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Cirurgia e Destino: Algumas Considerações

Prof. Dr. Paulo Mattos

Um primeiro aspecto do tema que optamos por tentar desenvolver, remete a nossa própria trajetória
particular no âmbito da Psicologia e, mais especificamente, a área da Psicologia preocupada em se articular
com a Medicina. Por conta dos fortes laços de amizade que estabelecemos com o Professor Abram Elsterman
e pela admiração que se construiu através do contato com seu espírito inquiridor, nos debruçamos sobre a
problemática do psiquismo na situação cirúrgica. Estabelecemos, a partir daí, uma linha de investigação,
aliada a tarefa do manejo das variáveis psicológicas em jogo nessas circunstâncias. E é a partir desse lugar
que gostaríamos de tecer algumas considerações, fruto de nosso percurso.

O desafio que a situação cirúrgica propõe ao discurso psicológico é um impasse que remete à exigência
de se revisar suas formulações clássicas. Freqüentemente, as alternativas utilizadas para se lidar com a
realidade cirúrgica resumem-se à tentativa de esclarecimento, convencimento e persuasão. Tais
procedimentos, eventualmente, produzem conseqüências desejáveis. Entretanto, mais freqüentemente,
colocam o psicólogo diante da impotência de agir e pensar em uma situação em que a agressividade do
tratamento que se faz necessário, o pouco tempo de que normalmente se dispõe para intervir, aliado à
dificuldade de se produzir um discurso específico sobre o psiquismo em tais circunstâncias, concorrem para
um quadro de difícil assimilação.

A própria objetividade almejada pelo discurso científico tradicional, que desconhece o lugar da
subjetividade na produção humana, faz do paciente, do cirurgião e do psicólogo suas próprias vítimas. A
esterilização necessária ao procedimento cirúrgico contamina aqueles que se acham envolvidos no processo
com o tipo de vírus que é refratário às formas usuais de descontaminação. Basta um paciente, que deverá ser
submetido a uma cirurgia simples, dizer que sua cirurgia não dará certo para haver uma contaminação quase
que impossível de ser debelada pelo discurso médico. É exatamente esse um dos momentos em que ganha
evidência aquilo que poderíamos denominar contaminação psicológica do campo cirúrgico.

Isto nos leva a afirmar que, subjacente a todo o processo cirúrgico, se acha inscrita a exigência de se
proceder, sistematicamente ou não, a uma cirurgia prévia. Esta aconteceria não em relação aos tecidos
biológicos, mas sim ao que concerne a uma textura de outra natureza. A trama mental, muitas vezes,
determina a direção de uma intervenção que ocorre ao nível da organização biológica. Assim, toda cirurgia
incide em pelo menos dois tecidos diferentes, sendo um deles o biológico e o outro de natureza basicamente
psíquica. O desconhecimento desse último traz conseqüências, às vezes, irreversíveis sob o ponto de vista dos
objetivos biológicos almejados. Atingir o êxito do processo de intervenção cirúrgica diz respeito não só a
intervenções realizadas no corpo, mas também ao atendimento das demandas de ordem psicológicas que por
ventura venham a se instalar no momento pré e pós-cirúrgico. Além do mais, como pensar que o ato cirúrgico
é apenas uma operatória sobre o corpo, se nesse próprio corpo se acham inscritos, inexoravelmente, o
psiquismo e a sociedade? A dimensão biológica no homem difere do biológico animal. O ser humanizado tem
na dimensão biológica o suporte para o ingresso em uma outra esfera da existência, que apresenta um nível de
estruturação dotado de regras próprias. Freud, no estudo da histeria, deixa evidenciado que o sintoma psíquico
apresenta uma lógica de articulação estranha àquela que se aprende na esfera biológica. Não se trata da
constatação da irracionalidade que sempre se fez presente na vida do ser humano. Algo mais fundamental se
acha em jogo. A suposição da existência de uma “outra lógica” amplia as possibilidades de investigação de
um fenômeno que se apresentava, até então, refratário às formas usuais de entendimento. O sintoma histérico
interpela a biologia.

Sob o ângulo inverso, pode-se, também, considerar que a estruturação psíquica pode ser inquirida,
questionada/ ameaçada por conta de, por exemplo, uma intervenção cirúrgica, independente do teor de
gravidade que esta possa oferecer. A emergência de um real possível de articulação até então, pode eclodir de
forma avassaladora, não sendo viável para o sujeito sustentá-la. Cabe sublinhar que aqui não se fala somente
do paciente, mas de todos aqueles que se acham implicados na situação, nela incluindo-se também o próprio
psicólogo. Assim, ganha realce a dimensão de um ato psicológico relativamente ao ato cirúrgico, podendo-se,
a partir daí, compreender a natureza desse ato como sendo uma intervenção no psiquismo, mesmo quando se
considera que somente o corpo se acha em jogo. O não reconhecimento do lugar do psiquismo em tal
circunstância não acarreta na sua exclusão. Ao contrário, determina um lugar em que suas produções ficam
fora do alcance de estratégias de ação que possam servir para o manejo da estruturação psíquica que se faz
presente. A realidade da vida mental não se curva a petições de princípios ou a declarações de boas intenções
somente. Sua força de produção sempre se faz sentir, mesmo nos casos em que, aparentemente, nada emerge
de maneira visível para denunciá-la ao olhar leigo.

O discurso dos pacientes cirúrgicos mostra que seus reclames ultrapassam em muito as expectativas
que lhes são depositadas no sentido de serem objetivos e não se deixarem levar por seus próprios temores.
Dada a natureza do discurso médico, não é raro que se conte com o silêncio do paciente para que este possa
ser tratado sem maiores complicações. O trabalho psicológico, por outro lado, pretende abrir uma fresta para
que se chegue ao entendimento da dinâmica do paciente. A implementação dessa perspectiva subordina-se à
construção de um dispositivo de escuta que reconheça o papel preponderante de uma dimensão situada para
além da mera aparência na construção da vida humana e as conseqüências de sua negação. O que é esquecido
ativamente, retorna, silenciosamente, com a força de uma determinação.

O mito de que o homem está somente no lugar onde se encontra seu corpo se desvanece, a partir do
reconhecimento de que o universo humano ultrapassa a natureza dos objetivos físicos. A materialidade
humana é de outra ordem. Possibilita o transporte e a permanência em outros lugares diferentes daqueles em
que se acha seu próprio corpo. Transita e é questionada por outros momentos que não o agora do presente
imediato. Não permite que se possa ter a vida totalmente segura nas mãos e mostra que as certezas, muitas
vezes, trazem a marca de toscos enganos, que definem enlaces e desenlaces com a vida.

É sobre essa materialidade que procura incidir o discurso psicológico, evidenciando que longe de se
pensar no ser humano como habitado pelo caos absoluto, existem certos caminhos na trajetória de sua
formação e existência, possíveis de serem mapeados e transformados.

Neste universo, marcado mais pelo engano do que pelo bom entendimento, o papel da linguagem na
produção humana desponta ocupando um lugar privilegiado. É sob sua influência que o ser humano atinge sua
condição de viajante das dimensões de espaço e de tempo e, diferentemente dos animais, antecipa a própria
morte, reconhecendo-se como um ser mortal.

Nesse sentido, interessa-nos como psicólogos saber desse ser falante, o que diz em circunstâncias
cirúrgicas, para que possamos saber em que lugar e em que tempo ele se acha situado. Entende-se, dessa
forma, que um paciente possa estar colocado no limite de sua vida, mesmo que em termos biológicos nada
possa dar conta da gravidade que experimenta na situação. Em outros casos, a gravidade da doença se
desdobra trazendo outras implicações. O relato de um paciente, portador do vírus da AIDS, ainda sem
expressão clínica, é indicativo quando assinala: - "Não tenho medo de morrer, meu receio é que minha
homossexualidade, que escondi a minha vida toda, venha à tona. O que me preocupa é o pós-morte". Sua dor,
nesse momento, não se restringe à questão da perda do corpo que a doença anuncia. Sua referência diz
respeito a um sofrimento pungente que lhe atravessou toda a vida, a ponto de não ser silenciado nem com a
sua própria morte. Isto porque ele sabia que sua morte não implicaria que os outros silenciassem em relação a
ele. Seu corpo, nessa circunstância, mesmo sem vida, continuaria, imaginariamente, a padecer de uma certa
dor. É no campo da palavra que este paciente, nessa altura de sua doença, realiza seu sofrimento, dotando-o
de características próprias. Sua trajetória estava alinhada pela ameaça de escutar algo que, dito por parte de
um outro, poderia colocá-lo em cheque, ou uma rota de desesperança com relação à vida. Ao mesmo tempo,
realiza um destino dependente de um certo lugar que ocupou no discurso materno. Saber que era
homossexual, ele o já sabia, mas um outro dizer-lhe sobre isso descortinava a ameaça de enfrentar algo de si
não conhecido, por isso aterrador. Assim, o paciente sabia que as palavras não sucumbem diante da morte e,
acrescentaríamos, preexistem em relação ao surgimento de cada um de nós.

Pode-se concluir que é no registro da linguagem que se constrói o destino humano, desde o momento
em que a criança esboça seu uso para assim enfrentar, em termos simbólicos, as vicissitudes de um mundo
estranho as suas necessidades.

Portanto, o trabalho psicológico em enfermaria de cirurgia direciona o psicólogo a uma tarefa também
cirúrgica, tendo na palavra seu instrumento de intervenção. Cortar e costurar não se acham distantes dos
horizontes da atuação psicológica, desde que se entenda a especificidade do campo que a Psicologia pretende
evidenciar. Sobre o poder das palavras, no que tange ao delineamento da vida humana, a literatura freudiana é
rica em exemplos e sábia em inaugurar possibilidades de instrumentá-la.

Nossa reflexão sobre a situação indica que o destino pode se valer de uma cirurgia para realizar seu
intento, sendo que parte de seu texto se acha inscrita no inconsciente e a outra perdida na vida. Cabe ao
psicólogo, em cada caso, decifrá-lo e tirar partido de suas possibilidades.

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