo semântico.

- 110 -
São raras as medidas paliativas feitas pelo Estado após as
ocupações, o que faz com que as pessoas fiquem à mercê das desor-
dens e sofram graves fatores de desgaste ou estresse emocional li-
gados às péssimas condições de habitação, alimentação, empregos
e salários (ANDREY, 2001) – realidade nitidamente presente na
comunidade Sol Nascente. Além disso, pela falta de documentação
legal das terras e das casas, a comunidade não consegue alcançar
o acesso a serviços sociais básicos, sofrendo principalmente com
condições precárias de infraestrutura. Não existe nenhuma iden-
tificação ou placa que designe a área da comunidade Sol Nascente
como um assentamento indígena, o que faz com que muitos mora-
dores do entorno desconheçam que o espaço diz respeito a uma
ocupação indígena. Isto tem gerado conflitos intercomunitários
em virtude de corroborar com o imaginário da população envol-
vente – e também do Estado – que frequentemente deslegitima a
identidade indígena pelo fato de serem residentes em cidades.
Assim, seguindo a lógica da exclusão histórica que os po-
vos indígenas enfrentam e as negligências de diversas formas, os
mesmos se veem em sofrimento e dificuldades ao lhe serem nega-
dos direitos, sobretudo em saúde, moradia e segurança. Os indíge-
nas da comunidade Sol Nascente esperam que com a declaração da
área como TI cesse a venda de terrenos por se tornar terra inalie-
nável, passando a ter direitos imprescritíveis e podendo restituir e
garantir seu modo de vida diferenciado.

Problemáticas dos povos indígenas da comunidade


Sol Nascente
Conflitos intra e intercomunitários
O conceito de comunidade aparentemente parece sim-
ples de ser definido, porém pode-se cair no erro de sermos redu-
cionistas. Devemos considerar que além do geográfico e racional,
há um componente emocional que define o que é uma comunida-
de. Diversos autores tentaram ao longo do século XX chegar a uma
definição ampla, ao considerar a crescente complexidade da vida
social que levasse em conta, por exemplo, a comunidade mundial e
seu trânsito com o âmbito local. Dentre distintas noções, compar-
tilhamos aqui o ponto de vista de Góis (2005), que a partir da Psi-
cologia Social Comunitária enfatiza que a comunidade se constitui

- 111 -
de elementos comuns como território, história, valores comparti-
lhados e um modo de vida, mas que possui também um mesmo
sistema de representação social, sentimento de pertença e identi-
dade social. Assim, por essa definição encontramos elementos do
entorno físico-social permeados por aspectos afetivos, cognitivos
e sociais, que configuram as interações e relações face a face que
conformam a vida em comunidade para as pessoas que nela estão
e vivem.
Apesar do compartilhamento de diversos aspectos co-
muns, os moradores da comunidade Sol Nascente apresentam
elementos divergentes. Dentre estes, a presença de pessoas que se
reconhecem como indígenas, oriundas de 12 etnias de várias re-
giões do estado do Amazonas e que nem sempre possuem relações
harmoniosas entre si, seja por hierarquizações de ordem mitológi-
ca entre as etnias, seja por percalços de ordem histórica que per-
petuam conflitos entre elas. E também a presença das pessoas não
-indígenas, cujos moradores que se estabeleceram no local com a
permissão do primeiro líder comunitário (cacique) ou por meio
da compra de terrenos, vendidos por alguns indígenas que retor-
naram às suas localidades de origem ou foram para outros lugares
da cidade. A venda de terrenos destaca-se como um dos fatores de
desagregação e formação de conflitos intracomunitários, além das
diferentes formas de organizar a vida coletiva e suas respectivas
culturas.
Tradicionalmente os indígenas vivem seu cotidiano com-
partilhando áreas comuns, mantendo os laços principalmente atra-
vés das relações de parentesco. Porém, a rotina e organização da
vivência comunitária na cidade se diferenciam em relação ao uso
do território, por ser caracterizada pelo modelo de propriedade
privada. Além dos horários determinados para as atividades, como
hora de trabalhar ou hora de estudar, o que pode gerar estranha-
mento por parte dos migrantes indígenas e moradores citadinos.
Um ambiente comunitário, sobretudo pluriétnico, gera
disputas internas que vão além da questão das terras e do terri-
tório, refletindo-se na dinâmica relacional entre as pessoas. Cabe
aqui então salientar que terra tem sido compreendida como uma
porção do espaço, demarcada legalmente pelo Estado, enquanto
território designa um campo de vivências, cultura e relação das

- 112 -
sociedades somadas aos mecanismos de representação do espaço
(FERNANDES, 2009; GALLOIS, 2004). Desta forma a luta por terras
por povos indígenas em ambientes de cidade põe em questão os
seus direitos originários de seus territórios de ocupação tradicio-
nal.

O conflito decorrente do uso social do espaço geográ-


fico
Como já mencionamos anteriormente, a comunidade
geograficamente fica situada em uma APP, que foi parcialmente
desmatada, possui solo argiloso e uma área irregular, com aclives
e declives. Devido à comunidade localizar-se em uma área com
desníveis do terreno, as ruas, as casas e a estrutura básica, como
água, luz e o raro asfaltamento não possuem um padrão regular
ou organizado. A sede da associação de moradores fica na parte
mais alta da comunidade, onde encontra-se uma saída para o bair-
ro Francisca Mendes II. A maior parte da comunidade fica na área
baixa do assentamento e boa parte dos representantes da associa-
ção comunitária moram na parte alta.
Assim, a questão geográfica apresenta uma particulari-
dade interessante que reflete nos modos de relações, entre líderes
e comunitários. A associação e alguns representantes estão aloca-
dos na parte mais alta e próximos a uma das entradas/saídas da
comunidade. Diante disto, percebemos que alguns moradores se
referem aos índios, ao cacique e à associação como “o povo lá de
cima”. Os moradores das partes baixas acusam as lideranças de im-
pedirem o asfaltamento da comunidade, como mera expressão das
relações de poder. Entretanto, soubemos que no dia em que os tra-
balhadores da prefeitura foram realizar as obras houve negligência
dos moradores em retirar carros e objetos das ruas, o que impediu
a realização do trabalho e fez com que o mesmo fosse adiado por
tempo indeterminado.
Outra queixa ouvida nas visitas domiciliares foi de que os
membros da associação percorrem as casas solicitando contribui-
ção financeira para regularização da terra, mas que até o momento
isso não aconteceu, o que gera forte desconfiança quanto ao uso
do dinheiro. Desse modo, observamos que o desnível do terreno
se mostra não apenas como uma particularidade geográfica, mas

- 113 -
como um motivo para a não coesão da comunidade. Essa carac-
terística geográfica é utilizada como forma desagregar e motivar
conflitos, entre as lideranças e os demais comunitários, ou entre
indígenas e não-indígenas que residem nos diferentes níveis do
terreno.
Aparentemente esta condição geográfica da área da
comunidade colabora para uma divisão de subgrupos dentro do
espaço, fazendo com que as pessoas se refiram e compreendam
os moradores de regiões diferentes da sua como distantes, ou se-
gregados, inclusive em uma dimensão relacional. Tais conflitos
também surgem relacionados a desavenças entre etnias, históri-
co étnico, conversas paralelas sobre comportamento dos líderes,
fragmentos de informações acerca da regularização fundiária e re-
conhecimento como território indígena, e a falta de participação
da maioria das pessoas nas ações da associação.
Observam-se conflitos também no processo de uso, ocu-
pação e controle do espaço, porquanto a utilização de terrenos
para revenda não é apreciada pela liderança atual, e alguns mo-
radores, na maioria os residentes na parte baixa da comunidade,
agiam desta forma. O conflito no processo de controle pode ser
evidenciado a partir do movimento de alguns moradores da parte
baixa, na criação de um abaixo assinado para destituição do líder
comunitário atual.
No momento da escrita deste capítulo, a ocupação esta-
va em processo de regulamentação e reconhecimento nos órgãos
competentes. Por ser assentamento indígena, teoricamente se res-
tringiria a moradores que assim se identificam. No entanto, apesar
deste contexto, com o aval do cacique boa parte dos moradores
não-indígenas poderão continuar morando na comunidade. Entre-
tanto pela falha no processo de comunicação, muitos moradores
desconhecem tal possibilidade.

Dificuldades da coordenação do assentamento povo


indígena do Sol Nascente
O líder da comunidade Sol Nascente, cacique pertencente
à etnia Kaixana, foi escolhido pelos moradores do local por ter um
histórico de lutas e liderança em sua cidade natal, Santo Antônio
do Içá, no Alto Solimões. Também faz parte do Movimento Etno

- 114 -
Cultural de Mobilização do Amazonas (MECMAM), que reúne dez
lideranças indígenas lutando pelos direitos elencados na Constitui-
ção de 1988. Tentando articular as ações em prol da comunidade,
o líder formou uma associação composta de primeiro, segundo ca-
cique e outros cargos, denominada Coordenação do Assentamento
Povo Indígena do Sol Nascente (CAPISOL). Porém, nossas visitas à
comunidade têm trazido algumas questões levantadas pelos mora-
dores, que nos fizeram refletir sobre as divergências políticas que
se fazem presentes na relação entre CAPISOL e moradores. Em vir-
tude dos conflitos, os laços aparentam estar fragilizados e é possí-
vel perceber desconexões entre os discursos dos moradores e dos
líderes da associação, relacionadas principalmente a: a) reclama-
ções pela falta de união (de ambos os lados); b) não participação
nas reuniões e atividades da associação; e c) pessoas indígenas que
não se identificam etnicamente, e por isso não se engajam com as
reivindicações políticas da associação.
A comunidade Sol Nascente apresenta algumas proble-
máticas relacionadas principalmente à legalização do assentamen-
to. Mas antes disso, os líderes da associação nos apresentaram
várias problemáticas que envolvem as relações intracomunitárias,
ser indígena na cidade e também a cultura não aceita e discrimi-
nada. Assim, as relações comunitárias se definem aparentemente
como exígua: os indígenas se relacionam pouco entre si por conta
de disputas de poder internas e, por outro lado, há forte distancia-
mento dos não indígenas. O líder principal, primeiro cacique, rela-
ta que as reuniões da associação são frequentadas por poucos que
se interessam pelo bem comum do assentamento. Desta forma,
existe uma debilitada comunicação entre as pessoas da comunida-
de, que provocam grandes implicações para manutenção das lutas
comunitárias. Consoante, sabe-se que os informes de reunião são
passados para os comunitários três dias antes de sua realização,
e com a nossa presença na comunidade durante dois meses, não
soubemos de nenhuma reunião ocorrida neste período. Algumas
problemáticas e desgastes desta dinâmica de relação estabelecida
são percebidas através de relatos de moradores, que demonstram
duvidar da atual liderança. Os líderes relatam não compreender a
procedência das reclamações, pautando-se principalmente no fato
de, segundo eles, apresentarem a comunidade diversos documen-

- 115 -
tos de reivindicações realizadas em órgãos responsáveis, com o
intuito de provarem o que tem sido desenvolvido pela associação.
Outra dificuldade da associação refere-se aos conflitos
entre facções de traficantes da região que disputam o território
para exercício de suas práticas ilícitas. O atual cacique já foi amea-
çado diversas vezes, tendo sido agredido brutalmente em uma das
ocasiões. Alguns dos membros da associação também tiveram seus
familiares ameaçados, fazendo com que estes fossem obrigados a
se mudar da comunidade. Com a morte de um dos chefes do tráfico,
houve um período de calmaria. Entretanto, com a sucessão destes,
houve novas ameaças às lideranças. No momento da escrita deste
capítulo, estava havendo toque de recolher na comunidade no iní-
cio da noite, momento em que os traficantes ocupavam a sede da
associação para exercer seu domínio sobre os moradores.

Negação da identidade por parte dos próprios indí-


genas e dos não-indígenas
Outro problema é aquele relatado por Melo (2013), que
revela que em Manaus a presença dos indígenas é ocultada, já que
ser associado à identidade étnica indígena pode conduzir ao risco
de ser discriminado. Podemos pensar então que o reconhecimento
indígena na comunidade Sol Nascente sofreu também com um in-
tenso processo discriminatório ao longo de todo processo de ocu-
pação da terra, por serem frequentemente chamados de invasores
e alguns outros termos depreciativos.
Para Krüger (1986), identidade é a consciência que todo
indivíduo tem de si mesmo, sua origem, relações estabelecidas nos
meios onde se inserem, atributos físicos e psicológicos e fatores
capazes de diferenciarem si mesmo de outros indivíduos. O pro-
cesso de identidade é um processo de construção coletiva, onde
há sempre uma dependência do outro para essa construção. Nes-
se sentido, Deschamps e Moliner (2009) descrevem as represen-
tações identitárias como processos que permitem aos indivíduos
elaborar e manter conhecimentos a respeito de si mesmo e dos ou-
tros, dos diferentes grupos dos quais eles interagem, sustentando,
portanto, sua identidade. Na comunidade Sol Nascente foi possível
perceber uma constante negação da identidade indígena por parte
de alguns moradores, que se autodeclaram não-indígenas apesar
de suas raízes indígenas.

- 116 -
Conjecturamos que alguns indígenas, após saírem de
suas bases5 de origem onde exerciam suas práticas culturais de
forma plena, passaram por um processo de adaptação à cultura do
espaço onde estão inseridos atualmente, neste caso a cidade. Po-
demos ponderar um processo de reconformação identitária6, con-
forme aponta Bernal (2009), onde os sujeitos agregam modos de
vida urbanizados e subtraem práticas tradicionalmente indígenas,
com o intuito de afastar-se das vivências negativas promovidas
pela identificação étnica, processo este que pode ser percebido de
forma individual e coletiva. As práticas culturais, após a inserção
dos indígenas em ambientes sociais não-indígenas se tornam me-
nos frequentes, sendo um ponto importante de reflexão, sobre a
compreensão de ser indígena em espaços coletivos citadinos. Para
Durkheim (2012), a sociedade tem a capacidade de moldar os seus
indivíduos, introduzindo os seus ideais por meio de um objeto de-
nominado fato social. Este tem como uma de suas principais carac-
terísticas a coerção social, que é a força externa exercida sobre o
indivíduo fazendo com que ele aceite, e viva, as regras e costumes
impostos pela sociedade na qual ele se insere. Isto posto, pode-se
perceber que dentro da comunidade Sol Nascente os costumes da
sociedade citadina em que estão inseridos hoje é muito mais ex-
pressivo e cotidianamente presente do que os costumes da socie-
dade indígena da qual viviam anteriormente. Isso foi comprovado
inúmeras vezes nos relatos dos moradores indígenas, que reclama-
vam que já não adotavam costumes ou realizavam festas indígenas
dentro da própria comunidade.
Por outro lado, a construção da identidade pode se dar
também por meio de uma luta comum por direitos que um deter-
minado coletivo deveria possuir (CALEGARE; HIGUCHI, 2016). A
comunidade Sol Nascente vem sofrendo pelo grande descaso do
governo neste sentido. Quando se compreende a pessoa como su-
jeito de direito, garantindo-lhes condições de cidadania, incluin-
do lugar igualitário nas sociedades nacionais e valorização da or-
ganização sociocultural de suas etnias, há a contribuição para as
reafirmações identitárias. A legitimação da identidade indígena se
5 Base: termo utilizado pelos povos indígenas residentes em cidade para se referir aos seus locais de
origem, podendo corresponder a aldeias ou comunidades interioranas mais afastadas de áreas citadinas.
6 Termo utilizado para designar uma vivência negativa das identidades, corroborada principalmente pela
presença de estereótipos acerca de pessoas indígenas em áreas citadinas (BERNAL, 2009).

- 117 -
converte no reconhecimento do pertencimento da pessoa a povos
etnicamente diferenciados, no respeito à autonomia e na autode-
terminação de suas instituições sociais, econômicas, culturais e po-
líticas. Porém, o que presenciamos na comunidade Sol Nascente foi
o descaso governamental de muitos setores do Estado, reforçando
o processo de conformação identitária. Ao mesmo tempo, há ou-
tros setores que têm apoiado a causa indígena dessa comunidade,
o que de certa forma mantém viva a esperança do reconhecimento
da TI e, consequentemente, da presença indígena na cidade.
       A comunidade Sol Nascente apresenta como figura de
maior visibilidade o cacique, que tem utilizado sua autoafirmação
identitária em prol do alcance de direitos individuais e coletivos.
Sua autoafirmação étnica pelo uso de adereços indígenas mostra
a necessidade e busca por reconhecimento, individual e coletivo
como indígena. Esta é uma questão complexa que envolve elemen-
tos relativos à representação identitária dele perante os não-indí-
genas, já que ser indígena não está indicado meramente pelo uso
de adereços, mas sim por uma maneira de ser e estar no mundo.
No plano coletivo, a autoafirmação identitária abrange a noção de
grupo através das segmentações étnicas indígenas. Na comunida-
de percebemos uma parcela de moradores que no plano coletivo
se veem pertencentes ao mesmo grupo étnico, visando o acesso à
direitos coletivos, mas no contexto individual não se reconhecem
indígenas, no intuito de se desassociar das diversas noções este-
reotipadas da pessoa indígena. Assim, a autoidentificação com os
grupos étnicos assume forma mobilizadora na organização social
e política, sendo o aspecto cultural, encarado também como refor-
çador destas noções.
Moura (2006) explica que a definição sobre quem são os
indígenas brasileiros depende da manifestação conjunta de suas
vontades, tanto do grupo étnico quanto das vontades da pessoa
interessada em tal reconhecimento. Logo, os povos indígenas pas-
sam a ter o direito de identificar seus membros, devendo ser con-
siderado indígena aqueles que mesmo não tendo ascendências di-
retas, criado ou não por pais índios, seja um indígena se assim for
reconhecido pelos pares. Nas entrevistas realizadas com os mora-
dores, pessoas se autodeclararam indígenas por entenderem que
possuíam traços fenotípicos indígenas ou por critérios genealógi-

- 118 -
cos. Por outro lado, há aquelas pessoas que se autodeclaram indí-
genas de forma imediata e com vanglória, mesmo sem apresentar
estes requisitos. Podemos, portanto, perceber que a complexidade
da autodeclaração nos faz refletir sobre como esses processos di-
recionam o modo como a pessoa se vê, vê o outro e como ele se
imagina ser visto pela sociedade.

Religiões: relações com os costumes e tradições in-


dígenas
O plano inicial das lideranças da comunidade Sol Nas-
cente – e que parece vigorar também atualmente – era estruturar
uma comunidade composta somente por pessoas indígenas e que
necessitam de moradia. No entanto, algumas não-indígenas pedi-
ram ao cacique permissão para morar e logo o local foi adentrado
também por essas pessoas. Com a entrada destas, alguns costumes
e práticas também foram trazidos. Entre estes, ouvimos diversos
relatos sobre as problemáticas da presença de algumas igrejas, que
discriminam veementemente a execução das práticas tradicionais
indígenas.
Nesse sentido, Bernal (2009) aponta que há disputa en-
tre igrejas por novos fiéis, onde algumas destas negam ou tentam
anular as suas crenças e costumes tradicionais, enquanto outras
tentam realizar um sincretismo religioso por meio da evangeliza-
ção indígena, mas deixando as tradições e os símbolos dessa cultu-
ra em segundo plano. Os líderes do assentamento receberam mui-
tas críticas e discriminações quando praticavam rituais indígenas
tradicionais, pois pessoas de denominações religiosas evangélicas
afirmaram serem rituais satânicos, e por isso não deveriam ser
realizados. O mesmo tipo de crítica era feito em relação aos trajes,
colares e adereços indígenas em geral.
A comunidade possui duas igrejas evangélicas e muitos
moradores indígenas frequentam-nas. Isto tem desenvolvido um
processo de repressão da cultura tradicional, onde pessoas indíge-
nas têm inclusive negado sua identidade étnica, como já pontuada
anteriormente. Em contraponto, a igreja católica que atualmente
considera o assentamento área missionária da Paróquia de Santa
Clara, deseja que os indígenas permaneçam com suas característi-
cas e tragam maior contextualização das práticas tradicionais indí-

- 119 -
genas aos eventos da igreja no local.
A catequização dos indígenas sempre foi um foco das re-
ligiões e nas cidades não é diferente. No entanto, na comunidade
há uma necessidade de aliança com as igrejas – principalmente a
católica – para se ter acesso a algumas benesses. Isso tem favoreci-
do serem assistidos por ações sociais promovidas na comunidade,
como forma de garantir, mesmo que de forma assistencialista,
principalmente acesso à saúde.

Buscando melhores formas de comunicação entre li-


deranças e moradores
A proposta de PAP que adotamos procurou seguir os
pressupostos indicados por Montero (2004), possuindo um ca-
ráter perceptível e real que consideram: a) definição da realidade
comunitária pelo diálogo entre os agentes internos e externos; b)
ponderar problemas, desejos e necessidades da comunidade con-
siderando as propostas dos próprios membros; c) reflexão sobre
diferentes possibilidades de intervenção de acordo com a realida-
de local; d) incluir o outro no processo ético de produção do co-
nhecimento, através de sua participação efetiva na elaboração do
processo de intervenção. De acordo com Freitas (1998), a partir da
obtenção de informações derivadas do processo de inserção, con-
tato e familiarização com os moradores da comunidade, são deli-
mitados aspectos e fenômenos como temáticas potenciais e pos-
síveis para o desenvolvimento do processo de intervenção. Tendo
estas dimensões em mente e considerando todas as vivências junto
aos comunitários, elaboramos e discutimos com eles uma lista com
os principais problemas encontrados. Então, em acordo com as li-
deranças comunitárias, elegemos como principais problemáticas
da comunidade a dificuldade de comunicação da associação com
os moradores e o desprestígio do indígena na cidade de Manaus.
Estas problemáticas se tornavam empecilho para que outras ques-
tões e dificuldades fossem resolvidas. Para este capítulo, elegemos
apresentar as intervenções referentes à comunicação intracomu-
nitária.
Góis (2005) explica que em algumas comunidades exis-
tem membros que compartilham apenas a referência de moradia e
dimensões territoriais, não se considerando como parte do espa-

- 120 -
ço físico-social que caracteriza a vida comunitária. Entre eles não
há interação social nem cultural. Nessa perspectiva, a realidade do
povo do assentamento Sol Nascente revelou subgrupos que com-
partilham de uma mesma cultura intragrupal e que não se mistu-
ram facilmente ente si: os indígenas relacionam-se mais entre si,
os grupos evangélicos mais entre si e o grupo de pessoas não indí-
genas (e não evangélicas) mais entre si. Estes grupos se associam
raramente, pois cada um destes tem seus próprios objetivos. Como
resultado desta fragmentação, apesar de compartilharem de um
mesmo interesse macro, que é solucionar problemas da comuni-
dade, como os serviços de asfaltamento, água encanada e energia
elétrica, os moradores acabam por não se unirem em prol desses
objetivos comuns.
Além disso, durante as visitas, entrevistas e comen-
tários relacionados à avaliação da liderança, a comunicação foi
considerada por alguns como fraca ou insuficiente. Há também
desentendimentos entre pessoas da comunidade e membros da
associação, que impediam o progresso no diálogo que possibilita-
ria uma união e fortalecimento entre os moradores.
Diante dessa situação, o primeiro momento da interven-
ção foi discutir junto com as lideranças comunitárias essas divisões
intracomunitárias, relatando o que a equipe de extensão ouviu nas
visitas domiciliares a respeito da condução da associação: lideres
distantes dos moradores e que não repassavam informações. Num
primeiro momento, as lideranças se revelaram surpresas com essa
devolutiva. Em seguida, contra argumentaram que sim, tinham
transparência e que a comunidade deveria entender como era a
organização indígena. De certo modo, essa indignação que senti-
ram serviu como combustível para que procurassem novas formas
de envolver os moradores, como abordaremos a seguir.
Assim, procuramos investigar quais as formas de comu-
nicação existiam e eram utilizadas. Os líderes revelaram que para
reunir os comunitários, ou eram necessárias visitas por todas as
casas, ou feito anúncio num autofalante ou era feito um anúncio re-
passado para um vizinho e que ia repassando ao outro. Mesmo com
a organização e divulgação das atividades para todos os associados
e moradores, era notável que o desinteresse e a divergência com as
lideranças implicavam na baixa participação. Principalmente da-

- 121 -
queles que se negam a valorizar as lutas e objetivos coletivos.
Para além da comunicação formalmente utilizada, levan-
tamos com as lideranças e com os moradores quais outras formas
eles utilizavam, para quaisquer assuntos cotidianos. E descobri-
mos que havia conjunto de moradores com maior ligação entre
si, como que formando pequenas redes comunitárias. Além disso,
muitos utilizavam os telefones celulares, com aplicativos de redes
sociais (especialmente facebook) e de comunicação (whatsapp)
para estarem em contato entre si.
Deste modo, compreendemos a comunicação como uma
ferramenta que pode possibilitar aperfeiçoamentos no repasse e
entendimento dos interesses dos grupos residentes. Ponderamos
que a comunicação permite, através das negociações, os ajustes das
diferenças culturais e políticas, de modo que todos os moradores
se sintam parte ativa das ações coletivas da associação, e também
fortaleçam o sentimento de comunidade. Assim, pensamos que as
estratégias de aperfeiçoamento nas questões de comunicabilidade
poderiam auxiliar no fortalecimento das causas comunitárias, de
modo a alcançar melhorias na vida coletiva.
Desse modo, sugerimos às lideranças da associação que
passassem a utilizar esses meios de comunicação por aplicativos
do celular, para compartilhar com os demais moradores as con-
quistas alcançadas, as reuniões, ideias, manifestações culturais e
informes sobre as situações reivindicatórias. E também utilizas-
sem com mais frequência o megafone comunitário, convocando os
moradores às reuniões e atividades. No que concerne ao espaço
dedicado à divulgação dos eventos e reuniões semestrais de modo
mais ordenado, foi sugerido a elaboração de um mural informativo
e um calendário de atividades da associação.
Esse movimento de reflexão sobre a comunicação, gera-
do pela interação entre agentes internos e externos, não resultou
em formas mais efetivas de contato entre as lideranças e morado-
res. E os motivos nos foram dados pelos próprios membros da as-
sociação: a) os não indígenas não compreendiam como era a forma
de organização indígena, não acatando às decisões dos indígenas
para toda comunidade; b) havia conflitos entre as próprias etnias
indígenas, por disputas de poder e condução da comunidade; c)
todos os moradores queriam resposta muito imediatas para os

- 122 -
problemas enfrentados, quando na verdade as soluções vinham de
modo paulatino, gerando desconfiança e descrença na ação políti-
ca da associação. Dessa maneira, percebemos que a superação dos
problemas de comunicação não residia apenas em uso de meios
mais eficientes, mas nos conflitos sociais intracomunitários.
Como conclusão da ação extensionista, foi possível veri-
ficar que as lideranças de fato refletiram sobre as práticas comu-
nicativas que vinham adotando até então. E passaram a examinar
a possibilidade de melhores formas de se comunicar com os mo-
radores. Prova disso foi que para um dia de festa na comunidade,
valorizando a cultura indígena, foi feito anúncio via whatsapp e re-
transmitido a todos moradores, incluindo pessoas de outras loca-
lidades de Manaus. Também passaram a utilizar mais o megafone,
para chamar os moradores para as reuniões da associação. Essas
práticas comunicativas demonstram que tais meios passaram a ser
utilizado para fins de união da comunidade, mesmo que ainda sem
a plena potência de suas possibilidades.

Considerações finais
A finalidade do projeto desenvolvido no assentamento
indígena Sol Nascente constituiu-se primeiramente pela familiari-
zação entre a comunidade e os acadêmicos engajados no projeto de
extensão. Dessa forma, dedicamo-nos em conhecer a dinâmica da
comunidade e, assim, identificar com a ajuda dos próprios mora-
dores suas problemáticas e dificuldades. Nesse processo de conhe-
cimento da realidade local, salientamos que eles se queixaram de
sérios agravantes de infraestrutura física, além de problemáticas
nas relações e organizações sociais.
Entre os problemas levantados, encontramos: 1) dificul-
dade de acesso a direitos sociais básicos, como saúde e segurança
pública, ausência de estruturação básica como asfaltamento, água
e energia regularizada, bem como a regularização fundiária que a
associação tem fomentado. Isso tudo se acentua em razão de não
possuírem políticas públicas direcionadas à demanda da vida in-
dígena em contexto de cidade; 2) conflitos religiosos em relação a
estigmatização da cultura indígena; 3) venda de terrenos, conside-
rando que as áreas foram cedidas pelos líderes aos moradores e al-
guns destes, indígenas e não-indígenas, comercializam os terrenos

- 123 -
sem a permissão da associação – o que tem ocasionado o aumento
de moradores não-indígenas na comunidade e, por consequência,
uma crescente vivência de preconceitos; 4) a negação da identida-
de indígena.
Com o levantamento das problemáticas, tornou-se pos-
sível proporcionar uma discussão e reflexão junto às lideranças da
comunidade, para discernirmos quais problemáticas prioritárias
haviam se apresentado como barreira para a organização da comu-
nidade, que vinha afetando mais diretamente a busca comunitária
de soluções. A partir disto, após a identificação da problemática
principal, de forma integrada e participativa às lideranças comuni-
tária, buscou-se conscientizar e criar estratégias de intervenção a
esta problemática: melhores formas de comunicação entre mora-
dores e a associação.
O assentamento indígena por inserir-se em um contexto
de cidade, possui uma dinâmica diversificada que tenta se adap-
tar ao cotidiano urbanizado de trabalho, escola, lazer, religião, etc.,
tendo seus moradores que lidar constantemente com a pressão
da sociedade envolvente. No entanto, apesar da comunidade estar
composta por pessoas de 12 etnias distintas, fazem parte dela tam-
bém pessoas não-indígenas. Em função desse contato intra e inte-
rétnico, apresentam dificuldades relacionais associadas principal-
mente a preconceitos em relação às tradições indígenas e à própria
identidade indígena, que repercutem na maneira como todos mo-
radores se organizam comunitariamente. Assim, a problemática
prioritária identificada foi da falha nos processos de comunicação
entre as lideranças e os moradores, o que tem impedido melhorias
na união dos grupos em prol de lutas por melhorias coletivas.
Por fim, o objetivo principal do projeto foi proporcionar
aos líderes e moradores da comunidade uma visão reflexiva sobre
suas problemáticas, para que conseguissem visualizá-las e se en-
gajarem coletivamente em possíveis soluções. Procuramos gerar
discussões com os agentes internos envolvendo as formas de co-
municação intracomunitária e, em certa medida, propor algumas
estratégias comunicacionais para superar a falta de diálogo entre
moradores e lideranças. Como resultado e avaliação de nossas
ações, pudemos verificar que conseguimos gerar reflexão entre
todos os participantes do projeto, seja agentes internos quanto

- 124 -
externos. E isso repercutiu em novo ânimo às lideranças da asso-
ciação, recuperação de atividades de fortalecimento da cultura in-
dígena e procura por estratégias de comunicação mais eficientes.

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- 128 -
Indígenas em Manaus:
a manutenção da identidade
étnica no meio urbano

Marlise Rosa

Introdução
Neste trabalho, a fim de tentar aproximar o leitor do
debate sobre indígenas na cidade, fenômeno em contínuo cresci-
mento, porém, historicamente negligenciado pelos estudos de et-
nologia indígena, elaboro uma breve reflexão sobre o processo de
adaptação dessa população à vida na cidade. Assim, ao reconstruir
parte das narrativas de um grupo de mulheres indígenas – de dife-
rentes etnias – residentes na periferia da cidade de Manaus (Ama-
zonas), busco demonstrar que, ainda que entendamos a urbanida-
de como um modo de vida que não se limita aos muros da cidade,
ele não é característico aos indígenas e, por isso, a inserção nesse
novo cenário social lhes impõe uma série de desafios.
Parte desses desafios, contudo, são de ordem socioeco-
nômica e, portanto, encontram-se além da dimensão subjetiva do
sujeito. Trata-se da exclusão social em virtude da condição econô-
mica e étnica, que os relega, literalmente, às margens da cidade.
Com pouco ou nenhum grau de escolaridade, ou sequer alguma
experiência de trabalho, tornam-se mão de obra barata e desquali-
ficada, com baixíssima remuneração. As mulheres, via de regra, en-
contram no trabalho doméstico o principal meio de sobrevivência,
muitas vezes, inserindo-se nessa dinâmica ainda quando crianças
– aqui, porém, devido às limitações estruturais deste trabalho, não
contemplarei esta temática.
Os depoimentos que apresento foram coletados durante
o trabalho de campo de minha pesquisa de mestrado (ROSA, 2016),
realizado no Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente entre os
meses de janeiro e março de 2015. Este assentamento é uma ocu-
pação irregular, de caráter multiétnico, instalada em um terreno
pertencente à Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustenta-

- 129 -
bilidade – SEMMAS. Sua ocupação teve início em junho de 2013
por membros de uma família extensa da etnia Miranha. À época,
residiam no local 81 famílias, sendo 10 delas de não-indígenas.

Contornos étnicos de manaus


Conforme o Censo Demográfico realizado pelo Instituto
Brasileiro de Demografia e Estatística – IBGE, em 2010, o Brasil
conta com uma população indígena de 896.917 mil indivíduos
autodeclarados, subdivididos em 305 etnias e falantes de 274 lín-
guas. Desta população, aproximadamente 36%, isto é, 324.834 in-
dígenas, residem em áreas urbanas, concentrando-se majoritaria-
mente nas cidades de São Paulo e São Gabriel da Cachoeira1.

Indígenas residentes em áreas urbanas, Brasil – 2010


Município População Urbana
São Paulo 11.918
São Gabriel da Cachoeira 11.016
Salvador 7.560
Rio de Janeiro 6.764
Boa Vista 6.072
Brasília 5.941
Campo Grande 5.657
Pesqueira 4.048
Manaus 3.837
Recife 3.665
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

A cidade de Manaus, segundo o Censo 2010, é a 9ª cidade


com maior população indígena do país, com um total de 3.837 indi-
víduos autodeclarados. Na região Norte, onde se concentra o maior
percentual (37,4%) da população indígena total, Manaus é a 3ª ci-
dade com maior contingente indígena; a primeira é São Gabriel da
Cachoeira (AM) e a segunda, Boa Vista (RR).
Nas últimas três décadas, período que marca a inserção
da categoria indígena no quesito cor/raça dos Censos Demográ-
ficos do IBGE, registra-se uma constante oscilação na população
1 A região Nordeste apresenta a maior participação de indígenas residentes em áreas urbanas, com 33,7%.

- 130 -
indígena residente em Manaus – entre os anos de 1991 e 2000,
houve um crescimento vertiginoso, que acabou caindo de 2000
para 2010. Contudo, conforme destaca Silva (2013), há uma diver-
gência entre os dados divulgados pelo IBGE e os dados estimados
pelo Movimento Indígena, que afirma residirem em Manaus, apro-
ximadamente, 30 mil índios.

Fonte: Elaboração própria a partir de dados do IBGE, Censo Demográfico 2010.

Bernal (2009) em seu estudo sobre índios em Manaus,


faz menção a algumas tentativas de recensear essa população,
que por dificuldades metodológicas e financeiras, limitaram-se à
pesquisa amostral, estimando, a partir de 145 domicílios visita-
dos, um total de 8.500 índios na cidade, isso em 1999. Mainbourg,
Araújo e Almeida (2002), por sua vez, cita estimativas divulgas
pela Confederação das Organizações Indígenas da Amazônia Bra-
sileira (COIAB), que aponta para algo entre 15 e 20 mil índios em
Manaus, no início dos anos 2000. Já, para a Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), em 2015, o número de indígenas na cidade seria
algo em torno de 50 mil indivíduos2.
Não há, portanto, como bem assevera Bernal (2009, p.
35) “nenhum dado quantitativo credível e tecnicamente irrepreen-
sível referente ao número de indígenas vivendo em Manaus”, uma
vez que, “os números mudam em função dos critérios de ‘definição
de’ ou de ‘adesão a’ Índio”. Isso nos impossibilita, deste modo, de
afirmar com exatidão o tamanho real dessa população.

2 Este é um número estimado, pois o órgão não dispõe de dados concretos.

- 131 -
Para Melo (2012), no entanto, a dificuldade na captação
dessas informações pode estar ligada ao fato de a presença indíge-
na em Manaus ser quase sempre ocultada. Segundo a autora, “ao
pesquisar nesta cidade imediatamente surgirá uma primeira difi-
culdade. O simples fato de perguntar a uma pessoa acerca de sua
identidade étnica corre o risco de ser interpretado como uma ofen-
sa. Se a indagação é aceita, a resposta é negativa”3 (MELO, 2012, p.
3).
De todo modo, embora não saibamos apontar com exati-
dão o tamanho da população indígena urbana, sabe-se que, os ín-
dios em Manaus, em decorrência da omissão do órgão indigenista
responsável no que se refere à atenção de indígenas na cidade, se-
guida pela omissão dos poderes públicos em face do fornecimento
dos serviços básicos essenciais ao bem-estar físico, psicológico e
social, encontram-se à margem da cidade legal, estando impossibi-
litados de usufruir do aparelhamento urbano.
Sabe-se que, historicamente, a política indigenista tem
como foco os indígenas que vivem nas Terras Indígenas (TI’s), que,
de modo geral, situam-se na zona rural, assim, deixando desassis-
tidos aqueles que residem em contextos urbanos. Além disso, “a
legislação brasileira também não trata especificamente da ques-
tão dos indígenas que vivem fora das TI’s, os quais são às vezes
chamados, erroneamente, de ‘índios desaldeados’” (NAKASHIMA;
ALBURQUERQUE, 2011, p. 184). Essa concepção resulta, como as-
severa Nunes (2010, p. 11), da associação equivocada “entre índios
e floresta/natureza, por um lado, e não-índios e cidade/civilização,
por outro”. Sob essa perspectiva, prossegue o autor, “a passagem
(lógica) dos indígenas ao ambiente urbano tende a ser pensado
como um processo de ‘desagregação cultural’, aculturação, tornar-
se igual ao outro e, em consequência, perder-se de seu próprio ser”
(p. 11). Desconsidera-se, deste modo, a gama de fatores históricos
de opressão e discriminação que permeiam o processo de saída
dos indígenas de suas terras tradicionais.
Conforme o relatório “Housing Indigenous Peoples in Ci-
ties” publicado pela ONU-HABITAT (2009), o número de indígenas
3 Devo destacar, entretanto, que ao decorrer de minha pesquisa de campo não me deparei com a situação
descrita pela autora, isso porque, a disputa territorial pela área ocupada é pautada no pertencimento étnico
das pessoas que lá residem. Ainda assim, foram recorrentes as situações em que esses indígenas falaram
sobre já terem se sentido envergonhados por sua identidade étnica e, por isso, a negavam.

- 132 -
vivendo em áreas urbanas têm crescido mundialmente, sendo,
inclusive, superior à população das áreas rurais em países como
Canadá e Chile. Embora em muitos casos essa migração possa ser
voluntária, de modo geral, ela está estreitamente relacionada à
violação de direitos humanos nos territórios tradicionais.

Migration of indigenous peoples to urban areas can happen


for positive reasons, such as improved educational or employ-
ment prospects, and availability of various services in cities.
Migration for work opportunities (either at home or abroad)
has become an important way out of poverty for some indige-
nous peoples. However, in most cases, the root causes of this
migration are related to human rights violations on their home
territories, physical insecurity in conflict areas (which often
involves military violence against indigenous people, including
women, such as sexual harassment and rape). Other factors
behind indigenous migration include overzealous policing, and
forced evictions in connection with development projects (by
governments, corporations and financial institutions), along
with poverty and destitution resulting from large-scale displa-
cement, dispossession and degradation of land, resources and
territories, sometimes under the effect of climate change. Hu-
man trafficking, particularly of women and children, is another
cause of indigenous migration (ONU-HABITAT, 2009, p. 07)4.

No Brasil, o aumento da população indígena residente


nas cidades, de acordo com Nakashima e Albuquerque (2011), de-
ve-se ao movimento de migração decorrente das difíceis condições
do local de origem, ao crescimento vegetativo nas áreas urbanas,
à transformação de áreas consideradas rurais em áreas urbanas
e, por fim, ao aumento das taxas de autodeclaração de indígenas.
Em pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo em
parceria com a fundação alemã Rosa Luxemburg Stiftung, durante
4 Tradução livre: “A migração de povos indígenas para áreas urbanas pode acontecer por motivos po-
sitivos, como melhores perspectivas educacionais ou de emprego e disponibilidade de vários serviços
nas cidades. A migração para oportunidades de trabalho (em casa ou no exterior) tornou-se uma maneira
importante de sair da pobreza para alguns povos indígenas. No entanto, na maioria dos casos, as causas
dessa migração estão relacionadas a violações de direitos humanos em seus territórios domésticos, in-
segurança física em áreas de conflito (que frequentemente envolve violência militar contra indígenas,
incluindo mulheres, como assédio sexual e estupro). Outros fatores por trás da migração indígena incluem
excesso de policiamento e despejos forçados em conexão com projetos de desenvolvimento (por governos,
corporações e instituições financeiras), juntamente com a pobreza e a miséria resultante do deslocamento,
desapropriação e degradação de terras, recursos e territórios em grande escala. sob o efeito da mudança
climática. Tráfico de seres humanos, particularmente de mulheres e crianças, é outra causa de migração
indígena”.

- 133 -
os anos de 2010 e 2011, constatou-se que os motivos pelos quais
os indígenas deixaram suas terras são: 68% por problemas eco-
nômicos; 31% interação social (23% positiva, ou seja, para se jun-
tar à família ou se casar, e 10% negativa, em virtude de conflitos e
mortes); 27% educação; e 13% por falta de assistência à saúde e
questões concernentes ao uso da terra5.
Entre minhas interlocutoras, as condições adversas
de suas comunidades de origem, com suas roças sucumbindo às
cheias dos rios, a falta de escola para os filhos, a inexistência de
trabalho para si e para seus maridos, bem como a desatenção à
saúde, que não raro ceifava-lhes a vida de um familiar, são apon-
tados como os motivos pelos quais decidiram mudar para a cida-
de. Dona Maria, mãe do cacique do Assentamento Povo Indígena
do Sol Nascente na época da redação deste capítulo, por exemplo,
contou-me que perdera um filho com sarampo, e que não raro, as
doenças abatiam famílias inteiras.

Meu filho adoeceu, o depois dele [Eledilson], morreu meu filho.


Apareceu um tipo de doença, sarampo, e a gente sai pra cá, a
gente foi lá pra dentro do igarapé. Não foi só uma pessoa que
morreu, não. Acabava com a família. De uma virada assim, aca-
bou uma família todinho, e desse meio meu filho foi também,
porque a falta de médico, né. Fica difícil assim o interior, assim,
isolado, né, porque não tem e até que a gente vai à canoa re-
mando, né, pra chegar onde tem socorro, morre a pessoa. Aqui
não. Aqui você adoeceu, se não tem como você ir, liga, chama
uma ambulância, né, leva rapidinho pro Pronto Socorro, e lá,
lá... aqui é bom por isso [sic] (Dona Maria, indígena Kaixana,
69 anos).

A cidade surge-lhes, portanto, como o horizonte de uma


vida melhor. Porém, a vida nos centros urbanos não suprime a im-
portância que suas comunidades de origem, enquanto referencial
simbólico, exercem sobre essa população. Seus relatos, permeados
por certa nostalgia e conformismo à vida na cidade, tornam evi-
dente a incompletude dessa adaptação.

5 Os resultados dessa pesquisa, sob título “Indígenas no Brasil – Demandas dos povos e percepções da
Opinião Pública”, encontra-se disponível no sítio da instituição (http://csbh.fpabramo.org.br/node/7986).
As respostas têm caráter espontâneo e múltiplo, por isso a soma total dos percentuais de cada variável
excede 100%.

- 134 -
Eu sinto falta, muita falta, é por causo que quando a gente tava
lá eu ia pro igapó, pegava um peixe, botava na malhadeira,
tarrafeava, pegava um tambaqui fresquinho, uns pacu e coisa,
e aí lá você pode até fazer o peixe até sem verdura, que você
sente o gosto do peixe naquele caldo, entendeu? E aqui já não,
parece assim que o peixe está muito tempo na geladeira, no
congelador e no gelo, que você não sente mais aquele paladar
dele gostoso [sic] (Mabel, etnia Mura, 36 anos).

Na Amazônia brasileira, a migração para as cidades faz


parte da história de índios Apurinã, Arapasso, Baniwa, Baré, Deni,
Desana, Kaixana, Kambeba, Kokama, Macuxi, Miranha, Munduruku,
Mura, Tikuna, Tukano, Sateré-Mawé, Tariano e Tuyuca, principais
etnias que constituem a população indígena de Manaus. Essa po-
pulação se encontra distribuída em vários bairros e áreas de ocu-
pação irregular. Em alguns bairros, porém, há uma expressiva con-
centração de uma determinada etnia, como é o caso, por exemplo,
dos Tikuna no bairro Cidade de Deus, na Zona Norte.
Também na Zona Norte, no bairro Cidade Nova, fica lo-
calizada a ocupação irregular de caráter multiétnico identificada
como Assentamento Povo Indígena do Sol Nascente, onde realizei
a pesquisa de campo. No bairro Tarumã, Zona Oeste, há outra ocu-
pação também multiétnica, identificada como Assentamento Indí-
gena Parque das Tribos. Nesta mesma região, no bairro Compensa,
há famílias Kambeba. Na Zona Centro-Oeste, no bairro Redenção,
há uma comunidade Sateré-Mawé. Na Zona Leste, no bairro Jorge
Teixeira, há uma expressiva concentração de indígenas de diferen-
tes etnias, e no bairro Puraquequera, há uma comunidade Kokama.
Contudo, ainda que estejam distribuídos pelas diferentes regiões
da cidade, de modo geral, essas populações se instalam em áreas
de periferias ou nos limites entre a cidade e a zona rural, separan-
do-se assim de bairros nobres da mesma região, como, por exem-
plo, o bairro Ponta Negra, que faz divisa com bairro o Tarumã, na
Zona Oeste.
Assim, motivados pela certeza de que na cidade terão
acesso à educação, saúde e emprego, os indígenas, ao chegarem em
Manaus, passam a engrossar a massa de pobres e excluídos, que
como demonstra Almeida (2009, p. 10), acaba diluindo a “força da
expressão dos fatores étnicos nas cidades”. Deste modo, a fim ven-

- 135 -
cerem essa invisibilidade étnica, os indígenas têm se organizado
por meio de uma rede de associações, “cujas iniciativas e mobili-
zações evidenciam uma intensa presença indígena, cuja relevân-
cia cultural começa a se expressar tanto em termos demográficos,
quanto em termos políticos” (MAXIMIANO, 2009, p. 79).
À época da pesquisa, conforme dados apurados pela
Coordenação Regional da FUNAI, existiam, em Manaus, um total
de 37 associações/comunidades indígenas, algumas comportando
apenas famílias extensas, que mesmo não estando todas legalmen-
te registradas, se autorrepresentavam enquanto um coletivo orga-
nizado. A principal pauta destas associações se refere sobretudo,
ao direito à moradia e mobilizações de ocupações de terrenos va-
gos.

“Tipo uma formiga no meio do nada”: adaptação à


vida na cidade
A urbanização, conforme Wirth (1967), não pode ser
entendida meramente como o processo pelo qual as pessoas são
atraídas à cidade e incorporadas ao seu sistema de vida: “Ela se
refere também àquela acentuação cumulativa das características
que distinguem o modo de vida associado com o crescimento das
cidades e, finalmente, com as mudanças de sentido dos novos mo-
dos de vida reconhecidos como urbanos que são aparentes entre
os povos” (p. 92). Ou seja, a urbanização corresponde a um modo
de vida, que embora tenha sua origem na cidade, não é limítrofe a
ela, “manifestando-se em graus variáveis onde quer que cheguem
as influências das cidades” (p. 94). A partir desse ponto de vista,
ainda que possamos entender a urbanidade como um modo de
vida, é válido destacar que este modo de existência não é próprio
aos indígenas, ao menos não, para não ser generalizante, às mu-
lheres indígenas com quais interagi durante a pesquisa de campo.
A vida nas cidades, encerra em si mecanismos individua-
listas e individualizantes que não são comuns à vida rural (SIM-
MEL, 1967), tampouco às sociedades indígenas, logo, mesmo que
involuntariamente, os indígenas na cidade passam a constituir um
novo habitus (BOURDIEU, 1989), que em termos comportamen-
tais, passa a distingui-los daqueles que mantêm uma vida contínua
no interior das aldeias. É claro que, como bem destacou Cardoso

- 136 -
de Oliveira (1968), cidade e aldeia se fundem por meio da “presen-
ça” da cidade na aldeia/reserva, e da “persistência” da aldeia na
cidade – a presença da cidade na aldeia se refere à incorporação
de costumes e valores urbanos ao modo de vida indígena, ao passo
que, a persistência da aldeia na cidade corresponde à manuten-
ção dos elos tribais, principalmente de parentesco, na vida urbana.
Deste modo, para Nunes (2010, p. 22), “Cardoso de Oliveira abre
espaço para pensar tanto os indivíduos nas reservas quanto os nas
cidades como igual e legitimamente indígenas”, uma vez que, “em
ambos os ambientes, a mesma lógica está a operar no fundo, orde-
nando e dando sentido às ações e relações”.
Sob essa perspectiva, mesmo que “os processos vivencia-
dos não são inerentes ao ambiente urbano, apenas aí se concen-
tram, pois daí se originam” (NUNES, 2010, p. 22), em termos prá-
ticos, os indígenas quando recém-chegados à cidade se depararam
com uma série de dificuldades de inserção nesse novo cenário so-
cial, que exige-lhes a formulação um novo instrumental analítico e
operacional que comporte, a grosso modo, o transporte público, a
economia monetária e os diferentes hábitos alimentares.

Foi muito difícil, né, porque, assim, difícil acho porque pra
mim, nunca morei assim na cidade grande com meus filho.
Tudo é perigoso assim pra mim, né, depois assim, por pouco,
por pouco eu fui me acostumando com as coisa, né, agora já me
acostumei um pouco, né, porque a cidade grande, a senhora
sabe como que é, né, que a gente vem do interior é difícil, né. A
gente estranha, mas agora até que me acostumei. Essas criança
também já acostumaram, né, porque vão pra escola, né, aí fo-
ram se acostumando [sic] (Eliane, etnia Baré, 34 anos).

O que eu estranhei? Rapaz, eu me senti perdida. Sério, às ve-


zes ele [o marido] fica rindo quando eu tô conversando com
ele, eu me senti perdida, eu me senti assim, tipo um formiga
no meio do nada, por causa que eu não conhecia nada, eu não
sabia...Só de eu sair pra comprar pão, eu me perdi. Aí eu fiquei
rodando, parei e fiquei sentada, aí lá vinha um homem que eu
tinha visto morando lá perto de casa, aí “que foi?”, “nada, por-
que eu não sei voltar”, ele olhou pra mim e disse “é bem aqui, ó,
desce aí”, pois eu tava bem perto e não sabia. [...] eu não tinha
conhecimento ainda de como procurar um emprego, como eu
chegar até um emprego, como eu pegar um ônibus, entendeu.

- 137 -
Eu não sabia nem o que era tirar um currículo, né. Eu não tinha
nenhum documento nem nada, aí depois que eu fui, entendeu?
Alguém foi me orientando que eu fui tirar os meus documento
[sic] (Mabel, etnia Mura, 36 anos).

Trata-se, em certo sentido, de “aprender o regulamento”


(CARDOSO DE OLIVEIRA, 1968, p. 125) da vida urbana, desvendan-
do e interiorizando as normas de conduta e as práticas correntes
na cidade grande, que diferem completamente do cotidiano e das
relações até então experimentadas em comunidades rurais, ou em
cidades de interior. Eliana, nem mesmo Mabel, em um momento
anterior, não haviam experimentado a vida em uma cidade do por-
te de Manaus, o que explica tamanha insegurança, estranhamento
e dificuldade quando recém-chegadas. Para as crianças, a escola
teve um papel fundamental nesse processo de adaptação, como a
própria Eliana comenta, ao passo que, para as mães, como no seu
caso, por exemplo, com uma rotina restrita ao mundo doméstico,
esse processo se torna mais lento.
Nas cidades, a preponderância da economia monetária
lhes exige certa adaptação, uma vez que as produções domésticas e
as trocas diretas de mercadorias, com as quais estavam habituadas,
foram suprimidas. Nesse cenário, a estreita relação entre dinheiro
e comida também não lhes soa com naturalidade, de certo modo,
violentando-as, pois as torna impotentes de assegurar seu próprio
sustento, bem como de seus familiares. Habituadas a cultivar sua
própria roça, pescar nos rios, e colher frutas, de forma a manter
total autonomia sobre todo o processo de produção de alimentos, a
necessidade de na cidade ter de comprá-los, impede-as em muitas
situações em que não dispõem de dinheiro, de consumi-los. Assim,
vivenciam, inclusive, a experiência da fome.

Eu estranhei, porque onde a gente morava a gente comia mais


era peixe, meu pai pescava, né, comia muito peixe. Aí quan-
do eu vim pra cá é tudo comprado, galinha, carne, né, peixe é
aquele absurdo, né. Você vai comprar um peixe é um absurdo
de caro. Então lá, onde a gente morava eu era acostumada a
comer fruta tirada da árvore, ali na hora, né, peixe meu pai saia
pra pescar e trazia um monte de peixe pra gente comer [...].
Fruta a gente tem que comprar e é tudo caro, né [sic] (Kellian-
dra, etnia Miranha, 27 anos).

- 138 -
Quando cheguei aqui eu estranhei, né, que, né, aqui é só com di-
nheiro, né. A gente quer comer uma fruta é com dinheiro, quer
comprar uma coisa assim, comida, é com dinheiro, e lá não. Lá
na minha cidade a gente pesca, né, pesca, tira da árvore da gen-
te, não compra, né, e aqui não. É por isso que a minha mãe inda
não quer vir pra cá, ela estranha muito [...]. Eu quando cheguei
aqui também estranhei, né, que é com dinheiro pra gente viver,
né, como a gente tem as plantinha da gente, era pra gente viver,
né, aqui é só com dinheiro [sic] (Sirlea, etnia Kaixana, 47 anos).

Dona Ana (etnia Tukano, 65 anos) também fez as mes-


mas reclamações com relação ao dinheiro, queixando-se por preci-
sar comprar tudo, e quando “não se tem dinheiro não tem como ter
as coisas, comida [sic]”. Na maioria dessas famílias, de modo geral,
com filhos pequenos e com apenas o marido empregado, a renda
familiar é muito baixa, muitas vezes não ultrapassando um salário
mínimo, logo, realmente, quando não se tem dinheiro, não se come,
como elas próprias tantas vezes enfatizaram.
No que toca aos estranhamentos com relação ao dinheiro
como um todo, Bernal (2009, p. 256), destaca que:

Não se trata simplesmente do fato que a materialidade da moe-


da em si seja a transposição encarnada de uma outra realida-
de que fascina, cativa ou aliena, mas de três papéis totalmente
novos em relação à experiência tradicional dos índios, e que se
revelam determinantes na configuração de uma nova identi-
dade social indígena urbana. Trata-se (1) da multiplicidade de
trocas que essa materialidade permite como ampliação do es-
paço social; (2) da transformação que envolve o valor “dinhei-
ro” na relação entre os homens e as coisas e (3) da transforma-
ção da temporalidade que envolve a troca rápida e impessoal,
e as transformações que a identidade social sofre pelo fato de
ganhar dinheiro.

A inserção na economia monetária, portanto, não ape-


nas coloca os indígenas em situação de vulnerabilidade social, mas
também acarreta uma infinidade de mudanças socioculturais, in-
duzindo-os, em muitos casos, ao processo de individualização. A
mudança dos hábitos alimentares, de modo geral, também pode
ser atribuída ao processo de monetarização da vida cotidiana.
Sob esse aspecto, as histórias que pude recolher eviden-
ciam que a mudança na alimentação é sentida com mais intensi-

- 139 -
dade, principalmente, pelas mulheres indígenas mais idosas, que
se mostram resistentes e insatisfeitas com “as comidas de branco”.
Esses estranhamentos, com base em Maciel (2001), são explicados
a partir do entendimento de que existe uma escolha culturalmente
orientada daquilo que é considerado comida em cada sociedade.

A escolha do que será considerado “comida” e do como, quan-


do e por que comer tal alimento, é relacionada com o arbitrário
cultural e com uma classificação estabelecida culturalmente. A
cultura não apenas indica o que é e o que não é comida, estabe-
lecendo prescrições (o que deve ser ingerido e quando) e proi-
bições (fortes interdições como os tabus), como estabelece dis-
tinções entre o que é considerado “bom” e o que é considerado
“ruim”, “forte”, “fraco”, ying e yang, conforme classificações e
hierarquias culturalmente definidas (MACIEL, 2001, p. 149).

Deste modo, afeitas a outros hábitos culinários, com car-


ne e peixe “no sangue”6, como se percebe na fala de dona Sueli,
todas relatam grande dificuldade para se habituarem a comer car-
nes congeladas, “no gelo”7, prova de que, como bem enfatiza Maciel
(2001), não se escolhe apenas o que se come, mas também como
se come.

Não foi fácil não pra mim. Ai, não me acostumava com comida
daqui que era só gelo. Pra mim que aquela comida fedia só gelo.
Eu não queria, queria comida fresquinha que nem a gente co-
mia. O pescador ia pescar, trazia aquele peixe no sangue, e aqui
era um gelo, ai, ficava doente. Aí que me adoecia, passava mal.
Agora, agora já me acostumei, porque o meu marido procura
comprar só o que vem novo. Peixe no sangue ele procura com-
prar, né, e ele traz. Tambaqui, curimatã, piranha, tudo esses
peixe [sic] (Dona Sueli, indígena Kaixana, 67 anos).

Mesmo para aquelas cuja chegada a Manaus remonta há


mais de uma década, as reclamações sobre a comida ainda são fre-
quentes, demonstrando mais um conformismo propriamente, que
uma completa adaptação ao modo de vida urbano.
Eu estranhei a comida porque quem é nascido assim, e criado
no interior, ali não tem o negócio de gelo, não, né, tudo é peixe,
6 Expressão usada para se referir às carnes, peixes abatidos especificamente para uma dada refeição.
7 Expressão usada para se referir às carnes e peixes congelados.

- 140 -
carne é no sangue mesmo, né. Aí depois que eu cheguei aqui
em Manaus eu estranhei assim, por isso, né, porque a gente
só comia do gelo. [...] Mas não me acostumei bem não, que até
hoje... a gente come porque é o jeito, né [sic] (Dona Maria, etnia
Kaixana, 69 anos).

Seu Raimundo, marido de dona Maria, em várias oca-


siões em que falávamos algo relacionado à comida, sempre des-
tacava seu desconforto com o uso de fogão a gás. Dizia-me que só
come porque não tem opção, porque comida boa é aquela que se
faz na brasa, principalmente se tratando de peixe.
Com igual insatisfação, dona Ana, que vive em Manaus
há quase 20 anos, diz que atualmente come feijão e arroz, mas que
sente falta da sua comida, de “comida mesmo”, pois “nós indígena,
a gente come diferente dos brancos [sic]”. Para suas filhas, a ali-
mentação da mãe é motivo de grande preocupação, pois como ela
não se acostuma com a comida, muitas vezes acaba ficando sem
comer. Contam que ela quer comer peixe frito, beiju, mas que nem
sempre elas têm dinheiro para comprar, por isso, a mãe reclama e
diz que está passando fome.
Além da dificuldade de adaptação no que toca à alimen-
tação e à economia monetária, nos centros urbanos, a mobilidade
física dos indivíduos com a facilidade de acesso aos meios de trans-
porte, bem como a necessidade de usá-los em virtude da exten-
são territorial da cidade, exigiu-lhes não só a construção de uma
sociabilidade específica, mas também de novos mapas cognitivos.
Trata-se não só de se habituar a andar de ônibus, mas de aprender
a transitar e reconhecer as diferentes zonas da paisagem urbana,
que para além do medo de se perder em virtude de não conhecer a
cidade, há também o medo de, ao se perder, não dispor de dinheiro
para pagar outra passagem.

Eu tinha medo de pegar ônibus, de pegar ônibus errado, não


sabia ler o número certo. Eu não sabia se ele ia pro bairro, eu
não sabia ler mesmo. Já pensou se eu pego um ônibus que vai
para o outro bairro, como é que eu vou voltar aqui sem dinhei-
ro, né? Isso era minha preocupação, às vezes, por isso eu não
saia de casa por causo disso [sic] (Kelliandra, etnia Miranha,
27 anos).

- 141 -
É difícil, né, assim esperar ônibus, as coisas que você quer
tem que pegar ônibus, né, aí isso daí eu achei muito estranho
também quando eu cheguei, porque onde eu morava não
precisava essas coisa, não, porque a cidade era pequena, né.
Agora aqui não, porque é cidade grande, né [sic] (Eliana, etnia
Baré, 34 anos).

Muitas dessas mulheres, antes de sua vinda para Manaus,


já haviam residido em cidades menores, como São Gabriel da Ca-
choeira, Tefé, Tonantins e Santo Antônio do Iça, no entanto, nessas
localidades não teriam vivenciado o que se pode chamar de uma
verdadeira experiência urbana. Dito de outro modo, conforme Car-
neiro (2007, p. 57):

Esses pequenos municípios estariam, portanto, na interseção


de dois códigos de relações sociais. Se de um lado mantém
uma sociabilidade diferenciada – marcada pelas relações so-
ciais de interconhecimento – e uma “particular vinculação com
a natureza”, o que os aproximariam de uma realidade “rural”,
por outro lado, exercem também as funções de mediação na
“integração do mundo rural com o sistema mais geral das ci-
dades”, marcando de maneira específica um modo de vida e
de inserção na sociedade nacional que não são os mesmos dos
encontrados nas grandes cidades e nem nas pequenas locali-
dades rurais.

Deve-se ter em mente, como bem destaca a autora, que


esses espaços, quando observados a partir de uma perspectiva re-
lacional, “poderão ser reconhecidos como ‘cidades’ para os mora-
dores das áreas rurais sob sua influência, como poderão, também,
ser classificados como ‘rurais’ ou ‘interior’” (CARNEIRO, 2007, p.
57) para moradores de cidades maiores. Desta maneira, ao atentar
para esse fato poder-se-á identificar “os diferentes modos de vida
colocados em convivência” (idem, p. 57).
Concorda-se, portanto, que ser índio na cidade requer a
constituição de um novo modo de vida, que embora não os tor-
ne “menos índios”, acaba distinguindo-os de seus parentes que
permaneceram em suas comunidades, e, até mesmo, em cidades
menores. Lasmar (2005), também lança mão deste pressuposto,
porém, de forma mais enfática, analisando-o a partir dos binômios
índio-comunidade e branco-cidade. Para essa autora, trata-se de

- 142 -
dois modos de existência que estão estritamente relacionados ao
mundo dos índios e ao mundo dos brancos, respectivamente. As-
sim, “à medida que alguém se move na escala que vai do polo in-
dígena ao polo branco, ocorrem transformações em seu estilo de
vida” (LASMAR, 2005, p. 148).
Minhas interlocutoras, entretanto, embora reconheçam
as dificuldades com relação ao processo de adaptação à vida na
cidade, não percebem o espaço urbano como um lugar de brancos,
como Lasmar (2005) afirma ocorrer em São Gabriel da Cachoeira.
A cidade para elas, é um lugar de possibilidades de emprego, saúde
e educação, mas é claro que, ainda assim, a condição etnicorracial
e econômica interfere na maneira por meio da qual se inserem na
paisagem urbana. Não se trata do “mundo dos brancos” em oposi-
ção ao “mundo dos índios”, mas sim, de um menor ou maior apa-
rato que possa possibilitar-lhes melhores condições de vida. Nesse
sentido, cidade e comunidade, como afirma Melo (2009, p. 59) em
sua pesquisa sobre os Baré, “não são pensadas como modelos que
se opõe, mas que estão em contínua interação”. Deste modo, a ci-
dade passa a ser, como já identificado pela Comissão Pró-índio de
São Paulo (2013), um local de afirmação dos direitos indígenas,
que se auto-organizam em torno de demandas como moradia, saú-
de, educação, trabalho e renda, reivindicando e gerando, ainda que
de forma pontual e limitada, experiências concretas por parte do
poder público.
Além disso, parto do pressuposto de que os binômios
índio-comunidade e branco-cidade acabam reforçando o precon-
ceito sofrido pelos indígenas nas cidades, que constantemente, de-
param-se com situações de discriminação, por estarem, em tese,
fora de seu habitat natural, a floresta. Ilustrativo deste fato é a nar-
rativa de Nara, que ainda hoje, apesar de adulta, carrega as marcas
emocionais da violência e discriminação racial que sofreu quando
criança. Em dada ocasião, quando lhe perguntei se algo havia lhe
marcado ao longo de tantos anos em Manaus, ela prontamente me
respondeu que sim, e que se tratava de uma situação de precon-
ceito.

Pra gente, logo que nós viemos, a gente que era maior, foi mui-
to difícil, porque, tem umas pessoas que eles, como é que se

- 143 -
diz, abraçam a gente, né, a gente tem todo um apoio, mas tem
muita discriminação. Na época por a gente não falar a lingua-
gem portuguesa, que a gente falava só a linguagem dos sateré,
sofremos muita discriminação de filho de pessoa, né, que às
vezes quando a gente não sabia o que era uma televisão, aí as
pessoa nos discriminavam, chamavam de fedorento, cuspiam
na gente, tudinho a gente passou, né. Então, chegou uma época
que assim que eu acho que com 9, 10 ano e meu irmão com 11,
12, uma coisa assim, ele chorava muito pra voltar pra lá porque
a gente era visto de uma maneira assim, por alguns, né, muito
discriminado, né. Eles tinham a gente como um bicho, sei lá
[sic] (Nara, etnia Sateré-mawé, 38 anos).

Entre as outras mulheres, os relatos sobre situações em


que sofreram preconceito também são recorrentes. Mabel me con-
tou que recentemente havia discutido com duas jovens em um
ônibus, que ao vê-la com pinturas corporais, a constrangeram com
olhares e risos.
Sob esse aspecto, a pesquisa “Indígenas no Brasil – De-
mandas dos povos e percepções da Opinião Pública”, realizada en-
tre 2010 e 2011, pela Fundação Perseu Abramo em parceria com a
fundação Alemã Rosa Luxemburg Stiftung, traz dados interessan-
tes. Ela demonstra que 45% dos indígenas residentes em espaços
urbanos declaram já ter sofrido discriminação devido à sua cor/
etnia. Para 58% dos entrevistados, o preconceito é expresso por
meio de comportamentos discriminatórios, dentre os quais se
destacam a aversão ou ridicularização; recusa ao atendimento em
hospitais, órgãos públicos e comércio; recusa ao contato social –
“lugar de índio é na aldeia”; aspectos culturais – língua e pintu-
ras corporais; e recusa ao contato físico – “não querer ficar perto”.
Além dos comportamentos discriminatórios, 44% dos indígenas
entrevistados por essa pesquisa, afirmam que também são vítimas
de discriminações verbais, sendo atribuído sentido pejorativo à ca-
tegoria índio, associando-os à sujeira, falta de banho, incapacidade,
alcoolismo, selvageria e canibalismo.
Nota-se, deste modo, que o preconceito é um elemento
que compõe o cotidiano dos indígenas na cidade e, conforme a
pesquisa, 17% dos casos ocorrem dentro do ambiente escolar, fato
também evidenciado em Manaus: uma de minhas interlocutoras
relatou que não conseguiu matricular sua filha na escola em virtu-

- 144 -
de de preconceito por parte da direção, que alegou “não ser uma
escola indígena”. Outra contou que um professor quis expulsar sua
filha da sala de aula por ela estar com pinturas corporais, indagan-
do-lhe sobre “que palhaçada era aquela”, e que, caso se repetisse,
ela não poderia mais assistir a sua aula.
É claro que seria um equívoco afirmar que apenas os índios
que residem nas cidades são vítimas de preconceito, até porque,
diariamente testemunhamos por parte da sociedade envolvente e
também por parte dos representantes do legislativo, uma série de
condutas e falas que visam marginalizar e discriminar os indígenas.
Contudo, no que toca aos índios urbanos, especificamente, além da
sequência de comportamentos discriminatórios e discriminações
verbais citados acima, a tônica recaí sobre o questionamento de
sua indianidade por meio da atribuição do status de bugres e ca-
boclos, como ocorre em Mato Grosso do Sul e Amazonas, respec-
tivamente. Trata-se, portanto, como bem demonstra Albuquerque
(2011), em seu estudo sobre os Pankararu em São Paulo, de um
“preconceito de autenticidade”, que opera por meio das categorias
de “assimilados”, “aculturados” e “desaldeados”, assim, criando a
invisibilidade social do indígena, que coloca em risco seus direitos.
Não obstante, cada uma dessas categorias implica em um
tipo específico de preconceito: “assimilados” não teriam mais “cara
de índio”, expressando então o preconceito fenotípico; “acultura-
dos” não falariam a língua ancestral, sendo vítimas de um precon-
ceito linguístico; e, “desaldeados” teriam abdicado da “proteção”
do poder tutelar e da assistência de outros órgãos públicos, que
denota um preconceito político-administrativo (ALBUQUERQUE,
2011).
Pressupõe-se com isso, que esses bugres e caboclos não
seriam “índios de verdade”, pois já teriam passado por um proces-
so de assimilação, aculturação e afastamento étnico-territorial, já
que não vivem mais em suas comunidades de origem, portanto,
não seriam mais detentores de direitos e políticas diferenciadas.
Ignora-se, entretanto, que os direitos indígenas não decorrem de
uma condição de primitividade ou suposta pureza cultural a ser
comprovada pelas coletividades indígenas atuais, mas sim do re-
conhecimento por parte do Estado de que esses grupos são des-
cendentes da população autóctone. O direito à terra, por exemplo,

- 145 -
como nos lembra Pacheco de Oliveira (1998b), é um direito ori-
ginário, que decorre da conexão sociocultural dos índios com os
povos pré-colombianos que aqui habitavam.

Manutenção da identidade étnica


Durante muito tempo, defendeu-se que a atribuição de
um grupo étnico fosse pautada exclusivamente em critérios bio-
lógicos, logo, “um grupo étnico seria um grupo racial, identificá-
vel somática ou biologicamente” (CUNHA, 2012, p. 104). Poste-
riormente, após a Segunda Guerra Mundial, o critério racial foi
substituído pelo de cultura e, então, um grupo étnico passou a ser
definido como aquele em que seus membros compartilham traços
culturais. Este critério, ainda que corresponda a diversas situações
empíricas, traz implícito, como destaca Cunha (2012), dois pressu-
postos equivocados: primeiro, que a cultura é uma característica
primária do grupo, quando, ao contrário, ela é uma consequência;
segundo, de que a cultura partilhada deve ser obrigatoriamente a
cultura ancestral, fato impossível, já que cultura é algo essencial-
mente dinâmico e continuamente reelaborada.
O critério cultural sustentado pela concepção naturali-
zada de cultura, entretanto, compõe ainda hoje a representação
do senso comum sobre os índios e, conforme Pacheco de Oliveira
(1999), forma um complexo ideológico de difícil desmontagem: a
imagem dos indígenas como aqueles que vivem na floresta, que
fazem uso de tecnologias rudimentares e possuem instituições
primitivas. Para Albuquerque (2011), essa visão é baseada naquilo
que ele define como “modelo museu de autenticidade”, que acaba
por desconsiderar que as sociedades indígenas estão situadas na
mesma temporalidade que a nossa, logo, “os povos indígenas hoje
estão tão distantes de culturas neolíticas pré-colombianas quanto
os brasileiros atuais da sociedade portuguesa do século XV” (PA-
CHECO DE OLIVEIRA, 1998a, p. 68).
A cultura, portanto, com seu caráter não estrutural e di-
nâmico, não pode ser tomada como primazia para a definição de
um grupo étnico, pois os traços culturais, embora variem no tempo
e no espaço, não afetam a identidade do grupo. Um grupo étnico,
conforme a definição vigente hoje, é uma forma “de organização
social em populações cujos membros se identificam e são identi-

- 146 -
ficados como tais pelos outros, constituindo uma categoria distin-
ta de outras categorias da mesma ordem” (BARTH apud CUNHA,
2012, p. 107). A identidade étnica depende, com isso, exclusiva-
mente da autoidentificação e da identificação como tal por parte
da sociedade envolvente.
O foco da atenção passa a ser, então, as fronteiras sociais
do grupo e não mais a cultura a elas pertencentes. Estas fronteiras,
por sua vez, persistem apesar do contato interétnico e até mesmo,
da interdependência dos grupos, pois a distinção entre as catego-
rias étnicas não depende da ausência de mobilidade e interação.
Para um indígena, portanto, viver na cidade entre os
brancos, não significa viver como brancos, tampouco, deixar de ser
índio. Seu pertencimento étnico se manterá enquanto assim ele se
autoidentificar e assim for identificado pelos demais. A migração
para a cidade não denota um movimento de passe, conforme ocor-
rido nos Estados Unidos durante a política de segregação racial;
não significa “passar” para a sociedade dos brancos, mas sim a bus-
ca por uma vida melhor, com acesso à saúde, educação e trabalho.
A cidade tampouco é percebida por eles como um lugar de brancos,
mas sim, como uma arena política, onde, diariamente, lutam por
cidadania, inclusão social, respeito à diversidade e vida digna.

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- 149 -
- 150 -
A construção da clínica psicossocial no
Brasil e as práticas de cuidado
e promoção de autonomia nos serviços de
Saúde Mental contemporâneos:
uma revisão teórica

Adriana Rosmaninho Caldeira de Oliveira


Juliana de Souza Izidio do Padro

Do paradigma biomédico ao paradigma psicossocial


na atenção à saúde
As políticas de saúde são estruturadas e organizadas
priorizando elementos que caracterizam certos modelos de com-
preensão e intervenção diante dos fenômenos de saúde e doença.
Da mesma forma, a prática exercida pelos profissionais de saúde
pode apresentar-se conformada a um conjunto de princípios e
pressupostos que constroem uma racionalidade acerca de seu ob-
jeto de trabalho.
Em nossa sociedade ocidental, o modelo biomédico se
mostra como um conhecimento culturalmente aceito e se configu-
ra como um dos principais sistemas de crenças acerca do adoeci-
mento. Ele se constituiu a partir de um conjunto de pressupostos
que definem a saúde como a ausência de doença, sendo esta, ex-
plicada por uma dimensão biológica e caracterizada por uma alte-
ração da norma de variáveis fisiológicas, passíveis de mensuração
e controle, independente do comportamento social ou dos aspec-
tos psicológicos que possam estar envolvidos em um determinado
contexto (ENGEL,1977).
Nesta perspectiva, mesmo as doenças manifestadas por
desordens comportamentais podem ser entendidas e explicadas,
como decorrentes de modificações nos processos bioquímicos e
neurofisiológicos. Esse pensamento, para Engel (1977), tem o re-
ducionismo como um de seus elementos, ao inferir que fenômenos
complexos, como a saúde e a doença, podem ser analisados a par-

- 151 -
tir de um princípio primário único, biológico, indicando, pela óti-
ca biomédica, a linguagem da química e da física como suficientes
para explicar o fenômeno da doença.
Tal paradigma pode ser identificado na efetivação da
clínica desenvolvida com centralidade na doença e marcada pela
generalização de resultados e práticas, sem incluir as dimensões
existenciais e sociais do sujeito doente. Essa clínica tem como foco
a cura das enfermidades, em um sentido de reparação e recupera-
ção das alterações biológicas em decorrência da doença. Para Cam-
pos (2002) a relação que se estabelece entre a doença e o sujeito se
configura de forma que a primeira encobre o segundo, conferindo
a ele uma nova identidade, a de doente, sem que haja uma articu-
lação entre a doença em si e as singularidades de cada sujeito. Tal
sistema é denominado pelo autor como “clínica totalizante”:

Não são sequer levantadas questões sobre como combinar


uma dada enfermidade e o Ser concreto acometido, como com-
binar o enfrentamento de uma determinada doença com a luta
contra o desemprego, o combate a uma certa enfermidade com
o cumprimento de funções maternas, o cuidado e tratamento
de um dado mal-estar com a conservação de algum conforto e
de algum prazer (2002, p.23).

Percebe-se que a elaboração desse conhecimento se dá


partindo de pressupostos e regras compatíveis com o método cien-
tífico tradicional, como uma forma de investigação de respostas
científicas para o estudo da doença, afastando-se do conhecimento
informal e popular (HELMAN, 2003). Considera-se, então, sua con-
tribuição para as bases do estudo científico positivista das doen-
ças, e para a construção de regras de conduta que permitem racio-
nalizar ações de tratamento e reparação da condição indesejável.
Durante o século XV, o princípio básico para o estudo
científico tradicional era o método analítico, que consistia em re-
duzir o fenômeno isolando cadeias causais ou unidades, para de-
pois compreendê-lo a partir da soma de suas partes. O corpo hu-
mano era, então, entendido segundo uma analogia com a máquina,
formada por um conjunto de peças em funcionamento, e caso al-
gum “defeito” fosse apresentado, poderia separadamente ser con-
sertado. Com base nessas concepções, o sistema biomédico surge

- 152 -
como abordagem científica para a doença, de forma fracionada e
analítica, centrada em processos biológicos, sem inserir outras di-
mensões como a social e a psicológica (ENGEL, 1977).
Sem desconsiderar as importantes contribuições que o
sistema biomédico trouxe para o avanço da ciência no que diz res-
peito à biologia e fisiologia das doenças, bem como para o desen-
volvimento de tecnologias de diagnóstico e tratamento de enfer-
midades relevantes para evolução da humanidade, observa-se que
esse modelo, como qualquer outra abordagem científica, não deve
ser único ou soberano, visto que é passível de limitações e possibi-
lidades de ampliação das suas perspectivas e da potencialidade de
seus resultados.
A inclusão de novos campos de conhecimentos na área
da saúde, a partir das discussões sobre os limites do modelo bio-
médico e da necessidade de sua ampliação, se torna mais evidente,
na sociedade ocidental, desde o século XX. A Organização Mundial
da Saúde (OMS) definiu o conceito de saúde como um “estado de
completo bem-estar físico, mental e social, e não somente ausên-
cia de enfermidade ou invalidez” (OMS, 1946), incorporando os
aspectos psicossociais como constituintes da concepção de saúde.
A abrangência do conceito favoreceu a emergência de políticas sa-
nitárias mais abrangentes, em que a saúde passou a ser entendida
como um estado positivo que pode ser promovido, buscado, culti-
vado e aperfeiçoado como tema multidisciplinar.
Uma experiência pioneira, nesta perspectiva, foi a da so-
ciedade cubana. Durante o período da revolução e das transforma-
ções políticas, sociais e econômicas que ocorreram nesse país nas
décadas de 1960 e 70, novas demandas emergiram para a atuação
prática dos profissionais, marcando a inclusão dos fatores psico-
lógicos e sociais envolvidos nas condições de saúde e doença, com
destaque para a construção da atuação prática da psicologia no
campo da saúde comunitária.
O contexto cubano pós revolução propiciou o desenvol-
vimento da psicologia da saúde, a partir da inclusão do psicólogo
no Sistema Nacional de Saúde, com uma atuação ampla, envolven-
do os três níveis de atenção, primário, secundário e terciário, além
da prática de pesquisa e docência nessa área de conhecimento. O
psicólogo passa a ocupar-se não só dos transtornos mentais, mas

- 153 -
também dos fatores psicológicos e sociais que envolvem o proces-
so saúde-doença de maneira geral. Sua prática não se restringe,
portanto, a uma escola tradicional, específica da psicologia, uma
vez que se busca um pluralismo crítico, tanto conceitual quanto
prático, para a construção de seu marco teórico (LOVELLE, 2003).
Neste sentido, Abalo, Pereira e González (2012) referem
que a possibilidade de transformação do modelo biomédico, per-
mite a construção de um campo de conhecimento que compreen-
de a saúde a partir de variáveis psicossociais, relativas às crenças,
condutas, emoções, atitudes, apoio social, que funcionam como
desencadeadores, facilitadores ou moduladores no processo saú-
de-doença.
A construção teórica e prática dos profissionais da saúde
em Cuba, especialmente da psicologia da saúde, representa uma
importante referência tanto para organização dos sistemas de saú-
de, como para o conhecimento e a atuação dos profissionais em
uma perspectiva de ampliação dos pressupostos biomédicos e de
desenvolvimento de uma clínica interdisciplinar.
Já no Brasil, a Constituição Federal (1988), em seus arti-
gos 6º e 196, estabelece a saúde como direito social de todo cida-
dão, e como dever do Estado, sendo a política de saúde pública re-
gulada pela Lei Federal nº 8080/1990, que institui o Sistema Único
de Saúde (SUS) brasileiro. A partir de então, a saúde passa a ser
entendida de forma ampla, determinada socialmente e condicio-
nada a políticas de governo que promovam condições adequadas
de vida à população.
No âmbito do SUS, um dos princípios fundamentais para
organização dos programas, serviços e práticas, é o da integralida-
de, que pode ser também compreendida a partir de um conceito
abrangente de saúde, em que as ações produzidas, nos encontros
entre profissionais e sujeitos/usuários do sistema, levem em con-
ta as necessidades de saúde de cada sujeito, a fim de garantir seu
acesso a todos os serviços, ações, e tecnologias que se façam neces-
sários para o enfrentamento de determinado problema de saúde
(FREUWERKER; BERTUSSI e MERHY 2010).
Desta forma, se discute a necessidade de construção de
uma clínica em que o sujeito, seu contexto, sua pluralidade e sin-
gularidade sejam incluídos como objeto de estudos e de práticas,

- 154 -
uma clínica cuja responsabilidade não seja somente pela enfermi-
dade, mas pela integralidade dos sujeitos, dita por Campos (2002)
como a “clínica do sujeito”.
Nesta construção considera-se a relação estabelecida en-
tre o sujeito e a doença, qual a posição ocupada por cada um e de
que forma se articulam, sendo que os serviços de saúde precisam
operar de forma dinâmica para dar conta da variabilidade existen-
te nessas interelações (CAMPOS, 2002).
Na “clínica do sujeito” discute-se a “cura” das doenças,
como uma noção diferenciada do conceito biomédico de recupe-
ração e reparação da alteração biológica. Entende-se que certas
enfermidades consideradas crônicas, ou incuráveis, pela ciência
médica tradicional, em que os sujeitos necessitariam de cuidados
permanentes, ou seriam quase sempre dependentes de algum tipo
de apoio técnico para questões biopsicossociais, se beneficiariam
de uma clínica reformulada e ampliada, que possa incorporar os
vazios deixados pelos limites da clínica puramente biomédica, ou
seja, a clínica totalizante.
A dinâmica de ampliação da clínica totalizante para o
desenvolvimento da clínica do sujeito representa uma das bases
para a construção do paradigma psicossocial que tem, no Brasil,
sua construção articulada ao percurso de desenvolvimento das po-
líticas de estado para a saúde em geral e em especial para a saúde
mental.
O processo histórico da construção das políticas públi-
cas de saúde no Brasil, baseadas em seus princípios fundamentais
como a integralidade, a territorialidade das ações de saúde, e a
participação popular nas ações de planejamento, gestão e controle
das instituições de saúde, é marcado por movimentos sociais, que
surgiram em um contexto social e político de redemocratização do
país, entre os quais é possível destacar, por sua relevância, o movi-
mento da Reforma Sanitária e o da Reforma Psiquiátrica.
Esses movimentos coletivos, além de sua importância
histórica para a construção das políticas de saúde, tiveram impac-
tos nas transformações e no desenvolvimento de novas práticas
clínicas. Nos primeiros anos da década de 1980, os dois movimen-
tos se uniram e ocuparam espaços públicos de poder e tomada de
decisões, propiciando novos questionamentos e a inserção de mo-
dificações no sistema de saúde.

- 155 -
Em comum, os dois movimentos tinham como funda-
mento reflexões que incluíam a necessidade de transformações em
padrões sociais como a autoridade e o poder, a discriminação e a
opressão, além da tentativa de democratização das agências e ins-
tituições político-sociais, entendendo política como um conceito
que, para além de espaços público-estatais, se refere a uma prática
inscrita no cotidiano das relações sociais (LÜCHMANN e RODRI-
GUES, 2007).

A clínica psicossocial no Brasil


A clínica psicossocial tem suas raízes, neste contexto de
luta política, em que se destaca o movimento de Luta Antimani-
comial, como um dos responsáveis por trazer a público inúmeras
denúncias, questionamentos e discussões acerca das políticas de
saúde mental, que culminaram no processo da Reforma Psiquiá-
trica brasileira, regulamentada em 2001 pela Lei nº10.216. Essa
Lei orienta o cuidado em saúde mental como uma prática de rein-
serção social, e normatiza, em seu artigo 2º (II, III), um tratamento
exclusivo em benefício da saúde da pessoa com transtorno mental,
“visando alcançar a recuperação pela inserção na família, no traba-
lho e na comunidade, sendo protegida contra qualquer forma de
abuso e exploração”. (BRASIL, 2001).
O processo da Reforma Psiquiátrica brasileira sustenta-
se em bases ideológico-políticas e em marcos filosóficos-concei-
tuais que fundamentam as transformações que se propõem para a
clínica desenvolvida na assistência à saúde mental, a partir de um
contexto de desinstitucionalização dos cuidados, por meio da des-
construção do saber e das relações de poder da clínica tradicional
hospitalocêntrica.
Uma das principais influências para o processo de Refor-
ma Psiquiátrica no Brasil, foi o movimento de democratização da
psiquiatria ocorrido na Itália, a partir da década de 1970, que teve
como um de seus principais expoentes o médico psiquiatra Fran-
co Basaglia. Ele e seus seguidores criticaram o paradigma institu-
cional que faz do manicômio um espaço de descarga, exclusão e
ocultação do sofrimento, da miséria e da doença social, problemas
esses, insuportáveis para a ordem de funcionamento social estabe-
lecida (BASAGLIA, 1985).

- 156 -
O objetivo do movimento italiano era o de romper com a
estrutura hierárquica do manicômio e negar a clínica que reduz o
complexo fenômeno existencial da loucura à ideia de doença men-
tal, o que para Foucault (2002;2017), marca a exclusão da subjeti-
vidade e o silenciamento de si mesmo, do ser sujeito.
Basaglia (2005) descreve o processo de mortificação do
eu, fruto da institucionalização como:

A ausência de qualquer projeto, a perda de um futuro, a con-


dição permanente de estar à mercê dos outros, sem a mínima
iniciativa pessoal, com seus dias fracionados e ordenados se-
gundo horários ditados unicamente por exigências organiza-
cionais que – justamente enquanto tais – não podem levar em
conta o indivíduo singular e as circunstâncias particulares de
cada um: este é o esquema institucionalizante sobre o qual se
articula a vida do asilo (p.24).

As diferentes formas de relação com a doença mental são


colocadas em pauta por Basaglia (2005). Essas diferenças estão
marcadas e são dependentes da condição social do doente. Refe-
re que um esquizofrênico rico, a quem se possibilite um interna-
mento em uma clínica “particular”, geralmente não terá o curso de
sua vida interrompido e nem suas funções sociais diminuídas de
maneira irreversível, ao contrário do que se vê acontecer ao es-
quizofrênico pobre, internado à força em um hospital psiquiátrico
público. Esse fato indica que o diagnóstico da doença mental em si,
não é o único responsável pela condição de exclusão em que vivem
determinadas pessoas doentes:

Não seria mais adequado concluir que estes doentes, devido


exatamente ao fato de serem sócio-economicamente insig-
nificantes, são vítimas de uma violência original (a violência
de nosso sistema social), que os joga para fora da produção, à
margem da vida em sociedade, confinando-os nos limites dos
muros do hospital? Não seriam eles, definitivamente, o refugo,
os elementos de desordem dessa nossa sociedade que se recu-
sa a reconhecer-se em suas próprias contradições? Não seriam
simplesmente aqueles que, partindo de uma posição desfavo-
rável, já estão perdidos ao partir? (BASAGLIA, 2005, p. 108).

Nesse contexto as pessoas são relegadas a uma condição


de objetivação que se estabelece em sua relação de doente com a

- 157 -
doença e com a figura do médico enquanto representante da socie-
dade. Ao psiquiatra cabe a função social de “curar” o doente, repre-
sentada pela ação terapêutica de ajudá-lo a se adaptar ao lugar de
“objeto de violência” como a única realidade possível (BASAGLIA,
1985).
O autor propõe, nessa obra, a negação da prática clíni-
ca que reproduz em sua terapêutica a tentativa de resolução dos
conflitos sociais adaptando a eles suas vítimas. Para a negação e a
transformação da clínica representante do poder excludente, se faz
fundamental o desmonte do espaço manicomial, construindo em
seu lugar, conforme Tykanori (1996), serviços e práticas que fa-
voreçam o desenvolvimento de uma clínica que possa reconstruir
os valores que assegurem o sujeito social, como aquele capaz de
participar do processo de trocas sociais.
Desta forma, a partir do desmonte da organização ma-
nicomial e das práticas institucionalizadas neste espaço, o desafio
que se apresenta é o de preencher as lacunas deixadas pela desins-
titucionalização e construir novas possibilidades de uma clínica
ética e política, que considere o sujeito em suas várias dimensões.
O que se propõem é uma clínica psicossocial fundamen-
tada em pressupostos epistemológicos e teóricos que sustentam a
prática interdisciplinar dialógica, em uma dinâmica de rede inte-
grativa entre profissionais, serviços, usuários, familiares e comu-
nidade.
Para os profissionais, trabalhar com práticas que preten-
dem ser desinstitucionalizantes demanda um esforço de reflexão
sobre seu lugar como profissional e seu papel na sociedade. A de-
mocratização do poder na relação terapêutica requer pensar em
novas práticas baseadas na relação com o outro que está em sofri-
mento psíquico, e não com a “nosografia” da doença. Esta postura
terapêutica possibilita um encontro relacional dialógico que ultra-
passa a relação que se dá pelos papéis sociais previamente esta-
belecidos de terapeuta e paciente, permitindo a busca de sentido
para aquele que se encontra em sofrimento (BASAGLIA, 2005).
Desta forma, Basaglia (2005) propõe uma prática tera-
pêutica construída por uma relação igualitária, na qual as ações te-
rapêuticas se configurem como um constante movimento na busca
de respostas às demandas das pessoas em sofrimento psíquico e

- 158 -
que levem o terapeuta a uma postura reflexiva sobre suas ações,
em um movimento contínuo de discussão entre teoria e prática,
entendendo que as relações é que direcionam as práticas.
Neste aspecto, a teoria da ação dialógica apresentada
por Paulo Freire (1996) traz contribuições significativas quanto à
reciprocidade e a cooperação mútua que se propõe na relação te-
rapêutica. As contradições e assimetrias presentes na relação são
dialeticamente aceitas e a reciprocidade prevalece.
Na constituição da relação terapêutica, o terapeuta deixa
de se posicionar como o detentor do saber e das técnicas de inter-
venção para assumir um papel de co-construtor de sentidos para
aquele que sofre, ou seja, uma reinvenção subjetiva da problemáti-
ca que este vivencia.
A proposta da clínica psicossocial como estratégia tera-
pêutica tem como intuito possibilitar respostas à complexidade
da demanda de cuidados em saúde mental, na perspectiva da de-
sinstitucionalização. Favorecer o desenvolvimento das potenciali-
dades dos indivíduos requer uma perspectiva de melhor inserção
social, com a possibilidade de ampliação das relações e a abertura
de espaços de liberdade na sociedade em que vive.
Portanto, a clínica psicossocial é entendida como uma
prática terapêutica baseada na qualidade da relação construída
entre terapeuta e usuário. Por meio dela, busca-se uma resposta
dinâmica e complexa à demanda do usuário, baseando-se em uma
perspectiva fundamentalmente interdisciplinar, inserida no coti-
diano do usuário, em que o terapeuta investe em uma postura re-
flexiva sobre sua prática, tanto na relação institucional quanto na
relação com o usuário que sofre e a comunidade (VIEIRA FILHO,
2005).
Assim, a prática terapêutica psicossocial se propõe am-
pliada, apontando para direções múltiplas, de forma que cada
campo de conhecimento envolvido na ação possa enriquecer os
pressupostos, difundindo seu olhar específico para outros campos,
beneficiando e sendo por eles beneficiado, possibilitando a am-
pliação do conhecimento (SAMPAIO, 2012).
Essa ação interdisciplinar supõe ainda uma gestão em
que os trabalhadores vivenciam a cooperação nas relações de po-
der e interlocuções entre colegas. Essa horizontalização das rela-
ções pode possibilitar o exercício de diferentes papéis e funções

- 159 -
relativas ao contexto interventivo. Sendo a interdisciplinaridade o
exercício de um trabalho de equipe, as ações necessitam ser coor-
denadas segundo uma coerência interna interdisciplinar entre sa-
beres e fazeres (VIEIRA FILHO, 2005).
Para Sampaio (2012), a interdisciplinaridade é vivida a
partir da prática cotidiana, e pode se apresentar perpassada por
dificuldades relacionadas à rigidez dos modelos tradicionais das
práticas terapêuticas, que levam o profissional a temer a diluição
do seu “eu profissional”, de sua identidade. O que se nota aí é o
medo de perder a identidade particular em nome de uma unidade
global, ou ainda, o medo de perder o “poder” sobre as coisas, em
um olhar que vincula poder ao saber.
Portanto, superar esses obstáculos de ordem “psicoló-
gica”, de estruturas mentais construídas nos moldes das práticas
clínicas mais tradicionais, a fim de assumir uma postura dialógica,
mostra-se condição fundamental para o profissional que pretende
atuar na clínica psicossocial.

A reabilitação psicossocial e a construção da autono-


mia
A partir dos anos de 1980, no Brasil, se inicia a efetiva-
ção dos primeiros serviços de saúde mental com funcionamento
substitutivo ao modelo manicomial, tendo como característica
fundamental a construção de uma clínica de reabilitação psicosso-
cial, centrada na singularidade da subjetividade e com objetivo de
transformação social e política do lugar de desvalor do sujeito dito
“doente mental” para, como refere Tykanori (1996), uma situação
de participação efetiva no intercâmbio social daqueles que neces-
sitam de cuidados em saúde mental.
Com essa proposta, na década de 1990, criam-se os pri-
meiros Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Núcleos de
Atenção Psicossocial (NAPS), os Lares Abrigados, entre outros,
como resultado da consolidação de experiências desenvolvidas
desde os anos 80.
Para se compreender as ações terapêuticas promovidas
nesses espaços e as questões clínicas, éticas e políticas que os en-
volvem, entendemos como necessário tecer algumas considera-
ções a respeito da noção de reabilitação psicossocial e de autono-

- 160 -
mia.
A International Association of Phychosocial Rehabilitation,
em 1985 considera o conceito de reabilitação psicossocial como:

O processo de facilitar ao indivíduo com limitações, a restau-


ração, no melhor nível possível de autonomia do exercício de
suas funções na comunidade. (...) O processo enfatizaria as
partes mais sadias e a totalidade de potenciais do indivíduo,
mediante uma abordagem compreensiva e um suporte voca-
cional, residencial, social, recreativo (PITTA, 1996, p.19).

Partindo dessa compreensão, Saraceno (1996) refere


que a reabilitação deve ser considerada, não só como uma tecno-
logia, mas como uma exigência ética, que implica na construção da
política geral de serviços em saúde mental, voltada para a ideia de
reconstrução do exercício “pleno” da cidadania. Pitta (1996) refor-
ça ainda, que nas democracias consideradas emergentes a “reabi-
litação psicossocial poderá significar justamente um tratado éti-
co-estético que anime os projetos terapêuticos para alcançarmos
a utopia de uma sociedade justa com chances iguais para todos.”
(p.23-24).
Os conceitos e ideias que envolvem a reabilitação psicos-
social trazem como um de seus principais eixos a noção de autono-
mia, que em sua origem grega, se refere a capacidade de um indiví-
duo se autodeterminar, se auto realizar. “Autos” indica “si mesmo”
e “nomos” a ideia de “lei”. No dicionário Houaiss (2015) designa
a “qualidade ou estado de autônomo, independente, livre”. “Facul-
dade de se governar por si mesmo”. Ou seja, a autoconstrução e o
autogoverno.
Na esfera da saúde mental e da reabilitação psicossocial,
o conceito de autonomia ganha contornos imprecisos e é tema de
discussões quanto a sua viabilidade e potencialidades para os su-
jeitos que são destituídos de todo e qualquer valor ao receber o
rótulo de doente mental, e também, quanto as possibilidades de
sua promoção nos espaços assistenciais substitutivos ao modelo
manicomial (SANTOS; ALMEIDA; VENANCIO e DELGADO, 2000).
A condição de desvalor atribuída aos sujeitos que sofrem
de transtornos mentais, diz respeito ao campo das trocas sociais,
em que cada sujeito possui um valor prévio para realizar intercâm-
bios coletivos, o que constitui seu poder contratual (BASAGLIA,

- 161 -
1985; TYKANORI, 1996).
O poder contratual pode ser entendido como uma fer-
ramenta de interação e convívio social, ao possibilitar trocas em
dimensões fundamentais para o coletivo, como a dos bens, das
mensagens e do afeto. Os sujeitos que recebem um diagnóstico de
doença mental, tem, pressupostamente, seu poder de contratua-
lidade anulado, sendo que, “seus bens tornam-se suspeitos, suas
mensagens incompreensíveis e seus afetos desnaturados, tornan-
do praticamente impossível qualquer possibilidade de trocas”
(TYKANORI, 1996, p.55-56).
Para Tykanori (1996) a autonomia, enquanto capacidade
de gerar normas para si mesmo e para sua vida, a partir das rela-
ções que estabelece e das situações que vivencia, está relacionada
ao aumento do poder contratual do sujeito e de sua capacidade de
realizar trocas sociais. Quanto maior o número de relações esta-
belecidas, mesmo que essas se tratem de interações dependentes,
maior será a sua autonomia. “Somos mais autônomos quanto mais
dependentes de tantas mais coisas pudermos ser, pois isto amplia
as nossas possibilidades de estabelecer novas normas, novos orde-
namentos para a vida.” (p. 57).
Outros estudos partem de um conceito de autonomia
relacionado a critérios pragmáticos e apragmáticos, como a au-
tonomia para higiene, alimentação, medicação, ir e vir, trabalho e
relações sociais (SANTOS et al. 2000). No entanto, esses critérios
se mostram insuficientes para definir autonomia na clínica psicos-
social, onde a subjetividade e a individualidade dos sujeitos não
podem ser reduzidas a padrões universalizantes.
Desta forma, pensar na ampliação da autonomia dos su-
jeitos/usuários nos espaços dos serviços substitutivos, como no
CAPS ou no Serviço de Residência Terapêutica (SRT), necessita de
uma discussão sobre a autonomia possível, que leve em conside-
ração, conforme Leal (1994), “o abandono da expectativa de re-
solutividade e eficácia a partir da comparação de desempenhos,
e também a criação de outras possibilidades de vida a partir de
outros padrões de subjetivação”. (p.153).
Uma concepção possível para autonomia nos serviços
substitutivos, proposta por Santos et. al. (2000), seria representa-
da pelo momento em que o sujeito/usuário passa a conviver com
seus problemas de forma a requerer menos dispositivos assisten-

- 162 -
ciais do próprio serviço, que se constituiria então, de um espaço
intermediário, transitório, onde a equipe de saúde promoveria a
expansão do poder contratual dos sujeitos, fazendo as mediações
necessárias, e se preciso, conforme Tykanori (1996), emprestando
a eles seu próprio poder contratual.
Nessa perspectiva, um dos objetivos das ações terapêuti-
cas estaria relacionado à ampliação das relações de trocas, realiza-
das pelos sujeitos/usuários, a outros espaços, para além do serviço
substitutivo, possibilitando a expansão de sua experiência e a re-
novação de suas relações como sujeito de interações sociais.
Saraceno (1999) aponta ainda, a importância de se
atentar para a dimensão política e social do modelo de reabilita-
ção desenvolvido pelos profissionais nos serviços substitutivos,
compreendendo e priorizando, uma lógica de participação, que
se constitui de, ao invés de fortalecer o fraco para que este possa
competir com os fortes, modificar as regras do jogo de forma que
todos possam participar em uma dinâmica de trocas de interesses
e competências.
Usando as palavras de Vasconcelos (2013), a questão que
se coloca é a de “como avançar na esfera das práticas micropolí-
ticas, do nível de participação social, das relações de poder e das
representações sociais e culturais difusas relativas ao campo da
saúde mental” (p. 26). O autor defende que o processo da refor-
ma psiquiátrica no Brasil pode se fortalecer a partir de estratégias
emancipatórias de empoderamento dos sujeitos/usuários e seus
familiares, favorecendo seu acesso e participação nos movimentos
sociais, de associativismo e nos espaços de controle social, onde as
principais decisões, relacionadas as políticas de saúde mental, em
qualquer nível de gestão, passam por conselhos em que a metade
dos participantes deve ser composta por representantes da socie-
dade civil e associações ligadas ao campo.
A discussão proposta por Vasconcelos (2013) favorece o
entendimento da autonomia em um âmbito coletivo, possibilitan-
do assim o aumento do poder pessoal e do grupo de sujeitos/usuá-
rios e familiares, em suas relações interpessoais e institucionais.
Poder esse necessário, especialmente para aqueles submetidos a
relações de opressão, dominação e discriminação social.
É possível perceber a diversidade das práticas relativas
ao campo da reabilitação psicossocial, da autonomia e empodera-

- 163 -
mento dos sujeitos/usuários da rede de saúde mental e seus fa-
miliares, no contexto brasileiro (GUERRA, 2004). Entende-se essa
realidade como uma construção, a partir de um contexto histórico
e social específico do país, que marca as “interpelações autonomis-
tas e de empoderamento” (VASCONCELOS, 2013, p. 34). Portanto,
o desenvolvimento de estratégias terapêuticas psicossociais, nos
espaços substitutivos, que propiciem a expansão da autonomia de
forma articulada com a dinâmica social e cultural locais, se confi-
gura como um dos atuais desafios no campo da saúde mental.
Porém, a concretização de ações como essas, propulsoras
do empoderamento no cotidiano dos serviços, enfrenta obstáculos
dentre os quais se destacam, conforme Vasconcelos (2013), ques-
tões de natureza política e ideológica. Pensamentos e posiciona-
mentos divergentes frente a doença mental, se configuram como
peculiaridades neste campo, constituídos ao longo de sua história
de exclusão e segregação da sociedade. Influências epistemológi-
cas e institucionais que podem levar os atores envolvidos a repro-
dução de valores tradicionais e práticas sedimentadas não compa-
tíveis com a Política nacional de Saúde Mental.
É possível dizer que atualmente a reforma psiquiátrica
no Brasil encontra-se em um contexto paradoxal, por um lado,
avanços significativos se concretizaram quanto aos aspectos teóri-
co-clínicos da assistência, ao modelo de gestão dos serviços subs-
titutivos e à articulação entre as equipes de saúde, por outro lado,
na dinâmica dos serviços pode se perceber ainda a repetição de
antigas práticas que não são mais recomendadas. As mudanças na
legislação foram positivas, porém não garantem os direitos con-
quistados, necessitando de mudanças culturais a longo prazo e in-
vestimento para a construção de condições reais de convivência
com a diversidade humana (CARDOSO; OLIVEIRA e PIANI, 2016).

Caminhos atuais na construção do cuidado e da auto-


nomia em saúde mental na prática psicossocial no Brasil
Nesse contexto de coexistência de modelos assistenciais
paradoxais que parecem marcar as dinâmicas atuais e o cotidiano
de serviços contemporâneos da rede de saúde mental, torna-se im-
portante discutir caminhos que se distanciem de práticas tutelares
de exclusão e ao mesmo tempo possam garantir a não desassistên-

- 164 -
cia aos usuários que demandam por cuidados.
Cardoso et al. (2016), em um estudo sobre as práticas de
cuidados em saúde mental, realizado no estado do Pará, discute a
necessidade de os serviços de CAPS promoverem mais e melhor a
participação de todos os atores no cuidado cotidiano, na gestão e
na avaliação das práticas dos serviços, além da participação dos
usuários e familiares na construção, implantação e avaliação das
políticas de saúde mental, por meio da potencialização dos conse-
lhos locais, municipais e estaduais, como espaços de exercício da
participação política e do controle social.
Os serviços de CAPS, que tem como função ordenar a
rede de atenção psicossocial (RAPS), podem contribuir para a ex-
pansão da autonomia a partir da inserção social pela cultura, lazer
e cidadania.
Entre as ações realizadas pelos profissionais do CAPS,
Dutra et al. (2017) destacam as oficinas terapêuticas como um
meio importante de aproximação dos profissionais para com os
usuários, sua história de vida e compreensão sobre o mundo:

É por meio da oficina que o profissional tem a possibilidade de


intervir e ampliar o diálogo em relação as construções do viver
com dignidade e cidadania mesmo com o transtorno mental
ou sofrimento psíquico. [...] Corroborando a experiência da
reforma psiquiátrica italiana, as trocas, as atividades grupais e
comunitárias representam a oportunidade para o exercício da
autonomia (p. 04).

Dentre as possibilidades de atividades grupais, entende-


se a “Assembleia” como um espaço de potência para a construção
da autonomia dos usuários e familiares. Esse grupo, dentro do co-
tidiano do serviço, pode representar o lugar do exercício protegi-
do da cidadania onde é permitido expressar opiniões, reivindicar,
argumentar, votar, de modo que todos tem igualmente vez, voz e
voto para a tomada de decisões coletivas. A garantia desse espaço
de discussão e deliberação democrática é essencial para os dispo-
sitivos que propõem a expansão da autonomia e emancipação dos
indivíduos.
Nesse sentido, Resende e Costa (2017), reforçam o papel
dos profissionais de serviços substitutivos como proporcionado-

- 165 -
res de condições para os encontros, trocas e interações que poten-
cializam o empoderamento e a autonomização. Para esses autores,
além do espaço da “Assembleia”, que dependendo da forma como é
conduzida se mostra um importante exercício democrático, o pró-
prio cotidiano pode ser organizado de forma coletiva e participa-
tiva. Esses autores sugerem, como uma ação de compartilhamento
do cuidado no dia a dia, a possibilidade de as evoluções nos pron-
tuários serem realizadas de forma conjunta entre profissionais e
usuários, facilitando a conversa franca sobre os diagnósticos, me-
dicações e intervenções:

Uma construção conjunta dos prontuários – com a potencial


mobilização para trocas de informações e experiências entre
os usuários e técnicos sobre os medicamentos, as hipóteses
diagnósticas e as intervenções arquitetadas que desta constru-
ção poder-se-iam desdobrar – seria um interessante exercício
em direção à cogestão nos processos de produção de saúde,
criando possíveis condições para diferentes expressões de au-
tonomia (p. 308).

Para a construção de ações conjuntas em que o usuário


possa ter uma participação central, entende-se que a dinâmica en-
tre ele e o profissional, visando a produção do cuidado e da auto-
nomia, acontece com a presença de um vínculo estabelecido pela
convivência nos momentos e encontros que expandem os limites
do espaço do serviço. Considera-se importante, como corroboram
Dutra et al. (2017) compreender o sujeito como ser social, conhe-
cer sua história de vida, relacionar-se com sua família e realizar
articulações em seu território buscando conhecer o ambiente em
que passa a maior parte do tempo, sua rede de apoio, bem como
suas preferências e desejos.
Para olhar o sujeito/usuário como um ser social, perten-
cente a um território, ou seja, além dos sintomas de seu sofrimento
psíquico grave, “é necessário disponibilidade para conhecê-lo e en-
tender seus conflitos de maneira que num momento de crise haja a
possibilidade de prevenir uma situação extrema de agressividade”
(WILLRICH, KANTORSKI, CHIAVAGATTI, CORTES, ANTONACCI,
2013, p. 661).
A disponibilidade dos profissionais se mostra no cuidado
com as necessidades da vida do sujeito. Dutra et al. (2017) des-
crevem capacidades como: secretariar, direcionar, responsabilizar,

- 166 -
reinserir, no sentido de ajudar o sujeito na vida como cidadão, usu-
fruindo das possibilidades oferecidas pela sociedade. Para isso, ve-
rifica-se a importância da implicação dos trabalhadores de saúde
mental no contexto do território dos sujeitos buscando fortalecer
redes de apoio e descobrir recursos existentes que possam funcio-
nar como parceiros para o cuidado.
Todas as ações realizadas pelos profissionais do CAPS em
atenção às demandas psicossociais dos sujeitos/usuários, podem
ser discutidas e planejadas por meio de um Projeto Terapêutico
Singular (PTS). Este se constrói partindo de uma ampla discussão
sobre os problemas a serem enfrentados, propondo condutas tera-
pêuticas articuladas e singulares. Objetiva-se o fortalecimento da
rede de apoio e a utilização dos recursos do território do sujeito.
Dutra et al. (2017) citam exemplos, baseados na dinâmi-
ca do trabalho cotidiano no CAPS, de ações que podem estar pre-
sentes no PTS e que podem variar conforme a singularidade da
demanda de cada sujeito/usuário:

[...] cuidados com o corpo, cuidados com a medicação, peque-


nos procedimentos, técnica de referência, discussão de caso,
atendimento à família, ambiência, atendimento ao sujeito em
crise, oficinas terapêuticas individuais ou em grupos, apoio
matricial, interconsultas e visitas domiciliares, buscar recur-
sos e articular com o território, acolhimento intra e extra CAPS,
acompanhante terapêutico, atendimentos para desinstitucio-
nalização, atividades para o empoderamento dos usuários, ati-
vidades para a cidadania, passeios fora do território, suporte
às redes de apoio (p. 03).

Neste sentido, o PTS pode torna-se uma das estratégias


centrais para a condução do cuidado e promoção da autonomia
quando utilizado de forma reflexiva, dinâmica e dialógica, com a
elaboração de metas e não apenas como uma mera lista ou crono-
grama de atividades. Grigolo e Pappiani (2014) referem algumas
limitações no uso do PTS ao refletirem sobre uma prática que pode
ser institucionalizante quando o plano terapêutico se resume a
“encher” o usuário de atividades dentro do serviço, sem uma arti-
culação com a comunidade e com os recursos do território, ressal-
tando a necessidade de um discurso e de práticas prioritariamente
extramuros.

- 167 -
O profissional da equipe interdisciplinar do CAPS res-
ponsável pela articulação da proposta terapêutica e por construir,
juntamente com o sujeito/usuário o PTS, é chamado de técnico
de referência (TR). Propõem-se que este seja o profissional cujo
vínculo com o sujeito/usuário favoreça o processo terapêutico ao
assumir um papel de mediador entre os demais profissionais, a
dinâmica da rede de serviços e as demandas do sujeito ao qual o
cuidado se destina, em uma espécie de gerenciamento do PTS, pro-
movendo sua discussão, elaboração e avaliação.
Quanto ao papel desempenhado pelo TR, Resende e Cos-
ta (2017) entendem tratar-se de um trabalho pautado “no vínculo
e no acompanhamento cotidiano do usuário no serviço e princi-
palmente no território, nos espaços onde sua vida acontece” (p.
302), destacando a importância da convivência entre profissional
e usuário para o desenvolvimento da confiança deste último na
disponibilidade do TR em ajudá-lo a resolver questões concretas
de sua vida.
Desta forma, o TR pode aproximar-se mais de um certo
número de usuários para acompanhá-los de modo singular, assis-
tindo e reavaliando o seu PTS. A dinâmica de funcionamento com a
utilização do TR se baseia nos princípios da interdisciplinaridade
e do vínculo entre profissionais e usuários, que se fundamentam
na proposta da clínica ampliada, por meio do compromisso com a
singularidade do sujeito, da articulação com a família, o trabalho
e a cultura, ou seja, seu território de vida (GRIGOLO e PAPPIANI,
2014).
A partir do encontro entre profissional e usuário “trilha-
se o caminho por meio do conhecer, intervir, continuar, estimular
e mediar à autonomia dos sujeitos” (DUTRA et al., 2017, p. 05). No
entanto, para estes autores, a produção de cuidados dessa nature-
za só acontece a partir do afeto. O cuidado afetivo permite ao pro-
fissional colocar-se como pessoa na relação se utilizando de sua
disponibilidade interna para o envolvimento, a vinculação, ou seja,
o implicar-se.
Um estudo de Oliveira, Melo e Vieira-Silva (2017), que
analisa práticas psicossociais com base nas noções descritas por
Nise da Silveira como pilares da reabilitação, refere que a afetivida-
de na relação entre profissional e sujeito pode ter uma função tan-
to catalisadora quanto inibidora, criando as condições necessárias

- 168 -
para que pessoas em um momento de ruptura psíquica possam
almejar uma reorganização.
A criação de um ambiente acolhedor juntamente com o
vínculo afetivo são condições básicas na proposta de Nise da Sil-
veira, que parte do princípio da estreita relação entre espaço coti-
diano e espaço imaginário, entre mundo externo e mundo interno.
(SILVEIRA, 1981 apud OLIVEIRA et al., 2017).
No espaço de convivência, a disposição genuína do pro-
fissional de estar com o sujeito em sofrimento, “em uma postura de
respeito à alteridade, visando uma convivência fraterna, potencia-
liza o estabelecimento de relações horizontais, e acima de tudo afe-
tivas” (RESENDE e COSTA, 2017 p. 261) em que o mais importante
não é o que se diz, mas o ambiente de acolhimento proporcionado,
que ao se repetir no cotidiano caracteriza uma dimensão de conti-
nuidade do cuidado.
Portanto, nesse ambiente de convivência se constroem
relações terapêuticas que visam a emancipação e a continuidade
do cuidado, entendendo a importância de refletir sobre os desafios
para a consolidação do paradigma da atenção psicossocial, sendo
que, por vezes, o desejo de construir um cuidado sob medida pode
se configurar em excesso, caracterizando uma prática tutelar e ex-
cludente, ou ainda, a falta de cuidado representada pela desassis-
tência, marcando a necessidade da presença constante da dialética
entre implicação e reserva.
Ao analisar a literatura atual sobre o desenvolvimento
das ações de cuidado nas práticas cotidianas dos serviços da RAPS
é possível concluir que as experiências se mostram atreladas a um
contexto histórico, social e cultural do local em que acontecem,
apontando para a necessidade de um maior número de estudos
que possibilitem a ampliação dos conhecimentos a cerca dos de-
safios, possibilidades e modos de promoção da autonomia no dia a
dia dos espaços de atenção psicossocial e na prática cotidiana dos
serviços substitutivos em suas realidades locais.

- 169 -
Considerações finais
A construção da clínica psicossocial tem como um de
seus elementos fundamentais o reconhecimento de lacunas exis-
tentes no paradigma biomédico de entendimento da doença por
seu enfoque biologicista, compatível com os métodos de investiga-
ção científica tradicionais, em que os fenômenos complexos, como
os processos de adoecimento, podem ser reduzidos, mensurados
e controlados, traduzindo a noção de saúde como um estado de
ausência de doença.
Esse paradigma comporta a construção de uma clínica
chamada por Campos (2002) de “clínica totalizante”, em que o foco
central está na reparação das alterações biológicas causadas pela
doença, com uma prática de generalização dos resultados, sem le-
var em consideração a dinâmica singular de cada sujeito, que passa
a assumir a identidade de doente.
As discussões sobre os limites dessa prática e das pos-
sibilidades de ampliação de seus conceitos ganharam força com
a definição da OMS (1946) sobre a concepção de saúde como
um “estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não
somente ausência de enfermidade ou invalidez”, abrindo espaço
para a construção de novos paradigmas incluindo os aspectos psi-
cossociais como elementos constituintes das dinâmicas de saúde
e doença, e possibilitando a elaboração de políticas públicas de
saúde mais abrangentes, em que o Estado passa a responsabilizar-
se pela promoção da saúde e de condições de vida adequadas à
população.
Na realidade brasileira, as décadas de 1970 e 1980 foram
marcadas por movimentos sociais que militaram pela redemocra-
tização do país, entre os quais tiveram destaque a Reforma Sanitá-
ria e a Reforma Psiquiátrica, por suas contribuições no processo
de construção das políticas de saúde, em seus princípios funda-
mentais que remetem a igualdade de direitos e a integralidade das
ações, permitindo a reformulação das práticas para a estruturação
de uma clínica com centralidade nas necessidades e singularida-
des de cada sujeito, chamada por Campos (2002) de “clínica do
sujeito”.
A literatura atual sobre esse tema nos revela a proposi-
ção de uma prática de cuidado implicada, em que a convivência e

- 170 -
a afetividade estejam presentes na relação entre o profissional de
saúde mental e o sujeito/usuário. Visando a articulação de redes
de apoio e a mobilização de recursos no território de vida deste,
que possam funcionar como parceiros potentes no cuidado, e ao
mesmo tempo, promover a autonomia dos sujeitos por meio de sua
participação nos serviços e nos espaços de decisão e de controle
social das políticas públicas de saúde mental.
O aprimoramento das discussões relativas ao rumo das
práticas contemporâneas nos serviços substitutivos e seus resulta-
dos, verifica-se a necessidade da ampliação do quantitativo de es-
tudos científicos, com metodologias de investigação que abordem
as ações cotidianas dos espaços de reabilitação psicossocial, como
a etnografia, a observação participante, além de relatos de expe-
riência que discutam a produção emancipatória no campo da saú-
de mental a partir da reforma psiquiátrica (LIMA e BRASIL, 2014),
especialmente aquelas que considerem o contexto histórico, social
e cultural do local em que essas práticas se constroem.

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- 174 -
Práticas emergentes em psicologia:
uma experiência de intervenção
com slackline e tecido circense

Consuelena Lopes Leitão


Igor Brelaz

Introdução
O projeto de extensão Maria Jiquitaia iniciou suas ativi-
dades com a equipe de uma Policlínica do SUS e estagiários do Cen-
tro Universitário do Norte (UNINORTE), em 2012, quando traba-
lhava como psicóloga da Secretária Municipal de Saúde (SEMSA).
A partir de meu ingresso na Universidade Federal do Amazonas
o projeto vai se estruturando e em conjunto com Igor Brelaz par-
ticipante (idealizador e coordenador) do projeto Mexa-se: estilo
de viver que tem intuito de promover qualidade de vida, saúde e
bem-estar através de atividades que auxiliam no desenvolvimento
físico, mental, social, espiritual dos participantes. Os projetos em
conjunto buscam despertar estratégias que valorizam e incenti-
vam este sujeito no intuito de motiva-lo a ser um ser humano que
se perceba e seja protagonista de sua própria história de vida. Jun-
tamente com os estagiários do UNINORTE e UFAM, o projeto vai
amadurecendo e as experiências com os usuários do serviço nos
fizeram identificar uma série de benefícios, dentro das ações de in-
tervenção, que uniram a psicologia a algumas atividades corporais.
Inicialmente o projeto trabalhava com atendimento psi-
cológico individual e em grupo oferecido para crianças, jovens e
mulheres em situação de violência sexual e doméstica. Posterior-
mente foi sendo ampliado para atendimento de usuários de outras
demandas de saúde.
As atividades desenvolvidas, neste contexto, envolvem
intervenção psicológica com um plano singular de atendimento
que é negociado com o usuário do serviço e abrange uma série de
ações como: pintura em tela, testes psicológicos, projeto de vida,

- 175 -
ações de economia solidária, oficinas de autoestima dentre ou-
tras intervenções, que muitas vezes, são de iniciativa dos próprios
usuários do serviço. Neste artigo nos deteremos especificamente
ao slackline e ao tecido circense, pois, estas atividades se caracteri-
zam como práticas emergentes, porque são realizadas juntamente
com intervenções psicológicas em momentos de atividades gru-
pais com os usuários, contudo não encontramos até o momento,
nenhuma atividade similar em artigos consultados nas platafor-
mas de pesquisa de artigos científicos.
Deste modo, neste capítulo, serão abordados os seguin-
tes temas: Definição e surgimento do slackline e do tecido circense,
conceito e história da psicomotricidade e sua relação com o corpo
e as experiências de vida, bem como, com os afetos, os sentimentos
e as emoções. Aqui, o atendimento psicossocial partirá da ideia de
uma clínica ampliada em saúde que se estende para os espaços da
comunidade. Utilizaremos algumas teorias da psicologia para ex-
plicar as bases da intervenção e finalizaremos com a metodologia
de trabalho e seus benefícios para os participantes da atividade.

Slackline: definição e trajetória


As pesquisas sobre esta modalidade esportiva relacio-
nada com a psicologia ainda são escassas, mas, de acordo com a
literatura levantada no campo da educação física, observamos que
os autores concordam e relatam suas experiências com relação
à prática e ao benefício do  slackline  em vários espaços como no
campo do esporte, da educação e de ações sociais com crianças e
adolescentes.
De acordo com Gibbonbrasil (2017), a expressão slackli-
ne, traduzida ao pé da letra significa “linha de folga” ou “linha folga-
da”. Pois, Slack = Folga, Calmaria e Line = Linha, uma tradução mais
aproximada para a prática no português: Fita de Equilíbrio, o que
nos faz lembrar a “corda bamba” do circo.
Ainda segundo com Gibbonbrasil (2017), esta tradução,
insinua uma associação do esporte à milenar prática circense: o
equilibrismo. A origem do slackline remonta ao show dos equili-
bristas no picadeiro, todavia, o esporte evoluiu e seguiu o seu pró-
prio caminho, criando sua identidade e, por consequência, uma
considerável distância da arte do circo, em que as travessias são

- 176 -
realizadas sobre um cabo de aço, ao invés de uma fita – apenas
para citar um indício dentre várias distinções.
 Segundo Cardozo e Costa (2010), o slackline surgiu na
década de 1980 com os escaladores que esticavam fitas de esca-
lada entre árvores nos momentos de descanso das ascensões. Os
mesmos autores também afirmam que os escaladores Adam Gro-
sowsky e Jeff Ellington na Califórnia em 1983 ancoravam suas fi-
tas horizontalmente e que em 1985, Scott Balcom realizou uma
travessia nas alturas do que se tornou a famosa linha de slackline.
Destaca-se também a existência de um parque carliforniano, Yose-
mite Valley. Segundo estudiosos do esporte, a beleza e a paisagem
do parque eram convidativas para a prática de esportes radicais.
Desde modo, muitas pessoas interessadas se profissionalizaram
a partir do alpinismo e de diversas atividades de montanha. Nos
momentos de escalada, nas oportunidades em que o mau tempo
não os deixava enfrentar as subidas, os alpinistas aperfeiçoavam-
se com as técnicas de equilíbrio e de manobras sobre as cordas que
utilizavam para escalar.
Poli, Silva e Pereira (2012) destacam que os resultados
são positivos por ser um esporte diferente e ligado a natureza,
atraindo cada vez mais a atenção dos participantes, ou seja, os alu-
nos e outros tipos de demandas das quais trataremos aqui, como
usuários atendidos na saúde no campo do Sistema Único de Saúde
(SUS).
Betrán e Betrán (2006) consideram o slackline uma Ativi-
dade de Aventura rica em elementos educacionais e sociais de in-
tegração, e que se caracterizam por atividades desafiadoras e com
índices de motivação elevados. Deste modo, esta prática tem se
intensificado no Brasil e vem ganhando muitos adeptos no campo
das práticas esportivas além de abrir possibilidades de interven-
ções em outros campos.

O tecido circense: definição e história


de acordo Caça e Bortoleto (2006), o tecido é uma mo-
dalidade aérea circense, também denominada tecido acrobático,
tecido aéreo ou tecido circense. Ao contrário de outras centenárias
modalidades do circo, como o malabares, as acrobacias e o trapé-
zio, o tecido apresentou seu desenvolvimento nos últimos anos.

- 177 -
  Desiderio (2003), ao enfatizar a construção histórica
desta prática, traz um relato expressivo da historiadora de circo,
Alice Viveiro de Castro, no qual relata que quando esteve no festi-
val Internacional de Acrobacias de Wuqia (China), em 1999, foram
expostos alguns desenhos orientais apresentados por uma pesqui-
sadora da escola de Circo de Beijin, com performances em gran-
des panos nas festividades dos imperadores da China por volta do
ano de 600 d.C., utilizando a seda como tecido da época. Segundo
Desiderio (2003), no ocidente, um dos relatos mais antigos é uma
experiência nas décadas de 1920 e 1930, em Berlim (Alemanha),
por alguns artistas que realizaram movimentos com as cortinas de
um cabaré.
 Ainda segundo esses autores não se sabe ao certo quem
foi o criador desta modalidade, mas acredita-se que o tecido é uma
extensão do trabalho de corda lisa, uma modalidade que antiga-
mente era de sisal e atualmente é de algodão (esta última confere
maior flexibilidade e conforto durante as travas). Por sua vez, pa-
rece que as performances na corda tenham surgido das evoluções
realizadas pelos artistas quando subiam ao trapézio, ou até mesmo
durante a instalação (montagem) do circo, na qual se utilizam as
cordas para subir e descer das alturas.
  Desiderio (2003) destaca que o nascimento do tecido
acrobático ocorreu na França e o tecido circense foi sendo apri-
morado com diferentes materiais (cordas, tecidos, correntes, etc.),
realizadas pelo francês Gèrard Fasoli nos anos de 1980. Neste pe-
ríodo, chegou-se à utilização de um material bastante resistente
no comprimento e, ao mesmo tempo, com elasticidade na largu-
ra, o que lhe confere grande plasticidade e leveza. Este moderno
material denomina-se liganete. Possivelmente existem outras ligas
sintéticas que podem ser utilizadas para esta prática. No entanto, o
mais importante é que este material suporte o peso do praticante
multiplicado até quatro vezes (aproximadamente).
  Ainda segundo este autor, a inexistência de regras e a
necessidade de inovar e criar, típicas das artes cênicas, fez sur-
gir diferentes formas de prática do tecido na modernidade. Deste
modo, a forma de fixar (amarrar) o tecido, assim como a altura,
pode variar, e estes fatores influenciarão os tipos de travas (ou
chaves), truques e quedas que poderão ser executados. Geralmen-

- 178 -
te, o tecido é fixado acima dos 4 metros de altura (até 12 aprox.),
mas vale ressaltar que um trabalho de iniciação nesta modalidade
pode e deve ser realizado a poucos metros de altura, o que oferece
maior segurança para o aprendiz. Gradativamente, e à medida que
o praticante for se desenvolvendo e adquirindo qualidades físicas,
técnicas e atitudinais (confiança, etc.), a altura das evoluções pode
ser implementada.
De acordo com uma pesquisa realizada por Batista
(2003), a prática do tecido aparece em diferentes contextos (espa-
ços), não apenas debaixo da lona do Circo tradicional, mas também
em academias, teatros, escolas, universidades, boates, clubes, den-
tre outros, e também com distintos objetivos. Bortoleto e Macha-
do (2003) distinguem os três principais âmbitos de aplicação das
atividades circenses: recreativo, educativo e profissional. Podemos
dizer que o tecido circense já é praticado nestas três perspectivas
e seus praticantes, geralmente, são pessoas que se apaixonam pela
beleza e plasticidade desta modalidade, independentemente do
objetivo de transformar-se num artista. 
Dos aparelhos aéreos mais tradicionais das artes circen-
ses (trapézios e suas variações, lira, bambu, corda indiana, argola
olímpica etc.), o tecido é um dos aparelhos de mais fácil aprendiza-
gem, sobretudo porque o material se molda ao corpo e se adapta
de acordo com as características do praticante.
Deste modo, a partir de exercícios de equilíbrio, flexibili-
dade e força, estas modalidades estão sendo desenvolvidas dentro
do campo das intervenções psicológicas e têm surtido resultados
positivos para aqueles que passam pela experiência. A partir do
campo da psicomotricidade, a função motora, o desenvolvimento
intelectual e o desenvolvimento afetivo, intimamente relacionados
no indivíduo são desenvolvidos para a superação de vários obstá-
culos em seus projetos de vida.

A psicomotricidade: contextualização e conceitos


Historicamente o termo “psicomotricidade” aparece a
partir do discurso médico, mais precisamente neurológico, no iní-
cio do século XIX, quando foi necessário nomear as zonas do córtex
cerebral situadas mais além das regiões motoras. Com o desenvol-
vimento e as descobertas da neurofisiologia, começa a constatar-

- 179 -
se que há diferentes disfunções graves sem que o cérebro esteja
lesionado ou sem que a lesão esteja claramente localizada Associa-
ção Brasileira de Psicomotricidade ABP (2018). São descobertos
distúrbios da atividade gestual, da atividade práxica. Portanto, o
“esquema anátomo-clínico” que determinava para cada sintoma
sua correspondente lesão focal já não podia explicar alguns fenô-
menos patológicos. É, justamente, a partir da necessidade médica
de encontrar uma área que explique certos fenômenos clínicos que
se nomeia, pela primeira vez, o termo psicomotricidade, no ano de
1870. As primeiras pesquisas que dão origem ao campo psicomo-
tor correspondem a um enfoque eminentemente neurológico ABP
(2003).
Para a ABP (2018) a Psicomotricidade baseia-se em uma
concepção unificada da pessoa, que inclui as interações cognitivas,
sensório-motoras e psíquicas na compreensão das capacidades de
ser e de expressar-se, a partir do movimento, em um contexto psi-
cossocial. Ela se constitui por um conjunto de conhecimentos psi-
cológicos, fisiológicos, antropológicos e relacionais que permitem,
utilizar o corpo como mediador, abordar o ato motor humano com
o intento de favorecer a integração deste sujeito consigo e com o
mundo dos objetos e outros sujeitos.
De acordo com Vayer (1984) psicomotricidade é a edu-
cação da integridade do ser, através do seu corpo. A psicomotrici-
dade conceitua-se como ciência da saúde e da educação, com obje-
tivo específico de redescobrir os valores psicomotores, cognitivos,
afetivos e experiências compreendidas pelo corpo anatômico, de
forma segura e consciente. Loureiro (2009), destaca que psicomo-
tricidade é a otimização corporal dos potenciais neuro, psico-cog-
nitivo funcionais, sujeitos às leis de desenvolvimento e maturação,
manifestadas pela dimensão simbólica corporal própria, original e
especial do ser humano.
Para Fonseca (1985), a psicomotricidade visa privilegiar
a qualidade da relação afetiva, a mediatização, a disponibilidade
tônica, a segurança gravitacional e o controle postural, a noção do
corpo, sua lateralização e direcionalidade e a planificação práxi-
ca, enquanto componentes essenciais e globais da aprendizagem
e do seu ato mental concomitante. Nela o corpo e a motricidade
são abordados como unidade e totalidade do ser. O seu enfoque

- 180 -
é, portanto, psicossomático, psicocognitivo, psiquiátrico, somatoa-
nalítico, psiconeurológico e psicoterapêutico.
A partir da ideia de planificação ou organização práxica
de Vitor da Fonseca que envolve os movimentos de todo o corpo
e que põe em jogo a organização da atividade consciente e a sua
programação, regulação e verificação, buscamos entender o sig-
nificado de práxico desenvolvido por Carvalho (2011). Para este
autor o ser humano práxico é aquele que faz movimentar a história
com sentido e com significado; é ser humano que faz cultura, é ser
humano ativo no exercício da criação, da expressão e da busca da
liberdade; é ser humano que se revela crítico na tomada de decisão
e de oposição; é ser humano que resolve problemas; é ser humano
ético e solidário; ou seja, conforme Delors (1998) é ser humano
que sabe ser, sabe estar, sabe fazer, sabe comunicar, sabe e faz pul-
sar a vida.
Assim, com estes exercícios de intervenção psicológica e
psicomotricidade que envolvem o slackline e o tecido circense, bus-
ca-se desenvolver o protagonismo dos usuários atendidos neste
projeto de extensão, para o enfretamento dos problemas e obstá-
culos cotidianos da vida no processo de desenvolvimento humano.
 A partir desta visão, entende-se que uma das formas
de desenvolvimento humano em qualquer fase da vida envolve a
função motora, o desenvolvimento intelectual e o desenvolvimen-
to afetivo e que estes processos estão intimamente interligados
no indivíduo. Por esta via de compreensão, a psicomotricidade
quer justamente destacar a relação existente entre a motricidade,
a mente e a afetividade, facilitando a abordagem global dos indi-
víduos. Sejam eles crianças, adolescentes ou adultos por meio de
uma técnica. Meur e Stales (1989), tratam do tema de forma mui-
to aproximada para falar apenas do desenvolvimento infantil e a
aprendizagem.

O afeto, os sentimentos e as emoções: da atividade ao


protagonismo no atendimento psicossocial em saúde
Para Robbins, Judge e Sobral (2010), afeto, emoção e
sentimentos são frequentemente confundidos. O Afeto é um termo
mais genérico, que abrange as sensações experimentadas, englo-
bando tanto as emoções quanto os sentimentos; já a emoção é a

- 181 -
expressão afetiva intensa dirigida a alguém ou alguma coisa, sendo
na maioria das vezes de curta duração e geralmente acompanhada
de reações fisiológicas como o choro, tremor nas pernas, taquicar-
dia e sudorese. Os sentimentos, por sua vez, são estados afetivos
menos intensos e mais duráveis do que as emoções. Também po-
dem ser chamados de estados de ânimo ou humores. Os sentimen-
tos não necessitam, em regra, de um estímulo contextual para se
manifestar, são de natureza cognitiva e sofrem interpretação sub-
jetiva de cada situação. 
Podemos afirmar que o ser humano é um ser essencial-
mente emocional e que os aspectos da emoção são os que mais
norteiam a nossa vida. A emoção é o primeiro elo de comunica-
ção do indivíduo com o mundo externo, e dela deriva a afetividade.
Sendo a afetividade considerada, hoje, uma das mais importantes
facetas da vida do ser humano, devemos compreendê-la e atribuir-
lhe a devida importância, especialmente em trabalho educativo
com crianças. Nesse sentido, podemos atribuir grande importân-
cia à teoria de Henri Wallon (1974), que considera o homem como
um ser determinado física e socialmente, sujeito tanto às disposi-
ções internas quanto às situações exteriores.
Para tanto, propõe a Psicogênese da Pessoa Completa, o
estudo integrado do desenvolvimento nos vários campos funcio-
nais nos quais se distribui a atividade infantil: afetivo, motor e cog-
nitivo. Wallon considera o sujeito como “geneticamente social” e
estudou a criança contextualizada, nas relações com o meio.
Mas como pensar o trabalho da afetividade no campo
saúde e, sobretudo, no campo da saúde mental? Existem várias
respostas para esta pergunta. A psicologia, o serviço social, os es-
tudos das intervenções multidisciplinares, vem repensando ações
de saúde e assistência social no campo das políticas públicas. O
atendimento ambulatorial tem sido questionado e algumas práti-
cas inovadoras estão surgindo no campo da clínica ampliada e da
psicologia comunitária.
O Ministério da saúde, no Brasil tem estimulado inter-
venções de acordo a proposta da Clínica Ampliada que busca se
construir numa ferramenta de articulação e inclusão dos diferen-
tes enfoques e disciplinas. De acordo com essa visão, a Clínica Am-
pliada reconhece que, em um dado momento e situação singular,

- 182 -
pode existir uma predominância, uma escolha, ou a emergência de
um enfoque ou de um tema, sem que isso signifique a negação de
outros enfoques e possibilidades de ação. Outro aspecto diz res-
peito à urgente necessidade de compartilhamento com os usuários
dos diagnósticos e condutas em saúde, tanto individual quanto co-
letivamente. Quanto mais longo for o seguimento do tratamento
e maior a necessidade de participação e adesão do sujeito no seu
projeto terapêutico, maior será o desafio de lidar com o usuário en-
quanto sujeito, buscando sua participação e autonomia nesse pro-
jeto. O Projeto Terapêutico Singular é um conjunto de propostas
e condutas terapêuticas articuladas, para um sujeito individual ou
coletivo, resultado da discussão coletiva de uma equipe interdisci-
plinar, com apoio matricial se necessário. Geralmente é dedicado a
situações mais complexas envolvendo aspectos como a mediação
das emoções, por exemplo, o que mobiliza o indivíduo para a ade-
são a este plano. No fundo, é uma variação da discussão de “caso
clínico”. Foi bastante desenvolvido em espaços de atenção à saúde
mental como forma de propiciar uma atuação integrada da equipe
valorizando outros aspectos além do diagnóstico psiquiátrico e da
medicação no tratamento dos usuários.
No campo da Psicologia Social, Lane e Sawaia (2006),
destacam em seu artigo a mediação emocional na constituição
do Psiquismo Humano que, Heller (1980) ajuda a entender com
maior clareza o caráter social das emoções. Trabalhar essas emo-
ções no processo de atendimento psicológico e adesão das pessoas
a qualquer atividade é fundamental. Além da compreensão destes
sentimentos nos processos de intervenção. Lane enfatiza:

Ela denomina de afetos – é a distinção entre estas e os senti-


mentos, os quais seriam mais duradouros, obedecendo a um
jogo de figura – fundo, até aqueles que incorporariam na per-
sonalidade do indivíduo. Ou seja, as emoções, dado o seu cará-
ter comunicativo, o empírico, seriam sempre “figuras” enquan-
to os sentimentos mais duradouros seriam ora “figura” ora
“fundo”. Um exemplo: A tristeza como emoção eu constato na
expressão facial, pelas lágrimas. A tristeza como sentimento,
ela se oculta no “fundo“, enquanto a pessoa desempenha suas
atividades cotidianas e é levada a se preocupar com outros de-
talhes de sua vida. Porém se eu lhe perguntar “Como vai você?”
ou “Como você está?” certamente a tristeza se tornará “figura”
e ela me responderá triste. (LANE; SAWAIA, 2006, p.57).

- 183 -
Lane e Sawaia (2006) destacam neste artigo a importân-
cia da comunicação, da fala e da linguagem como instrumentos de
intervenção no campo da psicologia e destacam que a emoção, a
linguagem e o pensamento são mediações que levam à ação, por-
tanto somos as atividades que desenvolvemos, somos a consciên-
cia que reflete o mundo e somos a afetividade de quem ama e odeia
este mundo. Com esta bagagem nos identificamos e somos identifi-
cados por aqueles que nos cercam.
Deste modo através destas técnicas de intervenção
buscamos mobilizar afetos, sentimentos e emoções no campo da
psicomotricidade. O trabalho é desenvolvido para dar novos sig-
nificados e criar novas formas de olhar e solucionar problemas e
obstáculos da vida cotidiana, dentro do projeto de vida, de cada
pessoa atendida. O atendimento realizado com slackline e tecido
circense é considerando aqui, como uma clínica ampliada com in-
tervenção psicossocial. No campo da psicologia social comunitária,
as pessoas das comunidades são os principais protagonistas dos
seus próprios saberes:

O método psicossocial crê que as pessoas de uma determinada


comunidade são os principais protagonistas de seus saberes,
de sua produção, de suas vicissitudes e da criação de instru-
mentos capazes de auxiliar o desenvolvimento de sua reali-
dade. Seus objetivos visam a busca de um novo conjunto de
dispositivos, esquemas e estratégias cujo centro é o cotidiano
da comunidade envolvida no processo de planejamento parti-
cipativo. (PEREIRA, 2001, p.171)

O atendimento psicossocial ocorre neste tipo de inter-


venção para mediar afetos, sentimentos e emoções através da
psicomotricidade, das palavras e da linguagem. Utilizamos novas
formas de realizar atendimentos em saúde na comunidade e estes
instrumentos (slackline e tecido circense) têm se mostrado como o
caminho para ação e desenvolvimento do protagonismo dos usuá-
rios do serviço que é oferecido nesta unidade de saúde por este
projeto de extensão. Busca-se neste sentido, que todos os integran-
tes inclusive a equipe de psicologia formada por psicólogos e esta-
giários sejam participativos e atuem em conjunto.
Para Pereira (2001) o termo participativo não ocorre nos
processos psicossociais por acaso, para o êxito desta metodologia

- 184 -
é de fundamental importância a maior participação possível de
pessoas que trabalham e moram na comunidade, representantes
de instituições privadas, governo local, indústria, comércio local e
o meio acadêmico. O objetivo é buscar soluções de forma compar-
tilhada entre os que vivem o problema, os que querem resolvê-lo
e os que podem colaborar para isso. Outro ponto importante é a
participação e a busca da ampliação da consciência crítica de todos
os envolvidos na intervenção que une a teoria e a prática e também
os que atendem no projeto e os que são atendidos, assim, todos
passam por processo de desenvolvimento, aprendizagem e cresci-
mento pessoal sem elitismo.

O modelo psicossocial tem como premissa básica o desenvol-


vimento da participação, da organização e da consciência po-
lítica do cidadão. Ao ampliar a consciência crítica as pessoas
da comunidade convertem-se em promotores de uma investi-
gação participativa e/ou planejamento participativo visando a
superação do investigador acadêmico expert e elitista, dicoto-
mizado entre o saber teórico e o prático (PEREIRA, 2001, p.
171).

A psicologia, neste tipo de intervenção, sai do setting te-


rapêutico tradicional e mergulha na comunidade, nos espaços das
praças, das escolas, das ruas, dos bairros, nas unidades de saúde. O
atendimento psicossocial deve acontecer nas unidades de saúde e
se faz importante que seja realizado de forma inovadora, acolhedo-
ra, participativa e preventiva, modificando as estruturas das uni-
dades e as estruturas de atendimento que muitas vezes são rígidas
e burocráticas e não propiciam a aproximação das pessoas e da
comunidade.
Outro ponto importante é a participação da academia e
a formação de novos profissionais com uma visão mais flexível e
mais aproximada das novas demandas de atendimento. Com esse
tipo de experiência, a universidade ultrapassa seus muros com as
ações comunitárias. Portanto, o ganho não é somente individual
onde cada um fortalece seus afetos, emoções e sentimentos para o
enfretamento dos problemas cotidianos, mas, é coletivo, ganham
as pessoas e as instituições. Todos os participantes aprendem e fa-
zem trocas de experiência e de crescimento.

- 185 -
Metodologia de trabalho
No tipo de intervenção descrita neste trabalho, o slackli-
ne é uma espécie de fita ou corda, com aproximadamente cinco
metros, de comprimento que é estirada, de um ponto a outro, a um
metro de altura do chão. A proposta é que a pessoa atravesse este
percurso de cinco metros como auxilio de outras pessoas e que em
alguns momentos se equilibre sozinha. O trabalho de intervenção
psicológica, neste tipo de atendimento, tem várias bases teóricas,
mas, uma das mais importantes é a psicodramática, focada na teo-
ria da espontaneidade do “aqui e agora” de Jacob Levi Moreno.
De acordo Moreno (1990) a ideia não é de adequar, e não
tem o sentido de adaptado e nem de ajustado, mas sim de integra-
do. Dar respostas de um modo integrado significa perceber clara-
mente a si mesmo e a situação no aqui-agora, procurando transfor-
mar seus aspectos insatisfatórios.

A espontaneidade, segundo as pesquisas morenianas, amplia


o estado de consciência dos indivíduos, levando-os a um esta-
do de co-consciente grupal, que só é possível a partir de rela-
ções télicas. Moreno propõe que com a espontaneidade todos
os fenômenos psíquicos são novos e flexíveis, porque ela lhes
confere a qualidade de momentaneidade. Mesmo reconhecen-
do a possibilidade de estruturas psíquicas estereotipadas, ele
aponta a fluidez repetida do “fator e”, o que leva à existência
criadora. “Por outras palavras, é devido à operação de um fa-
tor ‘e’ que pode ter lugar uma mudança na situação e que uma
novidade é percebida pelo sujeito. Uma teoria do momento é
inseparável de uma teoria da espontaneidade. Numa teoria do
comportamento e da motivação humana, o lugar central deve
ser dado à espontaneidade (ALMEIDA, 1990, p.12).

Importa ressaltar, neste processo, que quem atende e


quem é atendido sobe na fita e passa pela experiência de equilí-
brio e desequilíbrio, onde surgem muitas respostas espontâneas.
Cada pessoa que sobe na fita recebe o apoio de dois egos auxilia-
res, que apoiam as mãos (direita e esquerda) da pessoa que está se
equilibrando. Com a repetição das travessias nesta fita, os afetos,
as emoções e os sentimentos vão sendo trabalhados. A proposta
e de desenvolvimento de uma consciência crítica de sua condição
corporal, psíquica e social, e também de desenvolvimento do pro-
tagonismo, que são trabalhados neste momento.

- 186 -
É no palco psicodramático que se desvela a trama enredada
pelo protagonista com o objetivo de restituir a autoria criativa
e espontânea de sua existência, tendo para isso, os egos
auxiliares como coadjuvantes. Moreno fala: “As funções do
ego auxiliar são triplas: a função de ator, retratando papéis
requeridos pelo mundo do paciente; a função de agente tera-
pêutico, guindo o sujeito; e a função de investigador social (Al-
meida, p.12, 1990).

Para Moreno (1973), o ego auxiliar é visto como um in-


vestigador social, funciona não como um observador, mas como
um agente atuante. A metodologia do tecido circense, nesta inter-
venção, envolve não somente o equilíbrio, a força, e a persistência,
trabalhadas no slackline. O tecido tem o comprimento de 10 me-
tros e fica com sua base em forma de casulo a aproximadamente
um metro e meio do chão. Na base do casulo, se constrói uma espé-
cie de escada (parecida com uma corrente de linha de crochê) para
que a pessoa possa subir até o casulo. O início e o encerramento
dos movimentos corporais, no tecido, são mais leves e confortáveis
e no decorrer das intervenções, os movimentos corporais, de cada
pessoa que passa pela experiência, vão evoluindo para posições
mais complexas. No tecido circense, o número de egos auxiliares
pode aumentar de acordo com a altura e peso da pessoa que sobe
no momento da intervenção.
O instrutor com o apoio dos psicólogos e acadêmicos de
psicologia, realizam o atendimento psicológico, juntamente com a
atividade corporal, nas duas modalidades (slackline e tecido cir-
cense). A intervenção ocorre principalmente, com o uso da fala, da
escuta e da observação. Como já descrito anteriormente, todos os
que estão no cenário de atendimento são convidados a passar pela
experiência e vivencia do processo, porém, é importante frisar que
caso a pessoa não queira participar, ele será sempre respeitada e
permanecerá apenas observando e/ou interagindo de outras for-
mas.
O slackline e o tecido circense funcionam como uma es-
pécie de palco psicodramático, porém os movimentos corporais
que ocorrem nos dois equipamentos possuem algumas diferenças.
A proposta de que todos passem pela experiência desloca o lugar
de quem exerce o poder no atendimento para um espaço mais so-

- 187 -
lidário, comunitário, social e acolhedor onde todos passam por di-
ficuldades, enfretamentos e superações. Cada pessoa experimenta
e exercita a superação de cada movimento de equilíbrio dentro do
seu tempo. É normal que todos caiam da fita (slackline) porém os
egos auxiliares são o apoio para evitar que a pessoa se machuque.
Nestes momentos, os egos auxiliares ajudam nas intervenções,
mas são também um apoio para evitar acidentes já que as ativida-
des são realizadas a um metro do chão.
Já no tecido circense os egos auxiliares evitam que a
pessoa que está desenvolvendo o movimento, caia. Os movimen-
tos realizados também não são complexos porque a ideia é de tra-
balhar os afetos, sentimentos e emoções no campo da segurança.
Movimentos como o de queda livre ainda não foram testados nes-
tas experiências. Então, no tecido o apoio e a orientação são bem
mais frequentes, para evitar acidentes, por essa razão, o número
de egos auxiliares é maior para apoiar os movimentos corporais.
Neste caso o número varia de acordo com a altura e peso de quem
sobe no tecido.
Os benefícios do atendimento ainda estão sendo levanta-
dos, porém, já observamos que estas modalidades são excelentes
formas de rapport conceito originário da psicologia que remete à
técnica de criar uma ligação de empatia com outra pessoa. O termo
vem do francês rapporter, cujo significado remete à sincronização
que permite estabelecer uma relação harmônica com o paciente.
Pois o enquadre psicológico ocorre de uma forma mais espontâ-
nea, sem as paredes do consultório e em um espaço do cotidiano
do usuário.
Pereira et al. (2011) em relação aos mecanismos envol-
vidos na prática em iniciantes perceberam, gradativamente, a pro-
moção do equilíbrio e da força, fatores que são importante para a
prevenção de lesões. Os indivíduos treinados são capazes de man-
ter o equilíbrio por pelo menos 20 segundos, após algumas sessões
de treino. Do ponto de vista funcional, a redução do reflexo pode
servir para suprimir oscilações incontroláveis do reflexo mediado.
Com base nesses estudos, o slackline pode ser uma estratégia de
treinamento significativa para o desempenho em modalidades que
exigem capacidade de equilíbrio. Pode ser também utilizado no
campo da psicologia para trabalhar aspectos psicológicos e forta-
lecer a segurança e o equilíbrio emocional

- 188 -
No processo de atendimento trabalhamos o desenvolvi-
mento da flexibilidade, do equilíbrio, da força, da persistência, do
desenvolvimento de solidariedade, da superação de obstáculos e
buscamos identificar potencialidades que possam melhorar a qua-
lidade de vida de todos os participantes.
Estas práticas são realizadas nas praças, nas quadras das
escolas e na área externa da unidade de saúde onde os usuários
são atendidos nesta comunidade. Além de serem levadas para pa-
lestras externas de prevenção em outros espaços da cidade e dos
munícipios do estado do Amazonas.
O trabalho é realizado em grupo e existem falas para as
intervenções grupais e falas para intervenções individuais, que são
realizadas em momentos em que as pessoas estão fora dos equipa-
mentos, em momentos mais reservados de observação de outros
participantes ocupando o equipamento. Deste modo, é possível
realizar intervenções grupais e individuais simultaneamente com
várias pessoas. As intervenções individuais são importantes para
trabalhar as demandas, em separado, de cada indivíduo, e também
para preservar o sigilo de determinados conteúdos trabalhados
em atendimentos psicológicos individuais que ocorrem nos con-
sultórios da unidade de saúde.

Conclusão
As intervenções psicológicas com slackline e tecido cir-
cense se apresentam neste capítulo como práticas emergentes em
psicologia, como parte de ações que ocorrem num campo de aten-
dimento psicossocial, onde destacamos algumas bases teóricas da
psicologia como o psicodrama e a psicologia social comunitária
que podem auxiliar os indivíduos na superação de vários obstá-
culos. Não existe um padrão físico específico para realizar essas
atividades, além de ser acessível para todas as faixas etárias.
Com estas técnicas de intervenção buscamos mobilizar
afetos, sentimentos e emoções no campo da psicomotricidade. O
trabalho é desenvolvido para dar novos significados e criar novas
possibilidades de olhar e solucionar problemas e obstáculos da
vida cotidiana, dentro do projeto de vida de cada pessoa atendida.
Outro ponto observado aqui como benefício é a sociali-
zação da psicologia, que neste tipo de intervenção, saí do setting

- 189 -
terapêutico tradicional e mergulha na comunidade O atendimen-
to psicossocial com este tipo de prática modifica as estruturas das
unidades de atendimento em saúde que muitas vezes são rígidas
e burocráticas e não propiciam a aproximação das pessoas e da
comunidade. A proposta de que todos passem pela experiência
da intervenção também discutida aqui, desloca o lugar de quem
exerce o poder no atendimento, no caso o psicólogo e os profissio-
nais de saúde, para um espaço mais solidário, comunitário, social
e acolhedor onde todos passam por dificuldades, enfretamentos e
superações.
Os benefícios do atendimento ainda estão sendo levanta-
dos, porém já observamos que estas modalidades de atendimen-
to são excelentes formas de rapport, pois, o enquadre psicológico
ocorre de uma forma mais espontânea, sem as paredes do con-
sultório e em um espaço do cotidiano do usuário. No processo de
atendimento trabalhamos o desenvolvimento da flexibilidade, do
equilíbrio, da força, da persistência, do desenvolvimento de soli-
dariedade, da superação de obstáculos e buscamos identificar po-
tencialidades que possam melhorar a qualidade de vida de todos
os participantes.
O trabalho colabora para o entendimento e reflexão de
uma postura diferenciada do terapeuta na sua prática profissio-
nal, se alicerça numa visão mais ampliada e comunitária e auxilia
a desmistificar a psicologia como uma área da saúde que é focada
na doença mental e não na saúde como um todo. Se faz necessário
tornar o campo da psicologia mais acessível à população e este tipo
de intervenção colabora com esta iniciativa. Busca-se uma psicolo-
gia mais implicada e que possa colaborar no campo da saúde com
novas iniciativas e com o desenvolvimento de políticas públicas.

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- 192 -
Em benefício de quem?
Desafios à participação social em
associações de moradores na Amazônia

Lílian Caroline Urnau


Jéssica Fabrícia Silva Lima
Angélica de Souza Lima
Ana Paula Farias Ferreira
Ana Maria Souza Brito
Lua Clara Melo Fernandes

Preâmbulo
As associações de moradores, historicamente, configu-
ram-se como importantes mediadoras da organização coletiva de
residentes de localidades específicas, seja na promoção de ativida-
des recreativas, festivas, culturais, educativas ou de ações políticas,
de reivindicação de direitos para atenção da população local.
Tais associações constituem, ou deveriam constituir, im-
portantes espaços de encontro entre sujeitos e de participação so-
cial, de luta por interesses coletivos e/ou do conviver com o outro;
estão amplamente disseminadas entre bairros de camadas popu-
lares, onde imperam a precariedade/ausência de serviços públicos
básicos de promoção à qualidade de vida, saúde e educação.
No contexto contemporâneo, de restrição dos espaços
públicos e ampliação dos espaços privados, conforme aponta Sen-
net (1989), como as associações de moradores têm efetivamente
cumprido estes papéis? Podem ser consideradas como locus de
formação/exercício político de participação? Quais são as signifi-
cações dos residentes sobre as mesmas? Como se dá a participação
da população em suas ações e nos processos decisórios?
Na busca por respostas a estas questões, ainda que par-
ciais e circunscritas temporal e espacialmente, e considerando a
contribuição da psicologia social e sociocomunitária à compreen-
são de subjetividades socialmente construídas, desenvolvemos um
estudo em associações de moradores de três regiões, em condição

- 193 -
de desigualdade social, do município de Porto Velho, capital do es-
tado de Rondônia.
Ao longo dos anos 2014 e 2017 realizamos uma pesqui-
sa intitulada “Escola pública e espaço local: enquadrando olhares,
sentidos e relações” 1, com o objeto de investigar as relações entre
unidades de ensino municipais, a população e os serviços públi-
cos presentes em seus entornos geográficos e sociais, no sentido
de apreender mais especificamente aos processos de participação
social. Na terceira etapa da pesquisa concentramo-nos mais deti-
damente na análise dos serviços e políticas públicas locais, para
além do âmbito escolar, bem como das formas de participação e
organização coletiva existentes nestas localidades.
O texto que aqui apresentamos, fruto desta última etapa
da pesquisa, toma como mote de análise a especificidade das asso-
ciações de moradores, refletindo sobre os limites e as possibilida-
des de organização coletiva e participação social nelas produzidas,
com base nas significações de residentes e lideranças de bairros.

Breves apontamentos teóricos


Podemos afirmar que todos os seres humanos participam
socialmente, uma vez que nenhum indivíduo da espécie sobrevive
isoladamente, tratando-se de “[...] uma necessidade fundamental do
ser humano, como o são a comida, o sono e a saúde.” (BORDENAVE,
1994, p. 16, grifo do autor). Participamos de grupos, comunidades,
instituições e da sociedade mais ampla.
Mas o termo participação social remete ainda a uma
forma mais específica de participação, relativa aos processos ma-
crossociais, isto é, à participação dos indivíduos nas decisões que
afetam a sociedade mais amplamente (BORDENAVE, 1994), o que
alguns autores conceituam como participação política (BOBBIO;
MATTEUCCI; PASQUINO, 1991; DALLARI, 1999)
Vale ressaltar que a participação política e a organiza-
ção coletiva são direitos assegurados pela Declaração Universal de
Direitos Humanos (1948), que em seus artigos 20 e 21, garante o
direito à associação e à participação nos governos, por vias dire-
tas ou indiretas, por meio de representantes. Contudo, é preciso
pontuar, que na “[...] democracia liberal os cidadãos tomam parte
1 A pesquisa contou com o financiamento do Edital Universal-CNPq e com Bolsas de Iniciação Cien-
tífica PROPesq/UNIR/CNPq.

- 194 -
nos rituais eleitorais e escolhem seus representantes, mas, por não
possuírem nem administrarem os meios de produção material e
cultural, sua participação macrossocial é fictícia e não real.” (BOR-
DENAVE 1994, p. 26). Neste sentido, a participação social histo-
ricamente configura-se como luta popular constante, na busca de
ampliação de direitos e de influência efetiva nas decisões que afe-
tam a coletividade, diante das distâncias geralmente prevalentes
nas democracias representativas entre a população e os dirigentes
eleitos.
Sawaia (2002) sublinha a necessidade de considerar que
o processo de participação social implica subjetividades, ou seja,
o estar com o outro em torno de identificações e causas comuns
de luta é também uma “[...] experiência existencial, impregnada de
emotividade” (p. 123), pautada no desejo de liberdade e não su-
bordinação aos domínios de outros. Neste sentido, não é decorren-
te apenas de consciência política ou altruísmo.
Bobbio, Matteucci, Pasquino (1991) indicam que parti-
cipar politicamente inclui desde o ato de votar até a militância em
partidos ou em causas sociais, a participação em manifestações/
mobilizações de protesto, a pressão exercida sobre determinado
representante, entre tantas outras modalidades. Mas advertem que
a participação adquire formas diferentes conforme o grau de pas-
sividade ou protagonismo que o indivíduo assume diante de uma
decisão política que afeta a coletividade, as quais são: a) presença –
identificada pela presença passiva de indivíduos em reuniões, que
recebem informações, mas não as influenciam; b) ativação – quan-
do o indivíduo age e desenvolve atividades em uma organização
política, seja espontaneamente ou por delegação; c) participação
no sentido estrito – quando “[...] o indivíduo contribui direta ou
indiretamente para uma decisão política.” (BOBBIO; MATTEUCCI;
PASQUINO, 1991, p. 888).
Outra caracterização sobre os níveis de participação so-
cial é apresentada por Bordenave (1994), pautando-se no grau de
distanciamento e diferenciação entre dirigentes/representantes e
demais membros de uma coletividade, tendo o nível mais elemen-
tar de participação à apresentação de informações sobre o que já
foi decidido pelos dirigentes e o nível mais elevado pautado na au-
togestão, definida pela não diferenciação entre dirigentes e demais
indivíduos e pelas decisões tomadas em grupo.

- 195 -
As duas proposições sobre os níveis de participação cha-
mam a atenção para o grau de influência dos membros de uma co-
letividade sobre as deliberações que afetam seus cotidianos. Nes-
ta direção, o voto para a escolha de representantes constitui uma
destas formas, mas não encerra, ou melhor, não deveria encerrar
as demais possibilidades de participação nas decisões que provem
desta, e que dizem respeito à agenda pública, a todas as pautas a
serem nela incluídas ou excluídas, por meio de políticas públicas.
Mas e quais são as especificidades da participação em nosso país?
No Brasil o processo de participação da sociedade civil
nas decisões públicas esteve intimamente ligado à democratização
do país. Os movimentos sociais não se satisfaziam com a prevale-
cente democracia representativa da época e buscavam formas de
substituí-la por uma democracia participativa (GOHN, 2011; CICO-
NELLO, 2008).
Sherer-Warren (2002) pondera que o exercício da cida-
dania, entendida como participação na esfera pública se dá por
meio de duas vias fundamentais, o associativismo civil e os mo-
vimentos sociais. Entre as modalidades de associativismo civil es-
tão as associações de mútua-ajuda, de classe, não governamentais
(ONGs), de defesa da cidadania, de base religiosa e as comunitá-
rias. Todas identificadas por se tratarem de “[...] formas organiza-
das de ações coletivas, empiricamente localizáveis e delimitadas”
(p. 42), que buscam melhores condições de vida e a defesa de di-
reitos de terminadas populações. Ao passo que os movimentos
sociais ampliam suas práticas para além do espaço localizado de
uma organização, configurando “[...] múltiplas redes de relações
sociais entre sujeitos e associações civis” (p. 45) com propostas
mais abrangentes de transformação social.
As associações de moradores (AM), mais especificamen-
te, estão entre as formas mais antigas de organização coletiva de
luta por direitos. Seu início ocorre em meados do século XX, desen-
volvendo-se mais intensamente a partir de 1945, durante o regime
populista (GOHN, 2012).
A organização coletiva dos moradores de determinada
localidade é permeada pela participação social como a agregação
de pessoas norteadas por finalidades coletivas que podem variar
de acordo com as necessidades presentes nos grupos. Estas fina-

- 196 -
lidades são definidas pelo espaço e tempo que estão presentes no
grupo, pois “[...] o espaço é sempre o público” (SAWAIA, 2002, p.
117) e o tempo determina quais atividades são mais urgentes e
que cronologicamente serão estruturadas.
Neste sentido, as políticas públicas, por estabelecerem
a agenda de ações públicas a serem oferecidas a determinados
segmentos da população, constituem importante foco de reivindi-
cações das organizações políticas, entre as quais as AM. A partici-
pação social nas políticas públicas pode ser utilizada como uma
forma de compreender o processo de democratização brasileiro.
Geralmente o conceito está associado às lutas políticas por acesso
aos direitos básicos (GONH, 2011) como educação de qualidade,
saúde, moradia etc. que figuram como obrigações constitucionais,
não cumpridas pelo Estado2, e que, portanto, precisam ser exigidas
pelos cidadãos, por meio da organização da coletividade.
Muito embora a participação social seja pressuposto da
democracia e da gestão pública neste país, esta adquire formas es-
pecíficas diante dos diversos contextos na qual se manifesta, fun-
damentalmente implicada as idiossincrasias das relações sociais e
das características dos sujeitos envolvidos. No entanto, ao mesmo
tempo, o fenômeno carrega as marcas genéricas da sociedade mais
ampla e das interações a ela imbricadas, que contraditoriamente
impõe obstáculos à plena participação, conforme alguns autores
vêm discutindo (SAWAIA, 2002; SENNETT, 1988). Estes entendi-
mentos são base para as reflexões que se seguem.

Percurso metodológico
Na etapa final da pesquisa, que citamos anteriormente,
da qual decorre este recorte, utilizamos diferentes procedimen-
tos metodológicos: a) observações participantes em instituições
e serviços públicos nos bairros, registradas em diário de campo;
b) entrevista semiestruturada inicial, gravada em microgravador,
sobre os sentidos relacionados aos serviços públicos existentes e
os limites e possibilidades de participação social nestes locus; c)
registros fotográficos feitos pelos participantes do estudo sobre a
relação com o bairro e os serviços públicos nele existentes; d) uma
2 O Estado é aqui entendido enquanto instituições estáveis e duráveis (HÖFLING, 2001). Neste caso
não se refere apenas ao âmbito estadual da federação, mas a todas as instituições permanentes que
operam nos âmbitos federal, estadual e municipal.

- 197 -
entrevista posterior sobre os registros fotográficos. Aqui centra-
remos nossas análises nas entrevistas semiestruturadas e alguns
registros em diário de campo.
A produção discursiva, de acordo com Bakhtin (1993),
é também produção material, já que existe enquanto uma mate-
rialidade física, som/ imagem, e que é construída concretamente
nas interações entre os homens. Deste modo, qualquer enunciado
só pode ser entendido pelas relações e condições contextuais, so-
ciais, econômicas, ideológicas e intersubjetivas onde é construído.
De acordo com Vygotski (2009), a atividade semiótica, pautada no
uso de signos (sejam eles palavras faladas, imagens ou outros) e
na construção de significados e sentidos, constitui a própria me-
diação das interações humanas e da construção do psiquismo, do
mesmo modo que as ferramentas mediam a atividade humana
na relação com a natureza. Podemos observar que tanto Vygotski
quanto Bakhtin enfatizam que a linguagem não pode ser abstraída
das relações sociais, concepção amparada na matriz materialista
histórica e dialética.
O objetivo das entrevistas foi compreender, tal como
propõem Vygotski e Bakhtin, os sentidos singulares e coletivos
presentes nos enunciados dos sujeitos, relacionados ao contexto
dialógico, social e cultural mais amplo em que foram produzidos,
como também aos processos de comunicação e interação entre
pesquisador e pesquisado, nos quais significados são produzidas
interpretações e informações. “Para entender por qué las personas
actúan como actúan, hay que comprender no solo el sentido com-
partido, sino el sentido único que ellas dan a sus actos.” (OLABUÉ-
NAGA, 1999, p. 171)
O trabalho de análise das informações procurou construir
explicações sobre o fenômeno estudado por meio da elaboração de
indicadores. Conforme González Rey (2002), indicadores são cate-
gorias analíticas construídas ao longo do processo interpretativo
do pesquisador, não diretamente evidentes à experiência, nem re-
duzidas às categorias teóricas estabelecidas a priori, que conectam
os sentidos e significados produzidos no percurso do trabalho de
campo com os recursos teóricos e, com isso, possibilitam avanços
na produção dos conhecimentos sobre o objeto estudado.

- 198 -
Conhecendo as pessoas, suas localidades e associa-
ções
Fizeram parte do estudo três grandes localidades urba-
nas, no entanto, ao conhecermos suas realidades, observamos que
algumas delas não abarcavam apenas um bairro, mas detinham
subdivisões oficiais e/ou não oficiais com associações próprias de
moradores. Neste sentido, foram incluídos, no estudo, cinco bair-
ros, que optamos por identificá-los com nomes de plantas/frutos
muito presentes na Amazônia, seguidos de algarismos romanos, da
seguinte forma:
Localidade 1) Jambeiros I e Jambeiros II;
Localidade 2) Cajaranas;
Localidade 3) Pupunhal II e Pupunhal III 3 .
Foram entrevistados 20 participantes, sendo:
a) seis lideranças de associações, uma de cada bairro e
dois do bairro Cajaranas, em função da mudança de presencia da
associação ocorrida durante o trabalho de campo, por meio de pro-
cesso eleitoral. Os líderes serão aqui identificados com a letra L,
seguida de um número em algarismo arábico;
b) 14 moradores (2 de cada bairro, com exceção do Ca-
jaranas, onde foram entrevistos 6 moradores, em função de maior
amplitude territorial e populacional concentrada em torno de uma
única associação). Estes 14 entrevistados foram identificados pela
letra M seguida de um número em algarismo arábico.
Todos os participantes receberam explicações sobre o
funcionamento da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimen-
to Livre e Esclarecido. As informações principais sobre os entrevis-
tados podem ser visualizadas no Quadro 1.

3 O bairro Pupunhal I não foi incluído neste texto, pois nenhuma liderança foi entrevistada, mas
apenas uma residente, M11, também não incluída.

- 199 -
Quadro 1 – Informações sobre os participantes do estudo

Fonte: Informações sistematizadas pelas pesquisadoras

Durante nossas observações, nos cinco bairros, chamou-


nos a atenção o cenário de precariedade dos serviços públicos,
que foi se agravando no bairro Jambeiros I e II para o Cajaranas e
um pouco mais para Pupunhal II, ou seja, do local mais central aos
mais periféricos. Quanto mais afastados do centro da cidade, mais
precárias ou inexistentes eram as escolas, unidades básicas de saú-
de, o asfaltamento nas ruas, a água encanada, a rede de esgoto, a
iluminação pública, o transporte público, entre outros.
A demanda por formas de reivindicação e organização
coletiva, para a garantia de direitos fundamentais, parecia-nos im-
prescindível. Todas as localidades pesquisadas detinham formas
organizadas de associação de moradores, legalmente institucio-
nalizadas, ou em vias de legalização (caso do bairro Cajaranas), e
com lideranças escolhidas por meio de processo eleitoral. Também
as origens históricas de pelos menos duas associações (Cajaranas
e Pupunhal II), relacionavam-se à necessidade de legalização dos
bairros, formados como ocupações urbanas irregulares, que de-
mandaram lutas coletivas para a exigência de serviços urbanos
básicos.
No caso do Pupunhal II, um conjunto habitacional de in-
teresse social, a líder entrevistada ocupava mais especificamente

- 200 -
a função de síndica de uma parte do residencial, mas participara
anteriormente de uma associação do local, que fora recentemente
desativada, e foi indicada como uma liderança pelos moradores.
A associação de bairro Pupunhal III, no entanto, era a
única a possuir instalação física própria, que consistia num terreno
murado, com uma área coberta com telhado, mais um banheiro e
uma pequena sala com paredes, onde ficava a mesa do presidente.
No Pupunhal III, embora não houvesse um espaço es-
pecífico para a associação, existiam espaços de convivência, com
quadra esportiva, parque para crianças e uma área coberta com
telhado, mas sem paredes, que podia ser utilizada para reuniões,
festividades ou outras atividades, ainda que com limitações em pe-
ríodos chuvosos (problema considerando pela alta incidência das
chuvas amazônicas).
No Cajaranas, onde houve eleição e mudança de presi-
dentes da associação durante o trabalho de campo, o líder anterior
mencionou a intensão de construção de uma sede num terreno
particular de sua família, o que não foi concretizado durante sua
gestão, por falta de recursos financeiros. O presidente, naquele
momento, recentemente eleito afirmou que buscava uma parceria
com outra associação existente no bairro, voltada à atenção de ido-
sos, para o compartilhamento do espaço.
No Jambeiros I havia um espaço físico, cedido pela pre-
feitura, mas que fora desocupado há mais de dois anos por neces-
sidade de reforma. Tanto neste bairro, quanto no Jambeiros II os
líderes relataram usar esporadicamente espaços da escola ou de
igrejas locais.
Feitas estas breves descrições para a compreensão dos
contextos investigados, avancemos para os indicadores elaborados
a partir das entrevistas.

Mártires ou vilões? A personificação e centralidade


do poder das associações de moradores
Em nossas primeiras análises do material produzido ao
longo do trabalho de campo saltou-nos aos olhos as contradições
entre as significações de lideranças e residentes do mesmo bairro
sobre o funcionamento das associações, que mantinha certa seme-
lhança em quatro das cinco localidades estudadas.

- 201 -
Entretanto, um novo olhar mais detido sobre as infor-
mações indicou-nos, ainda, um aspecto unificador, uma zona de
sentido entre os diferentes enunciados, que procuraremos neste
tópico apresentar. Comecemos com a leitura de trechos de entre-
vistas realizadas no Jambeiros I (bairro mais próximo do centro da
cidade).
Pesquisadora: Quando vocês têm algum problema no
bairro vocês se reúnem para resolver?
M2 – Jambeiros I: É, aí assim... às vezes. Nós temos o
presidente do bairro. Quando tem alguma coisa, aí a gen-
te comunica o presidente e aí ele vai procurar autorida-
de para resolver.
Pesquisadora: E vocês têm reuniões de moradores?
M2: Não, antes tinha reunião de moradores. Agora no mo-
mento não estão tendo reuniões de moradores não [...]
Pesquisadora: Tem reunião com os moradores?
L1 – Jambeiros I: Não, nós não temos essas reuniões de mo-
radores. Porque até... então... é... não tem assim essa... aquela...
como que se diz? Não tem um problema, tu estás entendendo?
Não tem o problema de pedir a opinião do morador. Porque o
bairro Jambeiros I é um bairro de excelência, tu estás enten-
dendo? É um bairro que não alaga, é um bairro que o índice de
roubo não tem, você está entendendo? É o bairro de excelência!

Nas falas das duas moradoras entrevistadas do Jambeiros


I não foram observadas significativas divergências com o discurso
do presidente da associação do bairro, embora M1 tenha afirmado
em sua entrevista que há um aumento da violência no local, que
a faz sentir-se insegura. Mas aqui o indicador unificador das falas
se faz presente: a centralidade do poder assumida pelo presiden-
te, que busca individualmente soluções às problemáticas do local,
função que lhe é também atribuída ou esperada pelos moradores,
bem como toma a decisão, a partir de sua avaliação pessoal, pela
não necessidade de reuniões coletivas.
Este indicador se tornou ainda mais evidente em relação
ao presidente L2 da associação do Jambeiros II, unanimemente ci-
tado por todos os entrevistados por sua importância na melhoria
dos serviços públicos ali existentes, no período em que exercera o
cargo de vereador do município.

- 202 -
M2 – Jambeiros I: [...] porque quando a gente mudou pra cá
era muito asfalto né, não tinha nada, com a gestão do prefeito
Roberto Sobrinho ele trabalhou muito sobre isso. Ele traba-
lhou e fez asfalto. Então foi muito bom, mas com a contribuição
do vereador [L2] ficou melhor ainda, né. Quanto ao bairro a
gente não tem do que reclamar, nem na água, nem na energia.
Agora até melhorou mais os assaltos, os roubos.

Nestes casos, prevalece a inoperância das associações


como espaços de encontros e decisões coletivas, pois o líder, e
mais especificamente aquele com poder de influência na agenda
pública, individualmente personifica a associação de moradores,
tomando as decisões sobre as demandas mais importantes de toda
a população do bairro, o que, no entanto, não é analisado com res-
sentimento ou críticas pelos moradores entrevistados, mas ao con-
trário, qualificado positivamente.
Analisemos agora a situação de outra organização.

M9 – Cajaranas: Atualmente... Não existe uma [associação] as-


sim, mas tem... Tem um presidente dos antigos que quer carre-
gar assim, mas não faz nada. [...] a gente não sabe nem quem é
realmente o presidente de bairro, o que ele tá fazendo, não sei.

M8 – Cajaranas: Então, tem uma associação dos moradores,


assim... em relação a isso... [o líder L3] é uma pessoa que não
participa muito, que não está envolvido... e a gente não sabe
muita coisa do que está fazendo. Essa é a única pessoa que é
representante nossa, que a gente não acha legal. [...] A gente até
está fazendo uma nova eleição para outra [pessoa] que esteja
mais envolvida com a gente, porque essa não. A gente quase
não sabe de nada que está acontecendo, o que [ele] está fazen-
do, não fala.

L3 – Cajaranas: [...] e não foi muito fácil tocar essa associação,


até porque eu fui correr atrás das coisas e ... tem muita pro-
messa não só da parte das pessoas, como dos políticos, secre-
taria... e você fica naquela expectativa se vêm ou não vêm... se
vai dar certo, ou não vai. E em termos de promover as coisas
aqui dentro é ..tudo que é feito em termo de ..é como é que eu
vou lhe explicar... os eventos que têm aqui: dia das crianças, dia
das mães [...] a gente corre atrás e consegue. Mas a maior parte
de recursos que vem não é de secretaria, nem de ajuda dos po-

- 203 -
líticos... é dos próprios moradores né! Então a gente se junta e
cada um consegue dar uma coisa ou outra.

L4 – Cajaranas: [...] tinha um presidente de associação [re-


ferindo-se a L3] mas não... ele não fazia reunião. A gente não
participava quase de nada... ninguém ficava sabendo de nada.
[...] Mas graças a Deus agora teve eleição e a gente vai fazer um
trabalho voltado para a comunidade, para o pessoal ser mais
participativo.

No Cajaranas, as contradições entre as falas dos morado-


res e do presidente L3 se fizeram evidentes. Embora L3, ao longo
de sua entrevista, tenha ressaltado sua luta por melhorias no bair-
ro e a organização coletiva de festas, os moradores entrevistados
desconheciam suas ações ou posicionaram críticas à sua falta de
envolvimento com a comunidade e ausência de gestão democráti-
ca. Discurso opositor também assumido pelo atual presidente L4,
eleito no início do ano de 2017. Novamente nestes trechos a cen-
tralidade do poder e personificação da associação sobre a figura do
presidente se fazem presentes, entretanto, sob críticas dos demais
entrevistados que se ressentem da inoperância e da impossibilida-
de de participação junto à associação. Críticas nesta mesma dire-
ção são ainda mais agravadas no Pupunhal II, como veremos.

M13 – Pupunhal II: [...] [A associação] só [funciona] para o


benefício do presidente, porque ela [a associação] não...

Pesquisadora: Como assim só para benefício dele?

M13: Porque ela [associação de moradores] não serve para


nada, eu não vejo nada de diferente. Ela [associação de mora-
dores] fica lá fechada a semana toda, pode passar lá que ela
está fechada. Aí, quando ele quer, convoca uma reunião, mas
ela está sempre fechada.

Pesquisadora: E você acha que essa luta foi uma luta coletiva?
Para conquistar esse bairro e os direitos? [referindo-se ao pro-
cesso de luta pela regularização do bairro]

L5 – Pupunhal II: [pausa curta] Olha, [pausa] 60% não. Foi


mais empenho da liderança da associação [de bairro] com a
ajuda de outra liderança. O que aconteceu? Todas as lideran-

- 204 -
ças, nós como lideranças... não sei no passado, só sei que no
meu bairro o pessoal achou que o ex-presidente estava dando
problema. Estava apenas pensando em si mesmo e quando
você pega uma gestão coletiva, principalmente quando eu as-
sumi ciente da necessidade e... quando eu peguei não assumi
só ciente das necessidades e sim das dificuldades e da credi-
bilidade da instituição e resgatar tudo. Quando eu assumi três
anos atrás esse terreno não era mais da instituição. Não tinha
nada do que vocês estão vendo aqui! Eu peguei simplesmente
o estatuto da associação e com alguns atrasos no contador e
tudo. Peguei dinheiro meu e hoje eu praticamente consigo a
estabilidade disso aqui com meu próprio salário. Recebo uma
aposentadoria de mil reais e ainda divido com isso aqui [apon-
tando para o terreno da associação de moradores], porque tem
gente que não contribui.

Observamos que os significados prevalentes entre gran-


de parte dos moradores entrevistados, com exceção do bairro
Jambeiros I e II, as lideranças são negativamente qualificadas, cri-
ticados por sua inação ou pela apropriação do espaço público para
benefício privado. L5 do Pupunhal II, por exemplo, em conversas
informais explicou que conquistou um cargo junto a uma escola no
bairro, por indicação de um político, o que também foi mencionado
por outros residentes em tom acusatório. A moradora M9 do Caja-
ranas comentou sobre suspeitas de desvio de dinheiro, por parte
do presidente L3, arrecadado entre os residentes para contratação
de seguranças particulares ao bairro. Em oposição, os líderes en-
trevistados apresentaram em suas entrevistas grandes feitos e so-
frimentos durante a gestão das associações, posicionam-se como
salvadores dos bairros, significado também presente no Jambeiros
I e II.
A síndica L6 do Pupunhal III e L4 do Cajaranas, em ci-
tação anterior, foram as únicas lideranças a ressaltarem a impor-
tância da democracia: “[...] o líder, ele não está aqui para fazer a
vontade dele, é a vontade da comunidade, quem manda é o povo,
entendeu?” (L6 – Pupunhal III). No entanto, embora os moradores
de seu bairro tenham afirmado a realização de reuniões com os
moradores, com baixo índice de presença, a líder também foi criti-
cada: “Deveria correr mais atrás” (M15 - Pupunhal III)
A personificação das associações e centralidade do poder
de seus líderes, como vimos, relaciona-se diretamente à limitação

- 205 -
destas organizações como espaços de encontro, consequente-
mente minimizando a força coletiva nos processos decisórios que
envolvem os espaços públicos, necessários à participação social
conforme indicam Bobbio, Matteucci, Pasquino (1991); Bordenave
(1994) e Sawaia (2002).

“A política costuma vir atrás de mim”: as associações


como espaço de clientelismo e barganha política
O considerável volume de informações, nas entrevistas e
diários de campo, sobre a influência de agentes/candidatos políti-
cos, de diferentes esferas de governo, nos bairros e associações in-
dicou a relevância de uma análise específica sobre a questão, que,
como o leitor pôde observar, já se anunciou no decorrer da análise
do indicador anterior. Sigamos na leitura de alguns excertos im-
portantes à construção desta unidade de sentido.

L1 – Jambeiros I: Também hoje a associação ela não tem di-


nheiro, ela não tem fundos, tu está entendendo? Porque, é o
único recurso... são as autoridades [vereadores, prefeito etc.]
Como agora nós fomos convidados agora no posto [de saúde]...
o diretor do posto veio conversar comigo, que um vereador in-
teressou pela reforma [do prédio da associação], entendendo?
Também já entramos em contato com esse vereador, essa se-
mana nós temos uma audiência com ele [...]

L3- Cajaranas. [...] Eu consegui na época um recurso com o


deputado estadual, que eu não vou citar o nome dele. A gente
conseguiu duzentos e cinquenta mil reais, porém, ele queria
a metade do dinheiro. Aí eu falei: “Deputado sinto muito, mas
nessas condições não tem como.” Uma que esse dinheiro vai
ter que ser prestado contas. Como é que eu vou explicar para
a receita federal onde é que eu soquei metade desse dinheiro?
Então não tem condições!

L4- Cajaranas: [...] Hoje eu não procuro muita política... A po-


lítica costuma vir atrás de mim... Toda semana tem um ou dois
políticos vindo atrás de mim, mas voltado para questão política
mesmo... Eles estão querendo fazer nome! Atrás de voto polí-
tico, vive de voto... Então eles estão procurando lideranças de
bairros. Alguma coisa para poder estar se achegando.

Estas citações falam por si só; explicitam o fenômeno do


clientelismo, característica histórica e marcante do modelo político

- 206 -
deste país, configurado pelo oferecimento de favores e benefícios à
populações de um bairro ou a indivíduos, como os casos citados de
alguns líderes, em troca de votos a candidatos pleiteando vagas nas
diferentes instâncias políticas (SEIBEL; OLIVEIRA, 2006).
Ao longo dos três anos que circulamos nos espaços es-
colares e suas imediações, por meio deste projeto de pesquisa e
de trabalhos desenvolvidos por estagiários do curso de psicologia,
observamos inúmeras situações de clientelismo, fundamental-
mente nos anos de 2014 e 2016, anos eleitorais. No Pupunhal III,
inúmeros eventos como festas folclóricas de grande porte, shows
musicais, oferecimento de serviços gratuitos como corte de cabelo,
recreação para crianças, churrascos patrocinados por candidatos
de variados partidos políticos, às diferentes esferas de governo
(câmaras municipal, estadual e federal, senado e prefeitura), foram
relatadas e por nós observados. Mas o caso mais emblemático foi
rememorado por uma diretora de escola sobre uma candidata à
câmara de vereadores que certa vez distribuiu panelas de pres-
são à população, cujas tampas só seriam entregues caso vencesse a
eleição, o que não aconteceu.
A agenda de ação do Estado se constitui por uma dispu-
ta de interesses múltiplos e em muitos casos conflituosos, e que
uma das características é a permuta, que é disputa por benefícios
políticos ou “[...] o jogo de barganha [...]: o voto pela melhoria ur-
bana” (GONH, 2012, p. 28), ou seja, a população de uma localida-
de e seus líderes direcionam seus votos a políticos que prometem
ou prestam alguma ajuda individualizada ou ao local. Prática que
culmina na influência direta da política partidária na estruturação
das associações. De acordo com Bordenave (1994), podemos ca-
racterizar este processo como participação dirigida, na qual a or-
ganização coletiva recebe ajuda ou influência de agentes externos
que contribuem com o alcance das metas, porém, nesse caso pode
ocorrer manipulação para conseguir benefícios próprios.
Também é preciso observar que, neste jogo de barga-
nhas, alguns ganham, são beneficiados; caso do bairro Jambeiros
que elegeu seu líder como um agente político externo (vereador),
mas outros perdem, caso dos bairros onde sobressaem as promes-
sas não cumpridas de candidatos/agentes políticos. Mas o aspecto
que consideramos de maior gravidade, no entanto, reside na usur-

- 207 -
pação das associações de moradores, organizações que deveriam
representar as comunidades locais, e sua conversão em instru-
mentos de corrupção, para o desvio de recursos financeiros públi-
cos em benefício individual de agentes políticos, falseando o inves-
timento público em demandas locais importantes, o que indica a
possibilidade das associações de moradores atuarem opostamente
aos interesses da população, auxiliando na manutenção das condi-
ções de precariedade das localidades e na desmobilização coletiva.

“Dá nada não”: a descrença que imobiliza


A personificação, centralização do poder das lideranças
nas associações e o clientelismo político deixam marcas profun-
das entre as populações, como veremos neste indicador. “Já fui em
uma reunião, já. Geralmente elas foram boas, mas faz tempo que eu
fui. [...] Eles [líderes] perguntaram o que o bairro precisava... de al-
guma coisa, mas não vi nenhuma mudança não” (M5 - Jambeiros
II). Outros entrevistados também pontuaram a falta de efetividade
das reuniões, que não conseguem alcançar os objetivos propostos
pelos líderes que as organizaram.

M9 – Cajaranas: [...] A gente não vê muito resultado. Então a


população está descrente disso. “Ah, não vou não”. Como no dia
que teve essa última eleição, eu saí assim andando aqui, eu e a
mamãe, e fui chamando as pessoas pra irem votar [referindo-se
à eleição para presidente da associação]. “Dá nada não! Quem
é dessa vez?”, “Ah, não vou fazer não! Dá nada não!”. Então as
pessoas já estão descrentes, estão procurando é... segundas op-
ções, como ter um plano de saúde. Não era preciso ninguém
ter plano de saúde se tivesse mais saúde de qualidade. Não era
preciso a gente estar pagando gente para vigiar sua casa, se
tivesse um... uma segurança boa. Não era preciso a gente estar..
É... Comprando água [...]

Pesquisadora: O que quero entender é se há a possibilidade


de conversar sobre as questões do bairro?

M5: Assim, ele [presidente da associação] já passou de casa em


casa, para ajudar nisso no bairro... Para ter isso no bairro... Mas
é só fala, nunca cumpre o que ele fala, sabe... Por isso que ele
fala nesse negócio de reunião... Ninguém acredita... Ninguém vai
porque só prometem, prometem, ninguém faz nada... É assim.  

- 208 -
Pesquisadora: Isso não só ele, mas com as outras gestões que
tiveram?

M5: Já sim! É por isso que hoje ninguém acredita mais nesse
bairro, no que eles falam porque não faz nada.

Pesquisadora: Neste sentido, vocês já procuraram entender


como funciona, como é que faz pra conseguir que um posto de
saúde seja instalado, uma escola municipal etc.? É dito algo so-
bre?

M5: Não eles nunca falaram sobre isso, sobre essas coisas não!
Só falam que precisam disso... Daquilo da gente, só isso, mas
nada como é que funciona, o que envolve até chegar até lá...
Esses tipos de coisas.

Consideramos estes aspectos explicativos à limitada pre-


sença da população nas reuniões, indicada por alguns líderes. As
experiências recorrentes de frustração, diante de falsas promes-
sas, da inação e da falta de informações, geram a descrença na pos-
sibilidade de influência e mudança da situação vigente e, conse-
quentemente, a ausência da população e do encontro coletivo.
Essa descrença na possibilidade de transformação social
também está associada, conforme análise das variadas entrevistas,
à percepção do limitado, ou quase inexistente, poder de influência
dos moradores sobre as decisões públicas e os serviços públicos
ali oferecidos, diante da hierarquia de poder e das distâncias entre
representantes e representados.
Pesquisadora: Em relação a essas instituições públicas que
você já utilizou, você teve oportunidade de ter voz de falar, criticar,
elogiar, contribuir?

M8 – Cajaranas: Não, quando a gente vai lá ter alguma [parte


inaudível], eles perguntam: “Vocês têm algum representante
do bairro, têm associação?”, eu digo “Óh, ter tem, mas parece
que não existe”. Porque ele nunca está. Ele está envolvi-
do com os trabalhos dele e ele só tem nome ali, dizendo:
“Ah, é tal pessoa”. Mas quando a gente vai procurar, ele
nunca está ali pra atender, não sei nem se ele mora aí
ainda [risadas].

Entretanto, L5 do Pupunhal III demonstrou que nem


mesmo na posição de liderança detém poder de influência na

- 209 -
agenda pública. Afirmou ter tentado se comunicar diversas vezes
em alguns órgãos, no intuito de alcançar melhorias em diversas
áreas, mas nada é resolvido. Esta influência foi verificada somen-
te no caso de L2 do Jambeiros II, eleito para um cargo político do
município.
Este indicador e os demais apresentados apontam para
os limites de participação social, via associação de moradores,
conforme conceituam Bobbio, Matteucci e Pasquino (1991) e Bor-
denave (1994), uma vez que reuniões não acontecem e são signi-
ficadas negativamente pelos moradores, prevalecendo o distancia-
mento entre representantes e representados e a falta de acesso a
informações.
Subjetivamente estes aspectos respaldam a apropriação
e consolidação de significados sociais como “cada um por si e Deus
por todos” (mencionada por M7 do Cajaranas em sua entrevista),
restringindo a atividade dos sujeitos à cotidianeidade, tal como
postula Heller (2008). Ainda, silenciam e individualizam as dores
mutuamente vividas, por aqueles em iguais condições sociais (so-
frimento ético-político), o que amplia os sentimentos de solidão e
menos valor de quem as sofre.

“Aí todo mundo se reuniu, fechou a estrada”: a neces-


sidade do encontro e da reivindicação
Se até o momento apresentamos um cenário desolador
de limitações aos processos de participação social local, algumas
possibilidades foram positivamente acenadas pelos entrevistados
dos diferentes bairros, entre as quais: as manifestações de reivin-
dicação e as festas.
Muitos entrevistados comentaram sobre episódios de
manifestações que participaram ou foram espectadores, reivindi-
cando melhorias em seus bairros. A forma majoritariamente citada
foi o fechamento temporário de ruas e estradas do próprio bairro
ou de regiões importantes da cidade.

M9 - Cajaranas [Risadas] É engraçado! O ano passado esse


bairro aqui e mais outra rua ali, nesse bairro aqui não estava
dando para entrar carro. Ai todo mundo se reuniu, fechou a es-
trada. Aí fechou, aí veio político, veio não sei o que... Passaram
a máquina, assim para... [As ruas do bairro não são asfaltadas e

- 210 -
compostas de buracos]. Ai quando começa esburacar de novo,
a gente fecha a estrada.

O ato de participar ativamente nestes casos deu-se por


meio da aglomeração de pessoas visando alcançar metas que foram
coletivamente decididas, direitos de ordem econômica e social,
promovendo atos de protesto ou reivindicação (SAWAIA, 2002).
Entrevistados dos bairros Pupunhal II, II, Jambeiros I
e Cajaranas relataram que ao se organizarem para fazer a inter-
rupção de ruas ou práticas semelhantes conseguiram alguns dos
benefícios que estavam demandando, tais como o reconhecimento
do bairro, no caso do Pupunhal II; asfaltamento e iluminação de
ruas, nos casos dos Jambeiros I e II e Cajaranas. Em todos os ca-
sos foram qualificadas positivamente pelos resultados alcançados,
como ações com efeitos visíveis, ainda que parciais, à população
do bairro, contrariando o significado “dá nada não” analisado an-
teriormente.
Entretanto, estas manifestações trataram-se de formas
de mobilização efêmeras, utilizadas em situações emergenciais e
de maior gravidade, não promovendo a continuidade dos encon-
tros e da organização coletiva. Observamos, em alguns casos, que
estas formas de organização coletiva são apoiadas ou organizadas
pelas associações de moradores somente quando não representam
ameaças a relações estabelecidas entre líderes e agentes políticos
externos ao bairro, que exercem funções com poder de influência
na gestão do município ou estado.
Este fato ficou evidente no relato do presidente L5 do
Pupunhal II, que em uma situação de conversa informal afirmou
ter organizado uma manifestação coletiva para obtenção da regu-
larização do bairro, há alguns anos. Porém, após conquistar apoio
político para a associação de moradores, ressaltou que a utilização
destas formas de reivindicação passou a ser inviáveis, pois pode-
riam prejudicar sua relação com um determinado político, que lhe
garantiu um posto de trabalho junto a uma escola. Neste caso, o
agente externo, mais uma vez, detém o poder manipulador das rei-
vindicações por meio do agente interno, a liderança comunitária,
que opera, abafando conflitos e ressaltando as positividades ou os
ganhos alcançados com o apoio político, que poderão ser expres-
sos como votos em eleições.

- 211 -
Além das manifestações, os entrevistados de todos os
bairros relataram a importância das festas para o entretenimento
e socialização dos moradores, porém, apenas os bairros Jambeiros
I e Cajaranas organizam essas festas sem apoio externo e mantêm
esta prática constante, principalmente com o arraial anual como
comentado anteriormente, que no caso do Pupunhal II e II são
passíveis de realização, apenas com o financiamento de agentes
políticos. O ressentimento de não realização destes eventos foi
uma constante entre os moradores entrevistados destes últimos
bairros, não apenas pela oportunidade de lazer, mas também de
práticas culturais tradicionais folclóricas.
Para Bordenave (1994), a participação é característica
do ser humano, é a sua ação e envolvimento com outras pessoas,
faz parte das relações interpessoais, assim vão se construindo vi-
vências que modificam o mundo e a si mesmo. Para esse autor, a
participação tem dois pilares: o afetivo, pois é prazeroso interagir
com outras pessoas na construção de significados e práticas que
possibilitam bem-estar coletivo e o pilar instrumental que significa
fazer com outros para obter resultados mais efetivos e duradouros
dos que seriam obtidos se uma pessoa fizesse sozinha. No caso dos
cinco bairros entrevistados, estas dimensões apresentam-se fragi-
lizadas.

Algumas considerações
O entrecruzamento dos quatro indicadores analisados
revela um cenário desolador. Sobressaem os limites sobre as possi-
bilidades de participação nas associações de moradores. Estas que
deveriam constituir os canais de representação mais próximos da
população nos bairros investigados não cumprem de forma ampla
e contínua funções informativas, recreativas, culturais e, tampou-
co, de organização coletiva, pautada em referenciais de democracia
participativa.
Predominam a gestão pela heteronomia, a personificação
e centralidade do poder dos presidentes das organizações civis e a
utilização destas como instrumentos de clientelismo e barganhas
eleitorais por agentes políticos. As lideranças não exercem efeti-
vamente o papel de representantes dos interesses públicos da po-
pulação que as elegeu. Neste sentido, as associações investigadas
não podem ser caracterizadas como organizações que promovem

- 212 -
o exercício e a formação à participação social, pois estes espaços se
limitam a manifestações efêmeras.
Fatos que incidem na manutenção do ciclo de violação de
direitos das camadas populares, pelas precárias condições de vida
no espaço urbano e de acesso a serviços qualificados de saúde,
educação, proteção social etc., num modelo político e social pau-
tado na fruição do bem público em benefício privado de poucos
indivíduos.

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- 214 -
Notas sobre o universo psi de pessoas
“baldias” do centro de Manaus/AM
Noélio Martins Costa
Renan Albuquerque

Introdução
A intenção de usar o termo “baldias” para estudar pes-
soas em situação de rua (PSR) nunca foi pejorativa ou excludente.
Quisemos nos aproximar, enquanto narrativa etnográfica, de cer-
nes intrínsecos conjuminados a vivências e acessar implicações
de seu universo psi. Outrossim, se pessoas baldias do centro de
Manaus são entendidas como PSR — as quais, por vários motivos,
adotaram a rua como lar ou lugar de estada e foram ficando no
espaço — partimos desse princípio para questionar fundamental-
mente em que medida há pontos de significância para decisões so-
bre estar e permanecer na rua.
A proposta em delimitar o centro de Manaus ocorreu
em razão do lócus abranger ruas por onde geralmente circulam
PSR na capital amazonense. Para abarcar especificidades, foi ne-
cessário trabalhar caracterizações estruturais do urbano, a fim de
se almejar visão para além da manifestada, abrangendo estatutos
psicossociais latentes. Tentamos alcançar funcionalidades de vida
dessas pessoas, em certa medida isoladas da sociedade formal e
em planos coadjuvantes de existência, estes supostamente menos
dignos ou supostamente menos humanos.
A hipótese versou acerca do fato de que trajetos físicos
percorridos no centro da cidade configuram-se não apenas como
caminhos empíricos de apego a lugares e objetos, mas também en-
quanto estradas de idas e vindas afetivas, integrantes de realida-
des ligadas ao sensível das PSR. A perspectiva de inferência para
o estudo foi o entrecruzamento de vivências do mesmo e do outro
durante os rumos tomados. Esse ponto de vista surgiu da ideia de
que no decorrer das direções escolhidas para se chegar a praças,
casas ou terrenos abandonados, intencionalmente ou a esmo, o eu
se manifesta e comunica com o outro.

- 215 -
O suposto foi espraiado tomando como base que, a cada
ano, a população moradora do centro da cidade (residentes locais)
decresce devido à reconstrução de espaços de vivência e por con-
ta da criação de novas comunidades atrativas, como condomínios
fechados com estruturas de segurança. A região do centro de Ma-
naus, porquanto, que outrora se configurava como ícone de luxo e
progresso, com casarões e palacetes imponentes a espelhar a épo-
ca áurea da borracha, atualmente apresenta outra lógica, e isso, de
algum modo, é variante nos processos de mudança para trajetos de
concentração de PSR.

Lugares e heterotopologias
Sobrepostos a lugares comunais existem lugares outros,
diferentes dos que se vive e vivencia. Falamos da heterotopologia1
(FOUCAULT, 2009, 2003a, 2003b), que identifica a existência de
pontos neurais, de uso comum, enquanto lugares de contestação
sobre o espaço onde se vive. O descrito é similar ao que ocorre no
âmbito das heterotopias, as quais são formas variadas de se con-
ceber pontos neurais de encontro. Assim, trajetos quaisquer, desde
que coletivos e de viés partilhado, podem conter variações sobre-
postas de grupos e culturas.
A heterotopologia é concernente à ideia de que lugares
podem se opor ou complementar, compondo ato dialético. Um pon-
to neural de encontro, portanto, é dominial e livremente apropria-
do (LEFEBVRE, 2001). Trajetos também funcionam tal e qual vias
únicas, com conexões diretas, exatamente como se dá no corpo hu-
mano e seus órgãos vitais: embora interligados, cada um constitui
um sistema próprio. O sistema dos trajetos se configura enquanto
apropriações no âmbito dos territórios e passa a constituir a terri-
torialidade, ligada a ritmos, temporalidades, hegemonias, relações
superpostas, mudanças e permanências. Ou seja, o território é não
apenas um espaço físico. É uma relação prático-sensível e identitá-
ria (SAQUET, 2007, 2011).
Acerca dessa relação, dentro do universo psi das PSR, a
partir da etnografia, foi verificado que o centro de Manaus ofere-
1 A heterotopologia estuda a heterotopia. Portanto, são conceitos imbricados e correlatos. No texto
Outros Espaços, datado de 1967 e publicado em 1984, Foucault conceitua heterotopia como opo-
sições a utopia, lugares que são absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles
refletem e dos quais eles falam.

- 216 -
ce oportunidades de ganho porque, mais do que em bairros ad-
jacentes, tem um movimento contínuo de transeuntes, dispostos
a receber gratuitamente, barganhar, vender e comprar coisas. De-
pendendo da caridade, compulsória ou contingencial, de estranhos
ou da criatividade para a realização de negócios informais (bicos),
PSR podem conseguir com menos dificuldade alimentação ou di-
nheiro. A despeito dessa tipologia de atividade, o ato de pedir ou
“manguear”2 esmola é um meio de se manter na rota de sobrevi-
vência. Trata-se de um pressuposto para a sanidade devido uma
lógica orgânica.
Para manguear em determinado território, é preciso o
espaço configurar-se como dominial e conciliatório. Assim, PSR
podem se apropriar simbolicamente e conferir poder sobre o tra-
jeto e acerca de si mesmas. Sobretudo porque espaço de poder é
também espaço de disputa, cooperação e conflitos. Assim, na rua,
desafios a enfrentar existem a partir do instante em que não se
sabe qual será a próxima refeição ou o próximo local de pousio. De-
safio é manter-se vivo, lúcido e sóbrio, porque se não existem zona
de conforto, o mais propenso é traçar rotas psicológicas de sobre-
vivência dentro de trajetos que, ao se entrecruzarem, aglutinam-se
e passam a fazer sentido em uma dialética própria. Sendo assim,
entendemos que o centro de Manaus é consolidado em razão da
apropriação geográfica e sentimental de pessoas supostamente in-
visíveis, as PSR, que buscam expor no ambiente seus dons e expe-
rimentos de convivência, subjetividade e formação de identidade.
Nas ruas do centro não há pressa para quem tem todo
o tempo do mundo. É um rumo a ser percorrido a qualquer hora.
Não há definições inabaláveis de prazo, seja em marcações para
início ou fim. Estar na rua é ter tempo livre para percorrer o espa-
ço-tempo na metrópole (CARLOS, 2001). A literatura sugere que “a
reprodução de relações se materializa em um espaço apropriado
para este fim, e a vida, no plano do cotidiano, constitui-se no lugar
produzido para esta finalidade” (ID., op. cit., p. 41). Desse modo,
trajetos estão diretamente ligados à dinâmica de vida das PSR,
condicionando vivências materiais e imateriais ante relações esta-
2 Usado aqui como termo nativo, o verbo ‘manguear’, de acordo com o Dicionário eletrônico Houaiss
da língua portuguesa 3.0, tem suas variações, por exemplo, no regionalismo: Rio Grande do Sul –
Transitivo direto (1): guiar (gado) pelos flancos em travessia de rios, em direção às mangueiras ou a
outro lugar; – transitivo direto (2): usar de artifícios, esp. para obter o que se deseja; engodar, iludir.

- 217 -
belecidas ao longo da caminhada, o que leva a crer que lugares da
vida constituirão a identidade habitante-lugar (IB., op. cit.).
Há tramas de relações que dialogam com tramas de luga-
res, onde se formam redes articuladas que podem se ligar a práti-
cas socioespaciais. Portanto, trajetos como produção e delimitação
espacial indicam constituições práticas do espaço e também de
relações sociais. Na mesma direção, no tocante a pessoas baldias
do centro, elas constituem afetivamente lugares vividos porque as-
sim tendem a compreender melhor seus simbolismos, sendo que
domínios habitados por elas se constituem de reflexões sobre a re-
lação pessoa-ambiente. A perspectiva aponta para a ideia de que o
espaço pode ser interpretado como lócus de experiência humana
no mundo que as cerca, visto que referências, atitudes e valores
advêm de trajetos percorridos (TUAN, 2012).
O que se tentou estabelecer como tópico de estudo, por-
tanto, foi a relação da interação pessoa-ambiente, almejando des-
crever até que ponto a área central da cidade tende a funcionar
como entroncamento de caminhos onde a vida se concretiza e o
universo da psique se entrelaça ao ambiente. Para estudar interve-
niências no âmbito dessa conectividade, foi utilizada a etnografia
de descrição densa3 como opção metodológica. Intentamos privi-
legiar vivências em campo elaboradas via interações como estra-
tégia de investigação, sejam ela a convivência social, a imersão nas
ruas ou o diálogo continuado com indivíduos. Algumas dessas di-
nâmicas foram incorporadas no que segue.

Resultados e Discussão
Descendo a rua Luiz Antony, imediações do Colégio Mili-
tar de Manaus com a Rua Epaminondas, no centro velho da capital
amazonense (próximo ao porto), notam-se corredores de ônibus,
aglomeração de pessoas, lanchonetes, vendedores ambulantes, ba-
res e lojas. Tudo é propício para se pedir (manguear), mendigar,
furtar e beber. São espaços passíveis de usos diversos e apropria-
ções incidentes. Mais à frente, temos a rua Gov. Vitório, esquina
com a rua Bernardo Ramos e a Praça Pedro II, onde está o prédio
da antiga prefeitura e hoje funciona um museu. A praça é arbori-
zada, composta por jardins, bancos de madeira e coreto, onde se
3 Conferir em GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008. Parte I.

- 218 -
conserva a arquitetura de outra época. É um lugar um tanto mais
tranquilo em relação a outras partes do centro velho.
Na Praça Pedro II convivem PSR, prostitutas, michês,
“aviões” (passadores de droga), guardadores de carro e transeun-
tes frequentadores da praça, que é importante ponto de incidência
dos vários trajetos citadinos das PSR. O lugar atrai pessoas inte-
ressadas em sexo, sobretudo. São zonas de baixo meretrício, onde
há um ponto tradicional de putos e putas velhas, atendentes a seu
modo de clientes, por exemplo, que vêm do interior receber apo-
sentadorias. Por esse motivo, a praça recebeu o apelido de “praça
do pau-mole”.
No intervalo de um programa e outro, pode-se observar
mulheres fazendo manicure e pedicure, prostitutas(os) de certa
idade a flanarem e consumidores de bebidas alcoólicas. Todas e to-
dos com disfarces convenientes para a não identificação. Do outro
lado da rua, homens bebem, fumam e dançam em bares tradicio-
nais nas redondezas. A diversão no centro perpassa principalmen-
te por cachaça, vodka, rum etc., enfim, por consumo de álcool nos
bares das imediações, pelas drogas e pela libertinagem furtiva para
completar o lazer.
O cenário se mescla com o prédio degradado do INSS. Im-
ponente, de arquitetura antiga, atrai também funcionários e pro-
move serviços para a sociedade em geral, proporcionando clientes
para guardadores e lavadores de carro, bancas de jornal e bom-
bons. Na esquina da rua Gov. Vitorino com a av. Sete de Setembro,
em frente ao prédio do INSS, encontram-se bares e restaurantes
conhecidos pela péssima reputação, apelidados de “inferninhos”.
Um dos mais famosos é o Mangueirão, nome dado porque fica en-
tre duas enormes mangueiras.
Nesses locais, há mesas de sinuca, comida barata (prato
feito), bebidas de várias marcas e preços e frequentadores oriun-
dos da Praça Pedro II, na maioria. No estudo, porquanto, essa pra-
ça e seu entorno foram considerados como locais de pousio, posto
que ali se apresentam várias estruturas que possibilitam abrigo
momentâneo às PSR. O coreto funciona principalmente à noite,
como ponto de descanso, assim como nas imediações se vê nas
marquises da antiga prefeitura, no prédio do INSS, nas casas aban-
donadas e no museu do porto.

- 219 -
Ao se cruzarem nesse ponto, múltiplos trajetos se articu-
lam não apenas pelo uso comum do espaço, mas também ganham
potencial (e real) significado para a vida das PSR que transitam.
São esses trajetos que ajudam a dinamizar complexidades psicos-
sociais. No próprio ato de transitar, dentro de uma economia do
caminho percorrido, pessoas em situação de rua se encontram,
estando em si mesmas, corpórea e mentalmente ligadas. Tanto
porque promovem contato com lugares que dizem respeito a co-
tidianos habituais, conhecidos das PSR, dando sentido à vida que
levam.
Os trajetos, nesse âmbito, podem representar um mundo
particular dentro de um mundo coletivo do centro velho da cida-
de. Esse mundo corresponde em verdade ao mundo individual que
existe em cada uma das PSR. O mundo de sua saúde mental. São
trajetos que marcam indivíduos, de modo que as possibilidades
das PSR em apreenderem a própria vida se encontram direciona-
das, primeiramente, a apreensão de atos múltiplos nesses espaços.
Tornando-se espaço para práticas cotidianas de sobre-
vivência, onde se consegue realizar afazeres habituais, estabele-
cendo as identidades pessoa-lugar e pessoa-pessoa, esse cenário
é representado como ambiente pulsante. Percebe-se, na estreita
ligação do lugar com a experiência do vivido, fortes relações hu-
manas, as quais existem e se manifestam para conferir particulari-
dades às PSR, em especial às experiências não apenas físicas, mas
também psíquicas delas.
Por aproximação, há uma transposição do geral para o
particular quando partimos para a conceituação de lugar pelo viés
subjetivo e cotidiano. A rua, como lugar de sensibilidade, tende a
projetar laços de familiaridade, promovendo, grosso modo, o si-
mulacro de um lar. Para além do exposto, o lugar constitui relação
íntima da pessoa com o ambiente em que vive, ou seja, a pessoa se
apega ao ambiente e cria experiências íntimas, difíceis de expres-
sar, coexistindo e compartilhando significados acerca de onde está.
A esse respeito, os termos topofilia e topofobia, respec-
tivamente, apresentam tipos de sentimentos, positivos ou negati-
vos, expondo conflitos e experiências boas e más sobre dado lugar
(TUAN, 2012; SANTOS, 1998, 2012). Igualmente, no caso em aná-
lise, a questão da heterotopologia é destacada, posto que enten-

- 220 -
demos, mediante as andanças pelo centro, que pessoas constroem
o ambiente na medida em que participam e se inserem nele ― de
toda a sorte, como um lugar de apropriações. Para as PSR que vi-
venciam esses lugares, existem marcas afetivas, as quais identi-
ficam hábitats segundo laços sentimentais, de pertencimento ou
afastamento, descritos via usos comunais e crivados por relações
multissensoriais (HAESBAERT, 2004; SOJA, 1993).
Deslocando-nos um pouco mais, por entre as ruas Mon-
teiro de Souza, Visconde de Mauá e Gov. Vitório, além da Travessa
Vivaldo Lima e das ruas Taqueirinha e Tamandaré, há ainda demais
pontos de lazer. Continuamos no centro velho da cidade de Ma-
naus/AM. Estamos auferindo pontos de representatividade para a
saúde mental das PSR. Há boates, bares e, nas imediações, de for-
ma articulada, pousadas de curta duração (motéis), onde também
são consumados programas de michês e prostitutas da área.
As atividades se intensificam à noite. Estivadores, carre-
gadores, tripulantes de barcos, experts em jogatina, enfim, outsi-
ders e desvalidos de toda a sorte se concentram em busca de diver-
são. As casas de show mais badaladas são i) o Bar do Gilberto, ii) o
Aquarela’s Bar e iii) o Natureza Show Club. Quando há strip-tease
ou música ao vivo, é cobrada entrada. Seguranças não permitem a
ocupação pela mendicância. Por isso, brigas dentro e fora são cons-
tantes.
Para alguns, a festa acontece do lado de fora mesmo. É
preciso apenas de limão, sal e cachaça barata vendida em garrafa
de plástico ― que por causa do formato recebe o nome de “gra-
nada” ou “buchudinha”. Algumas PSR bebem restos de cerveja, fu-
mam pontas de cigarro e comem sobra de “churrasquinho-de-ga-
to”; outras gastam o que arrecadaram no dia, pedindo, trabalhando
ou roubando, pagando programas na área.
São essas as pessoas baldias, que transitam pelo centro
de Manaus/AM. Elas de modo algum vivem indiferentes à cidade.
Pelo contrário, articulam as trajetórias em função da soma de von-
tades, desejos e necessidades experimentadas no dia-a-dia, o que
fornece sentido às vivências. Um sentido intimamente ligado ao
status psicossocial. Esses trajetos no centro da cidade, para serem
percebidos, requerem observação minuciosa. Para isso, foi neces-
sário apurar sentidos e percepções coletivas, aprofundando a in-
vestigação sobre as PSR.

- 221 -
No estudo, teve importância fundamental entender cren-
ças e atitudes cotidianas, ao que optamos por denominar o traba-
lho como investigação conjuntural de ethos, o que pode equivaler
a estudar conjuntos de práticas que caracterizam identidades
(BOURDIEU, 1998). Pessoas em situação de rua, desta feita, foram
descritas a partir de suas vivências e comportamentos, segundo
papeis ativos na condução de seus destinos. Segundo a linha de
entendimento, PSR vagueiam escolhendo o próprio caminho, mas
de maneira a tatear a cidade palmo a palmo, como agentes flanêur,
fazendo leituras físicas e psíquicas das pessoas e das coisas.
Tomamos a contento que PSR, ao conhecerem o centro
da cidade e percorrê-lo a pé, sentindo cores, odores e sons em ruas,
becos e vielas, observam padrões, investigam detalhes e similitu-
des a partir de inferências de concreto e asfalto percorridas. É uma
busca a particularidades que integram o todo. O caminhar pelos
trajetos foi uma forma nossa, realista, de explorar e aferir percep-
ções sobre o espaço transitado. E a observação aproximada dessa
realidade possibilitou conhecer o tecido social que envolve PSR do
centro de Manaus.
Nesses literais caminhos de conhecimento, houve traje-
tos do centro de Manaus/AM que apresentaram variações aquém e
além de estimativas propostas, verdadeiramente não apresentando
fixidez. Por esse princípio, intuímos que indivíduos integrantes das
ruas elaboram subjetivamente lugares de pousio mediante noções
abstratas, podendo alterá-los de forma imprevisível. A afirmativa
exemplifica-se em razão de uma questão fluxo-temporal relaciona-
da ao percurso e ao tempo para se ir do início ao fim de um trajeto.
O fluxo movimentado das ruas atrai as PSR para ativida-
des de ganho e sociabilidade, mesmo em meio à situação caótica
do centro. Sobre essa característica caótica, Simmel (1998) contri-
bui para o entendimento quanto descreve a modernidade via dois
principais símbolos: o dinheiro e a metrópole, ambos imbricados
pelo caos. O dinheiro é herói e vilão da modernidade das grandes
cidades. Significa dizer que, no contexto psíquico das PSR, relações
se transformam em números, mas também em liberdade de ação
na medida em que o dinheiro, de modo universal, emancipa depen-
dências específicas dessas pessoas. Em alguns pontos, no centro de
Manaus/AM, foram notadas emancipações nas ações hierárquicas

- 222 -
de poder, outrora rígidas e imutáveis. E é o dinheiro o agente de
criação de laços de interesse entre quem o tem e quem o procura
ter.
Prosseguindo na perspectiva, exploramos as ruas de co-
mércio no centro de Manaus e que são também passagem obriga-
tória ao embarque e desembarque de pessoas para o interior do
Estado e outros Estados, sobretudo a avenida Marquês de Santa
Cruz, parte que liga o porto ao Mercado Municipal e à Feira Ma-
naus Moderna, onde o trânsito é intenso, rápido e tumultuado. No
trajeto, localizam-se vendas de comida (geralmente prato feito),
estivas, bebidas, roupas, calçados, ferramentas, utensílios domés-
ticos, móveis, eletrodomésticos, apetrechos de pesca, materiais
para agricultura e caça, redes e cordas, além de miudezas. Há ser-
viços de embelezamento, como salões e barbearias armados em
calçadas ou beiras de pista, compostos no máximo de banquinho,
espelho e tesoura ou máquina elétrica de cortar cabelo ou barba.
Nessas zonas improvisadas, o cartão de visitas é o preço
e a rapidez do serviço. É por exemplo o tempo de venda do lanche
comprado no meio da rua do ambulante de salgado, café, suco ou
picolé; o tempo que a vendedora de chips e capas de celular leva
para trocar itens de aparelhos. E há ainda as áreas de jogo e aposta.
Dama, dominó, baralho e jogo do bicho. A região se constitui como
polo de atração porque tem movimento aquecido por dinheiro
vivo, em uma conjuntura capturada pela característica essencial:
a de ser um ponto neural de trajeto que agrega uma “confluência
dos trajetos”. Por essa questão, composições referenciais a espa-
ços de lazer, trabalho e ócio, exemplificados em malandragem e/ou
marginalidade apresentam-se com objetividades e subjetividades
nessa área da cidade. Aqui, é uma região de reconhecimento das
pessoas baldias. É onde funciona seu trabalho. É onde mentalmen-
te se sentem abrigadas durante o dia.
Ainda na orla da cidade, entre os igarapés dos bairros
de Educandos e São Raimundo, banhada pelo Rio Negro, fica a po-
pular avenida Manaus Moderna, oficialmente denominada de av.
Lourenço da Silva Braga. A Manaus Moderna não faz jus ao nome.
Ao contrário, lembra os beiradões da Amazônia profunda. Vários
governos prometeram melhorias que não vieram de forma objeti-
va a modernizar o espaço, deixando a estrutura urbana deficiente

- 223 -
e insegura tanto a pedestres quanto motoristas. As escadarias da
av. Manaus Moderna de acesso às embarcações estão anos sem re-
forma. Há estruturas enferrujadas, sem alguns degraus e com cor-
rimão defeituoso, que põem em risco pessoas frequentadoras do
local. Ou seja, são espaços degradados e integrantes do cotidiano
da população em geral, e em especial das PSR. Essa degradação do
ambiente, em boa monta, rege um tanto da degradação de relações
entre as PSR. Se não, vejamos.
A descrição da orla possivelmente nos aponta um pres-
suposto de distinção das pessoas em situação de rua do centro de
Manaus em relação a PSR de demais capitais do país, o qual esteja
em uma característica regional: o diálogo com os rios. Na Amazô-
nia, em ampla medida, pode ser que o rio não comande integral-
mente a vida, como pensava Tocantins (1973), mas influencia na
construção de simbolismos relacionados a ocupações laborais. A
lógica do trabalho muda com o regime das águas as PSR porque,
na época da cheia, de janeiro a junho, há aumento significativo de
remuneração pela quantidade de trabalho, conforme informações
colhidas no campo.
Nossos interlocutores destacam das festas de fim de ano
(Natal e Ano Novo), do Festival Folclórico de Parintins, da Ciranda
de Manacapuru e das organizações de quermesses regionais. Há,
segundo eles, mais movimento e mais embarque e desembarque
de pessoas e mercadorias. O vai-e-vem se intensifica e amplia gan-
hos com a venda de peixe por causa da piracema. A oferta supre o
abastecimento de mercados e feiras. Produtos secos e molhados,
estivas e alimentos em conserva são descarregados para abastece-
rem a cidade e vice-versa. Na seca, de julho a dezembro, o trabalho
gira em torno de frutas, legumes e verduras. Na época, margens se
transformam em praias e, onde antes era somente água, notam-se
solos argilosos.
A terra fica fértil e as várzeas são cultivadas, gerando dis-
ponibilidade de produtos agrícolas. Porquanto, esclarecemos que
o extrativismo e a pesca não se dão de forma rígida, acontecendo
em todos os períodos do ano. Há frutas na estação chuvosa e há a
pesca de algumas espécies com maior intensidade na estação seca.
Na cheia, o rio cobre as faixas de areia, atingindo de 10 a 12 me-
tros de altura em relação ao nível regular. Esse período é de fartura

- 224 -
(SANTANA, 2006). Em um intervalo pequeno de tempo, cerca de
três meses (abril a junho), a paisagem muda significativamente.
E sobre o que destacamos como degradação, trata-se da dificul-
dade de trabalhar por conta exatamente dessas mudanças climá-
ticas. Não apenas a vontade individual se mostra, mas também a
complexidade do que está além das pessoas, do que se encontra
fora do eu.
Outrossim, o que difere o labor das PSR do centro de
Manaus/AM ante outras configurações pode ser o modo singular
com que a temporalidade da vida é ritmada pela sazonalidade flu-
vial. Com isso, as mesmas histórias das pessoas em situação de rua
marcadas por contingências e/ou escolhas pessoais são observa-
das no âmbito do cotidiano. E para caracterizar a especificidade foi
necessário pensar, em certa medida, o termo “identidade regional”
e suas ambiguidades, negando ou reafirmando construções psicos-
sociais esquemáticas (FRAXE, 2009, 2007).
Igualmente, a diferença do público em foco em relação a
outras PSR do bioma poderia residir na categorização “PSR-ribeiri-
nhos”, pois se utilizam de recursos naturais da região ante estações
fluviais. Ademais, em áreas de atracação de embarcações no centro
manauara (do antigo Roadway até a feira da Panair), por serem cir-
cunvizinhas a dois grandes igarapés (Educandos e São Raimundo)
e estarem localizadas à margem do rio Negro, nota-se influência de
enchente e vazante, não sendo possível dissociar as PSR do centro
e sua identificação com o rio. Seria, inclusive, uma das caracterís-
ticas que as definem como “amazônicas”, de “identidade regional”,
mas não somente e nem isoladamente se faz uma identificação.
Mudanças advindas de sazonalidades meteorológicas e
climatológicas da Amazônia são aquelas que tem relacionamento
com a vida das PSR do centro da capital quando se fala em traba-
lho informal na área da orla. Nesse contexto, foi observado que a
rua fomenta a geração de habilidades de adaptação a fenômenos
naturais. Partindo dessa orientação, conversamos com Ademar, 45
anos, PSR, em setembro de 2017, e o mesmo relatou que era difícil
no período da chuva dormir após o trabalho. “[...] Nós saímos cor-
rendo, é cada um por si. Aí a gente termina o soninho ali, sentado
ali, com a cachaça, aquecendo, se tiver”. Ele apontou para marqui-
ses de prédios e casarões antigos, exemplificando estruturas de
concreto onde conseguiam abrigo e segurança.

- 225 -
Outra observação feita foi em fevereiro de 2018, quando
esperamos o dia amanhecer e notamos que, nesse horário, a orla da
av. Manaus Moderna está movimentada apesar de uma chuva tor-
rencial que atingia a região. O ir e vir de pessoas desembarcando e
embarcando comida (peixes e macaxeira) era grande. Sob as costas
nuas ou em tabuleiros de madeira preparados para a finalidade, o
trabalho era feito de forma acelerada. Perguntamos a um senhor se
eles eram sindicalizados. Ele respondeu que as pessoas fardadas
com colete amarelo faziam parte da associação que começara há
duas semanas. Indagamos sobre os outros, que trabalhavam sem
colete, e ele respondeu que esses eram “baldios”.
Ao se observar e colher depoimentos de demais carrega-
dores, foi verificado um tipo de categorização para a ocupação por
carga carregada. Por exemplo, os que carregam sacolas e malas de
passageiros de barcos geralmente não carregam peixes ou sacos
pesados. Compreendemos, então, que as “baldias” podem ser as
PSR que aceitam aquele trabalho que o carregador ou o carreteiro
rejeita. Se um trabalhador “oficial” não está disposto ou faltou, en-
tra em cena a PSR “baldia” para a substituição. Ela trabalha descal-
ça, sem nenhum equipamento de proteção e geralmente procura
papelão ou pedaço de pano e o dobra, colocando sobre a cabeça
para amortecer o peso da carga. A pessoa “baldia” trabalha como
carregadora nas brechas deixadas pelos “profissionais”, preen-
chendo serviços rejeitados.
Continuando nosso trajeto — que se iniciou no relato ou-
trora da rua Luiz Antony com Constantino Nery, quando foi des-
tacada a questão do trabalho nas ruas — e agora o enfatizado é a
travessa Vivaldo Lima, uma área mais voltada ao ócio. Esse dado
espaço, cabe salientar, observado pareceu mais um recuo de pis-
ta em uma junção com o calçamento. O disposto chamou atenção
por se localizar entre o Museu do Porto e a zona dos bares e casas
de show, conformando-se enquanto ambiente de interseção da rua
com a calçada, e também por ter significado afetivo às PSR. Esse
ambiente, assim notamos, funcionava como se fosse entreposto
para atividades de trabalho e lazer das pessoas que ali estavam.
Em verdade, tratava-se de um ponto neural (como o denominado
no início deste paper), a aglomerar sentidos e emoções. E, como
aquele, existiam outros, nem tão simples de serem identificados,

- 226 -
nem tão expostos. Mas representativos e com sua condição domi-
nial.
Ao inferir a existência de sentimentos duplos os ali anco-
rados no ponto neural, descrevemos: i) o sentimento da atividade
racional, formal, trabalhista; e ii) o sentimento do lazer, veiculado
à prostituição e uso de ilícitos. Não nos pareceu que existisse clara
distinção para as PSR frequentadoras do ambiente acerca de onde
acabava um e iniciava outro sentimento. Consideravam apenas
como sentimentos pautados no lugarejo. E no depoimento das PSR
a ideia de inter-relação afetiva para aquele lugar significava algo
ambíguo. Na linguagem das ruas, nosso ponto neural era explicado
em suma como um “coió”, ou seja, “um lugar para se esconder dos
outros”.
“Coió” é um lugar, conforme a representação da expres-
são das ruas, para atividades de lazer (bebida, sexo e drogas), de
descanso (dormir nos bancos ou debaixo das árvores) e de tra-
balho (vigiar carros, venda em camelô, venda ambulante, jogo do
bicho, jogo de baralho, etc.). Algumas praças pouco frequentadas,
ou casas, ou terrenos e barcos abandonados, ou coretos, ou ainda
abrigos improvisados, são propícios esconderijos para as PSR, são
“coiós”. Nesses “coiós”, pessoas se protegem de intempéries e, de
modo compartilhado, usufruem de um local de descanso, de ali-
mentação, de pousio.
Pudemos identificar alguns dos “coiós” do centro de Ma-
naus/AM pela grande quantidade de pessoas que param e ficam
muito tempo nesses lugares, como por exemplo em volta do Mer-
cado Municipal Adolpho Lisboa; em barracos feitos de pallets na
orla da avenida Manaus Moderna; nos arredores do Museu do Por-
to; embaixo de mangueiras na Praça da Saudade; próximo ao Ban-
co do Brasil da rua Guilherme Moreira; no prédio abandonado da
Santa Casa de Misericórdia; além de casarões abandonados na rua
Itamaracá e próximo ao INSS. Então, trajetos se fazem por vezes
entre “coiós”, ou seja, entre espaços de segurança e lazer. Para um
frequentador ocasional, o mais viável seria estar presente nesses
lugares durante o dia e trabalhar á noite.
Outra coisa é justamente o período noturno, uma vez
que a periculosidade aumenta de modo considerável. Um “coió”,
interpretamos, é um lugar de guarda coletiva, de concentração das

- 227 -
PSR. E sendo lugarejos que formam aglutinações e convergências
de pessoas baldias no centro antigo de Manaus/AM, trata-se de um
ponto neural. Um ponto neural particular e bem específico, já que
se molda em função de um determinado espaço temporal.
Na Manaus Moderna, ao cair da noite e na madrugada,
centenas de pessoas se amontoam ao longo do calçadão e em torno
do mercado e da feira. Elas ficam dispostas uma ao lado da outra,
deitadas ou sentadas em papelões, caixotes ou envoltas em panos
velhos. Muitas vezes, dormem assim. É um “coió” significativo,
há de se registrar, sobretudo pelo quantitativo ali assegurado. Há
quem, um pouco mais aos cantos, acenda pequenos fogareiros im-
provisados para preparar alimentos, principalmente peixe assado
ou “churrasquinho de gato”. Outros aproveitam para jogar baralho
ou dominó, sempre com o copo de cachaça, o limão e o sal ao alcan-
ce. Boa parte das PSR fazem dali seu “coió” central ou dominante.
Um “coió” “central” pode representar, estruturalmen-
te, um lócus de existência, um território onde, de alguma forma,
pessoas em situação de rua conseguem estabelecer regimentos e
formalizações constitutivas ampliadas, normas comportamentais,
códigos de conduta e fundamentos que posicionam lugares de in-
divíduos e sistemas de poder. Em um “coió” dominante, PSR desen-
raizam-se de obrigações rígidas ou compromissos. É um ponto de
culminância para as existências física e mental das pessoas baldias.
Nesse âmbito, um “coió” traduz-se em ponto de ressignificação de
simbolismos, sendo um aporte oriundo de relações psicossociais
sensíveis, permeadas por práticas de solidariedade e agrupamen-
tos por afinidade.
O cotidiano das PSR se torna cansativo sobretudo pela
dureza do calor intenso, das chuvas torrenciais, da sazonalidade
para o trabalho amazônico e da insalubridade das condições de
higiene no centro. Viver nas proximidades da área portuária, com
suas peculiaridades, requer esforço maior que em demais pontos
da cidade. Mas também há maiores oportunidades de trabalho, o
que mostra a faceta controversa da dureza e da amenidade das
ruas, ou seja, a faceta da complexidade psicossocial. Portanto, as
PSR baldias do centro estão nessa vida, embora constantemente
flertem com a possibilidade de mudança em busca de uma história
diferente.

- 228 -
Nesse caso, os deslimites das PSR podem cooperar para
vivências não convencionais, fugindo de moldes preestabelecidos
como padrões. São elas, as baldias, grupos que entendem as leis
das ruas segundo códigos e valores próprios, definidos por lega-
lidades da sociedade envolvente, conforme a integração e não a
marginalização. As PSR arcam com as consequências da marginali-
dade, sim, mas somente na medida em que adotam modos de vida
que transgridam legalidades, fomentando a desobediência social
via enfrentamentos conjunturais. Entretanto, tecer as próprias
histórias em outro ritmo, com outro tecido social, outras linhas
de atuação, pode ser o ato de maior complexidade a ser feito, um
ato verdadeiro para rasgar a tecedura da sociedade formal e quem
sabe tecer histórias de outra forma, em outro ritmo, outro tecido,
outras linhas.

Considerações finais
As PSR têm suas vivências marcadas por desafios, princi-
palmente pelo fato de que, se por um lado desistiram de uma vida
que conhecemos como “normal”, por outro necessitam reconstruir
trajetórias ambientais e afetivas estabelecendo a rua como proje-
ção de lar. Como agenciadores do seu destino, tecem histórias em
lugares públicos, dando-lhes significados vários. Elas se configu-
ram como baldias, a nosso entender, porque agem de acordo com a
situação e o contexto de suas relações pessoa-lugar.
Sua força de trabalho, outrossim, como agente ativo
na lógica labor(renda)-lazer(ócio), na maior parte das vezes é
invisibilizada, e por isso não reconhecível, mas é figura essencial
no centro do debate. De modo que, viver como baldias, significa
para as PSR uma forma de existência, um estilo de alguma manei-
ra escolhido. Errar, ser baldia, nesse contexto, é uma implicação
dos vários significantes que a perambulação, a peregrinação e o
vagueamento incorporam.
O complexo universo psi das PSR em função do centro da
cidade e seus transeuntes se constrói por meio de antíteses: casa
-rua, centro-margem, visíveis-invisíveis, trabalhador-desocupado,
sóbrio-bêbado, honesto-desonesto, vítima-bandido, ordem-desor-
dem, limpeza-sujeira e igualdade-desigualdade. São binariedades
que engendram compostos psicossociais das PSR, fazendo emer-

- 229 -
gir identidades flutuantes e conceitos fluidos, a partir dos quais a
ideia de ser ou não ser faz parte do cotidiano.

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- 231 -
- 232 -
Atribuições causais sobre o rendimento
escolar de estudantes manauaras

Gisele Cristina Resende


Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas

Introdução
A teoria das atribuições causais surgiu a partir do estu-
do das motivações humanas, definidas como um estado interior
que estimula, direciona e mantém um comportamento (WOOL-
FOLK, 2000). Os primeiros estudos psicossociais sobre motivação
correlacionaram-na com a representação social e posteriormente
demonstraram, que em termos gerais, as pessoas atribuem cau-
sas para os eventos, de acordo com suas crenças, para explicarem
as próprias atuações, evidenciando as motivações e as percepções
pessoais acerca de si mesmo e do mundo social (LÉON, DELGADO,
1998).
A teoria da atribuição causal, utilizada nesse trabalho,
pressupõe que as pessoas podem atribuir causas ou motivos às
suas ações (WEINER, 1985; WOLFOOLK, 2000; MARTINI, BORU-
CHOVITCH, 2004; MASCARENHAS, 2004; LEFRANÇOIS, 2005;
MASCARENHAS, ALMEIDA, BARCA, 2005; ALMEIDA, GUISANDE,
2010). É possível entender as atribuições causais como comporta-
mento motivado pelo desejo humano de explicar e prever o meio
ambiente onde se insere. Essa teoria integra o pensamento, o sen-
timento e a ação.
Weiner (1985) enfoca que há uma relação entre a atri-
buição de causalidade com o sucesso e o fracasso na realização de
tarefa, de forma que crenças e expectativas depositadas nessa rea-
lização podem favorecer um desses aspectos. Além disso, defen-
de que a autoestima, o autoconceito e as expectativas são grandes
determinantes do desempenho em tarefas e são influenciados por
aquilo que o indivíduo atribui como causa para o sucesso ou para
o fracasso. O autor elaborou uma classificação para as causas atri-
buídas ao desempenho positivo ou negativo em situações de rea-

- 233 -
lização, de acordo com uma taxonomia, na qual a causa apresenta
três dimensões, são elas: o Lócus da Causalidade, a Estabilidade e
a Controlabilidade.
Na dimensão do Lócus da Causalidade, as atribuições
são distribuídas a fatores internos (o esforço típico, o esforço ime-
diato, a habilidade, o humor, a fadiga e a doença) ou externos ao
indivíduo (viés do professor, dificuldade da tarefa, sorte e ajuda
não usual de outros). A atribuição voltada para fatores internos ou
externos propiciam fortes reações emocionais com reflexos na au-
toestima, pois favorecem uma reflexão sobre o próprio eu, sobre
sua capacidade e as formas de desempenho que possui, desenca-
deando sentimentos positivos (orgulho, competência e satisfação)
e/ou sentimentos negativos (de incompetência e vergonha), Wool-
folk (2000, p. 339) ilustra afirmando que “Se sucesso ou fracasso é
atribuído a fatores internos, o sucesso levará a orgulho e a aumen-
to da motivação, enquanto o fracasso diminuirá a autoestima”.
A dimensão da Estabilidade, classifica as causas em está-
veis (invariantes) e instáveis (variantes), sob a forma de um conti-
nuum. Assim, habilidade, esforço típico, viés do professor, família,
dificuldade da tarefa podem ser vistos como relativamente está-
veis; esforço imediato, humor, fadiga, doenças, ajuda não usual de
outros e sorte podem ser vistos como mais instáveis. Quanto ao
aspecto afetivo, atribuição de causas estáveis para fracasso, como
habilidade e dificuldade da tarefa (portanto, que dificilmente va-
riarão), podem suscitar emoções de falta de confiança e desalento.
Atribuição de causas estáveis como habilidade e esforço típico para
sucesso podem suscitar confiança. Essa dimensão tem especial in-
fluência nas alterações das expectativas de desempenho futuro,
pois ao serem atribuídas causas positivas e estáveis ao sucesso, o
sujeito visualizará melhores perspectivas (ALMEIDA, GUISANDE,
2010).
A Controlabilidade consiste em perceber se a causa atri-
buída é controlável ou incontrolável pelo sujeito. Causas como
habilidade, dificuldade da tarefa, fadiga, sorte, viés do professor e
ajuda dos outros seriam vistas como incontroláveis pelo sujeito.
Essa dimensão está associada à emoções como gratidão e orgulho
em caso de sucesso atribuído ao bom desempenho na tarefa, seja
por ajuda de outros ou esforço próprio, e, raiva, vergonha e culpa

- 234 -
em caso de fracasso em função de interferência externa ou falta de
dedicação e esforço (WEINER, 1985; MASCARENHAS, ALMEIDA,
BARCA, 2005, MARTINI, BORUCHOVITCH, 2004).
Esses três lócus da atribuição causal são desenvolvidos
durante o ciclo vital, e influenciarão na motivação e na regulação
da aprendizagem dos indivíduos. Entender esse processo de de-
senvolvimento se faz primordial para a articulação de ações que
favoreçam a responsabilização para a vida.
A teoria das atribuições causais pode ser um aporte teó-
rico utilizado para explicar a aprendizagem e o desempenho aca-
dêmico, pois se acredita que o aluno no ambiente escolar atribui
causas para o seu desempenho conforme os resultados obtidos
(bom ou fraco rendimento). Os estudantes possuem estilos atri-
buicionais advindos das crenças originadas a partir de suas expe-
riências de vida (em situações de sucesso ou fracasso a partir dos
resultados obtidos), que repercutem na autoestima, no autocon-
ceito e na maneira de significar a aprendizagem.
A classificação dos estilos atribuicionais, também depen-
dem dos significados subjetivos que essa causa possui para o indi-
víduo e para o contexto no qual ele se encontra inserido. De acordo
Martini e Boruchovitch (2004), Mascarenhas (2004) e Almeida
e Guisande (2010) a informação sobre o desempenho de outras
pessoas afeta a interpretação que a pessoa faz das causas de sua
própria realização; um exemplo disso é quando todos os alunos
tiram boa nota, supõe-se que o professor é bom ou a matéria é fá-
cil, a atribuição apontada pode ser a externa como o professor/
conteúdo.
As atribuições e o desempenho pregressos podem ser
determinantes na elaboração das expectativas de sucesso e de fra-
casso futuros, o que denota que há uma relação entre atribuições
causais e rendimento escolar. Para muitos autores as atribuições
condicionam a motivação dos alunos e reflete diretamente na
aprendizagem, por isso a importância de conhecê-las. Aplicando a
teoria de atribuição causal ao contexto educacional pode-se obter
explicações sobre a motivação para a aprendizagem correlacio-
nando ao rendimento escolar e dessa forma, contribuir para a ela-
boração de planejamentos e ações que promovam a aprendizagem
regulada e melhor desempenho acadêmico/rendimento escolar

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(MARTINI, BORUCHOVITCH, 2004; MASCARENHAS, 2004; ALMEI-
DA, GUISANDE, 2010; SILVA, MASCARENHAS, SILVA, 2010)

Objetivos
Objetivo geral da pesquisa foi identificar as atribuições
causais de alunos do 9º ano do ensino fundamental da cidade de
Manaus/AM sobre seu rendimento escolar; e como objetivos espe-
cíficos foram:
Caracterizar as atribuições causais quanto às dimensões
do lócus da causalidade: internabilidade/externabilidade, estabi-
lidade/instabilidade e controlabilidade/não controlabilidade, que
refletem o aspecto emocional e motivacional da aprendizagem.
Analisar aspectos psicométricos (precisão e validade) do
QARE em estudantes manauaras.

Método
Esse estudo foi desenvolvido com base em delineamento
quantitativo, tendo recorte transversal, descritivo-comparativo e
interpretativo. Desenvolvido na rede de ensino da cidade de Ma-
naus/AM, coordenadas pela Secretaria de Estadual da Educação e
Qualidade do Ensino (SEDUC). O projeto de pesquisa foi apresen-
tado ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do
Amazonas (UFAM) e aprovado, conforme o Certificado de Apresen-
tação à Apreciação Ética (CAAE) nº 0229.0.115.000-10.

População/Amostra
A população estudada consistiu em estudantes do 9º ano
do ensino fundamental público e da rede estadual da cidade de Ma-
naus/AM em 2010. A escolha dessa população ocorreu porque os
alunos que cursam esse ano escolar possuem a idade cronológica
mínima de quatorze (14) anos. De acordo com os estudos sobre
o desenvolvimento da capacidade de atribuir causas aos eventos
(FARIA, 2000; BORUCHOVITCH, MARTINI, 2004) é aproximada-
mente a partir dos 11 e 12 anos de idade que o estudante possui
maior clareza e capacidade para atribuir causas ao seu rendimento
escolar.
A amostra foi composta por N= 1.011 estudantes de am-
bos os sexos, sendo 53,7% (N = 543) de estudantes do sexo femi-
nino e 46,3% de estudantes do sexo masculino (N=468). A idade

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variou entre 12 anos e 23 anos, sendo que a média de idade foi de
15 anos e desvio padrão de 1,15 anos. Ela é considerada estatisti-
camente significativa, pois foi calculada utilizando-se como refe-
rência a população geral de estudantes pertencentes a esse nível
de ensino (21.788) com um erro amostral de 5% e uma significân-
cia estatística de 99%, sendo que após o cálculo obteve-se o coe-
ficiente de 644 estudantes, entretanto no trabalho de investigação
de campo, pode-se obter um número mais elevado, o que favoreceu
melhores análises e generalizações dos resultados.

Instrumento
O instrumento utilizado foi o Questionário de Atribuições
para Resultados Escolares (QARE de ALMEIDA & MIRANDA, 2008
– traduzido e adaptado por MASCARENHAS, 2010). O QARE pode
ser compreendido como um instrumento psicológico, em formato
de questionário, capaz de diagnosticar as atribuições causais dos
alunos estudados, categorizando-as em grupos de causas atribui-
cionais: (i) as capacidades ou falta de capacidades dos alunos, (ii) o
esforço e aspectos da organização do estudo ou a falta de esforço e
de organização do estudo, e (iii) fatores aleatórios e contingências
externas.
Na primeira parte do QARE há perguntas referentes aos
dados de identificação do estudante e informações sociodemográ-
ficas, como: sexo, idade, ano escolar, curso, nota da disciplina de
português e da disciplina de matemática, profissão do pai e da mãe
e habilitação escolar, se há reprovações anteriores e a quantidade
e em que anos da escolaridade, e como o estudante define seu de-
sempenho acadêmico em termos globais atualmente e no ensino
básico.
Na segunda parte são apresentadas as causas para o bom
rendimento e para o fraco rendimento escolar. Para cada uma des-
tas situações, apresentam-se 22 itens (justificativas ou causas pos-
síveis), devendo o aluno classificar cada uma delas de acordo com
uma escala de tipo likert com 5 pontos (desde 1 ou nunca até 5 ou
sempre).

Coleta de dados
Os dados foram coletados pela pesquisadora com o auxí-
lio de alunos voluntários da Graduação em Psicologia da Universi-

- 237 -
dade Federal do Amazonas, após treinamento acerca da pesquisa
e sobre a forma de adentrar ao campo de pesquisa. As atividades
de coleta de dados foram efetivadas junto às dependências de onze
escolas públicas de ensino fundamental, selecionadas aleatoria-
mente e que aceitaram o convite para a pesquisa. Os alunos res-
ponderam coletivamente o QARE em sala de aula, no horário esco-
lar em data agendada, após a entrega do Termo de Consentimento
Livre e Esclarecido assinado pelos pais e responsáveis. A aplicação
do questionário teve a média de 30 minutos de duração.

Tratamento e análise dos dados


Os dados foram tratados com o auxílio do programa esta-
tístico Statistical Package for Social Sciences (SPSS) para Windows
versão 15.0. A análise estatística consistiu primeiramente na esta-
tística descritiva, isto é, na descrição dos dados da amostra (sexo,
idade).
Realizou-se, também a análise psicométrica por meio da
Análise de Componentes Principais por meio da Análise Fatorial
Exploratória, para verificar os itens do QARE que correspondiam
ao bom rendimento e ao fraco rendimento e que se aglutinariam
em fatores explicativos para as atribuições causais, evidenciando
a validade do instrumento. Verificou-se a precisão do QARE por
meio da extração do Alfa de Cronbach, uma medida avaliativa que
avalia a consistência interna entre os itens, evidenciando se o ins-
trumento avalia adequadamente o construto.

Resultados e discussão
Os resultados foram organizados de acordo com os ob-
jetivos do estudo. Iniciou-se com a apresentação das característi-
cas psicométricas (validade – análise de componentes principais e
precisão – análise do Alfa de Cronbach) do QARE e seguiu-se com a
análise fatorial que explica o estilo atribuicional dos estudantes de
Manaus, de acordo com o lócus da causalidade.

Análises Psicométricas: Análise de Componentes


Principais (ACP), Análise Fatorial Exploratória e Análise de
Precisão
Objetivando examinar os indicadores de validade do
QARE foi realizada a análise fatorial de natureza exploratória por

- 238 -
meio da Análise de Componentes Principais. Através da análise
fatorial objetivou mostrar os fatores encontrados nos resultados
obtidos com a aplicação do Questionário das Atribuições Causais
(QARE) relacionando tais fatores com a teoria das atribuições cau-
sais, para demonstrar o quanto cada item do questionário está
associado com as causas apontadas como explicação do sucesso
(bom desempenho) ou fracasso (fraco desempenho) escolar agru-
pados em fatores mais gerais que revelam o estilo atribuicional dos
estudantes.
Como procedimento anterior à analise fatorial, viu-se as
condições de adequabilidade para tal procedimento, de forma que
foi estimado o coeficiente de Kaiser-Meyer Olkin (KMO e prova
de Bartlett) que avaliou a variância dos grupos. O KMO=0,898 e
p≥0,001, percebeu-se que em relação à adequação amostral os re-
sultados são considerados adequados. O qui-quadrado aproxima-
do foi de 4996,436 com grau de liberdade (gl) de 231; outro dado
importante foi o nível de significância da prova também resultou
em muito bom, pois foi de p≥0,05. Assim, percebeu-se que a amos-
tra estudada é adequada e representa a realidade dos estudantes
do 9º ano do ensino fundamental da rede pública estadual do mu-
nicípio de Manaus. Após a prova de KMO e prova de Bartlett fez-se
a análise da Matriz de Componentes Rodados objetivando-se cate-
gorizar os resultados em fatores que expliquem o bom rendimen-
to escolar para correlacioná-los à teoria das atribuições causais e
conseguir-se um perfil dos estudantes.
Para a composição dos fatores apresentados nesta pes-
quisa, a técnica de redução de dados foi a rotação Varimax de
componentes principais dos itens do QARE. O teste da matriz dos
componentes rodados demonstrou que para a população de estu-
dantes do 9º ano do ensino fundamental da rede pública estadual
do município de Manaus há quatro componentes principais para
caracterizar o bom desempenho. Os fatores resultantes da análi-
se fatorial descritiva e também as propriedades psicométricas do
QARE são apresentadas na Tabela 1.

- 239 -
Tabela 1 – Características e Propriedades Psicométricas do QARE-
para o bom rendimento ensino fundamental Manaus.

Fonte: dados do QARE em Manaus/2010


Método de extração: Análises de componentes principais.
Método de rotação: Normalização Varimax com Kaiser. Rotação convergida em 6 iterações.

Os resultados psicométricos do presente estudo apre-


sentaram boas características de validade, pois os fatores apre-
sentados explicam o estilo atribuicional dos estudantes. Também
a precisão do instrumento, analisada pelo Alfa de Cronbach apre-
sentou boa fiabilidade, com alfa total de 0,85 significando que há
confiabilidade no QARE.
A seguir são explicados os fatores encontrados explicati-
vos para o rendimento escolar.

Fator 1: Atribuição do bom rendimento a aspectos


relacionados ao Estudo - este fator caracteriza a motivação para
estudar (gosto), o empenho colocado nos estudos (horas de estu-
do), organização dos apontamentos (método de estudo, atenção e

- 240 -
concentração), e reconhecimento recebido por ser um aluno que
estuda. Os itens do questionário que formaram esse fator foram
os numerados em: 3 (carga fatorial de 0,701), 4 (carga fatorial de
0,631), 6 (carga fatorial de 0,453), 7 (carga fatorial de 0,620), 15
(carga fatorial de 0,705), 16 (carga fatorial de 0,726) e 17 (car-
ga fatorial de 0,501), maior que o mínimo estabelecido de carga
fatorial que foi de 0,30 e Alfa de Cronbach maior que 0,80; esses
resultados apresentam alta significação.
Demonstrou que os estudantes tendem a atribuir como
causalidade para o seu bom desempenho seu esforço, organização
e método de estudo. O fator apresenta valor próprio de 3,245; per-
centual de variância total explicada de 14,750% e Alfa de Cronbach
0,799, considerado bom e adequado, significando boa fiabilidade
do fator. Observou-se que esta dimensão de indicadores sugere
que os estudantes acreditam na organização e estratégias de estu-
do como variáveis importantes para o bom desempenho.
As causas atribuídas encontram-se também na dimen-
são da controlabilidade e da instabilidade, pois ao se organizar e
estabelecer métodos de estudo o aluno exercita seu autocontrole,
mas isso pode variar conforme a circunstância do momento e vida.
Assim o bom rendimento explicado nessa perspectiva depende em
maior parte de fatores pessoais.
Weiner (1986 apud ALMEIDA & GUISANDE, 2010; MAS-
CARENHAS, 2004) defende que ao localizar a causa na internali-
dade, o sujeito tende a demonstrar auto estima mais elevada, pois
pode ter percepção de suas capacidades de organização, esforço e
as formas de desempenho que possui para planejar um método de
estudo, propiciando a reflexão sobre o próprio eu. O processo re-
flexivo também pode desencadear um autoconceito acadêmico po-
sitivo na esfera do eu e no ambiente escolar, de acordo com Miras
(2004) é a representação que o aluno tem de si mesmo enquanto
aprendiz, como uma pessoa dotada de capacidades ou habilidades
para a aprendizagem em um contexto educativo.

Fator 2 – Atribuição do bom rendimento a aspectos


relacionados aos Professores e estrutura material - o segundo
fator do QARE para o bom rendimento é composto por itens como
o incentivo, a explicação e a capacidade de ensino dos professores,
estrutura material da escola e acesso a boas fontes de materiais.

- 241 -
Agrupou os itens do questionário numerados com: 8 (carga fatorial
de 0,647), 9 (carga fatorial de 0,707), 10 (carga fatorial de 0,756),
21(carga fatorial de 0,596) e 22 (carga fatorial de 0,523), e Alfas
de Cronbach maior que 0,80. Apresentou valor próprio de 2,669;
índice de variância total explicada de 12,131 % e Alfa de Cronbach
de 0,720 considerado bom e aceitável. Os resultados das análises
podem indicar que os alunos realmente confiam que os professo-
res e contingências externas podem favorecer o bom desempenho.
São causa nas dimensões do lócus externalidade, da in-
controlabilidade e da instabilidade. Percebeu-se que os estudantes
da rede pública estadual de Manaus valorizam a ação pedagógi-
ca dos professores, pois os apontam como responsáveis pelo bom
rendimento. A infraestrutura física e material para os estudos tam-
bém é valorizada socialmente e economicamente, de forma que o
bom rendimento ou o sucesso escolar associa-se essas condições,
confirmando que autores da área da educação defendem. Pes-
quisadores e educadores reconhecem a multiplicidade de fatores
responsáveis pelo sucesso e fracasso escolar (SPOZATI, 2000; AN-
GELUCCI, KALMUS, PAPARELLI, PATTO, 2004) e pela situação da
educação no Brasil e explicam que o sucesso e o fracasso devem
ser correlacionados tanto a fatores intra como extraescolares. Os
fatores intraescolares são a infraestrutura oferecida pela institui-
ção de ensino, o currículo, os programas de ensino e metodologia e
as relações de competitividade e seletividade que são instauradas
no ambiente escolar, pode-se associar os professores e a estrutura
material da escola como exemplo desses aspectos apontados pelos
autores. Tratando-se dos fatores extraescolares estão às condições
socioeconômicas e muitas vezes as condições de privações pelas
quais a população brasileira passa.

Fator 3 – Atribuição do bom rendimento a aspectos


relacionados às Capacidades e habilidades cognitivas - este
fator caracteriza-se por itens onde estão incluídas causas atribuí-
das ao bom rendimento que se associam a capacidades intelec-
tuais, facilidade de compreensão (capacidade de elaborar bons
apontamentos), facilidade de decorar assuntos (memorização) e
conhecimentos e bases anteriores que facilitam o aprendizado.
Denominou-se essa categoria como relacionadas às capacidades e
habilidades cognitivas porque as causas atribuídas se relacionam

- 242 -
com as capacidades cognitivas requeridas no processo de apren-
dizagem (intelecto, memória, compreensão). O fator foi integrado
pelos itens do questionário numerados com: 1 (carga fatorial de
0,611), 2 (carga fatorial de 0,652), 5 (carga fatorial de 0,657), 13
(carga fatorial de 0,599) e 20(carga fatorial de 0,558) e Alfas de
Cronbach maior que 0,80 nos itens citados. O valor próprio foi de
2,332; índice de variância total explicada de 10,598 % e Alfa de
Cronbach de 0,681 bom e aceitável, demonstrando, assim, uma boa
fiabilidade.
Denominou-se essa categoria como relacionadas às ca-
pacidades e habilidades cognitivas porque as causas atribuídas se
relacionam com as capacidades cognitivas requeridas no processo
de aprendizagem (intelecto, memória, compreensão).
Os estudantes manauaras acreditam que as capacidades
e habilidades cognitivas se relacionam com o sucesso escolar por-
que as atribuíram como uma causa explicativa. Ela é uma causa
no lócus da internalidade, de modo que se reflete na autoestima
como um aspecto positivo. Woolfolk (2000) afirma que a atribui-
ção dessa causa ao sucesso (bom rendimento) levará a orgulho e
ao aumento da motivação. Também é uma causa na dimensão da
estabilidade, de modo que os alunos demonstraram possuir auto-
confiança.
Segundo Weiner (1985) a atribuição de causas estáveis
como habilidade e capacidade para sucesso pode suscitar confian-
ça. Essa dimensão tem especial influência nas alterações das ex-
pectativas de desempenho futuro, pois ao serem atribuídas causas
positivas e estáveis ao sucesso, o sujeito terá melhores perspecti-
vas.
Além disso, é uma causa na dimensão da controlabilida-
de, não controlável pelo sujeito, de forma que o sujeito não a con-
trola, mas infere-se que a partir do momento em que acredita que
é possuidor de capacidades intelectuais pode ficar mais motivado
para a aprendizagem e superar dificuldades que possam surgir,
agindo sobre a causalidade da qual não tem domínio por ser in-
controlável.

Fator 4 – Atribuição do bom rendimento a aspectos


relacionados à Sorte e apoio externo - é caracterizado por
variáveis como a ajuda de colegas, ser boa pessoa e receber ajuda

- 243 -
dos professores, provas fáceis e boa sorte. Reuniu os itens do ques-
tionário numerados com: 12 (carga fatorial de 0,559), 14 (carga fa-
torial de 0,525), 18 (carga fatorial de 0,713) e 19 (carga fatorial de
0,510) e Alfa de Cronbach maiores que 0,80 considerados ótimos.
O fator apresentou um valor próprio de 1,639; um índice
de variância total explicada de 7,448 % e Alfa de Cronbach de 0,
490, portanto considerado fraco. Esse fator demonstrou não apre-
sentar uma boa fiabilidade. Talvez por ser uma causa externa, in-
controlável e instável para favorecer o bom desempenho, pode-se
inferir que esse comportamento ocorra devido ao grande número
de reprovações e frustrações vivenciadas relacionadas ao rendi-
mento acadêmico.
Atribuir o bom rendimento à sorte pode demonstrar que
o estudante não assume responsabilidade pelos seus estudos, pois
a atribuição causal está no lócus externo, incontrolável e instável.
Esses estudantes podem não possuir uma autoestima elevada e
ausência de método e hábito de estudo. Além disso, podem apre-
sentar um comportamento sem autonomia e iniciativa em relação
aos estudos.
Os resultados demonstram que os estudantes amazo-
nenses em alguns momentos são ativos, possuem intenção, auto
-organização e capacidade reflexiva e não somente movidos por
forças ambientais. Eles podem agir para construir sua aprendiza-
gem, pois são capazes de participar das atividades de aquisição
de conhecimento, escolhem, prestam atenção, refletem e tomam
decisões para que ocorra a aprendizagem e sabem atribuir causas
ao rendimento escolar (WOOLFOLK, 2000; LEFRANÇOIS, 2008,
ALMEIDA, GUISANDE, 2010).

Análises das atribuições ao fraco desempenho escolar


Em relação ao baixo desempenho, primeiramente ana-
lisou-se a fiabilidade dos 22 itens do questionário relacionados
ao fraco desempenho, no qual o Alfa de Cronbach foi o de 0,893
significando uma ótima fiabilidade, ou seja, o questionário QARE
(Questionário de Atribuições dos Resultados Escolares) demons-
trou apresentar itens que correspondem com a realidade dos alu-
nos pesquisados.
Na prova de Kaiser-Meyer Olkin (KMO e prova de Bartlett)
que avaliou a variância dos grupos, percebeu-se que em relação

- 244 -
à adequação amostral os resultados são considerados adequados
para este tipo de análise estatística, pois o valor é maior que 0,60
(resultado aceitável) e nesses itens do questionário o resultado
foi de KMO=0,925 e p≥0,001 . O qui-quadrado aproximado foi de
6620,965 com grau de liberdade (gl) de 231. Outro dado impor-
tante é que o nível de significância da prova também resultou em
muito bom, p≥0,05. Assim percebeu-se que os dados da amostra
estudada apresentam características adequadas para realização da
análise fatorial como apresenta a tabela abaixo.
Após a prova de KMO e prova de Bartlett fez-se a análi-
se dos dados através da matriz de componentes rodados para se
obter os fatores explicativos para o fraco rendimento. O cálculo
da matriz dos componentes rodados gerou uma matriz fatorial
com quatro componentes principais para caracterizar o baixo de-
sempenho. Os resultados da análise encontram-se na Tabela 2.
Tabela 2 - Características e Propriedades Psicométricas do QARE-
para o fraco rendimento ensino fundamental Manaus.

Fonte: dados do QARE em Manaus/2010


Método de extração: Análises de componentes principais.

- 245 -
Método de rotação: Normalização Varimax com Kaiser. Rotação convergida em 6 iterações.
Os resultados nessa análise fatorial demonstraram que
se pode agrupar itens do questionário em quatro fatores explicati-
vos que foram denominados a partir da natureza a que se referem
de acordo com a teoria de Weiner (1985). O conjunto de indicado-
res psicométricos do QARE relacionado à atribuição ao baixo ren-
dimento escolar aplicado a uma amostra de N = 1011 estudantes
de Manaus, apresentou ótima fiabilidade nos itens porque o Alfa de
Cronbach foi superior a 0,80 e gerou 4 fatores explicativos para o
fraco rendimento que refletem o estilo atribuicional dos estudan-
tes de Manaus.

Fator 1 - Atribuição do baixo rendimento a aspectos


relacionados ao Estudo - são apontadas causas como dificuldade
e falta de organização nos apontamentos, pouco tempo dedicado
aos estudos, pouca vontade de estudar (desmotivação), desaten-
ção e professores que rotulam o discente como mau aluno. Esse
fator foi composto pelos itens do questionário numerados com: 3
(carga fatorial de 0,626), 4 (carga fatorial de 0,673), 6 (carga fa-
torial de 0,601), 7 (carga fatorial de 0,482), 15 (carga fatorial de
0,704), 16 (carga fatorial de 0,661) e 19 (carga fatorial de 0,377).
Todos os itens obtiveram um Alfa de Cronbach maior que 0,80; es-
ses valores apresentam ótima significação.
O fator foi denominado Estudos (organização, estratégias
e motivação) e refere-se aos estudos e aos métodos e esforço dedi-
cado, bem como a motivação advinda dessa atitude. De acordo com
as análises psicométricas apresenta valor próprio de 3,184; o per-
centual de variância total explicada de 14,474% e Alfa de Cronbach
0,803 que é considerado muito bom e adequado, significando uma
fiabilidade do fator. Observou-se que os indicadores deste fator são
aceitáveis uma vez que, de acordo com a literatura especializada.
As causas desse estão nas dimensões internas, instáveis
e controláveis pelo estudante quando relacionadas à falta de orga-
nização para estudos e falta de esforço. E externas quando associa-
das à crença de ter sido marcado como mau aluno. A desmotiva-
ção está na dimensão da instabilidade, pois pode ser modificada e
transformada se as circunstâncias (internas e externas) se modifi-
carem e alterarem a capacidade de atenção e concentração.
O apontamento das mesmas pode estar relacionado a

- 246 -
um autoconceito acadêmico negativo, uma vez que os estudantes
apresentam dificuldades para os estudos, tanto no que se refere
à organização como no tempo dedicado para o mesmo. A crença
nessas atribuições pode ocasionar sentimentos de culpa pelo insu-
cesso, incompetência e perda de confiança em si mesmo, e, baixas
expectativas para o futuro (ALMEIDA, GUISANDE, 2010).
Assim percebe-se que os alunos da rede pública podem
apresentar esses sentimentos ao vivenciarem o baixo rendimento
e que precisam de apoio e orientação para que percebam que po-
dem superar as dificuldades e alcançar o bom desempenho através
de métodos de estudos adequados ao seu perfil e esforço.

Fator 2 - Atribuição do fraco rendimento a aspectos


relacionados a Capacidades e habilidades cognitivas - nesse fa-
tor os estudantes apontaram itens que se relacionam com as capa-
cidades cognitivas, como dificuldade de memorização, compreen-
são, atenção e concentração, falta de inteligência, e dificuldade dos
testes e avaliações. Esse fator integrou os itens do questionário
numerados com: 1 (carga fatorial de 0,686), 2 (carga fatorial de
0,748), 5 (carga fatorial de 0,649), 13(carga fatorial de 0,510) e 14
(carga fatorial de 0,421) e Alfa de Cronbach maiores que 0,80.
Percebeu-se que os estudantes apontaram essas causas
para o baixo desempenho acadêmico, provavelmente porque acre-
ditam que é necessário ter capacidades cognitivas para obter su-
cesso escolar, de forma que a ausência desses aspectos ou dificul-
dades dessa natureza possam ser causas para o fracasso ou baixo
desempenho.
O fator foi referente à inteligência e cognição e apresen-
tou valor próprio de 2,738; índice de variância total explicada de
12,444% e Alfa de Cronbach de 0,758 considerado bom e aceitável.
Percebeu-se que os estudantes apontaram essas causas
para o baixo desempenho acadêmico, provavelmente porque acre-
ditam que é necessário ter capacidades cognitivas para obter su-
cesso escolar, de forma que a ausência desses aspectos ou dificul-
dades dessa natureza podem ser causas para o fracasso ou baixo
desempenho.
Mascarenhas (2004) afirma que os alunos buscam em
suas experiências escolares (notas e vivências) as causas para ex-

- 247 -
plicar o desempenho, assim lança mão das concepções que possui
sobre si mesmo e dos seus pares com relação às tarefas de apren-
dizagem. Percebeu-se que os estudantes de Manaus buscaram na
experiência anterior as causas para o fraco desempenho, os dados
descritivos da amostra já apontaram para um índice alto de repro-
vação (40,7%), de forma a inferir que as causas encontradas nesse
fator podem remeter a essa experiência negativa, que provavel-
mente suscitou nos alunos essa atribuição para o fraco desempe-
nho como a ausência de capacidades para os estudos.
As capacidades são causas no lócus da internalidade e
podendo repercutir no autoconceito acadêmico, ou seja, os alunos
podem conceber-se como pessoas sem capacidades e fadadas ao
baixo rendimento. Woolfolk (2000) afirma que a atribuição des-
sa causa ao fracasso (baixo desempenho) levará a um reflexo na
autoestima, como sua diminuição. Também na dimensão da esta-
bilidade, de modo que os alunos demonstraram não possuir auto-
confiança porque acreditam que a capacidade cognitiva não sofre
modificações. Além disso, as capacidades são causas incontrolá-
veis pelo aluno, infere-se que a partir do momento em que o es-
tudante acredita que não é possuidor de capacidades intelectuais
pode ficar mais desmotivado para a aprendizagem e apresentar
dificuldades e um rendimento acadêmico mais fraco e baixo em
relação ao esperado.
Pode-se inferir que esse fator chama a atenção para o fra-
co desempenho porque é uma causa interna ao sujeito e o mesmo
ao vivenciar uma situação de fracasso pode atribuir a si mesmo a
causa de tal desempenho.

Fator 3 – Atribuição do fraco rendimento aos Profes-


sores e a falta de apoio externo (família) - congrega variáveis
como a falta de incentivo e reconhecimento de professores, a falta
de explicação e representações sobre possíveis limitações na meto-
dologia de ensino dos professores, a falta de apoio da família. Esse
fator agrupou os itens do questionário numerados com: 8 (carga
fatorial de 0,766), 9 (carga fatorial de 0,785), 10 (carga fatorial de
0,758), 11 (carga fatorial de 0,323) e 17 (carga fatorial de 0,477) e
Alfas de Cronbach acima de 0,80.
Esse terceiro fator apresentou valor próprio de 2,692;
índice de variância total explicada de 12,237 % e Alfa de Cronbach

- 248 -
de 0,751 também bom e aceitável. Demonstrou uma boa fiabilida-
de, pois os alunos realmente confiam que os professores e o apoio
externo da família pode favorecer o sucesso, e a ausência delas o
fracasso escolar.
Essas causas estão localizadas na externalidade do aluno
e dessa forma o baixo rendimento pode estar associado a algo que
está fora do sujeito, também está na dimensão do não controlável,
ou seja, eles entendem que não possuem controle sobre o rendi-
mento, pois é uma causa que está fora dele e que o outro (professor
e família) tem o domínio. Sabe-se que o apoio externo contribui
para a aprendizagem, entretanto, ressalta-se que o aluno neces-
sita de autoconfiança, autoestima e um autoconceito acadêmico
positivo e fundado em capacidades internas para obter um bom
rendimento.

Fator 4 – Atribuição do fraco rendimento a aspectos


relacionados à Sorte e estrutura material externa - os itens
agrupados do QARE referiram-se à falta de sorte e limitações quan-
to a conhecimentos curriculares anteriores, deficiente estrutura da
escola e falta de acesso a boas fontes de materiais e ajuda dos co-
legas. Esse fator reuniu os itens do questionário numerados com:
12 (carga fatorial de 0,485), 18 (carga fatorial de 0,618), 20 (carga
fatorial de 0,451), 21 (carga fatorial de 0,523) e 22 (carga fatorial
de 0,582), Alfas de Cronbach maiores que 0,80 em cada item.
O fator apresentou valor próprio de 2,213; índice de
variância total explicada de 10,057 % e Alfa de Cronbach 0,611
considerado bom. Essa dimensão fatorial também demonstra uma
fiabilidade aceitável. Os estudantes optaram por essa explicação
não a elencando como elemento principal no fraco desempenho,
mas como componentes desse processo. Talvez isso ocorra porque
a infraestrutura física e material é uma causa externa e geralmente
o ser humano ao vivenciar uma situação frustrante, como o fraco
desempenho, acredita que a causa para tal não está nos aspectos
externos à ele, como a estrutura física e material.
Para os sujeitos pesquisados a ausência de sorte e da in-
fraestrutura física e material para os estudos foi pensada carac-
terizando o estilo atribuicional dos estudantes manauaras para a
explicação do fraco rendimento escolar.

- 249 -
Nesse aspecto as atribuições causais apontadas encon-
tram-se no lócus da externalidade, ou seja, está no ambiente ex-
terno ao aluno (estrutura física, material, sorte e ajuda do colega).
Na dimensão da instabilidade, porque é um fator que pode variar
em diversos momentos e na dimensão da não-controlabilidade,
pois não é controlável pelo aluno. Para os sujeitos pesquisados a
infraestrutura física e material para os estudos foi valorizada ca-
racterizando o estilo atribuicional dos estudantes manauaras para
a explicação do fraco rendimento escolar.
A sorte, outra causa apontada, é um aspecto que reflete o
peso concedido à pouca sorte ou à sorte relacionado aos resultados
acadêmicos (WEINER, 1996 apud ALMEIDA, GUISANDE, 2010).
Essa atribuição pode gerar sentimentos de ausência de responsa-
bilidade diante do fracasso e incerteza para o futuro nos estudan-
tes manauaras. Este dado evidencia a importância da identificação
do estilo de atribuição causal dos estudantes para apoiar ações dos
serviços de orientação educativa e psicologia escolar, no sentido de
reorientar o erro de atribuição dos estudantes enfatizando que o
baixo rendimento está associado a limitados métodos de estudos
e dedicação pessoal e não a variáveis incontroláveis como sorte ou
falta de sorte.

Considerações finais
Tomando em consideração a totalidade dos dados apu-
rados podemos afirmar que foi possível atingir com sucesso os
objetivos estabelecidos para a investigação em termos gerais ao
identificar as atribuições causais de alunos do 9º ano do ensino
fundamental da cidade de Manaus/AM sobre seu rendimento es-
colar, e, em termos específicos categorizar as atribuições causais
quanto às dimensões: lócus da causalidade, estabilidade e contro-
labilidade, que refletem o aspecto emocional e motivacional da
aprendizagem e verificar as qualidades psicométricas do instru-
mento.
Espera-se que as considerações desse estudo possam
contribuir para a elaboração de intervenções no ambiente esco-
lar para que o estudante adquira consciência de seu papel e res-
ponsabilidade, e que não seja “culpabilizado” pelos insucessos ou
baixo rendimento. A utilização da teoria das atribuições causais na

- 250 -
análise do rendimento escolar pode ser um elemento norteador
do sistema de ensino para o estabelecimento de estratégias e in-
tervenções que promovam o rendimento e o desenvolvimento da
aprendizagem. Nesse sentido, visualizaram-se algumas ações que
poderão favorecer o melhor desempenho dos alunos na cidade de
Manaus se implementadas e executadas na rede de ensino:
Formação de professores – esse primeiro nível de ação
visa formar os docentes tanto nos cursos de graduação como de
formação continuada, para que possam perceber o estilo atribui-
cional dos alunos e assim preparar atividades com nível de difi-
culdade motivador e propiciador de percepção das capacidades e
habilidades cognitivas.
Ação com os estudantes – i) processos avaliativos – pode-
se incluir uma mudança de concepção em relação ao objetivo das
avaliações. Elas podem ser propulsoras de aprendizagem, isto é,
norteadoras de capacidades, demonstrando que atribuições cau-
sais como o esforço e dedicação são importantes para o processo
de aprendizagem, ii) responsabilidade para com os estudos - acre-
dita-se que pode ser desenvolvida a consciência nos estudantes de
que são capazes de aprender e assumir responsabilidades para tal,
desenvolvendo hábitos de estudo que podem favorecer o bom ren-
dimento e revelam um estilo atribuicional interno e propulsor de
uma aprendizagem regulada.
Além disso, pode-se realizar a validação do instrumento
QARE para o contexto amazônico, obtendo bons indicadores psico-
métricos e o qualificando como um instrumento adequado para o
diagnóstico das atribuições causais em Manaus.

Referências
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da aprendizagem escolar. In: BORUCHOVITCH, E.; BZUNECK, J. A.;
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2000.

- 252 -
Caminhos percorridos pela infância:
conhecer, compreender, proteger1

Kelly Cristina Costa Albuquerque


Maria Ivonete Barbosa Tamboril

Introdução
É muito comum, hoje, encontrarmos reportagens e
estudos de diversos tipos sobre a infância. São relacionados
ao desenvolvimento, à educação, à saúde, à cultura e até, mais
rotineiro do que o desejado, aos maus tratos, à negligência, à
exploração e mesmo ao infanticídio. Em contraponto, já se ampliou
o interesse de áreas como a medicina, a neurociência, a psicologia
e a pedagogia em temas voltados à criança, o que favorece os estu-
dos e a qualidade de vida da nossa infância. Mas salientamos que,
sobre a história da infância, ainda existe certa limitação de pesqui-
sas e grandes incertezas.
A obra de Philippe Ariès, “História Social da Infância”, por
exemplo, publicada em 1960, na França, despertou e ainda desper-
ta, na sociedade moderna, grandes inquietações sobre as diver-
sas significações atribuídas à infância, entre os séculos XII e XVII,
como a visão “não romântica”, que aponta o autor, e o delinear de
sua história, o que levanta discordâncias de autores como Peter
Stearns (2006), que, em sua obra “A Infância”, faz uma retrospecti-
va da infância desde épocas remotas até os dias atuais.
Realizar uma retrospectiva acerca do percurso da in-
fância é deparar-se com sua história, tomando sempre moldes di-
ferenciados em contextos específicos. A criança já foi vista tanto
como pequeno adulto, como um ser sem condições físicas e psíqui-
cas e dependente de cuidadores, já foi amplamente considerada na
sociedade, como também ignorada. Já foi excluída e morta, assim
como superprotegida. Diante de tantas significações, considera-
1 Este trabalho é um recorte da dissertação de mestrado defendida em 2016, intitulada “Asinhas da
Florestania e o Processo escolarização de crianças amazônidas”, defendida junto ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade Federal de Rondônia sob a orientação da professora
Doutora Maria Ivonete Barbosa Tamboril.

- 253 -
mos necessário compreender essa fase do desenvolvimento, seu
contexto e sua história.
Um pouco da história da infância
dentre os autores que, hoje, discutem o assunto, é
pertinente a afirmação de Stearns (2006) que diz serem as abor-
dagens sobre a história da infância apenas a visão de adultos, o que
já provoca certo distanciamento daquilo que se fala e da realidade
vivenciada pelas crianças. Mesmo que todos os adultos já tenham
passado por essa fase da vida, o olhar será sempre o de um adulto.
Assim, é relevante refletirmos acerca da história da infância, pois
isso pode nos proporcionar oportunidade ímpar de descobertas e
compreensões de uma parcela da sociedade que não fala por si.
De acordo com Boto (2002, p. 57),

De fato, o que parece ser a voz corrente dos escritos sobre


educação, entre a Renascença e o Século das Luzes, é um dado
desejo de obtenção do mínimo denominador comum da infân-
cia: as características básicas presentes em todas as crianças,
qualquer que seja a classe, a nacionalidade, o nível de inteli-
gência etc. nisso, encontra-se um quê de silêncio, de separação,
de isolamento, e também de invisibilidade. A criança é muda;
em sua individualidade, é espectador silencioso; é silenciada
na sua voz, que, pelo suposto moderno, não saberá falar por si.
A criança dita pela razão moderna foi desencantada; sem dú-
vida. Foi secularizada e institucionalizada. Passamos – teóricos
da educação – a falar dela. Ao separar a criança do universo
adulto, a modernidade cria a infância como uma mônada –
unidade substancial ativa e individual; presente, no limite, em
todos os seres infantis da espécie humana: sempre a mesma,
sempre igual, inquebrantável, inamovível, irredutível – um mí-
nimo denominador comum. Não falamos mais das crianças, e
sim da infância.

Ainda segundo a autora, viajar pela história da infância


é encontrar discursos de adultos, vazios, e discursos ocultos de
quem não tinha voz, de quem viveu à margem da importância,
sem direitos, sem cuidados, sem afeto, a criança. E tentar encon-
trar esse “denominador comum” no olhar à infância pode incorrer
na despersonalização, na padronização de uma categoria, sem dar,
ainda, a devida atenção à existência de pessoas, que já fomos um
dia, crianças.

- 254 -
Até a contemporaneidade não existia grande preocupa-
ção com essa fase da vida humana. Na Antiguidade, a “infância”
não tinha lugar privilegiado nas discussões e posições sociais, nem
mesmo tinha espaço equivalente aos demais assuntos. Um exem-
plo é o posicionamento do grande filósofo grego Platão, que trouxe
o assunto à tona, para destacar qual seria a influência da infância
para o desenvolvimento das cidades, assim como sua estreita rela-
ção com a educação, que muito lhe interessava. Na visão do filóso-
fo, a infância era desnecessária, pois só trazia prejuízos à socieda-
de (KOHAN, 2003).
E assim, a criança era vista, na Era Clássica, como uma
pessoa em mudança, dependente, inclusive, para alimentar-se, e
sem grande serventia para o desenvolvimento social. No entanto a
educação esteve sempre presente nas discussões e preocupações
filosóficas, principalmente por meio dos filósofos educadores, os
sofistas, os profissionais na educação. Tal atenção favorecia de cer-
ta forma a infância e a juventude, já que a relação entre ambas e a
educação sempre existiu.
Essa visão mais voltada à educação e ao papel da crian-
ça na sociedade não é exclusividade da Grécia antiga. Há registros
históricos de que em Atenas e Esparta a educação era pensada de
forma peculiar. Para os atenienses, o desenvolvimento intelectual
era fundamental; já para os espartanos, havia grande preocupação
com a preparação física das crianças, almejando torná-las grandes
guerreiras. Mas em nenhuma das citadas a infância era pensada,
discutida e cuidada como uma fase do desenvolvimento huma-
no que requer cuidados e que possui seus encantos. Destacamos
que em Esparta as crianças que nasciam com qualquer deficiência
eram lançadas de penhascos, afogadas, assassinadas sem nenhu-
ma punição para quem cometia tal ato. Já nessa época, o infanticí-
dio era muito comum.
Na China, durante séculos, vigoraram os pensamentos
confucianos e, dentre eles, um que apresentava a cartilha de boas
maneiras, em que situações eram colocadas e o como se comportar,
descrito. Um exemplo é a forma de reagir à perda de uma criança,
não era permitido o exagero na demonstração de sentimentos, de
dor. Também dava-se muita ênfase à educação e à moral. O confu-
cionismo apresentou-se extremamente patriarcal. Os homens deti-

- 255 -
nham o poder, apesar de que os dois, pai e mãe, possuíam deveres
diante da educação dos filhos (STEARNS, 2006).
Mesmo tendo a China uma sociedade machista e formal,
segundo Stearns (2006), os pais apresentavam afeto pelas crian-
ças, pelo menos mais do que a formalidade e as cartilhas de boas
maneiras determinavam. Os pais, mais pelas filhas e as mães, pelos
meninos. Essa questão de gênero nos remete a práticas distintas
da China na era pós-clássica, como o fato de amarrar os pés das
meninas para estes permanecerem pequenos e delicados. Prática
que causava dor e sofrimento, mas que fez parte da cultura para
cultivar uma imagem idealizada da mulher.
Philippe Ariès (1981), pioneiro no assunto, diz que o
significado de infância estará condicionado, além da época/pe-
ríodo histórico, à cultura em que aquela acontece, assim como à
educação e à aprendizagem a que são submetidas as crianças que
se tornam aquilo que os adultos lhes ensinam ser, são apenas mi-
niaturas. O autor destaca, também, o afeto (e/ou a falta deste) na
constituição familiar e o desenvolvimento da criança, salientando
o completo anonimato em que esta vivia, as mortes e a inserção
das mesmas no contexto escolar. Todas essas mudanças e passa-
gens são sobrecarregadas de significações em relação à infância e
sua “manutenção”.
Dando continuidade à retrospectiva histórica da infância,
enquanto possuidora de significações, na Idade Medieval as crian-
ças não possuíam o afeto dos familiares que tinham como única
preocupação a produtividade das mesmas, que após os sete anos
passavam a colaborar com os trabalhos. Acontecia também de mui-
tas famílias entregarem suas crianças para os cuidados de outras
famílias, até que aquelas passassem dessa fase, a infância. Sobre a
educação, esta se dava por meio da imitação de adultos com que os
infantis conviviam:
A transmissão dos valores e dos conhecimentos, e de
modo mais geral, a socialização da criança, não eram portanto nem
asseguradas nem controladas pela família. A criança se afastava
logo de seus pais, e pode-se dizer que durante séculos a educação
foi garantida pela aprendizagem, graças à convivência da criança
ou do jovem com os adultos. A criança aprendia as coisas que devia
saber ajudando os adultos a fazê-las (ARIÈS, 1981, p. 4).

- 256 -
Dessa forma, vemos, na concepção de Ariès (1981), que as
crianças importavam para a sociedade pela sua produtividade,
isso após os sete anos de idade, mas não possuíam privilégios
ou atenção. Uma concepção de infância não existia, sendo as
crianças imitações dos adultos, adultos em miniatura, e que
poderiam ser facilmente substituídas. Tal concepção muito se
assemelha ao significado da infância dado por Platão, na Grécia
antiga, onde o papel a ser desenvolvido pelas crianças era mais
importante do que as próprias, já que, para o filósofo, o foco era
o desenvolvimento das cidades.

Desse período, Ariès (1981) destaca algumas ideias vol-


tadas à infância que demonstram a visão em relação à mesma. No
que já havia sido preconizado por Platão, a infância limitava-se ao
período de dependência e não às suas características específicas,
biológicas e psicológicas.

Segundo um calendário das idades do século XVI, dos 26 aos


24 anos “é a criança forte e virtuosa”, e “Assim acontece com as
crianças quando elas têm 18 anos”.[...] Durante o século XVII,
houve uma evolução: o antigo costume se conservou nas clas-
ses sociais mais dependentes, enquanto um novo hábito surgiu
entre a burguesia, onde a palavra infância se restringiu a seu
sentido moderno. A longa duração da infância, tal como apare-
cia na língua comum, provinha da indiferença que se sentia en-
tão pelos fenômenos propriamente biológicos: ninguém teria a
idéia de limitar a infância pela puberdade. A idéia de infância
estava ligada à idéia de dependência [...]Só se saía da infância
ao se sair da dependência (ARIÈS, 1981, p. 31-32).

Ainda segundo o autor, nas sociedades medievais o índice


de morte de crianças com até cinco anos de idade era muito gran-
de, e, quando acontecia, uma enorme tristeza assolava a família,
porém não por muito tempo, pois logo outra criança substituiria
a que não conseguira sobreviver àquela época. O autor afirma: “Se
ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam
ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois
uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair
de uma espécie de anonimato” (ARIÈS, 1981, p. 5).
É salutar levar em conta que, na Idade Média, também
conhecida como Idade das Trevas, as condições não favoreciam o

- 257 -
desenvolvimento de crianças. Essa época foi marcada por grandes
mudanças, a Igreja tinha enorme influência na sociedade, o
sistema dominante era o feudal e ainda houve o assolamento das
sociedades por conta da Peste Negra, que levou à morte milhares
de pessoas, dentre elas, crianças.
Destacamos que a Igreja não está isenta dessa constru-
ção social e histórica da infância, pois, em grande parte da histó-
ria das civilizações, sempre teve muita influência. Santo Agostinho
considerava que “a criança é o símbolo da força do mal, um ser
imperfeito que carrega em seu seio todo o peso do pecado original,
e o batismo era uma tentativa de redimi-la” (FURLANETTO, 2006,
p. 2706).
Ariès (1981) fala sobre a morte de crianças e o cuidado
dos pais e família, o autor diz que, até o século XVIII, pouca aten-
ção era dada ao fato de muitas crianças morrerem aos cuidados
dos pais, por “acidentes”. Não raro, crianças morriam asfixiadas, ao
dormirem com os pais, ou caíam com frequência em poços. O autor
destaca a pouca atenção à manutenção da vida desses pequenos,
que muitas vezes não eram desejados. A condenação ao assassina-
to de crianças existia, porém, como acontecia de forma “mascara-
da”, não havia responsabilizações, culpas e culpados.
Após a primeira infância, as crianças eram levadas para
outras famílias para serem criadas até que pudessem contribuir
para a manutenção da casa. Nesse processo, Ariès (1981, p. 10)
afirma que as mesmas não eram amadas por seus familiares, “A
passagem da criança pela família e pela sociedade era muito breve
e muito insignificante para que tivesse tempo ou razão de forçar a
memória e tocar a sensibilidade”.
Já Stearns (2006) destaca que, mesmo estando a infância
intimamente ligada à organização social e à economia, o amor e
zelo permeavam as vidas das crianças, estando nas relações fami-
liares, na maioria das vezes. A criança passou a ser desejada e sua
independência, retardada, pois, com o envelhecimento dos pais,
cabia aos mais jovens a produção que sustentaria a família.
A partir do século XVIII, essa visão foi tomando outros
moldes. Com a oferta de escolarização pela Igreja Católica e a cria-
ção de políticas públicas, as crianças passaram a ser cuidadas por
suas mães, em suas famílias. A visão de que seriam as crianças pe-

- 258 -
quenos anjos, à semelhança do Menino Jesus, contribuiu grande-
mente para que a concepção em relação às mesmas mudasse.
Ariès (1981, p. 4) diz que, em seus primeiros anos de
vida, elas viviam a “paparicação”, termo dado pelo autor, quando
eram tratadas como “bichinhos”, “fofinhas”, “engraçadinhas”, a dis-
tração dos adultos. Assim, a busca pela manutenção da vida das
crianças virou uma constante, não sendo mais aceita a sua morte
de forma tão natural e corriqueira.
Nessa busca histórica de construção do processo de con-
ceituação da infância, Jean-Jacques Rousseau, importante filósofo
iluminista, contribui com sua obra Emílio, expondo que a criança
se desenvolve em seu tempo, tem características diferenciadas em
cada fase e que a aprendizagem acontece a depender do desenro-
lar do desenvolvimento. O filósofo foi o primeiro a desmitificar a
concepção de criança como pequeno adulto (FURLANETTO, 2006).
Furlanetto (2006, p. 2709) diz ainda que “A concepção
de infância, em Rousseau, tem como nuclear a criança, seu tempo,
seus desejos, sentimentos e a liberdade como base sob a qual deve
ser educada”. E mais:

Assim, até Rousseau, a criança era considerada um pequeno


adulto, um adulto em miniatura, a ser tratada por padrões
adultos, vestindo-se com roupas de adultos, aprendendo coisas
de adultos. Rousseau foi praticamente o primeiro a considerar
a criança enquanto tal, com idéias próprias, diferentes do adul-
to, e a partir dele intensificou-se a tendência a ver a educação a
partir da criança, da sua natureza, dos seus instintos, das suas
capacidades e tendências, em oposição aos padrões e normas
impostos pela sociedade (FURLANETTO, 2006, p. 2710).

Rousseau expõe também algumas considerações sobre


o processo educativo da criança, destacando que, na pedagogia
utilizada para ensinar, deve-se levar em conta “a naturalidade e a
autenticidade da criança, e sua inocência em oposição ao mundo
adulto pervertido pelas convenções sociais” (FURLANETTO, 2006,
p. 2709).
Stearns (2006) traz a infância compreendida em seu
contexto e diretamente relacionada à organização social de deter-
minada sociedade, podendo, assim, ter várias concepções diferen-
ciadas de um povo para outro. O autor faz uma divisão temporal

- 259 -
de significações da infância, fala desta nas sociedades agrícolas,
clássicas e pós-clássicas.
Sem deixar de citar a realidade dos povos caçadores-co-
letores, que eram nômades e sem muitos recursos, acreditavam ser
as crianças um atrapalho nas suas atividades, o que fazia com que a
natalidade fosse baixa nesses povos. Outro fator que favorecia con-
sideravelmente o baixo número de crianças nesses povoados era o
alto índice de mortalidade, até os dois anos de idade, nem mesmo
nomes as famílias se ocupavam de dar às crianças pelo receio de
que estas viessem a falecer, já que até os cinco anos de idade a mor-
te das mesmas era muito comum (ARIÈS, 1981; STEARNS, 2006).
Stearns (2006, p. 28) também afirma em relação à morte
de crianças que:

[...] sociedades agrícolas em grande parte desenvolveram al-


guns temores curiosos, que chamaríamos de superstições.
Muitas tribos africanas acreditavam que gêmeos carregavam
espíritos malignos, e amiúde os matavam. Crianças de primiti-
va civilização Harappan, ao longo do rio Indo (atual Paquistão),
tinham as orelhas perfuradas para afastar espíritos malignos.
Os cristãos europeus tinham medo de crianças nascidas com
a membrana amniótica (membrana fetal que pode ainda es-
tar cobrindo a cabeça da criança no nascimento), acreditando
que isso pudesse ser um sinal de bruxaria. As especificações
variavam, mas as angústias decorrentes das anomalias eram
comuns.

Com o surgimento das sociedades agrícolas, muitas mu-


danças na sociedade e na organização familiar ocorreram. Apesar
de até aos cinco anos de idade a criança representar custos, por não
poder ajudar com seu trabalho, após, ela contribuía ativamente na
agricultura junto às mães, e na adolescência seu papel era funda-
mental, pois tornava-se muito mais ativa e produtiva. Um dado im-
portante que aponta resultados da mudança que houve nas socie-
dades agrícolas em relação à infância é o aumento da natalidade.
Com maior número de crianças por família, havia também grande
ganho para o desenvolvimento infantil, pois as crianças possuíam
irmãos e podiam interagir entre si (STEARNS, 2006).
Nas civilizações clássicas, o autor chama a atenção para a
especificidade com que cada povo organizava a educação e signifi-

- 260 -
cava a infância, destacando, por exemplo, que na Índia a criança já
desenvolvia muito bem a imaginação por conta do hábito de contar
histórias; na Mesopotâmia, as tábuas de barro são registros de li-
ções de uma civilização que possuía o domínio da leitura e escrita;
já a China caracterizou a infância por meio do pensamento confu-
cionista, regado de ordem, zelo e moral. E tinha grande preocupa-
ção com a manutenção da família (STEARNS, 2006, p. 26).
Já na era Pós-Clássica, a expansão marítima favoreceu
o desenvolvimento de muitos países, havendo participação das
crianças com o trabalho braçal, mesmo que a população continuas-
se em grande parte na zona rural. A religião também se desenvol-
veu grandemente, sendo que as missionárias têm fundamental im-
portância na história da infância, tanto pela visão que relacionava
a imagem da criança à divindade, como pela educação, já que o do-
mínio da leitura e escrita, desde os primórdios, esteve com a Igreja
(STEARNS, 2006).
Para Stearns (2006), esse novo sentido atribuído à in-
fância, na Era Pós-Clássica, trouxe mais avanços do que parece, a
visão de que a criança tinha laços com a divindade fez com que o
infanticídio fosse visto mais desnaturalizado. Ou, pelo menos por
então, tinha-se abertamente a ideia de que as crianças eram pro-
tegidas nem que fosse pela santidade. Outro avanço foi em relação
à educação.
As diversas significações atribuídas à infância, durante a
sua concepção, estão sempre relacionadas à cultura, assim como
à economia, ao desenvolvimento e a papéis sociais. Vale destacar
que esse olhar se diferenciava, também, de acordo com a classe
social que a criança ocupava, pois, se era de classe média, ou rica,
possuía privilégios e cuidados, inclusive, exagerados, mas, se era
de família pobre, o descaso continuava.
As cidades evoluíram, os tempos mudaram e, com o de-
senvolvimento industrial, as crianças ocupavam o lugar da mão
de obra barata. Eram exploradas e permaneciam anônimas, sem
direitos e sem voz. O advento da escolarização foi um marco para
a infância, pois passou-se a pensar que a criança não tinha con-
dições de assumir papéis de adultos e que deveriam investir em
seu desenvolvimento biopsicossocial. Daí a grande importância
dos estudos de Jean Piaget e de outros que discorrem sobre temas

- 261 -
significativos à infância como a aprendizagem, o conhecimento e o
desenvolvimento humano.
O século XIX foi decisivo para a transição de significados
em relação à criança, assim como para o processo de escolarização
da mesma. A partir da modernidade, outro fator merece destaque:
as crianças, mais que nunca, passam a ser associadas à aprendiza-
gem, principalmente pela influência de pesquisadores como Jean
Piaget (1896) dentre outros, que desenvolveu estudos que muito
contribuíram para o desenvolvimento, educação e aprendizagem,
a exemplo, a teoria psicogenética do desenvolvimento.
As crianças abandonaram aos poucos os postos de tra-
balho, que foram intensificados, principalmente, com o advento
da Revolução Industrial, e passaram a ocupar as escolas, local tido
como propício ao desenvolvimento das mesmas. Antes, a educa-
ção era voltada exclusivamente para a aprendizagem de um ofício,
para as atividades familiares, e havia uma educação pensada como
um todo, levando em conta o desenvolvimento infantil.
Em meados dos séculos XX, segundo Stearns (2006), com
a ascensão das mulheres no mercado de trabalho, as mudanças
ocorridas em relação aos cuidados com as crianças se diferencia-
vam a depender do local, da cultura, havendo uma atenção comum
com o desempenho escolar. Nos Estados Unidos, as mães preocu-
pavam-se em deixar suas crianças aos cuidados de familiares, já
na Europa Ocidental a utilização das creches era muito comum, e,
no Japão, o número de mães que trabalhavam era pequeno, o que
favorecia o acompanhamento mais próximo do desenvolvimento e
desempenho escolar.

Depois de 1950, registraram-se enormes mudanças nos cuida-


dos com as crianças, apesar das preocupações comuns, como
estímulo às performances escolares. Na Europa Ocidental e
nos Estados Unidos, mais e mais mães começaram a trabalhar
fora de casa. Isso levantou a questão óbvia dos cuidados com as
crianças, embora por toda parte as mulheres expressassem o
desconforto inicial com seus novos papéis, reclamando – mes-
mo quando saíam para trabalhar – que as mães deveriam mes-
mo é ficar em casa. (STEARNS, 2006, p. 145).

Em todo o mundo, hoje, tem-se uma visão da infância


construída histórica e socialmente, muitos avanços, como os vis-

- 262 -
tos, foram registrados, o que não significa que se esgotaram as
necessidades dessa população. Pelo contrário, com a globalização,
o advento do capitalismo, a miserabilidade ainda é uma grande
preocupação mundial, e as crianças são as que mais sofrem em de-
corrência da negligência, da desnutrição e da falta de segurança.
Destacamos a situação de extrema pobreza em que se
encontram as crianças de muitos lugares do mundo, citamos Serra
Leoa, na África; as haitianas que têm seu país devastado, e migram
hoje, principalmente, para o Brasil; e, mais recentemente, crianças
sírias que fogem da pobreza e da guerra, muitas vezes sem ter êxito
em seu caminho, morrendo com toda a sua família antes de chegar
ao destino que poderia lhes trazer paz. Nesses casos de preocupa-
ção mundial, a criança é mais uma vítima de interesses políticos e
econômicos e mesmo religiosos e de falta de amor ao próximo, que
assolam o mundo.
Também são preocupantes a incidência de tráfico huma-
no envolvendo crianças, a venda de órgãos, a escravização, o trei-
namento de crianças para fazerem parte de grupos terroristas, ou
mesmo de gangues que assaltam, matam e praticam outros delitos.
Apesar dos avanços ocorridos no mundo, esse é o cenário em que
vivem hoje as nossas crianças, em pleno século XXI.
Mas, ainda assim, é salutar destacarmos alguns avanços
históricos desta era, como as vacinas, o desenvolvimento da ciên-
cia, os estudos e pesquisas que resultam em ações para a socie-
dade, políticas públicas com vistas ao bem-estar das crianças, leis
próprias, a oferta de creches, escolas, o aperfeiçoamento de pro-
fissionais para o cuidado das crianças e outros mais. As crianças
passaram a ser vistas, a serem objeto de estudos, consideradas e
protegidas, porém ainda há muito que repensar, atitudes a serem
tomadas, para que sejam garantidos os direitos mínimos das mes-
mas.
Em estudos recentes divulgados pela a UNICEF sobre a
situação mundial da infância em 2016, a constatação do relatório é
que será necessário um grande esforço para mudarmos a realida-
de de milhões de crianças prejudicadas, aniquiladas pela simples
condição do país onde nasceram, a comunidade onde vivem ou o
seu gênero, ou seja, nasceram condenadas a um futuro incerto, por
uma decisão política de governantes e de uma sociedade que, ape-
sar dos avanços, pouco faz para transformar esse mundo.

- 263 -
Ser criança no Brasil
No Brasil, Leite (2006) chama a atenção para a visão que
se tinha da criança até o século XIX, destacando a importância de
conceituar esta. Ser criança, segundo a autora, “era uma derivação
das que eram criadas pelos que lhe deram origem. Eram o que se
chamava ‘crias da casa’, de responsabilidade (nem sempre assu-
mida inteira ou parcialmente) da família consanguínea ou da vizi-
nhança” (LEITE, 2006, p. 20).
A autora afirma, ainda, que o infanticídio e o abandono
estão presentes na história da criança no Brasil, mesmo nos dife-
rentes grupos étnicos que compõem o país, como nos índios (até
os dias atuais ainda existem), nos brancos e negros. Infelizmente,
os maus-tratos com a criança não são novidade. E o pior, ainda con-
tinuam de forma mascarada e/ou naturalizada (LEITE, 2006).
Outro ponto importante, apontado por Leite (2006, p.
21), é que a infância não pode ser restrita a uma fase do desen-
volvimento, afirmando que, sim, é uma “construção cultural e his-
tórica”. Isso traz a reflexão de quão difícil, então, é compreender a
infância brasileira (assim como a mundial), já que os registros são
escassos, e ainda que não há possibilidade de uma homogeneiza-
ção dela, pois, como já exposto, a criança era percebida de forma
diferente a partir da sua cultura e da sua condição social.
Ainda hoje, apesar de vários estudos relacionados à in-
fância abrangendo diversos aspectos como social, psicológico, or-
gânico, escolar, dentre outros, percebemos que o contexto cultu-
ral, os papéis sociais, a organização familiar, as interferências dos
governos, os ideais compartilhados e outras mais circunstâncias
influenciam diretamente na visão que se têm das crianças, assim
como dos cuidados direcionados a elas.
Mesmo sendo o Brasil classificado como um país em de-
senvolvimento, rico de recursos naturais, amparado tecnológica e
cientificamente, dito democrático e com planos de desenvolvimen-
to, ainda é grande o número de crianças que não possuem o básico
para viver, pedindo dinheiro nas ruas, na condição de cuidadores
de carros, usando drogas e praticando delitos, crianças abandona-
das, em extrema pobreza, com sua família, sofrendo na seca do ser-
tão ou no trabalho escravo de produção de carvão, ou mesmo em
canaviais, é uma triste realidade.

- 264 -
Nas diversas regiões do país, as diferenças findam numa
mesma realidade, a agressão aos direitos das crianças. Por outro
lado, encontramos o extremo, crianças enclausuradas em suas pró-
prias casas, tendo como companhia seus eletrônicos e o mundo de
fantasias e consumismo que a mídia propicia, com diversos brin-
quedos que perdem seus objetivos por serem brincados por uma
única criança.
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (BRASIL,
2002), lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, é o grande marco do sé-
culo XX para a história da criança e do adolescente. Por meio dele,
a criança e o adolescente passam a ter os seus direitos garantidos,
enquanto cidadãos de uma sociedade organizada por meio de uma
constituição federal, da democracia e de leis instituídas (não sabe-
mos até onde, mas é o que esperamos). No entanto, mesmo com a
existência da regulação, não havia, e ainda não há, o cumprimento
total daquilo que se preconiza como direitos da criança e adoles-
cente, assim como os deveres do Estado e da família.
De acordo com a Unicef (2015), no relatório intitulado
Nossas Prioridades – Infância e Adolescência no Brasil,

[...] as crianças são especialmente vulneráveis às violações de


direitos, à pobreza e à iniquidade no País. Por exemplo, 29% da
população vive em famílias pobres, mas, entre as crianças, esse
número chega a 45,6%. As crianças negras, por exemplo, têm
quase 70% mais chance de viver na pobreza do que as brancas;
o mesmo pode ser observado para as crianças que vivem em
áreas rurais. Na região do Semiárido, onde vivem 13 milhões
de crianças, mais de 70% das crianças e dos adolescentes são
classificados como pobres. Essas iniquidades são o maior obs-
táculo para o alcance dos Objetivos de Desenvolvimento do Mi-
lênio (ODM) por parte do País.

O Brasil tem uma história singular, por ser em suas ori-


gens uma colônia e possuir um considerável atraso em seu desen-
volvimento e, consequentemente, na escolarização de sua popu-
lação (DEL PRIORE, 2004, p. 10). É fato que muito influencia as
condições educacionais em que vivem as crianças, se filhos de pais
analfabetos, se possuem condições de estudo e daí por diante. É
lamentável que muitas de nossas crianças, além de não terem o fo-
mento à escolarização, também não tenham as mínimas condições
de moradia, de saneamento, de segurança para viver.

- 265 -
De modo geral, com dados do Índice de Desenvolvimento
Infantil (IDI), uma análise que abrange dos anos de 1999 a 2004
aponta que nesse período houve aumento significativo, principal-
mente em relação às regiões Norte e Nordeste, com exceção de
Alagoas, de desenvolvimento relacionado à influência de políticas
sociais. No entanto essas duas regiões ainda apresentam índices
abaixo da média nacional. A média do Brasil varia entre 0,75 a 0,50
(Unicef, 2015).

Em termos gerais, o IDI nacional melhorou significativamente


entre 1999 e 2004, sobretudo com o aumento observado nas
regiões Norte e Nordeste, onde houve redução na proporção
de responsáveis pelas famílias com escolaridade precária e au-
mento na cobertura vacinal. No entanto, apesar dos avanços
observados ao longo dos últimos anos no Norte e no Nordes-
te, ainda há grandes dificuldades. A cobertura de assistência à
saúde e à educação para as crianças de até 6 anos está distante
de atingir patamares adequados às necessidades reais da so-
ciedade brasileira.

Esses dados demonstram como a infância está em nosso


país, e, apesar de serem dados referentes há 11 anos, não houve
grandes mudanças. Muitas crianças ainda estão sendo privadas de
seus direitos, ora por sua própria família, ora pelo Estado ou por
ambos.
A Organização Nacional das Nações Unidas (ONU) divul-
gou em 2015, por meio de duas relatoras especiais dos direitos hu-
manos, que mais de 150 milhões de crianças vivem nas ruas em
todo o mundo. As crianças que passam a viver nas ruas optam por
esse modo de viver para fugir de guerras, da miséria, da violência
sofrida em casa e de outras agressões. As relatoras cobram dos go-
vernantes investimentos para garantir o mínimo dos direitos à in-
fância. “Abandonadas, descartadas, rejeitadas e jogadas fora: mais
de 150 milhões de crianças em situação de rua em todo o mundo
sofrem grandes privações e violações de direitos, com pouca ou
nenhuma consideração dada ao seu maior interesse”, disseram as
especialistas (ONU, 2015).
Nesse contexto, a história se repete, o mesmo que acon-
tecia na Era Medieval, quando o cuidar das crianças dependia da
situação socioeconômica em que a mesma vivia, acontece hoje, em

- 266 -
pleno século XXI, mesmo que tenhamos, atualmente, órgãos na-
cionais e multinacionais que fomentam ações a fim de garantir o
desenvolvimento infantil, como a Organização Mundial de Saúde
(OMS), a Organização das Nações Unidas para a Educação (Unes-
co) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
Analisando dados do Centro Internacional de Estudos e
Pesquisas sobre a Infância (CIESPI), em pesquisa realizada pelo
IBGE, apresenta resultados relativos ao período de 1999 – 2009
e de 2001 – 2011. Em síntese, no relatório de direitos humanos,
publicado pela CIESPI, apresenta:
“No Brasil há aproximadamente 20 milhões de crianças
entre zero e seis anos de idade”. Destas, 45% em situação de mise-
rabilidade.

• “46% da população infantil urbana e 95% da população rural


residem em domicílios que apresentam condições inadequa-
das de saneamento”, o que traz prejuízos à saúde e bem-estar
da criança.
• “3.5 milhões de crianças entre 0 e 6 anos de idade vivem em
áreas rurais”, o que prejudica ainda mais o acesso às condições
básicas de saúde, educação e segurança, dever do Estado.
• “No Brasil, 60% das crianças entre 0 e 6 anos de idade são
negras ou pardas, e enfrentam índices mais elevados de
pobreza do que as crianças brancas, 55% e 32%  respectiva-
mente”. Este dado chama a atenção para a necessidade de que
haja de investimento e de políticas públicas que reduzam a dis-
paridade existente entre as diversidades.
• “Em média, no Brasil urbano, 18% das crianças entre 0 e 3
anos de idade frequentam creches. [...]. Na região sul, 24% das
crianças entre 0-3 frequentam creches enquanto na região
norte, esse mesmo percentual é de apenas 8%” (RIBEIRO;
CARVANO, 2014).

Por meio dos dados apresentados, é perceptível que as


condições socioculturais, assim como a localização geográfica, têm
impactos nas condições de vida da criança. Isso porque as condi-
ções em que vive uma pessoa é resultado de um conjunto de ações
decorrentes de políticas públicas bem articuladas que garantam
ao cidadão seus direitos básicos. Não há como esperar que uma
criança tenha seu desenvolvimento pleno diante de tantas restri-
ções que envolvem as necessidades básicas para se viver.

- 267 -
O Unicef (2015) também colabora com alguns dados. So-
bre a natalidade diz que, no Brasil teve um declínio, assim como a
desnutrição, mas chama a atenção que, mesmo com a diminuição,
um número considerável de crianças menores de um ano ainda são
desnutridas. A baixa frequência escolar de crianças de quatro a seis
anos também foi alvo da pesquisa do Unicef, como vemos a seguir:

A taxa de sub-registro de nascimento caiu – de 30,3% (1995)


para 8,9% (2008) – mas ainda continua alta nas regiões Norte
(15%) e Nordeste (20%).
Aproximadamente uma em cada quatro crianças de 4 a 6 anos
estão fora da escola. 64% das crianças pobres não vão à escola
durante a primeira infância. A desnutrição entre crianças me-
nores de 1 ano diminuiu em mais de 60% nos últimos cinco
anos, mas ainda cerca de 60 mil crianças com menos de 1 ano
são desnutridas (UNICEF, 2015).

Outra triste realidade é o número de crianças que sofrem


violência no Brasil. “A cada dia, 129 casos de violência psicológica
e física, incluindo a sexual, e negligência contra crianças e adoles-
centes são reportados, em média, ao Disque Denúncia 100”. E, se
levarmos em conta os casos que não chegam a ser denunciados, a
situação fica muito mais grave (UNICEF, 2015).
Para amparo dessas crianças que se encontram em situa-
ção de vulnerabilidade, o Estado brasileiro possui uma rede. São
centros de referências, centros de saúde, casas de apoio, Conselho
Tutelar e outros com especialidade nos direitos da criança. Infeliz-
mente, apenas a rede não está sendo o suficiente, como demonstra
a pesquisa apontada pelo Unicef, para que o Brasil chegue a um
patamar considerável em relação ao Índice de Desenvolvimento
Infantil. Como dito anteriormente, são muitas esferas envolvidas,
que abrangem desde as políticas públicas às garantias sociais de
todo cidadão brasileiro.

Considerações finais
É certo afirmar que a construção do conceito de infância
que conhecemos hoje é recente, principalmente se compararmos
com a história da humanidade, já que foi a partir do século XX que
a infância passa a ser vista dentro de uma perspectiva pública,
exigindo tomadas de decisões voltadas para esta temática.

- 268 -
A significação da infância é processo contínuo e evolutivo.
Conforme a sociedade vai se modificando, a visão acerca da infân-
cia também o fará. A infância, durante muito tempo, não recebeu a
atenção e cuidados necessários para o seu pleno desenvolvimento.
Só a partir de meados do século XVIII é que várias áreas do saber
começaram a se interessar pela mesma, inclusive com a oferta da
educação formal da terceira infância. Lembrando que esta era um
privilégio apenas das crianças ricas. E a metodologia e os objetivos
dessa educação eram bem diferentes dos que esperamos hoje.
Vários fatores influenciam para o conceito de infância
que temos hoje, como uma fase do desenvolvimento que requer
cuidados e atenção, que é transitória e possuidora de direitos. O
Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei federal nº 8069) e a rede
pública de atendimento podem ser considerados dois dos maiores
avanços da história da infância no país, ao garantir, dentre outros,
a segurança das crianças no Brasil. As políticas públicas nacionais
ainda são insuficientes, diante de tantas mazelas que ainda atin-
gem nossas crianças. A fome, a negligência, a violência e a saúde
são preocupantes.
Desta forma, é evidente que as políticas públicas sejam
repensadas e/ou aprimoradas para atender as crianças brasilei-
ras em suas necessidades básicas. As políticas de efetivação des-
tas também merecem uma maior atenção, pois as que existem não
atendem, muitas vezes, pelo mau gerenciamento das autoridades
competentes. No entanto, não só às autoridades deve-se delegar a
responsabilidade da seguridade dos direitos da infância, a família
e a sociedade são agentes ativos e possuidores de deveres dian-
te das crianças. A família deve ofertar, acima de tudo, segurança e
bem-estar, o que infelizmente não tem ocorrido como o esperado.
Esperamos que com a responsabilização do Estado, da
família e da sociedade, as crianças possam usufruir dos direitos
a elas já concebidos, no entanto, tal anseio ainda parece utópico,
inclusive quando se observam as condições de desigualdades e
vulnerabilidades em que ainda se encontram. Dentro de uma pers-
pectiva freireana cada vez mais torna-se imperativo lutar e acredi-
tar que um outro mundo é possível e que as mudanças são difíceis,
mas não impossíveis de serem realizadas.

- 269 -
Referências
ARIÈS, P. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janei-
ro: LTC, 1960. Publicação, 1981.
BOTO, C. O desencantamento da criança: entre a Renascença e o
Século das Luzes. In: FREITAS, M. C.; KUHLMANN Jr., M. Os intelec-
tuais na história da Infância. São Paulo: Cortez, 2002.
BRASIL. Estatuto da criança e do adolescente: Lei federal nº 8069,
de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002.
DEL PRIORE, M. História das crianças no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2004.
FURLANETTO, B. H. Infância em pauta: um estudo histórico sobre
as concepções de infância presentes nas canções e na formação de
professores. 2006. Dissertação (Mestrado em Educação). Pontifí-
cia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2006.
KOHAN, W. O. Infância e educação em Platão. Educação e Pesquisa,
São Paulo, v. 29, n. 1, p. 11-26, jan./jun. 2003
LEITE, M. L. M. A infância no século XIX segundo memórias e livros
de viagem. In: FREITAS, M. C. (org.). História Social da Infância no
Brasil. São Paulo: Cortez, 2006.
ONU. Organização das Nações Unidas. ‘Abandonadas e descar-
tadas: mais de 150 milhões de crianças vivem nas ruas’, alertam
especialistas da ONU. 2015. Disponível em: <http://nacoesunidas.
org/abandonadas-e-descartadas-mais-de-150-milhoes-de-crian-
cas-vivem-nas-ruas-alertam-especialistas-da-onu/2015>. Acesso
em:15 ago. 2015.
RIBEIRO, R.; CARVANO, L. M. F. Centro Internacional de estudos e pes-
quisas sobre a infância. 2014. Disponível em: <http://www.ciespi.org.
br/publicacoes/2-uncategorised>. Acesso em: 04 dez. 2014.
STEARNS, P. N. A infância. São Paulo: Contexto, 2006.
UNICEF. Infância e Adolescência no Brasil. 2015. Disponível em:
<Http://Www.Unicef.Org/Brazil/Pt/Activities_9381.Htm>. Aces-
so em: 06 ago. 2015.

- 270 -
Pesquisas em políticas educacionais nos
programas de pós-graduação em
psicologia da região norte

Marli Lucia Tonatto Zibetti


Marcela Abiorana do Nascimento

Introdução
A partir da década de 1980, a temática das políticas pú-
blicas passou a figurar entre os interesses de pesquisadores/as no
campo da psicologia, principalmente em países com históricos de
desigualdade social e governos antidemocráticos como os da Amé-
rica Latina.
No Brasil, juntamente com a luta pela redemocratização,
a autocrítica, desenvolvida por um grupo significativo de pesqui-
sadores/as e profissionais da área, questionou as bases episte-
mológicas da psicologia e propôs novas perspectivas de estudo
e atuação. Assim, fundamentados em pressupostos teóricos de
orientação crítica, novas práticas de análise da realidade brasileira
foram construídas, considerando basilares os aspectos históricos,
políticos e econômicos das condições em que crescem, se desen-
volvem e trabalham os sujeitos atendidos pelos serviços e por pro-
fissionais de psicologia.
Neste contexto de análise, as políticas assumem lugar
de destaque, pois se considera que “A formulação de políticas pú-
blicas constitui-se no estágio em que os governos democráticos
traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas
e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real.”
(SOUZA, 2006, p. 26).
A elaboração, implementação e análise das políticas pú-
blicas envolve o Estado, a economia, a política e a sociedade, por-
tanto, tornam-se objeto de estudo de diversas áreas do conheci-
mento como sociologia, economia, ciência política, antropologia,
psicologia, entre outras. Esse debate transdisciplinar desafia a vi-
são científica dicotômica (SOUZA, 2006; PIRES, 2008) e permite a

- 271 -
abertura para uma perspectiva de análise mais coletiva que deve
ser objetivo das políticas públicas, as quais devem ser compreendi-
das como processos de gestão que englobam desde a identificação
dos problemas até a escolha de estratégias de atendimento às ne-
cessidades da população.
É importante que esse processo seja acompanhado
qualitativa e quantitativamente, espaço e temporalmente, para
que se reconheçam os sucessos e insucessos propiciados por essas
políticas (PIRES, 2008; CRPPR, 2007). Esse acompanhamento deve
englobar: I) a avaliação de problemas (deve se pautar em evidên-
cias como crises, eventos e pesquisas científicas); II) inclusão na
agenda (quando o problema é incluso ou não na agenda política);
III) deliberação das estratégias (discussão dos custos-benefícios);
IV) desenvolvimento da intervenção (formulação das políticas com
análise das condições estruturais micro e macro); V) implantação
das políticas; VI) avaliação continuada dos impactos das políticas
públicas (PIRES, 2008; CRPPR, 2007).
Nesse sentido, a psicologia pode contribuir na elabora-
ção, implementação, controle social e fiscalização de políticas, se-
jam de desenvolvimento, assistência e defesa sociais ou em outros
espaços emancipatórios, visando à promoção do respeito à diver-
sidade e ao atendimento às minorias por meio do fortalecimento
do diálogo entre poder público e sociedade civil, além do acompa-
nhamento qualitativo da execução e dos resultados dessas políti-
cas (PIRES, 2008).
Embora se reconheça a importância da atuação da psico-
logia nesse campo de estudos, sua inserção na formação dos pro-
fissionais é recente no Brasil. Com o objetivo de contribuir com a
construção de conhecimentos sobre o tema, foi criado, pelo Conse-
lho Federal de Psicologia, o Centro de Referência Técnica em Psico-
logia e Políticas Públicas - CREPOP (CFP, 2005).
A atuação do Crepop, bem como do Sistema Conselhos de
Psicologia, tem fomentado a atuação da área no campo das políti-
cas públicas e fornecido orientações para novas formas de atuação.
Assim, o engajamento de psicólogos/as em investigações e atuação
no campo das políticas pressupõe a compreensão da dimensão co-
letiva do indivíduo com suas subjetividades, a luta pelos Direitos
Humanos, pela democracia e pela superação das desigualdades

- 272 -
como elementos fundamentais na proposição de políticas públicas
(CRPPR, 2007).
Uma importante área de atuação da psicologia no campo
das políticas tem sido a educação. Essa atuação tem gerado con-
tribuições na identificação das dificuldades escolares, no acompa-
nhamento de iniciativas empreendidas para seu enfrentamento,
bem como propondo novas possibilidades de intervenção com
vistas a possibilitar transformações nos processos educacionais,
inclusive por meio de políticas educacionais que viabilizem as mu-
danças (LACERDA, 2015; ZIBETTI, SOUZA, BARROCO, 2015).
Nesse sentido, é importante que profissionais da psico-
logia atuem em consonância com os marcos legais da educação,
como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB 9394
- BRASIL, 1996), que preconiza que é dever do Estado e da famí-
lia assegurar o direito à educação que é construída na convivência
humana, nas instituições de ensino e trabalho, nas organizações da
sociedade civil, entre outras.
Procurando identificar como a psicologia tem produzi-
do conhecimentos no campo das políticas educacionais, este texto
apresenta resultados de pesquisa bibliográfica que objetivou le-
vantar e analisar teses e dissertações produzidas em programas
de pós-graduação em psicologia da região Norte.
A referida pesquisa está vinculada ao Grupo de Trabalho
(GT) “Psicologia e Políticas Educacionais” da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia (ANPEPP) que desen-
volve pesquisa nacional visando sistematizar as contribuições da
área para a temática das políticas educacionais e apontar em que
aspectos são necessários maiores investimentos.
Considerando as transformações implementadas no
campo educacional, a partir da aprovação da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional de 1996, este foi o marco para o levan-
tamento realizado, ou seja, o levantamento compreendeu o perío-
do entre 1996 e 2017.

Aspectos metodológicos
O estudo foi desenvolvido por meio de pesquisa biblio-
gráfica, do tipo estado do conhecimento. Essa modalidade de pes-
quisa busca demonstrar os avanços que vêm sendo construídos

- 273 -
sobre um determinado tema tornando evidentes os espaços que
ainda não foram ocupados pelas pesquisas ou que precisam ser
pesquisados com mais propriedade (SOARES, MACIEL, 2000; RO-
MANOWSKI, ENS, 2006).
Soares e Maciel (2000) apontam que a ciência se constrói
de maneira dialética e por isso, em alguns momentos históricos,
determinados aspectos teóricos e metodológicos são alvo de inves-
timentos, alternando-se os interesses de acordo com o contexto.
É importante que as análises sobre a produção do conhecimento
acompanhem essas alternâncias históricas da ciência explicitando
interesses, lacunas e desafios para determinadas áreas do saber.
Os procedimentos para o levantamento, registro e análi-
se dos dados foram:

a) localização, na Plataforma Sucupira, dos cursos de


pós-graduação em psicologia oferecidos pelas universidades da
região Norte;
b) acesso às páginas desses programas para localização
das teses e dissertações;
c) seleção das produções acerca das políticas educacio-
nais a partir da leitura dos títulos, resumos e palavras-chave;
d) leitura de outras partes das pesquisas, caso necessá-
rio, para decidir acerca da inserção ou exclusão do trabalho;
e) registro em planilhas no Excel das dissertações e teses
levantadas.

Com base no levantamento realizado e em parceria com


a equipe nacional, foram construídas as seguintes categorias de
análise:
Políticas para Educação Inclusiva: pesquisas acerca da
política de inclusão escolar, geral ou de algum segmento em espe-
cífico (por exemplo, surdos, superdotação, deficiência intelectual),
o ensino especial, geral ou de alguma especialidade, bem como
atendimentos educacionais em geral para estas pessoas e suas fa-
mílias.
Formação e Inserção do Psicólogo Escolar: trabalhos so-
bre as políticas de formação, inserção e atuação de psicólogos/as
escolares nos diversos níveis de educação.
Políticas de Melhoria da Educação: estudos que envolvem

- 274 -
a melhoria da qualidade da educação, tanto em relação ao acesso e
permanência, quanto ao enfrentamento de problemas no processo
de escolarização. Inclui ainda trabalhos que investigam e/ou dis-
cutem a organização e estruturação do sistema de ensino, incluin-
do-se o tempo previsto para a educação obrigatória, infraestrutura
da escola entre outros.
Políticas de Formação de Professores/as: trabalhos quan-
to à formação inicial e/ou continuada de professores/as.
Políticas de Atendimento à Diversidade: estudos a respei-
to das políticas de educação no campo, na floresta, dos povos qui-
lombolas, etnias indígenas, educação de jovens e adultos, popula-
ções afrodescentes e LGBT’s.
Políticas Intersetoriais: pesquisas com interfaces entre
a saúde, a educação e a assistência social, tais como estudos que
tratam da saúde do trabalhador e da trabalhadora, escolarização
da infância em unidades de acolhimento, adolescentes em confli-
to com a lei (socioeducação), educação em contextos domiciliar e
hospitalar.

Resultados e discussões
Nesta seção serão apresentados os resultados e as dis-
cussões dos dados obtidos por meio do levantamento realizado
nos sites dos programas de pós-graduação em psicologia da região
Norte. A análise é iniciada com o número de programas em psicolo-
gia da região em comparação com os dados nacionais. Em seguida,
é feita uma breve caracterização dos referidos programas, quanto
ao tempo de funcionamento e as linhas de pesquisa que os consti-
tuem, de maneira a contextualizar a produção levantada. As teses e
dissertações levantadas foram classificadas quanto à instituição de
origem, ano de produção, objeto de estudo e os referenciais teóri-
cos e metodológicos que serviram de base para as pesquisas.

Caracterizando os programas/cursos de pós-gradua-


ção da região Norte
As desigualdades regionais que assolam o Brasil, em di-
ferentes aspectos da vida social, são historicamente discutidas em
todas as áreas do conhecimento. Essa assimetria está relacionada
não apenas à educação e à ciência, mas principalmente às dife-

- 275 -
renças socioeconômicas de cada região. Com a oferta da pós-gra-
duação isso não é diferente, o que pode ser facilmente constatado
quando se verifica a forte desigualdade na distribuição regional
dos cursos no país (CIRANI, CAMPANARIO, SILVA, 2015; YAMAMO-
TO, COSTA, PEREIRA, 2013).
Conforme dados apresentados na Tabela 1, a região Nor-
te detém menos de 5% do total de cursos de pós-graduação em
psicologia oferecidos no país, ou seja, dos 149 cursos apenas sete
estão nessa região. São apenas cinco programas, três deles ofere-
cem somente mestrado e dois oferecem mestrado e doutorado.

Tabela 1: Número de cursos de pós-graduação em psicologia no


Brasil e região Norte - 2017
Mestrado
Total Mestrado Doutorado
profissional
Brasil 149 85 55 9
Região
07 05 02 -
Norte
Percentual 4.7% 5.8% 3.6% -
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir de dados da Plataforma Sucupira, 2018.

É importante salientar que todos os cursos de pós-gra-


duação em psicologia na região Norte são públicos. Estes cursos
são ofertados nas Universidades Federais de Rondônia (UNIR), do
Amazonas (UFAM) e do Pará (UFPA), conforme dados apresenta-
dos na Tabela 2.
A UNIR foi criada em meados de 1982, logo após a cria-
ção do Estado de Rondônia que ocorreu em dezembro de 1981.
No entanto, o programa de pós-graduação em psicologia foi criado
apenas em 2009.1
O programa de pós-graduação em psicologia da UFAM
também foi criado em 2009, embora a Universidade do Amazonas
seja centenária. Inicialmente, em 1909, era a Escola Universitária
Livre de Manáos que, em 1913, passou a se denominar Universi-
dade de Manaus. Em 1926, a Universidade foi desativada e passou
a funcionar como unidades isoladas que, em 1965, deram lugar à
1 Informações disponíveis no endereço: https://www.unir.br/?pag=submenu&id=260&titu-
lo=A%20Universidade

- 276 -
Universidade Federal do Amazonas.2
A UFPA é a pioneira na oferta de pós-graduação em psi-
cologia na região, uma vez que ofertou o mestrado em 1987 e o
doutorado em 2000. Criada em 19073, é a única a ofertar doutora-
do em psicologia na região Norte e possui três programas na área,
sendo que dois oferecem mestrado e doutorado, enquanto o mais
recente oferece apenas mestrado.

Tabela 2: Dados gerais sobre os programas de pós-graduação da


região Norte - 2017
Universidade Programa de Pós- Ano de Mestrado Doutorado
graduação início

Universidade Programa de Pós- 2009 01 -


Federal de graduação em
Rondônia Psicologia
(UNIR)
Universidade Programa de pós- 2009 01 -
Federal do graduação em
Amazonas psicologia
(UFAM)
Universidade Programa de Pós- 2005 01 01
Federal do graduação em
Pará (UFPA) Psicologia
Programa de Pós- 2014 01 -
graduação em
Neurociências e
Comportamento
Programa de Pós- 1987 01 01
graduação em (Mestrado)
Teoria e Pesquisa
do Comportamento 2000
(Doutorado)
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir de dados obtidos nos sites dos programas.

No Quadro 1 é apresentada a área de concentração dos


programas em psicologia da região Norte, bem como as respecti-
vas linhas de pesquisa. Estas informações são relevantes por in-
dicarem o foco formativo adotado em cada um dos programas e
2 Informações disponíveis em https://ufam.edu.br/historia-da-ugm
3 Informações disponíveis no endereço: https://portal.ufpa.br/index.php/universidade

- 277 -
caracterizar o contexto em que foram produzidas as dissertações e
teses levantadas sobre a temática das políticas educacionais.
Três programas estão organizados de forma mais geral
em torno da área de concentração em psicologia (UNIR, UFAM e
UFPA). Dois deles possuem áreas de concentração mais específi-
cas, sendo um em neurociências e comportamento e outro em psi-
cologia experimental e ecoetologia.
Quanto às linhas de pesquisa, há a predominância das li-
nhas focadas na análise do comportamento (06) e em saúde (03),
seguidas do enfoque clínico (02). Os processos educativos e os
processos psicossociais completam as linhas de pesquisa, sendo
apenas uma de cada temática.

- 278 -
Quadro 1: Programas de pós-graduação e linhas de pesquisa
Programa de Área de
Universidade Linhas de pesquisa
Pós-graduação concentração

* Psicologia escolar e
Universidade
Programa de Processos educativos
Federal de
Pós-graduação Psicologia
Rondônia
em Psicologia * Psicologia da saúde e
(UNIR)
Processos psicossociais
Universidade * Processos psicossociais
Programa de
Federal do
Pós-graduação Psicologia
Amazonas * Processos psicológicos
em Psicologia
(UFAM) e saúde
* Psicanálise: teoria e
clínica
Programa de
* Psicologia, sociedade
Pós-graduação Psicologia
e saúde
em Psicologia
*Fenomenologia: teoria
e clínica
*Processos
comportamentais
Programa de Pós-
básicos
graduação em Neurociências e
neurociências e comportamento
*Processos
comportamento
comportamentais
complexos
*Análise experimental
do comportamento:
Psicologia bases experimentais e
Universidade experimental histórico-conceituais
Federal do Pará
(UFPA) *Desenvolvimento
de tecnologia
comportamental
Programa de
Pós-graduação * Ecologia do
em teoria e desenvolvimento
pesquisa do humano
comportamento Ecoetologia
* Etologia e
comportamento animal
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados obtidos nos sites dos programas, 2018.

Os dados apresentados sobre os programas de pós-gra-


duação, nos quais foi realizado o levantamento, apontam, em pri-

- 279 -
meiro lugar, para o pequeno número de programas existentes na
região. A necessidade do desenvolvimento de políticas de apoio à
criação de novos programas, bem como o fortalecimento e a am-
pliação dos já existentes são condições para a produção de conhe-
cimentos no campo da psicologia, cujas temáticas investigativas
contribuem para o desenvolvimento humano tanto no campo da
educação e da saúde quanto dos processos psicossociais.
Outro aspecto a ser destacado diz respeito ao fato de que
metade dos programas foram criados há menos de dez anos, indi-
cando que ainda estão em fase de consolidação.
Também é preciso destacar a ausência, na região, de pro-
gramas de pós-graduação na modalidade profissional.

Quantificando e analisando as produções encontra-


das
O levantamento realizado nos repositórios dos progra-
mas de pós-graduação retornou um total de 26 trabalhos que abor-
daram a temática das políticas educacionais em diferentes aspec-
tos. Conforme indicam os dados constantes da Tabela 3, o maior
número de produções (24) caracteriza-se como pesquisa de mes-
trado e apenas dois foram produzidos no doutorado.
A instituição com o maior número de trabalhos sobre
a temática é a UNIR com 18 estudos. Esta diferença na produção
pode ser explicada pela existência de uma linha de pesquisa no
programa voltada para a psicologia escolar e os processos educa-
tivos.
Além disso, o programa de pós-graduação da UNIR man-
teve durante cinco anos (2010-2015) o Programa de Cooperação
Acadêmica – Ação Novas Fronteiras (PROCAD – NF) envolvendo a
Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Ma-
ringá (UEM), no qual um dos eixos da pesquisa estava relacionado
ao levantamento das políticas de enfrentamento ao fracasso esco-
lar. Esse investimento pode ter influenciado o número das produ-
ções regionais sobre a temática.

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Tabela 3: Número de trabalhos por Instituição/Estado, programa
e nível de 1996 a 2017
Instituição/
Programa Mestrado Doutorado Total
Estado
Programa de Pós-graduação
UNIR/RO 18 - 18
em Psicologia
Programa de Pós-graduação
UFPA/PA 02 - 02
em Psicologia
Programa de Pós-graduação
UFPA/PA em Teoria e Pesquisa do 01 02 03
Comportamento
Programa de Pós-graduação
UFAM/AM 03 - 03
em Psicologia
Total 24 02 26
Fonte: Elaborada pelas autoras a partir de dados obtidos nos sites dos programas, 2018.

Conforme o Gráfico 1, em 2007 e 2008, houve ape-


nas uma produção por ano (ambas da UFPA) sendo os anos de me-
nor produção. Atribui-se esse dado ao fato de que os programas de
pós-graduação da UNIR e da UFAM ainda não eram criados.

Gráfico 1: Número de produções por ano

Fonte: Elaborado pelas autoras a partir de dados obtidos nos sites dos programas.

Em 2009 e 2010 não foram localizadas produções sobre
o tema. Em 2011 e 2012 foram localizadas cinco produções em

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cada ano. O maior número de produções sobre a temática ocorreu
no ano de 2013 com um total de sete produções. Em 2014 e 2015,
a quantidade de trabalhos sobre o tema diminuiu (02 trabalhos
em 2014 e 01 em 2015), voltando a subir em 2016, quando foram
localizadas três produções. Em 2017 apenas um trabalho foi regis-
trado.
A presença da temática ao longo dos anos no programa
de pós-graduação da UNIR indica a estreita relação entre as polí-
ticas educacionais, a psicologia escolar e os processos educativos,
fomentando o interesse contínuo de pesquisadores sobre o tema.

Objetos de estudo das teses e dissertações analisadas


No Quadro 2 são apresentados os trabalhos localizados
nos sites dos programas, com os respectivos autores, ano de
produção, objetos de estudo e a classificação de acordo com as
categorias temáticas nas quais foram agrupados.
Os 26 trabalhos localizados nas páginas dos programas
de pós-graduação em psicologia da região Norte elegeram objetos
de estudo distintos, embora, em duas situações as políticas inves-
tigadas fossem as mesmas. Isso ocorreu com os trabalhos 12 e 13
que investigaram o projeto “Um computador por aluno” (UCA) e
os trabalhos 15 e 16 que estudaram políticas de correção de fluxo,
porém em realidades diferentes. Em ambos os casos as disserta-
ções tiveram as mesmas orientadoras, indicando que as pesquisas
estavam vinculadas aos projetos em desenvolvimento nos grupos
de pesquisa.
De acordo com o Quadro 2, a categoria “Políticas de Edu-
cação Inclusiva” foi a que reuniu o maior número de trabalhos (08).
Para Aimi e Tamboril (2015), a inclusão de pessoas com deficiên-
cia no ensino regular, denominada de educação inclusiva, tem sido
alvo de diferentes ações e programas dos governos federal, esta-
dual e municipal, com o intuito de adequar as condições de aten-
dimento e preparar profissionais envolvidos/as com esse público.
Essas mudanças nos cenários escolares, juntamente com
os desafios que a inclusão tem representado para todos os envol-
vidos explicam a produção sobre educação inclusiva, pois investi-
gadores/as que se envolvem em programas de pós-graduação tem
o desafio de acompanhar essas mudanças e analisar as suas con-
sequências.

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Quadro 2: Objetos de estudo dos trabalhos analisados agrupados
em categorias temáticas
CATEGORIAS OBJETOS DE ESTUDO AUTORAS/ES
Políticas de 1 Sentidos sobre inclusão escolar LUNA (2007)
Educação
2 Atuação de psicólogos/as no JOHNSON (2011)
inclusiva
processo de inclusão escolar
3 O sentido da deficiência para as MORAES (2011)
mães de um grupo de crianças de um
programa de estimulação essencial
da cidade de Manaus
4 Políticas públicas para educação AIMI (2012)
especial
5 Escola inclusiva FACIOLA (2012)
6 Implantação do programa de sala de FONTES (2012)
recursos multifuncionais
7 Contribuição da psicologia na COSTA (2013)
educação escolar especial e inclusiva
do aluno com surdez
8 Processo de escolarização do GUEDES (2014)
adolescente com autismo
Formação e 9 Formação de psicólogos/as escolares VIEIRA (2012)
Inserção de
Psicólogos
Escolares
Políticas de 10 Avaliação e recuperação de SOUZA (2012)
Melhoria da aprendizagem
Educação
11 Ampliação da jornada – Programa GEMELLI (2013)
Mais Educação
12 Projeto Um Computador por BRASIL (2013)
Aluno (Projeto UCA) – atuação das
professoras
13 Projeto Um Computador por Aluno SILVA (2014)
(Projeto UCA) – análise da política
14 Inserção das crianças de cinco e seis LAUDARES (2016)
anos no ensino fundamental.
15 Correção de fluxo - Projeto Salto NOGUEIRA (2017)
16 Correção de fluxo – Projeto Poronga NASCIMENTO
(2016)

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Políticas de 17 Formação continuada de professores NUNES (2013)
Formação de em Educação Inclusiva
Professores
18 Programa Institucional de Bolsa de ROCHA (2013)
Iniciação à Docência (PIBID)
Políticas de 19 Escola da comunidade ribeirinha MENDES (2008)
Atendimento à como possibilitadora de
Diversidade desenvolvimento
20 Projetos de igualdade de direitos NEVES (2013)
para estudantes LGBT
21 Educação infantil no campo – Projeto ALBUQUERQUE
Asinhas da Florestania (2016)
Políticas 22 Brinquedotecas hospitalares LIMA (2011)
Intersetoriais
23 Escolarização em Unidades OLIVEIRA (2011)
Socioeducativas
24 Políticas públicas voltadas à saúde RODRIGUES (2011)
sexual e reprodutiva de adolescentes
25 Programa Saúde na Escola e ALMEIDA (2013)
mecanismos disciplinares de
biopoder
26 Escolarização de crianças acolhidas COUTINHO (2015)
institucionalmente
Fonte: Elaborado pelas autoras a partir da análise dos trabalhos levantados nas páginas dos
programas de pós-graduação da região Norte.

Os trabalhos classificados sob a categoria de políticas de


educação inclusiva trataram de diferentes aspectos do processo de
inclusão. Discutiram especificidades de determinadas deficiências
(autismo, surdez), contribuições da psicologia e da atuação de psi-
cólogos/as para o atendimento ao público da inclusão, bem como
os sentidos produzidos pela inclusão abordando, portanto, aspec-
tos da subjetividade próprios ao campo psicológico.
A categoria referente às políticas de melhoria da edu-
cação, que envolve estudos sobre a qualidade da escola, garantia
de acesso e permanência com sucesso escolar, reuniu o segundo
maior número de trabalhos (07). Neste grupo estavam as disser-
tações acerca da questão da avaliação e da recuperação escolar,
ampliação da jornada de permanência nas escolas públicas e dois
trabalhos que investigaram a política educacional denominada
PROUCA – Projeto “Um computador por aluno”. Além disso, dois
trabalhos voltaram-se para a política de correção de fluxo, porém
em dois Estados diferentes (Rondônia e Acre).

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Os estudos categorizados como análise de políticas inter-
setoriais abrangeram as interfaces entre saúde, educação e assis-
tência social. Nessa categoria foram classificadas cinco pesquisas
e, desse total, três são voltadas à saúde e duas à assistência social.
Dentre as dissertações que abordaram temas da saúde
na interface com a educação estão os trabalhos de Lima (2011) que
analisou quatro brinquedotecas hospitalares do Estado do Pará,
enfatizando esses espaços como direito das crianças, porém ain-
da não concretizado integralmente no Brasil. O estudo de Almeida
(2013) que analisou as ações de saúde na escola como mecanismo
de biopoder, e o trabalho de Rodrigues (2011) que investigou os
processos dialógicos envolvidos na atuação de adolescentes como
multiplicadores em projetos de educação sexual.
No que tange à assistência social, duas pesquisas estu-
daram a escolarização em contextos de institucionalização. Uma
investigou a escolarização de adolescentes que cumpriam medidas
socioeducativas de internação em duas Unidades de Socioeduca-
ção no Estado de Rondônia (OLIVEIRA, 2001). Em outra, Coutinho
(2015) analisou a escolarização de crianças em um abrigo.
Na categoria de Políticas de Atendimento à Diversidade
foram encontrados três trabalhos. O estudo de Mendes (2008) que
analisou o contexto de uma escola ribeirinha como possibilitador
de desenvolvimento; o trabalho de Neves (2013) enfocando os di-
reitos de estudantes LGBT; e a pesquisa de Albuquerque (2015)
que analisou uma política pública do governo do Estado do Acre
para atendimento à educação de crianças que moram em áreas lo-
calizadas de difícil acesso - no campo e na floresta.
Na categoria de pesquisa sobre a Formação e Inserção de
Psicólogos Escolares, há apenas o estudo de Vieira (2012), realiza-
do em Rondônia, que investigou os sentidos atribuídos por estu-
dantes a sua formação em psicologia.
Por fim, na categoria Políticas de Formação de Professo-
res encontra-se o trabalho sobre o Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência (PIBID), elaborado por Rocha (2013) que
buscou compreender a dinâmica entre teoria e prática no funcio-
namento do PIBID em um campus da Universidade em Rondônia.

- 285 -
Aspectos teórico-metodológicos das pesquisas
Outros aspectos analisados nas pesquisas sobre políticas
educacionais foram os referenciais teóricos e a abordagem meto-
dológica que foram utilizados para a realização das pesquisas. A
psicologia histórico-cultural, fundamentada nos pressupostos do
materialismo histórico e dialético, foi o referencial mais citado (16
das 26 produções). As pesquisas que utilizaram este referencial,
em geral, o justificam por este permitir análises que relacionam o
objeto de estudo ao contexto social, político e econômico onde está
inserido.
Três trabalhos fizeram referências à pedagogia históri-
co-crítica. Esta vertente teórica, também de base epistemológica
marxista, sustenta análises no campo educacional de forma coe-
rente com a psicologia histórico-cultural e, por isso, muitas vezes
foi utilizada nas produções.
A psicologia escolar crítica compareceu como referência
teórica em duas produções analisadas. Trata-se de uma vertente
da psicologia escolar que se constituiu a partir da autocrítica cons-
truída pelos próprios autores do campo da psicologia que, com
base em referenciais históricos e filosóficos críticos, contestam a
prática clínica da psicologia ao atuar em espaços coletivos como
a escola. Autoras como Patto (2010), Machado e Souza (2004),
Souza (2011), entre outros, afirmam que este viés clínico contri-
bui com a visão descontextualizada, reducionista e a-histórica dos
indivíduos atribuindo-lhes a culpa por mazelas que muitas vezes
são sociais.
Outros referenciais teóricos que compareceram nos tra-
balhos analisados foram de diferentes autores sobre desenvolvi-
mento e aprendizagem além de Bronfenbrenner (Bioetologia)
referenciado em dois trabalhos; Construcionismo social, Paulo
Freire, Bakhtin, Lino de Macedo e Foucault compareceram apenas
em um trabalho cada um.
Também constituíram referenciais para a maior parte
dos trabalhos analisados os diferentes documentos legais que sus-
tentam as políticas analisadas. Assim foram referenciados os do-
cumentos internacionais que influenciaram a garantia de direitos
sociais como a Declaração de Salamanca e documentos que norma-
tizam as políticas nacionais, tais como a Constituição brasileira de

- 286 -
1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL,
1996) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990);
além de documentos orientadores dos diferentes programas e po-
líticas específicas analisadas pelos autores.
Quanto aos aspectos metodológicos, todas as pesquisas
analisadas adotaram uma abordagem qualitativa com diferentes
desenhos. Algumas foram definidas como estudos de caso e, mes-
mo as que não apresentaram esta caracterização, envolveram um
público reduzido, característica dos estudos desenvolvidos por
pesquisadores individuais em programas de pós-graduação, prin-
cipalmente mestrados, cuja duração tem sido em torno de 24 me-
ses.

Considerações finais
Os estudos desenvolvidos para a realização deste tra-
balho nos defrontaram com os dados sobre a oferta de pós-gra-
duação em psicologia na região Norte indicando a necessidade de
expansão do atendimento em uma região tão extensa. Os dados
evidenciam também que exceto dois programas da UFPA, os de-
mais programas são recentes e ainda não puderam consolidar-se
a fim de ampliar a oferta para o doutorado, oferecendo apenas a
formação em nível de mestrado.
A partir do estudo das dissertações e teses produzidas
sobre a temática das políticas educacionais nos programas de pós-
graduação da região, podemos afirmar que a maior parte dessa
produção se concentra no programa da UNIR em decorrência da
linha de pesquisa em psicologia escolar e processos educativos.
Quanto às políticas investigadas destacam-se aquelas voltadas ao
campo da educação inclusiva - área da educação, que vem sendo
objeto de investimento e transformações nos últimos anos, além
de políticas implantadas com o objetivo de melhorar a qualidade
da educação, justificativa que tem acompanhado boa parte dos
programas no campo das políticas educacionais. Em relação aos
referenciais teóricos predomina o enfoque crítico que recorre à
psicologia histórico-cultural, pedagogia histórico-crítica e psicolo-
gia escolar crítica. Mas há outros autores que referenciam as pes-
quisas com grande dispersão de resultados. Quanto à abordagem
metodológica, há o predomínio absoluto da pesquisa qualitativa.

- 287 -
Conforme aponta o estudo de Souza (2011), as políti-
cas de grande amplitude, geralmente, são criadas e implementa-
das sem considerar o contexto local dos beneficiários. Portanto, é
extremamente relevante a realização de pesquisas que busquem
analisar os processos de elaboração, bem como a implementação
dessas políticas, inclusive no cotidiano escolar, de maneira que
possam contribuir com evidências que indiquem as conquistas ad-
quiridas e os desafios a serem superados, na apropriação dessas
propostas por parte dos sujeitos escolares. Nesse sentido, é impor-
tante que a psicologia, como área do saber que busca compreender
as influências históricas e sociais na constituição das subjetivida-
des, se debruce com compromisso ético e político no estudo dessas
políticas.
Esse compromisso pressupõe estar atento para as de-
núncias feitas por Gonçalves (2010) e Patto (2010), as quais afir-
mam que muito do que se faz no campo das políticas públicas e da
psicologia tem o viés naturalizante que serve para justificar as as-
simetrias sociais culpabilizando apenas os sujeitos pela condição
de exclusão em que se encontram.
Por isso, tanto investigadores/as, quanto profissionais
da psicologia com envolvimento em processos educacionais neces-
sitam fundamentar suas análises em referenciais críticos que per-
mitam identificar as relações de força entre governos e população
que resultam em políticas educacionais, de forma a compreender
as origens dos programas e ações que são objetos de estudo dos
pesquisadores. Somente recorrendo aos aspectos históricos dos
processos de concepção, implantação e implementação das polí-
ticas, torna-se possível a compreensão mais ampla dos seus resul-
tados.

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- 293 -
- 294 -
Heteronormatividade,
lgbtfobia e suas implicações subjetivas
Norcirio Silva Queiroz
Denise Machado Duran Gutierrez

Introdução
A partir do advento da nova onda conservadora no Brasil,
ideias que trazem em seu bojo um teor mais progressista – como
é o caso da temática das diferenças sexuais nas escolas –, passam
a ser vistas como uma afronta aos pilares fundamentalistas da so-
ciedade. O fato é que, enquanto as discussões de cunho político/
religioso/ideológico tendem a crescer, muitos jovens sofrem dia-
riamente nas escolas com crises de ansiedade, fobias sociais, qua-
dros de depressão, ideações suicidas, além de evadirem as cartei-
ras escolares acossados pela LGBTfobia.
Neste ensaio discutiremos os meios pelos quais per-
missões são socioculturalmente concedidas para a instauração e
manutenção da discriminação LGBTfóbica, associadas à exclusão
simbólica no âmbito escolar, bem como suas implicações subjeti-
vas. Por vezes, essas permissões se dão de modo sutil, em outras
o despreparo ético, moral, técnico e emocional do quadro profis-
sional da escola em lidar com situações que envolvem as diferen-
tes sexualidades acabam por perpetuar preconceitos e acentuar a
invisibilidade, mudez e marginalização dos alunos diferentes da
normativa.
Ainda, abordaremos a heteronormatividade como um
dispositivo1 disciplinar/controle remanescente da visão que se ti-
nha acerca da sexualidade na época vitoriana, assim como postu-
lada e discutida por Foucault em História da Sexualidade I (1999).
Para aprofundar o entendimento de tal formulação teórica trare-
mos uma breve discussão sobre algumas ideias apresentadas nes-
sa obra e como essas ideias ainda estão presentes na nossa socie-
dade, mesmo que em níveis mais sutis.
1 Um dispositivo pode ser configurado como um conjunto de condutas, de instituições, discursos, proposi-
ções morais, filosóficas, leis. “Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo
é a rede que se pode estabelecer entre esses elementos” (FOUCAULT, 2000, p.244).

- 295 -
Normatizações na escola e lgbtfobia
Em se tratando de LGBTfobia na escola, a tendência é que
se pense apenas no resultado final: um agressor cometendo um
ato de violência contra uma pessoa por conta de sua sexualidade.
O fato é que antes da concretização desse tipo de discriminação, as
concepções curriculares, a arquitetura da instituição, as normas e
o descaso da escola em tratar do tema concedem permissão para
que esta ocorra.
Imaginemos uma escola tradicional onde meninas ves-
tem saias e meninos calças, na qual meninas brincam de bone-
cas e meninos de carrinhos, onde nas aulas de Educação Física os
meninos devem jogar bola enquanto que às meninas resta a quei-
mada ou pular corda. Nessa mesma linha, continue imaginando o
que aconteceria com uma criança caso optasse por brincar com o
brinquedo do colega do sexo oposto, ou se optasse por se vestir
diferente da norma, ou ainda se um menino brincasse de queimada
com suas colegas de turma. É difícil de imaginar o que aconteceria
na cena seguinte?
A heteronormatividade engloba essas regras que im-
põem modelos e identidades à nossa sociedade, legitimando al-
guns em detrimento de outros. Há um interesse por parte de al-
gumas pessoas em manter as coisas do jeito que estão, e muitos
tentam manter a normatividade sexual mesmo sem ter o conheci-
mento disso, muito menos do sofrimento diário de quem sofre por
não se adequar a esta. Explicamos: por encontrarmos essas ideias
embrenhadas em nossa cultura, algumas pessoas passam a apenas
reproduzir discursos que apoiam a norma, achando ser esta uma
condição natural, a qual não foi construída socioculturalmente ao
longo de séculos.
Essa norma ultrapassa a imposição das relações sexuais
com o sexo oposto, abarcando um modelo de comportamento,
atitudes, valores, corpos e identidades corretos a se seguir. Enga-
na-se, entretanto, quem acha que é um dispositivo reproduzido
apenas por pessoas que se relacionam com o sexo oposto. A hete-
ronormatividade se torna objeto de reprodução também por pes-
soas com orientações sexuais divergentes da norma, como é o caso
de homens homossexuais, que, embora divergentes, inferiorizam
os que apresentam trejeitos afeminados, demonstrando um com-
pleto apreço pela norma.

- 296 -
Por constituir-se de uma ordem sexual, a heteronorma-
tividade contém um conjunto de microdispositivos histórico-cul-
turais que interpelam a participação do sujeito como reprodutor
e agente fiscalizador desta, visando sempre a manutenção disci-
plinar do status quo (MISKOLCI, 2015). No ambiente escolar não
é diferente, pois a escola é pensada para e a partir de um modelo
idealizado de corpos e identidades, sendo, portanto, a temática das
diferenças sexuais deixadas de fora das prioridades escolares.
A partir dessa permissão sociocultural e da conivência
institucional – deliberada ou não –, muitos estudantes passam a
enxergar as expressões identitárias/sexuais divergentes das pro-
postas pela heteronormatividade como abomináveis, podendo re-
sultar em práticas e atitudes discriminatórias, como piadas, ridicu-
larizações, aversões e desprezos, ou seja, em práticas LGBTfóbicas.
De acordo com Abramovay (2015, p10),

Uma das discriminações que mais chama a atenção nas escolas


é a homofobia, ou o tratamento discriminatório sofrido por jo-
vens de ambos os sexos tidos como homossexuais, legitimada
por moralismos em nome da masculinidade. Tal discriminação
baseia-se na concepção de que existe uma sexualidade correta,
“normal”, que deve ser sinônimo de casar e ter filhos. Assim, a
homofobia é legitimada por padrões culturais que condenam
práticas não-heterossexuais. Com efeito, em uma cultura ma-
chista, a homossexualidade representa uma afronta à mascu-
linidade/virilidade.

Diante disso, nas instituições escolares é possível ob-


servar jovens expostos diariamente a atitudes de intolerância às
diferenças, ofensas gratuitas, insinuações preconceituosas, cons-
trangimentos e agressões em distintas dimensões em regimes de
controle e vigilância visando a manutenção da norma (JUNQUEIRA,
2013).
Estudos sobre a homofobia no contexto escolar apontam
para a predominância de agressões homofóbicas de cunho verbal
(PERUCCHI, CORREA, 2013; ALBUQUERQUE, WILLIAMS, 2015).
São ofensas disfarçadas de brincadeiras, comentários nos corre-
dores e/ou xingamentos deliberados. Embora ainda sejam vistas
como microviolências, as agressões verbais podem incutir senti-
mentos de violência efetiva experimentada pelo aluno, bem como

- 297 -
abrem a possibilidade para que se instaurem agressões físicas
(ABRAMOVAY, 2015).
Por outro lado, mesmo que não haja uma “agressão ativa”
por parte da escola, a falta de elementos de um compartilhamento
identitário, a ausência de concepções curriculares que abrangem
as diferenças sexuais, a própria ausência de representatividade
em livros e apostilas escolares, bem como a arquitetura institucio-
nal e o sistema de uniformes acabam contribuindo e legitimando
uma segregação coletiva. A exclusão simbólica de estudan-
tes homossexuais, travestis e transgêneros aparece como corolário
dessas condições estruturais. Acreditamos que a exclusão social
vai para além dos limites físicos, geográficos e materiais, tendo em
vista que também envolve a rejeição de valores e crenças, abarcan-
do o quesito cultural (WANDERLEY, 2001).
A partir de uma perspectiva ético-psicossociológica,
Sawaia (2001) propõe que a exclusão social seja vista tanto como
um processo sociohistórico – que traz em seu escopo a injustiça
social –, quanto como uma dialética contínua:

[...] a exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma


configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e
subjetivas. É processo sutil e dialético, pois só existe em rela-
ção à inclusão como parte constitutiva dela. Não é uma coisa ou
um estado, é um processo que envolve o homem por inteiro e
suas relações com os outros (p.9).

Dessa forma, ao admitir o estudante diferente da norma,


a escola abre suas portas para as diferenças num processo de in-
clusão, todavia, acaba por excluí-lo ao deixar de contemplá-lo em
todos os quesitos anteriormente mencionados. Daí a importância
das políticas públicas educacionais que contemplem as diferenças
sexuais, assim como o preparo técnico-profissional-emocional que
envolve desde uma equipe com professores e coordenadores aptos
a discutir a temática e a lidar com situações de LGBTfobia dentro
e fora dos muros escolares, até a atuação de profissionais da psi-
cologia que não propendam à adequação dos alunos às normatiza-
ções, mas ajam em conjunto com as instituições atentando-se para
as questões coletivas e sociais que possibilitam a exclusão desses
jovens.

- 298 -
Entretanto, ainda hoje, o que encontramos na maior par-
te das escolas brasileiras é o individualismo ao lidar com a situa-
ção: após um ato de agressão LGBTfóbico, a escola pune o agressor
afastando-o das aulas ou expulsando-o da escola (em ambos os
casos, não há uma intervenção reeducativa voltada para a temáti-
ca); e no que se refere à vítima, dependendo da escola, esta pode
receber algum tipo de apoio emocional. Nem é preciso dizer que
esse tipo conduta institucional, apesar de se fazer necessário em
determinado nível, não visa dirimir as questões socioculturais que
constituem o pano de fundo e, consequentemente, não ajuda na
educação para as diferenças e muito menos atua na prevenção de
outras situações de discriminação.
Ao focar sua lente apenas nos fatores individuais e sub-
jetivos da agressão LGBTfóbica, a escola opta por fechar os olhos
e tampar os ouvidos, nariz e boca para a sua própria Hidra de
Lerna2 das normatizações socioculturais, além de recusar-se a se
prostrar perante tarefa tão dispendiosa. Tal individualismo no lide
com as demandas escolares, prática tão criticada por Martín-Baró3,
impossibilita que sejam dadas condições para que a vítima tenha
voz, espaço e protagonismo, o que é condição sine qua non para a
construção de uma sociedade mais justa e humana, assim como
postulado pelo mártir em sua Psicologia da Libertação.
Não basta apenas que se abram as portas para as dife-
renças, é preciso ofertar condições para que o aluno possa não só
estudar, mas ter um ambiente de acolhimento, propício para uma
aprendizagem de qualidade, prezando pelo convívio sadio entre
seus pares e professores. A escola é responsável pelo bem-estar
daqueles que ali ingressam, não devendo optar pela sociocultural
cegueira seletiva. Até porque esta invisibilidade institucional dos
alunos LGBT é constantemente convertida em humilhações e dis-
criminações. O clima de perigo iminente gerado nesse ambiente,

2 Hidra de Lerna é um monstro mitológico derrotado por Hércules em seus Doze Trabalhos. A criatura que
vivia num pântano mal cheiroso era constituída de nove cabeças (sendo uma imortal) e era tão feia como se
tivesse sido feita da junção de todos os piores pensamentos do mundo. Cada cabeça quando cortada dava
origem a mais duas em seu lugar. Após muito penar, Hércules conseguiu vencê-la após seguir o conselho
do seu mestre: “É ajoelhando que nos levantamos; é nos rendendo que conquistamos; é desistindo de algo
que o ganhamos” (DELDEBBIO, 2014).
3 A crítica de Martín-Baró (1986) se referia à reprodução acrítica e descontextualizada da práxis nor-
te-americana por parte da Psicologia latino-americana, devendo a última construir sua própria práxis e
episteme a partir de três tarefas: a recuperação da memória histórica, a desideologização do senso comum
e da experiência cotidiana e a potencialização das virtudes populares.

- 299 -
bem como o perigo de fato consumado acarretam um alto custo
pago com o depauperamento da própria saúde dos envolvidos.

Implicações subjetivas da lgbtfobia


Por vezes, a LGBTfobia não é vista como ofensiva, tanto
pela vítima quanto pelo agressor, mas tomada como uma brinca-
deira passível de ocorrência em qualquer estabelecimento escolar,
havendo, dessa forma, uma verdadeira banalização de formas se-
minais de discriminação (PERUCCHI, CORREA, 2013). Nessa situa-
ção se pode observar a atuação do dispositivo da heteronormativi-
dade, quando os colegas apontam para o transgressor, punindo-o
com olhares, gestos ou verbalizações, pressionando-o ao retorno
para a “via correta”.
Temos ciência de que as discriminações de modo geral
são difíceis de serem relatadas, ainda mais num ambiente escolar
que se arquiteta para manter as normativas socioculturais. No caso
específico das discriminações por conta da sexualidade, temos o
agravante da fase de desenvolvimento adolescente, na qual, o jo-
vem está em constante descoberta da sua identidade, de suas emo-
ções e sentimentos, assim como da sua sexualidade e suas nuances,
não sabendo ainda os contornos, potencialidades e limitações des-
ta, muito embora o jovem LGBT já venha sendo taxado e punido
justamente por conta deste atributo.
As implicações subjetivas da discriminação LGBTfó-
bica vão para além dos muros da escola e da fase adolescente. É
de consenso entre vários estudos que práticas de discriminação
por conta da sexualidade estão relacionadas a comprometimen-
tos psicossociais e psiquiátricos na vida adulta. Baixa autoestima,
isolamento social, dificuldade de concentração, fobia à escola, ten-
dência à depressão, ideação suicida, adição ao álcool, uso de subs-
tâncias, maior exposição a doenças sexualmente transmissíveis e
HIV/AIDS são algumas das implicações registradas em vítimas de
violência LGBTfóbica no período escolar (TOOMEY, RYAN, DIAZ,
CARD, RUSSELL, 2010; RUSSELL, RYAN, TOOMEY, DIAZ, SANCHEZ,
2011; ANTÓNIO, PINTO, PEREIRA, FARCAS, MOLEIRO, 2012; AL-
BUQUERQUE, WILLIAMS, 2015; HERNÁNDEZ, VALENCIA-VALERO,
2015).
Como mencionado acima, muitos jovens passam a apre-
sentar sentimentos de insegurança, autoestima baixa como resul-

- 300 -
tado da repetição de ataques LGBTfóbicos sofridos no ambiente
escolar. Estes sujeitos, por vivenciarem a não aceitação da sua for-
ma de ser/estar no mundo acabam por ignorar aspectos positivos
em si próprios, além de não apresentarem confiança em si e em
outrem, o que pode acarretar em evasão escolar e dificuldades na
aprendizagem e socialização (BLUMENFELD, 1992; ISAY, 1998;
HARDIN, 2000; TEIXEIRA-FILHO, RONDINI, 2012).
Aliado a isso, ainda, podemos citar o sentimento de culpa
presente nas vítimas de LGBTfobia, sendo, por vezes, resultante da
culpabilização da vítima por terceiros. Essa culpabilização externa
na visão de Antunes (2016) configura-se como uma forma de per-
petuar a ideia de que a agressão só ocorreu por conta unicamente
da inadequação da normatividade vigente.
Outros estudos apontam para a predominância de sinto-
mas depressivos e maior índice de ideação suicida em adolescentes
que sofreram violência LGBTfóbica na escola do que em jovens que
não sofreram esse tipo de violência (ASSIS, GOMES, PIRES, 2014;
HERNÁNDEZ, VALENCIA-VALERO, 2015). Já Teixeira-filho, Rondini
e Bessa (2011) observaram que grande parte dos adolescentes não
-heterossexuais, assumidos ou não, que foram discriminados por
conta da sua sexualidade já pensaram em suicídio.
Por mais que os comportamentos autolesivos sejam de
natureza complexa e multifacetada, podemos inferir que a orienta-
ção sexual possui um alto grau de relevância nesse tipo de compor-
tamento. Cardoso (2016, p. 27), nos afirma que

Adolescentes LGBTI têm um risco duas a seis vezes superior de


vir a adotar comportamentos autolesivos, possuem um risco
quatro vezes mais elevado de vir a tentar o suicídio e uma pro-
babilidade oito vezes superior de tentar o suicídio pelo menos
quatro vezes, com um risco desproporcionalmente superior
para indivíduos do sexo masculino.

Teixeira-Filho e Rondini (2012) em estudo acerca dos


comportamentos autolesivos e suicidários entre a população hete-
rossexual e a população LGBT, realizado com mais de dois mil es-
tudantes brasileiros de ensino médio brasileiros, observaram que
a taxa de ideações suicidas LGBT (38,6%) era de aproximadamente
duas vezes mais se comparada com os estudantes heterossexuais

- 301 -
(20,7%). Já as tentativas de suicídio se configuraram como quase
três vezes mais na população LGBT, totalizando 19,8% de tentati-
vas, enquanto que nos alunos heterossexuais a taxa de prevalência
foi de 6,8%.
Ademais, a população LGBT apresenta uma menor preva-
lência de fatores protetores (relações próximas, crenças religiosas,
família com elevado grau de coesão) se comparadas com pessoas
heterossexuais (CARDOSO, 2016).
Além disso, é de consenso entre estudos na área do
bullying homofóbico que o isolamento social resultante da difi-
culdade da inserção em grupos e da exclusão manifesta de grupos
no ambiente escolar constitui-se em uma forma sutil de discrimi-
nação, podendo ser considerado como uma forma de bullying in-
direto (FRANKHAM, 1996; GARCIA, 2009; ANTÓNIO et al., 2012;
ALBUQUERQUE, WILLIAMS, 2015).
A hostilidade encontrada por jovens estudantes fora da
normatividade sexual na tentativa de integrarem grupos é aponta-
da como alta nos estudos de Williams et al. (2003). Cornejo (2010)
aponta que o círculo de violência LGBTfóbica sofrida na escola
enfraquece a partir do momento em que as vítimas de agressões
decidem enfrentar a situação e romper o silêncio. Dentro dessa
perspectiva, o autor lista alguns elementos que podem ajudar no
enfrentamento desse tipo de violência: 1. ruptura do silêncio (seja
por parte do aluno, ou por parte do quadro profissional da escola),
2. prevenção do bullying anti-homossexual, 3. promoção de redes
de apoio, e 4. suporte da família.
A possibilidade da criação de um ambiente educacional
acolhedor – em que as diferenças sejam não apenas toleradas, mas
respeitadas em sua singularidade –, se fundamenta na construção
de um lugar que promova e incentive o enfrentamento de todos os
tipos de desrespeito à dignidade do ser humano. A falta de preparo
das escolas para que haja esse tipo de apoio faz com que os alu-
nos que sofrem esse tipo de violência não tenham a quem recorrer
(ABRAMOVAY, 2015). Ademais o desamparo, por vezes, encontra-
do em casa, se perpetua no ambiente escolar.
Em 2011, foi lançado o Projeto Escola Sem Homofobia,
financiado pelo Ministério da Educação, em uma ação colaborati-
va idealizada e implementada por organizações de sociedade civil,

- 302 -
como a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Travestis e Transe-
xuais (ALGBT), Comunicação em Sexualidade (ECOS) e Reprolatina
– Soluções Inovadoras em Saúde Sexual e Reprodutiva. No entan-
to, o que seria um importante passo na luta contra a LGBTfobia
no ambiente escolar, encontrou barreiras no jogo político. Entre
os materiais, encontrava-se o kit anti-homofobia, taxado pela ban-
cada evangélica de “kit gay”, contendo material didático e vídeos
informativos para os professores acerca de questões de sexualida-
de e gênero. Mesmo pronto para impressão, o kit encontrou forte
resistência em setores conservadores da sociedade e no Congres-
so Nacional, o que culminou no veto pela então presidente Dilma
Rousseff, a qual considerou o material audiovisual “inadequado”.
No entanto, anos antes do projeto Escola Sem Homofo-
bia pretender ser implantado nas escolas, a discussão acerca das
diferenças sexuais já havia sido implementada nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) para 5ª a 8ª séries em 1998 (Secre-
taria de Educação Fundamental, 1998). O objetivo desse trabalho
transversal é o de abordar a Educação sexual nas escolas, visan-
do proporcionar a autonomia, a responsabilidade e prazer no que
tange à expressão da sexualidade do aluno. Além disso, objetiva
que seja desenvolvido o respeito-próprio e o respeito para com o
próximo nas questões relativas à sexualidade e sua livre expressão,
contribuindo para uma sociedade em que todos os direitos sejam
garantidos e respeitados.
O estudo da Educação sexual na escola, preconiza os PCN,
deve abarcar o corpo, bem como as relações de gênero e a pre-
venção de infecções sexualmente transmissíveis/AIDS. Entretanto,
na prática as normas se reproduzem: as escolas escolhem abor-
dar apenas as questões anatomofisiológicas biologicistas e de pre-
venção de infecções sexualmente transmissíveis, deixando de fora
questões como a construção sociocultural dos papéis de gênero,
contribuindo, assim, para a perpetuação de práticas regulatórias
heteronormativas (ESPERANÇA et al., 2015).
Sob este prisma, entendemos que a escola ao ignorar o
seu compromisso social que consta no PCN de garantir que os alu-
nos concluam o Ensino Fundamental respeitando os valores, cren-
ças e comportamentos relativos às sexualidades, reconhecendo as
expectativas recolocadas sobre os gêneros como construções so-

- 303 -
cioculturais, compactua com a LGBTfobia no âmbito escolar e suas
implicações a curto e longo prazo.
Acreditamos que a instituição escolar ao ignorar delibe-
radamente essas questões, está agindo de acordo com as ideolo-
gias dominantes, sendo, então corresponsável pela discriminação
e com a debilitação da saúde de seus estudantes.

Passado e presente – mudanças e permanências


Em História da Sexualidade I, Foucault faz um recorte da
sociedade da Era Vitoriana, postulando que esta era regida forte
ideologia cristã, principalmente no que concerne à sexualidade. A
partir disso, sugere que a sociedade Ocidental vive na sombra des-
sa Era, afirmando que os discursos, práticas e saberes acerca da
sexualidade mudaram em poucos aspectos desde então, sendo em
grande parte, pautados num discurso fundamentalista/religioso e
conservador.
Ainda na Era Vitoriana, o ato sexual era resguardado pelo
véu da discrição religiosa, sendo dotado apenas de uma função: re-
produção no quarto do casal heterossexual. O sexo matrimonial
reprodutivo era o único meio socialmente aceito de relação sexual;
o que fugia dessa regra era malvisto e marginalizado, em defesa e
manutenção dos bons costumes.
Nessa época, os meios clandestinos de obtenção de lu-
cro e aceitação da sexualidade passam a existir de maneira velada,
por debaixo dos tapetes da burguesia; as sexualidades diferentes
do padrão natural passam a se configurar como crimes. Temos o
exemplo do escritor Oscar Wilde que foi condenado à prisão por
cometer atos imorais com diversos rapazes. Tal hipocrisia londrina
sustentava um mercado clandestino que proliferava o adultério e a
prostituição, contando com mais de 2.000 prostitutas de classe so-
cial baixa nos bairros mais marginalizados, sem contar o mercado
de prostituição homossexual (GRIMALDI, 2009).
A partir dessas contradições e convergências morais e
lucrativas, Foucault aborda a questão da Sexualidade Ocidental,
também como algo que foge dos interesses da burguesia, pois não
havia meios para a exploração da prática sexual de modo à obten-
ção do lucro:

- 304 -
Se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível
com uma colocação no trabalho, geral e intensa; na época em
que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se
-ia tolerar que ela fosse dissipar-se nos prazeres, salvo naque-
les, reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reproduzir-se? O
sexo e seus efeitos não são, talvez, fáceis de decifrar; em com-
pensação, assim recolocada, sua repressão é facilmente anali-
sada (FOUCAULT, 1999, p. 11-12).

A censura no que tange a temática do sexo é presente e


incentivada. Segundo Foucault, no século XIII, a Igreja cria o sacra-
mento cristão da penitência, válido para crianças a partir de 7-8
anos. A partir do decidido no Concílio de Latrão de 1215, as pes-
soas devem confessar seus pecados cometidos, ou possíveis peca-
dos (pensamentos, desejos, sonhos), a fim de que o sacerdote da
Igreja lhe conceda a absolvição. Surge o que Foucault denominou
de Polícia do sexo, que em suas palavras é a “necessidade de regular
o sexo por meio de discursos úteis e públicos e não pelo rigor de uma
proibição” (1999, p.28).
As regulações de discursos e práticas referentes à sexua-
lidade estão enraizadas nos planos ideológico e material. A Polícia
do sexo vai agir e inscrever cada cidadão para atuar na manuten-
ção do pensamento hegemônico. A partir do século XVIII temos as
Instituições Família, Clube, Exército, Sociedade no geral adotando
o discurso da Pastoral Cristã acerca da sexualidade. Já no século
XIX, a medicina, inserindo-se no campo do poder, passa a dar su-
porte ao antigo tripé que regia e ditava os códigos morais do lí-
cito e do ilícito no que concerne à sexualidade: a Pastoral Cristã,
o Direito Canônico e a Lei Civil. Esses códigos estavam centrados
na relação marido-mulher, fazendo com que pessoas que fugissem
desse padrão fossem passíveis de condenação (FOUCAULT, 1999).
A medicina inscreve as sexualidades divergentes como
perversões no campo do ilícito, fornecendo respaldo psiquiátrico
com nomenclaturas próprias de status científico. As sexualidades
periféricas passam a ser consideradas imorais por se constituírem
“contra-a-natureza” e carregarem em seu bojo características que
vão de encontro com o que era tido como natural – a relação matri-
monial com fins reprodutivos. E nessa perspectiva, a homossexua-
lidade passa a ser classificada como uma espécie a ser estudada,

- 305 -
patologizada, marginalizada e tipificada como crime, e como tal,
passível de punição jurídica, como o citado caso do escritor Oscar
Wilde.
A homossexualidade foi retirada dos manuais de doenças
no fim do século XX, estudos científicos foram realizados, o campo
científico avançou, a Igreja perdeu seus poderes legislativo, exe-
cutivo e judiciário, entretanto, ainda hoje alguns discursos trazem
concepções obsoletas como se na antiga Londres estivessem.
Portanto, podemos sugerir que a instituição escolar ao
compactuar com a permanência de pensamentos dos séculos pas-
sados acerca das diferentes sexualidades demonstra que não há
interesse em realizar as mudanças necessárias para a construção
de um ambiente de inclusão e respeito às diferenças em sua tota-
lidade.

Considerações finais
legitimada por um contexto histórico, cultural e ideológi-
co, a LGBTfobia continua se mantendo e vem sendo perpetuada no
contexto escolar, seja na ausência de representatividade em livros
e apostilas didáticas, seja em discriminação disfarçada de brinca-
deira, seja, ainda, pela agressão física.
O debate no âmbito político brasileiro sobre as diferenças
sexuais nas escolas continua sem que seja possível vislumbrar um
fim, porém, os pensamentos e discursos que apoiam a heteronor-
matividade tem grande número de adeptos na bancada política. Os
favoráveis à discussão das diferenças sexuais nas escolas e os mo-
vimentos sociais continuam defendendo seus pontos e convidando
pessoas de renome no meio científico para embasar as discussões.
Entretanto, o processo dialético exclusão/inclusão que é visto nas
escolas acaba se reproduzindo também nesse ambiente: a palavra
é dita, mas não é escutada; os dados são mostrados, mas os olhos
não querem enxergá-los. O medo e a ignorância reinam agarrados
em interesses escusos às dos cidadãos. Esse tipo de postura im-
pede que os avanços observados no meio científico e os debates
do meio acadêmico se concretizem em políticas públicas educa-
cionais e beneficiem os jovens que sofrem diariamente agressões
LGBTfóbicas.
Os meios para a manutenção do poder se mantêm atra-

- 306 -
vés dos dispositivos. A repressão não é mais exercida de modo
coercitivo. O controle e a disciplina são sentidos e vivenciados nas
sutilezas agressivas das normatizações. Ainda hoje muitas pessoas
reproduzem atitudes e discursos acreditando serem condições na-
turais, sem terem consciência da sua construção sociohistórica e
os seus fins. Dentro dessa perspectiva, a escola, ao reproduzir com-
portamentos que visam fechar os olhos para as diferenças sexuais,
acaba por compactuar e perpetuar a LGBTfobia dentro e fora dos
seus muros.
Portanto, o objetivo desse breve ensaio foi apresentar al-
gumas ideias e discutir os meios pelos quais as instituições escola-
res possibilitam que a LGBTfobia se concretize dentro e fora do seu
âmbito, bem como os malefícios que esta discriminação carrega
para a subjetividade do estudante a curto e longo prazo. Como vi-
mos, as implicações de uma experiência de violência podem acar-
retar traumas que, muitas vezes, perduram até a vida adulta.
Faz-se importante que as escolas mudem a sua cultura
em relação aos alunos homossexuais, transgêneros e travestis,
dando voz e espaço para que as diferenças sejam vistas e respei-
tadas. Além disso, as mudanças precisam integrar aspectos ideo-
lógicos e culturais: discutir as diferenças sexuais nas escolas, a
construção sociocultural dos papéis de gênero e, principalmente,
preparar o corpo técnico-profissional para atuar de maneira éti-
ca e respeitosa. Estas se constituem em formas de manutenção da
saúde dos alunos e de prevenção de malefícios psicossociais e psi-
quiátricos decorrentes diretamente da LGBTfobia. Ademais, essas
medidas possibilitam a criação de melhores condições para o con-
vívio saudável de todos os estudantes e da equipe de profissionais,
melhorando o aprendizado e estadia nesse ambiente.
A sociedade encontra-se em constante transformação e
as escolas precisam cada vez mais desenvolver estratégias para
acompanhar a evolução, buscando sempre propiciar ambientes de
acolhimento e estímulo ao desenvolvimento de todos, para que os
estudantes não paguem com sua própria saúde mental, emocional
e espiritual o preço da ignorância e indiferença institucional.

- 307 -
Referências
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- 310 -
Sobre autoras & autores

Adriana Rosmaninho Caldeira de Oliveira. Psicóloga


(PUC-RJ, 1988), especialista em Psicologia Clínica (CRP/RJ, 2000),
mestre em Tecnologia Educacional para Saúde (NUTES/UFRJ,
2002), doutora em Educação (UNISO, 2015). Professora Adjunta
da Universidade Federal de São Carlos. Professora Permanente do
Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Fe-
deral do Amazonas da linha de pesquisa Processos Psicossociais.
Líder do Grupo de Pesquisa CNPq “Saúde Mental e Sociedade”
(UFSCAR). Integrante do Laboratório de Intervenção Social e De-
senvolvimento Comunitário – LABINS/UFAM. Coordenadora do GT
Ecologias Outras da Abrapso em 2017. arcaldeirao@gmail.com

Alessandro de Oliveira dos Santos. Psicólogo (PUC-SP,


1995), Mestre (1999) e Doutor (2004) em Psicologia Escolar e do
Desenvolvimento Humano (IP-USP). Docente do Departamento de
Psicologia Social e do Trabalho do IP-USP. Pesquisador na área de
relações étnico-raciais com apoio da FAPESP modalidade Jovem
Pesquisador. alos@usp.br

Ana Maria Souza Brito. Graduanda do curso de Psico-


logia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Voluntária em
iniciação científica junto à pesquisa “Escola Pública e espaço local:
enquadrando olhares, sentidos e relações” (2016-2017). brito.ana-
marias@gmail.com

Ana Paula Farias Ferreira. Graduanda do curso de Psi-


cologia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Bolsista de
Iniciação Científica UNIR/PIBIC/CNPq junto à pesquisa “Escola
Pública e espaço local: enquadrando olhares, sentidos e relações”
(2014-2017). Integrante do Grupo Amazônico de Estudos e Pes-
quisas em Psicologia e Educação (GAEPPE). paulinhafarias_14@
hotmail.com

- 311 -
Andreza Cristina da Costa Silva. Psicóloga (UFAM,
2015), mestranda em Psicologia na Universidade Federal do Ama-
zonas, pesquisadora do Laboratório de Intervenção Social e De-
senvolvimento Comunitário – LABINS. andrezacosta.ufam@gmail.
com

Angélica de Souza Lima. Graduanda do curso de Psico-


logia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Voluntária em
iniciação científica junto à pesquisa “Escola Pública e espaço local:
enquadrando olhares, sentidos e relações” (2014-2017). Integran-
te do Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia e
Educação (GAEPPE). ange_gs2012@hotmail.com

Carlos Vinicius Gomes Melo. Psicólogo (EBMSP-BA,


2009), mestre em Psicologia Social e do Trabalho (UFBA, 2014),
doutorando do Programa de Psicologia Social do Instituto de Psi-
cologia da Universidade de São Paulo (IPUSP) com bolsa FAPESP.
Pesquisador na área de psicologia e relações étnico-raciais. cvgme-
lo@usp.br

Christian Ferreira Crevels. Bacharel em Ciências So-


ciais com habilitação em Antropologia (UnB, 2013), mestrando
no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Uni-
versidade Federal do Amazonas, membro do Conselho Indigenista
Missionário Regional Norte I/CIMI N1. Estuda processos de colo-
nização, terras indígenas e relações interétnicas na Amazônia. ch-
ristian.crevels@gmail.com

Cláudia Regina Brandão Sampaio. Psicóloga (FEFA-


CEL, 1990), mestre em Educação (UFAM, 1999), doutora em Saúde
Pública (FIOCRUZ-AM, 2007), docente permanente do Programa
de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ama-
zonas, coordenadora do Laboratório de Intervenção Social e De-
senvolvimento Comunitário – LABINS. claudiasampaioufam@hot-
mail.com

Consuelena Lopes Leitão. Psicóloga (ULBRA-AM, 2000),


mestre em Psicologia Social (UFPB, 2008), doutorado em Antropo-

- 312 -
logia Social (PPGAS-UFAM, 2016). Professora da Faculdade de Psi-
cologia da Universidade Federal do Amazonas. Coordenadora do
Projeto de extensão Maria Jiquitaia. consuelena@gmail.com

Denise Machado Duran Gutierrez. Psicóloga (IP-USP,


1983), mestre em Psicologia da Saúde (Katholieke Universiteit
van Brabant, 1993), doutora em Saúde da Mulher e da Criança (Fio
Cruz/RJ, 2009). Professora da Faculdade de Psicologia e da Univer-
sidade Federal do Amazonas e docente permanente do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia. dmdgutie@uol.com.br

Diana Kássia Oliveira de Almeida Silva. Assistente


Social (UFAM, 2017). Pós-Graduanda em Gestão Pública (UEA).
E-mail: dianakoas@gmail.com

Elizabete Amancio de Senna Silva. Discente de gradua-


ção em Psicologia (UFAM). E-mail: sennaelizabete@gmail.com

Felippe Otaviano Portela Fernandes. Psicólogo (UL-


BRA-AM, 2014), mestre em Psicologia (PPGPSI/UFAM, 2017). Pes-
quisador do Laboratório de Intervenção Social e Desenvolvimento
Comunitário – LABINS/UFAM e do Núcleo de Estudos da Amazônia
Indígena – NEAI/UFAM. felippe.otaviano@gmail.com

Gisele Cristina Resende. Psicóloga (UNITAU, 1999),


mestrado (UFAM, 2001) e doutorado em Psicologia (IP-USP, 2017).
Atualmente é professora adjunta I da Faculdade de Psicologia da
Universidade Federal do Amazonas. gisele.resendefs@gmail.com

Igor Brelaz. Discente de graduação em Psicologia


(UFAM) e Instrutor do Projeto “Mexa-se: estilo de viver”.

Janaína Léia Passos da Silva. Discente de graduação em


Psicologia (UFAM). E-mail: janainaleia@hotmail.com

Jéssica Fabrícia Silva Lima. Psicóloga graduada pela


Universidade Federal de Rondônia (UNIR) (2017). Bolsista de
Iniciação Científica UNIR/PIBIC/CNPq junto à pesquisa “Escola

- 313 -
Pública e espaço local: enquadrando olhares, sentidos e relações”
(2014-2017). Integrante do Grupo Amazônico de Estudos e Pes-
quisas em Psicologia e Educação (GAEPPE). jessicafabricia003@
gmail.com

Juliana de Souza Izidio do Prado. Psicóloga (UNINOR-


TE, 2005), mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da Universidade Federal do Amazonas na linha de pesquisa
Processos Psicossociais. Trabalha no Serviço de Atendimento Mó-
vel de Urgência – SAMU e no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS
III) – Silvério Tundis, ambos em Manaus. julianapsiq@gmail.com

Kássia Pereira Lopes. Discente de graduação em Psico-


logia (UFAM). E-mail: kassiapsy@gmail.com

Kelly Cristina Costa Albuquerque. Psicóloga (Facul-


dade da Amazônia Ocidental - FAAO, 2011). Mestra em Psicologia
pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR, 2016). Professora e
Coordenadora do curso de Psicologia da FAAO. Vice-diretora Aca-
dêmica da Faculdade Diocesana São José (FADISI). E-mail: kellyc-
calbuquerque@gmail.com

Lílian Caroline Urnau. Possui graduação (2006) e mes-


trado (2008) em Psicologia pela Universidade Federal de Santa
Catarina, doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimen-
to Humano pela Universidade de São Paulo (2013). Atualmente
é professora Adjunta da graduação e do mestrado em Psicologia
da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Pesquisadora inte-
grante do Grupo Amazônico de Estudos e Pesquisas em Psicologia
e Educação (GAEPPE). Tem experiência em pesquisas sobre políti-
cas públicas de proteção social, processos educativos e participa-
ção social. lilian.urnau@unir.br

Lua Clara Melo Fernandes. Graduanda do curso de Psi-


cologia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Voluntária
em iniciação científica junto à pesquisa “Escola Pública e espaço
local: enquadrando olhares, sentidos e relações” (2016-2017). lua-
claramelo@gmail.com

- 314 -
Marcela Abiorana do Nascimento. É graduada em
Psicologia pela Universidade Federal de Rondônia (2017), foi
bolsista PIBIC no período de 2015/2017 e é membro do Grupo
amazônico de estudos e pesquisas em psicologia e educação
(GAEPPE). marcelaabiorana@gmail.com

Marcelo Gustavo Aguilar Calegare. Psicólogo (IP-USP,


2002), mestre (2005) e doutor (2010) em Psicologia Social (IP
-USP). Atualmente é professor adjunto I da Faculdade de Psicologia
da Universidade Federal do Amazonas. Coordenador do Programa
de Pós-Graduação em Psicologia. Membro do GT Psicologia Comu-
nitária da ANPEPP. mgacalegare@ufam.edu.br

Maria Ivonete Barbosa Tamboril. Pegagoga (UNIR,


1996), mestre (2000) e doutora (2005) em Psicologia Escolar e
do Desenvolvimento Humano (IP-USP). Atualmente é Professora
Associada da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Atua no
curso de graduação e de pós-graduação em Psicologia da UNIR.
Pesquisadora filiada na ABRAPSO. Vice-líder do Grupo Amazôni-
co de Pesquisa em Psicologia e Educação na Amazônia (GAEPPE).
E-mail: ivonetetamboril@unir.br

Marli Lúcia Tonatto Zibetti. Pedagoga (UFMS, 1988),


mestra (2000) e doutora (2005) em Psicologia Escolar e do De-
senvolvimento Humano (IP-USP). Pós-Doutora pela Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (2014). Professora da gra-
duação e do mestrado em Psicologia na Universidade Federal de
Rondônia. Líder do Grupo amazônico de estudos e pesquisas em
psicologia e educação (GAEPPE), vice-líder do grupo psicologia e
escolarização: políticas públicas e atividade profissional na pers-
pectiva histórico-crítica do IP/USP, filiada à ABRAPEE e membro
do GT Psicologia e Políticas públicas da ANPEPP. marlizibetti@
unir.br

Marlise Mirta Rosa. Cientista Social (UFRRJ, 2013),


mestre (2016) e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social/Museu Nacional/Universidade Federal do Rio
de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ). marlise.mrosa@gmail.com

- 315 -
Mayara dos Santos Ferreira. Psicóloga (UNINORTE,
2015), mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFAM. Integrante do Laboratório de Intervenção Social e De-
senvolvimento Comunitário – LABINS. E-mail: mayara.fsantos@
live.com.

Noélio Martins da Costa. Professor do Instituto Federal


de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM). É historia-
dor (UFAM), mestre e doutorando pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM). noeliomartins@
hotmail.com

Norcirio Silva Queiroz. Psicólogo (2014) e mestre


(2018) em Psicologia pela Universidade Federal do Amazonas.
Atualmente é Professor Substituto da Faculdade de Psicologia da
UFAM. norcirio@gmail.com

Rayza Sousa Ramos. Discente de graduação em Psicolo-


gia (UFAM). E-mail: rayza.ramos2304@gmail.com

Renan Albuquerque. Graduado em Comunicação So-


cial (UniNiltonLins), mestre em Psicologia Social (UFPB), doutor
em Sociedade Cultura na Amazônia (UFAM). Cursou estágio pós-
doutoral em Antropologia (PUC-SP). É líder do Grupo de Pesquisa
CNPq “Núcleo de Estudos e Pesquisas em Ambientes Amazônicos
(Nepam)”. É Professor Permanente do Programa de Pós-Gradua-
ção em Sociedade e Cultura da Amazônia/Ufam e atualmente coor-
dena o Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação/
Ufam. E-mail: renanalbuquerque@hotmail.com.

Renata Fernanda Cabral Ramos. Discente de gradua-


ção em Psicologia (UFAM). E-mail: fernandacramos.fr@gmail.com

Rosa Mirtes Araújo. Discente de graduação em Psicolo-


gia (UFAM). E-mail: rosamirtes1234@gmail.com

Simone da Graça Campelo. Discente de graduação em


Psicologia (UFAM). E-mail: moni.campelo@gmail.com

- 316 -
Suely Aparecida do Nascimento Mascarenhas. Peda-
goga (UNIR, 1987), doutora em Diagnóstico e avaliação educati-
va-psicopedagogia (Universidade da Coruña, 2004, revalidado e
registrado pela UnB), estágio de pós-doutoramento com ênfase em
Psicologia Escolar (Universidade do Minho, 2005). É professora na
Universidade Federal do Amazonas - Campus do Vale do Rio Ma-
deira - Instituto de Educação, Agricultura e Ambiente - IEAA - Hu-
maitá. Professora Permanente do PPGPSI/UFAM. suelyanm@ufam.
edu.br

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