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É possível desenvolver uma pedagogia decolonial, intercultural e antirracista na

educação brasileira hoje?

A constituição brasileira de 1988, nos seus artigos 215 e 242, assegura o


reconhecimento da pluralidade étnica da sociedade brasileira e a garantia do ensino das
contribuições das diferentes etnias na formação do povo brasileiro. Isto constitui marco
histórico e/ou ponto de partida para se tecer considerações sobre a possibilidade de uma
pedagogia decolonial, intercultura e antirracista na educação brasileira de hoje.
Importante destacar que este reconhecimento é fruto de antigas reinvindicações dos
movimentos negros.

A década de 1990 é fundamental nessas discussões, pois houve uma


intensificação destas discussões, a partir das quais o conceito afrodescendência ganhou
força como fator de mobilização social e categoria histórica definidora de pertencimento
étnico. E também passou-se a incluir nas discussões sobre currículo e/ou educação de
modo geral a categoria cultura atrelada à categorias como identidade e etnia. Ao lado
dessas discussões se constituiu um avanço na ruptura com o mito da democracia racial,
destacando-se discussões no campo de ações afirmativas, com polêmicas das cotas
raciais nas universidades.

Esse conjunto de abordagem criou substrato para a elaboração da Lei 10.639 de


Janeiro de 2003 que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana e
Afro-Brasileira. A partir da promulgação desta Lei os conteúdos referentes à História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira deveriam obrigatoriamente ser ministrados no
âmbito de todo currículo escolar, especialmente nas áreas de Educação Artística, de
Literatura e de História Brasileira. Esta lei suscitou intensos desconfortos: significando
para alguns imposição e para outros concessão. As discussões em torno desta Lei por
parte educadores e do movimento negro, visando a inclusão da mesma nos currículos
escolares contribuíram para o avanço da luta antirracista.

Inúmeras produções acadêmicas foram feitas em torno desta temática. Destaca-


se a significativa contribuição da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Educação – Anped e a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros. Destaca-se
também a ampliação de cursos de especialização sobre História da África, Relações
Étnico-raciais e grupos de pesquisa em Universidades, nos programas de mestrado e
doutorado, voltados para esta temática.

A partir de um olhar apurado sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais que


fundamentam a Lei 10.639/03, identificou-se que, entre os objetivos, estão a garantia da
igualdade de direitos às histórias e culturas que configuram a nação brasileira e a
proposta de uma reeducação das relações étnico-raciais a partir da valorização da
história e da cultura Afro-Brasileira e dos africanos.
De acordo com Moore (2007), conforme destacado no texto, contar a história da
África é dar um estatuto epistemológico aos povos subalternizados e deslocar o foco de
constituição e dinâmica da própria formação do ocidente europeu e da nação brasileira.

Nas reflexões da literatura acadêmica, principalmente a partir da década de


1990, faz-se cada vez mais presente a questão da identidade nacional e da reescrita das
histórias do povo negro no Brasil, possibilitando a mobilização do debate sobre a
colonialidade do saber, do poder e do ser, pois a história dos negros no Brasil foi
invisibilizada na perspectiva da construção de uma nacionalidade em base
eurocêntricas.

Também se faz um questionamento a respeito da contribuição do resgate da


história africana e Afro-Brasileira, como elemento condicionador na formação brasileira
e as propostas oficiais de reparações históricas, no sentido de como tal resgate podem
mobilizar projetos de emancipação epistêmica, na perspectiva da produção de
conhecimentos não eurocêntricos.

No entanto a partir do que foi dito até ao momento, entendeu-se que a proposta
de uma pedagogia decolonial e de interculturalidade crítica requer a superação tanto de
padrões epistemológicos-hegemônicos no seio da intelectualidade brasileira quanto a
afirmação de novos espaços de enunciação epistêmica nos movimentos sociais.

Porém, apesar de todos os avanços já mencionados, a respeito das questões


étnico-raciais no nosso país, considerando as propostas de resgate da ancestralidade
africana, da reparação histórica e das ações afirmativas, ainda, para um grande número
de afrodescendentes no contexto brasileiro, ainda é muito evidente a bandeira do mito
da democracia racial. Mito este que faz apologia a miscigenação como uma ordem
harmoniosa nas relações raciais brasileiras e estabelece, de forma silenciosa, um padrão
branco de identidade e a necessidade de se ter referenciais eurocêntricos para o
reconhecimento social e cultural.

Nesse sentido, é fundamental considerar a colonialidade do ser como fator


relevante nas disputas epistêmicas no campo educacional, além da luta da
decolonialidade do poder e do saber. Pois essas lutas, sustentadas pela Lei 10.639, no
campo da educação, além apresentarem um caráter epistemológico e político,
caracterizaram-se também como projeto de existencial.

A partir da análise realizada, conclui-se afirmando que os referenciais presentes


na legislação brasileira possibilitam a abertura a uma crítica decolonial, na medida em
que expõem a colonialidade do saber e, ao mesmo tempo, propiciam a explicitação da
colonialidade do ser, ou seja, possibilitam a mobilização em torno das questões veladas
do racismo presente nas práticas sociais e educacionais da nação brasileira.

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