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Síntese
O essencial do programa de Filosofia do 10º ano num resumo direto e incisivo que permite
analisar a totalidade da matéria do 10 ano de filosofia.
Nelson Almeida
Nelsonalmeida99@hotmail.com
O essencial de Filosofia 10º Ano Filosofia
Índice
AÇÃO HUMANA 5
Nelson Almeida 2
O essencial de Filosofia 10º Ano Filosofia
PERSPETIVA NATURALISTA 16
PERSPETIVA ONTOLÓGICA 16
1.5. OUTROS PROBLEMAS SOBRE OS VALORES 17
1.6. CRITÉRIOS VALORATIVOS 18
2. VALORES E CULTURA 19
2.1. CARACTERIZAÇÃO DA CULTURA 19
2.2. DIVERSIDADE CULTURAL 20
A DIMENSÃO ÉTICO-POLÍTICA 24
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O essencial de Filosofia 10º Ano Filosofia
Ação Humana
A ação humana – analise e compreensão do agir
1. A rede conceptual da ação
1.1. Caracterização da Acão humana
Direta ou indiretamente, quase todas as questões de que a Filosofia se ocupa têm a ver com o ser
humano e com a forma como ele atribui sentido à vida e a tudo o que o rodeia. Todos
reconhecemos que o animal racional se evidencia como um ser dotado de uma inteligência
específica que lhe permite, de certa forma, ultrapassar algumas das barreiras que a natureza lhe
impõe. Por isso, afirmamos que o ser humano é um ser dotado de complexidade; como diz Edgar
Morin, o homem é uma unidade bios sociocultural. É a sua racionalidade que o distingue dos
outros animais, na medida em que é ela que lhe permite adaptar-se à realidade produzindo
cultura, organizando-se em sociedade e reconhecendo e atribuindo valor às coisas e às
experiências de vida. Porém, o uso que o ser humano faz da sua racionalidade é indissociável da
sua natureza animal, isto é, o ser humano não é apenas racional, é também um ser de impulsos,
paixões, desejos, sentimentos, afectos (a-racional). Registemos algumas das características a ter
em conta relativamente a este:
• racional com alguma a-racionalidade;
• dotado de uma vontade livre;
• inacabado (não nasce produto acabado, desenvolve-se e constrói-se);
• aberto (ao futuro e a um mundo de possibilidades de agir).
Interessa à Filosofia aprofundar o conhecimento do ser humano também através dos seus
comportamentos, das suas experiências, das suas ações.
Etimologicamente a palavra Acão deriva do latim “agere”, que significa fazer ou agir. Alguns
autores fazem a distinção entre aquilo que nos acontece (eventos - fenómenos naturais, atos
acidentais, atos reflexos ou condutas) e aquilo que fazemos ou ações propriamente ditas. Já S.
Tomás de Aquino (séc. XIII) se tinha apercebido de que nem tudo o que fazemos ou realizamos
constitui uma ação propriamente dita e, por isso, distinguiu as ações do homem, isto é, tudo o que
fazemos enquanto seres da natureza, dos atos humanos propriamente ditos, tudo o que fazemos
enquanto seres racionais e dotados de vontade livre.
“Os atos humanos (...) só merecem esse título porque são voluntários e a vontade é um apetite
1
racional específico do homem. “
1
Tomás de Aquino, Somme Théologique, Les Actes Humains. Éd. de la Revue des Jeunes
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Num primeiro plano - plano do acontecer - designamos atos ou eventos (que nos acontecem)
aqueles que são independentes da vontade, isto é, involuntários. Por exemplo, respirar, sonhar, ou
embater sem querer num vidro de uma porta são atos involuntários.
Num segundo plano - plano do agir e do fazer - designamos ações propriamente ditas aquelas
que, pelo contrário, realizamos consciente e voluntariamente. Neste sentido, são exemplos de atos
voluntários os atos teoréticos - como refletir e questionar - e os atos práticos - como gestos e
tarefas que desenvolvemos na produção de determinado bem ou serviço (atos técnicos, voltados
para o objeto) ou ações que desenvolvemos no nosso dia-a-dia que remetem para a escolha
racional e que, muitas vezes, se prendem com decisões de ordem moral (ações ponderadas e
deliberadas).
Podemos então definir ações humanas propriamente ditas a partir da enumeração das suas
principais características:
• são ações conscientes e voluntárias, isto é, realizadas com conhecimento de causa;
• são livres, porque escolhemos realizá-las desta forma, conscientes de que poderíamos ter
escolhido outras ou mesmo até não as realizar;
• são racionais, porque dependem da capacidade de ponderação e avaliação do agente por
forma a poder escolher realizá-las;
• são intencionais, porque têm um propósito ou intenção, orientando-se para determinado
fim;
• são responsáveis, porque o agente se reconhece como seu autor.
Tendo em conta a caracterização que acabámos de fazer, vamos agora tentar compreender a sua
estrutura, isto é, a forma como a ação se desenrola e o significado que lhe atribuímos. Para a
descrever iremos utilizar alguns conceitos fundamentais referentes aos elementos e momentos
que a constituem.
• Agente Sujeito da ação
• Motivo (Porquê?)
• Intenção (Que quer?)
• Finalidade (Para quê?)
• Ação
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reduzida a uma leitura do tipo causa-efeito. No seu interior encontramos outros conceitos que
merecem uma análise cuidada, a saber: os de motivo Intenção e finalidade.
“Todos os termos da rede (conceptual) convergem aqui: ação, intenção, motivação e, por fim,
agente (...). Importa (...) compreender a palavra agente
2
em função de toda a rede. ”
Significa, então, que se quisermos fazer uma correta análise da ação devemos ter em conta a
figura do agente como sujeito da ação, dotado de vontade, racionalidade, motivações, projetos,
intenções.
2
Paul Ricceur, O Discurso da Ação, Edições 70
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pela finalidade da ação. Toda e qualquer ação do ser humano tem em vista atingir determinado fim
e, na maioria das vezes, a finalidade da ação prende-se com o motivo da mesma. Perguntar por
quê (motivo) ou para quê (finalidade) parece ser quase a mesma coisa. O dever de ajudar o
próximo, que indicámos como motivo, pode tornar-se o fim ou objectivo da ação. É como se o fim
estivesse já projetado no motivo, ou o motivo o antecipasse. Contudo, é possível distinguir motivo
de finalidade. Exemplifiquemos: (porque) é meu dever ajudar o próximo (motivo), quero ajudar
doando alguns bens (intenção), para que me sinta bem comigo mesmo (finalidade). Neste caso, o
motivo que é apresentado não explica na totalidade a ação desenvolvida; a finalidade permite que
a compreendamos a fundo: cumpro o meu dever de ajudar o próximo porque se não o fizer não
me sentirei bem comigo mesmo. Às vezes torna-se muito difícil reconhecer se na intenção
predominam os motivos ou os fins, se na ação pesam mais uns ou outros.
3
Morais, "Deliberação", in Logos 1, Ed. Verbo
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M. Morais, "Decisão", in Logos 1, Ed. Verbo
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Convém referir que a decisão só se torna eficaz se os meios escolhidos para a realização da
mesma estiveram ao alcance do agente. Denominamos meios os procedimentos ou instrumentos
que utilizamos para realizarmos aquilo que projetamos mediante a escolha. Quando os meios são
insuficientes ou inadequados, a ação fica comprometida, pelo menos quanto ao seu resultado, isto
é, quanto ao que deriva da combinação entre o que a vontade quer e as possibilidades
circunstanciais ou contextuais em que se encontra o agente.
Síntese
• ACÇÃO - atividade humana consciente, livre, racional, intencional, voluntária e
responsável;
• AGENTE - autor e sujeito da ação;
• INTENÇÃO - o querer fazer isto ou aquilo da ação; por vezes aproxima-se da noção de
finalidade, outras vezes da de motivo;
• MOTIVO - razão ou o porquê da ação;
• FINALIDADE - fim ou meta para o qual se orienta a ação; é o para quê da ação;
• DELIBERAÇÃO - ponderação e reflexão no sentido da decisão;
• DECISÃO - reconhecimento e afirmação da escolha que permite a execução da ação;
• RESPONSABILIDADE - imputabilidade das ações ao seu autor.
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O problema da liberdade humana tem ocupado diferentes autores ao longo da história da filosofia.
Em que consiste? Em saber se somos realmente livres nas nossas ações ou se somos
determinados a desenvolve-las.
John Searl coloca-o da seguinte forma:
“Estamos perante um enigma filosófico característico. Por um lado, um conjunto de argumentos
muito poderosos força-nos à conclusão de que a nossa vontade livre não existe no Universo. Por
outro, uma série de argumentos poderosos baseados em factos da nossa própria experiência
inclina-nos para a conclusão de que deve haver alguma liberdade da vontade, porque aí todos a
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experimentamos em todo o tempo. “
A partir do texto descortinamos duas respostas diferentes para o problema: de um lado, a "nossa
vontade livre não parece ter lugar no mundo dos fenómenos, que se rege por uma lógica própria, a
das leis da Natureza; nesta acepção, se o ser humano faz parte do Universo, então está também
ele sujeito àquelas leis e, portanto, determinado a agir de acordo com as mesmas. A esta forma de
resolver o problema chamamos determinismo. De outro lado, parece evidente a inegabilidade da
liberdade humana, uma vez que é comum a todos os seres humanos a experiência constante de
poder escolher fazer isto ou aquilo, optar por este ou aquele caminho, decidir agir ou não,
consoante as circunstâncias particulares de cada um.
2.2. O determinismo
O determinismo surge com diferentes argumentos consoante o considerarmos do ponto de vista
científico ou do ponto de vista filosófico.
O determinismo científico defende que todos os fenómenos ou acontecimentos podem ser
explicados racionalmente de acordo com leis perfeitamente definidas. Desde que se conheçam os
antecedentes, isto é, os acontecimentos passados, é possível prever os consequentes, ou seja, os
acontecimentos futuros. Desde que se conheçam as causas, posso indicar os efeitos. O
determinismo científico vê o ser humano como fenómeno integrante do Universo e apresenta duas
formas diferentes para o explicar: enquanto animal, o ser humano está dependente das suas
características biológicas predeterminadas pelo seu património genético, isto é, está sujeito a um
determinismo biológico; enquanto ser social, o ser humano está submetido ao determinismo
social, isto é, às pressões do meio, aos valores, hábitos, crenças, etc., que vai assimilando pelo
processo de socialização. Meros reflexos da educação, as nossas escolhas e ações não são
verdadeiramente livres e pessoais. A liberdade, como poder de escolha, é uma ilusão. Poderíamos
indicar outros tipos de determinismos: físico-químicos, fisiológicos, psicofisiológicos, neurológicos,
sociológicos, culturais, religiosos.
5
J. Searl, Mente, Cérebro e Ciência
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No século XVIII, o problema do determinismo foi apresentado pelo filósofo David Hume sob a
forma de um dilema. Um dilema consiste numa forma de raciocínio ou argumento que apresenta a
duas hipóteses possíveis, acarretando qualquer uma dessas alternativas ou consequências
indesejáveis.
Há que ter em conta o peso do argumento anti-determinista. Recordemos a segunda forma de
responder ao problema da liberdade e determinismo, dada no início da nossa reflexão, a saber: na
nossa interioridade todos reconhecemos que temos de fazer escolhas, de optar por este ou aquele
caminho (ou por nenhum) e, até, que nos arrependemos (sentimos culpa ou remorsos) de
algumas decisões tomadas.
É possível indicar algumas saídas para o problema do determinismo ou para o dilema de Hume.
Uma delas, proposta pelo próprio David Hume, pretende compatibilizar o livre-arbítrio com o
determinismo. Há perspectivas que, ao contrário, negam esta compatibilidade para a partir daí
afirmar o livre-arbítrio.
2.4. A Liberdade
O que ela não é:
•fazer o que me apetece, isto é, satisfazer os meus impulsos, desejos imediatos. Satisfazer a
totalidade dos nossos impulsos, desejos, corresponderia a viver tal como o animal, obedecendo às
nossas necessidades corpóreas sem nos questionarmos; seríamos escravos dos nossos próprios
impulsos.
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Poderíamos tentar definir liberdade como a capacidade de o agente (enquanto sujeito dotado de
consciência, vontade e racionalidade), sem qualquer tipo de coação, se determinar mediante as
escolhas que faz. Porém, esta nunca seria uma definição completa. Parafraseando Mounier, a
liberdade é afirmação da pessoa, vive-se, não se vê. E quem a vive é um ser condicionado,
situado num espaço e num tempo próprios, num mundo de valores e significados. Por isso, a
liberdade humana não é absoluta e incondicionada, ela exerce-se dentro de um campo real de
possibilidades do sujeito. O facto de conhecermos bem as nossas possibilidades e limites permite
que possamos fazer um bom uso da nossa liberdade.
Quais são essas possibilidades? Quais são esses limites?
Condicionantes físico-biológicas
Do ponto de vista biológico, o ser humano é portador de uma herança genética à qual não pode
fugir. As características genéticas que herdamos dos nossos progenitores (genótipo) e que sofrem
a influência e estimulação do meio (fenótipo) delimitam um leque de possibilidades para a ação.
Por exemplo: um cego está impedido de realizar determinado tipo de tarefas; um portador de
deficiência cardíaca não poderá ser atleta, por muito que o queira.
Condicionantes histórico-culturais
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Do ponto de vista cultural e social, cada indivíduo cresce e vive partilhando com os outros
determinados valores, hábitos e padrões de cultura de um tempo e um espaço concretos. A
educação dada pelos pais e outros agentes de socialização (como a escola, os mass media, entre
outros) indicam-lhe as formas corretas de agir, de pensar e interpretar a realidade, isto é,
condicionam o seu comportamento. Por exemplo, a maneira como hoje entendemos a infância é
diferente da forma como se entendia no século passado; a maneira como nos vestimos na Europa
é diferente da maneira como se veste em África ou na índia.
Condicionantes pessoais
Há ainda aquele tipo de condicionantes que são intrínsecas ao desenvolvimento pessoal do
indivíduo, isto é, que dizem respeito às escolhas que ele vai fazendo ao longo da sua vida. As
escolhas que fez ontem são uma condicionante às de hoje e estas às de amanhã. Por exemplo,
se decidires não estudar mais, essa decisão condicionará a escolha da tua futura profissão.
As condicionantes anulam a liberdade da ação? Não. Reconhecer que existem condicionantes à
nossa ação não é o mesmo que defender que elas são determinantes, isto é, que determinam de
tal modo as nossas ações que não há espaço para o exercício da nossa liberdade. A
hereditariedade condiciona o nosso agir, mas não nos transforma em autómatos. Temos, além
disso, a capacidade de agir de modo contrário aos nossos impulsos naturais. Os hábitos e
padrões de cultura condicionam-nos, mas não nos obrigam a decidir de forma rígida. As escolhas
que fizemos no passado fecham-nos hoje algumas portas, mas, por outro lado, abrem-nos novas
possibilidades.
A resposta ao problema que enunciámos - do determinismo versus liberdade - pode e deve ser
colocada no meio termo entre o determinismo e o libertarismo, isto é, nem a ação humana é
totalmente determinada, nem absolutamente livre. A liberdade do agente não é absoluta, pelo
contrário, ela é condicionada por uma série de fatores (biológicos, culturais e pessoais). De entre o
leque de possibilidades que tem de agir, o ser humano exerce a sua liberdade escolhendo este ou
aquele caminho (ou nenhum). Ao agir, sem poder prever o seu futuro, muitas vezes erra - não é
um ser perfeito e detentor da verdade. Para além disso, tem consciência de que nem todas as
possibilidades que lhe surgem são de realizar e, muitas vezes, vê-se obrigado a impor a si mesmo
alguns limites (que a sua consciência moral lhe indica).
Significa isto que ao escolher umas possibilidades em detrimento de outras o ser humano se vai
construindo. Ser livre implica ser construtor, criador. O ser humano cria-se a si mesmo enquanto
age, isto é, ao escolher este ou aquele caminho, praticar esta ou aquela ação, escolhe um modo
de ser em função de um projeto, de uma intenção ou propósito de vida. Ao escolher um modo de
ser, uma forma de vida, assume um compromisso consigo mesmo (é responsável). Há outras
criações humanas (objetos, instituições, obras de arte, conhecimentos), mas enquanto criação de
si mesmo, o ser humano evidencia-se como ser livre e moral. Esta dimensão do ser humano será
abordada de forma mais exaustiva nos temas das dimensões ético-política, estética e religiosa.
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1.3. Facto v a l o r
Podemos ainda constatar, através das nossas experiências valorativas, que a realidade
não nos é indiferente. Antes mesmo de afirmarmos gosto muito deste livro, vivemos (sentimos)
a experiência interior correspondente ao juízo que formulámos.
“Só há valor onde a indiferença desaparece e a parcialidade começa a introduzir-se no real. Dar
6
valor é tomar partido perante a realidade. ”
De todas as vezes que emitimos um juízo de valor (ou axiológico), afirmamos a realidade sob um
ponto de vista pessoal, tomamos partido na ordem natural da realidade. As coisas, os
objetos e as situações - os factos - ganham um novo sentido.
6
Louis Lavelle, Traité des valeurs
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Perspetiva naturalista
Esta perspetiva define os valores como qualidades das coisas. Parte do princípio de que os
valores não existem por si mesmos, independentemente das realidades, dos objetos. Os
valores não são coisas, mas antes qualidades das coisas e inseparáveis delas. Para os estudar,
devemos encará-los como qualquer outro objeto de estudo, de forma o mais objetiva possível,
como factos. Também desta perspetiva decorre um problema: é possível separar o valor da
valoração? Faz sentido falar em valores sem ter em conta o sujeito que valora?
Perspetiva ontológica
Esta perspetiva filosófica procura definir os valores a partir da sua essência. Não interessa
existência que têm, mas antes aquilo que são por si mesmos, independentemente do espaço
e tempo em que se encontram. Por exemplo, o valor justiça é por si mesmo um valor,
independentemente de sermos portugueses e de nos encontrarmos no século XXI.
Nesta aceção essencialista, o que conta é a essência intemporal e o carácter absoluto dos
valores. No entanto, também esta perspetiva não satisfaz plenamente. Alguns contra-argu-
mentos podem refutá-la: por um lado, os valores realizam-se historicamente, isto é,
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vã. - Sofrendo as alterações que as diferentes épocas promovem (a justiça, hoje, não é
compatível por exemplo, com a escravatura, encarada com normalidade durante muitos
séculos); por outro lado, não faz sentido falarmos de valores sem termos em conta o ato de
valorar e, portanto, c sujeito que valora; este sujeito é alguém que escolhe e prefere em
circunstâncias concretas.
Como vês, não é fácil definir valor. No entanto, já indicámos algumas ideias que nos permitem
sistematizar uma tentativa de definição:
• os valores não são meras preferências do sujeito - não se deve confundir valor com
valoração:
• os valores não são coisas, mas não são independentes delas - referem-se sempre a
alguma coisa, por forma a indicar-lhe uma qualidade;
• não se pode falar de valores sem considerar a valoração, o sujeito que valora - os
valores acompanham sempre o sujeito, que é um ser concreto, inserido num tempo e
espaço próprios;
• os valores são bipolares - existem sempre em pares de opostos (são/doente;
bom/mau; leal/desleal; sagrado/profano...);
• os valores são hierarquizáveis - cada sujeito constrói uma escala de valores mediante
a qual pautará todas as suas ações.
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De um ponto de vista prático, isto é, considerando a realidade concreta dos seres humanos, é
óbvio que os valores os acompanham, que variam de época para época, consoante a
sociedade e a cultura. É igualmente óbvio que cada sujeito vive a sua realidade concreta e
constrói para si uma escala de valores pela qual irá pautar as suas ações e que muitas vezes
experiencia situações de conflito de valores (as quais lhe exigem escolhas difíceis entre realidades
igualmente valiosas). Contudo, não devemos levar o subjetivismo, o relativismo e a
historicidade dos valores aos seus extremos, porque cairíamos numa perspetiva
individualista (como se cada ser humano fosse um ditador de valores) e, em última análise,
num subjetivismo puro, no egoísmo e no anarquismo.
De um ponto de vista teórico, se queremos estudar os valores por forma a esclarecermos o que
são, não podemos cair no exagero de uma perspetiva essencialista e considerar que os valores
são, por si mesmos (isto é, independentemente do sujeito, da realidade), intemporais e
inalteráveis. Por outro lado, também não podemos cair no erro de considerar que os
valores se resumem às preferências do sujeito, como se tudo valesse conforme os
apetites e desejos do Homem em concreto (relativismo subjetivista).
Porém, devemos reconhecer o sujeito da ação e da valoração como um sujeito situado num
tempo e num espaço próprios, mas que não está isolado. O mundo em que vive é um
mundo com determinadas regras, com modos de pensar, sentir e agir relativamente
estáveis e coerentes, dentro do qual o ser humano se sente, na maioria das vezes,
integrado. É verdade que diferentes indivíduos, diferentes grupos ou culturas valoram de
maneiras diferentes, mas é também inegável que todo o ser humano pauta o seu agir por
intermédio de valores, o que significa que, de certa forma, os valores e a valoração são
universais. Por isso, reconhecer a relatividade e a historicidade dos valores não significa
defender um subjetivismo e relativismo radicais.
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paz, equilíbrio, justiça, liberdade e desvalorizamos tudo o que possa representar uma
ameaça à realização do ser humano.
• Critério da fundamentação consensual ou da argumentação - tem valor o que possa
ser discutido, analisado em conjunto. Pelo diálogo o ser humano poderá esclarecer ideias,
defender os seus interesses e promover o bom relacionamento à escala internacional.
Pela argumentação evidenciam-se os alicerces com que se constroem novos projetos. A
este propósito, K.-O. Apel e J. Habermas (filósofos contemporâneos) reafirmam a
importância do diálogo e da discussão pública dentro das comunidades, uma vez que
as escolhas que se fazem e as decisões que se tomam resultam mais fortes (mais
próximas da verdade) pela comunicação e argumentação (porque são aquelas que
resistem aos contra-argumentos daqueles que a elas se opunham). A validade de uma
norma ou princípio fica garantida se todos dialogarem, se todos se esclarecerem
quanto ao que a todos convém. É pela argumentação que isso se torna possível.
• Critério da democracia - tem valor aquilo que consensualmente a maioria assume.
Então, tem valor aquilo que possa contribuir com o bem ao maior número de pessoas.
Podemos pôr em causa a validade deste critério, já que não é objetivo: aquilo que a
maioria entende ser valioso não significa necessariamente que seja o melhor. De
qualquer forma, e tendo em tonta o critério da argumentação, há uma maior
probabilidade de o valor residir naquilo que maioria consensualmente aceita.
2. Valores e cultura
2.1. Caracterização da cultura
Para que se complete a análise da ação humana e os valores, falta-nos ainda realçar a sua
dimensão sociocultural, por forma a descortinar a relação existente entre ação, valores e cul-
tura. A vida em sociedade é o palco das ações humanas que, como sabes, se regem
por valores. Os valores são, por isso, também considerados elementos integrantes da
sociedade cultura.
O que é a cultura?
“Cultura: este todo complexo, que inclui conhecimento, fé, arte, moral, lei, costume e outras
7
capacidades e hábitos, adquiridos pelo homem enquanto membro duma sociedade ”.
“Cultura é a transformação que o Homem, consciente e livremente, realiza na natureza, tanto na
8
própria como na alheia, visando o aperfeiçoamento desta mesma natureza ”.
7
E. Taylor, Primitive Culture, in Ed. Rebuske 1
8
Edvino A. Rabuske, Antropologia Filosófica, Editora Vozes
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A partir destas definições, podemos fazer o levantamento de alguns dos elementos que
parecem constituir a cultura: conhecimentos, crenças (fé), arte, moral, leis, costumes e
hábitos. Poderíamos acrescentar que constituem elementos da cultura todos os demais
objetos, instituições ou formas de estar, pensar e agir (padrões de cultura) que
representam a maneira como o ser humano se realiza a si próprio no meio (natural,
social) de que faz parte. E. A. Rabuske, consciente da dificuldade que encontramos ao definir
cultura, reconhece o carácter abstrato da definição e prefere apontar seis características da
cultura:
1) A cultura é um fenómeno universal. Todos os seres humanos têm e tiveram uma cultura.
Em todos os tempos e todas as regiões habitadas pelo ser humano se registaram e
registam manifestações culturais. A cultura surge como a arma que permitiu ao ser humano
superar a sua fragilidade biológica - através da cultura ele pode sobreviver.
2) A cultura é produção e produto. Isto é, ela é produto, na medida em que resulta
daquilo que outrora foi produzido (de uma cultura passada), e produção, na medida em que
constantemente cria novos objetos, obras, instituições, etc. Qualquer cultura tem as suas raí-
zes históricas, das quais depende, e que lhe permitem, ao mesmo tempo, projetar-se
no futuro.
3) O ser humano é sujeito e objeto da cultura. O ser humano produz e cria cultura, mas
também é ele próprio fruto da cultura já existente. É pelo processo de socialização -
integração do indivíduo na sociedade, mediante a interiorização de normas, valores, hábitos, em
suma, pelo contacto com a cultura vigente - que o ser humano se vai desenvolvendo
enquanto indivíduo e membro de dada sociedade, podendo também ele criar novas formas
de cultura.
4) A cultura é uma estrutura. É constituída por diferentes elementos que funcionam em interde-
pendência. Não podemos separar a economia da técnica, da política, da religião, das artes...
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O essencial de Filosofia 10º Ano Filosofia
A ideia de que existem diferenças culturais entre os povos encontra-se fortemente associada ao
relativismo cultural. Esta perspetiva vai buscar os seus fundamentos em diversos estudos
ia área da antropologia e impõe-se em defesa da diversidade cultural e do direito de
qualquer novo a preservar os seus costumes, ideias e formas de estar.
O relativismo alerta-nos para a necessidade de combater a velha tendência etnocêntrica de avaliar
os outros a partir de modelos culturais de referência que lhes são alheios. Com efeito, isto pode
dar azo a situações graves - pode permitir que algumas culturas se vejam obrigadas
abandonar as suas convicções e hábitos por imposição de uma cultura dominante. Ora,
como não existem culturas melhores do que outras, a diversidade e a complexidade
culturais devem respeitadas.
Assim, de acordo com o relativismo, não nos compete, nem é legítimo julgar uma outra cultura
quando nos encontramos fora dela. Para mais, se tivermos em conta que os costumes, as ideias e
as formas de agir se vão alterando com o passar do tempo - que, por exemplo, aquilo
que hoje pensamos sobre escravatura não é o mesmo que os antigos pensavam - somos
obrigados a _ concluir que não existem sociedades perfeitas e, assim sendo, apenas nos cabe
cultivar a tolerância para com as diferenças.
Contudo, assumir a relatividade cultural desta forma implica também assumir a
relatividade valores e factos morais. Do relativismo cultural ao relativismo moral pode contar-se
apenas um passo.
Os factos morais são definidos unicamente pela sociedade e se variam de sociedade para
sociedade, teremos agora de perguntar como pode o relativista justificar a moralidade das coisas.
Com efeito, apresentar como razão para não praticar a pena de morte o simples facto de a nossa
sociedade a considerar injusta não é uma razão satisfatória. Deve haver outras (e melhores)
razões, e essas razões devem poder ser confrontadas com os argumentos que a tese
contrária - a de que a pena de morte é justa - apresenta.
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Aires Almeida (org.), Dicionário Escolar de Filosofia, Plátano Editora ,
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Hoje assistimos em primeiro plano à diversidade cultural, por causa dos fenómenos
migratórios (entrada de estrangeiros), pela fácil troca de informação, pelo rápido acesso a
produtos usos e costumes oriundos dos diferentes cantos do mundo. Ao mesmo tempo que
nos agrada e enriquece, esta diversidade traz com ela sérios problemas com os quais nos
defrontamos constantemente: conflitos de valores.
Por isso sucedem-se fenómenos que muitas vezes nos escandalizam ou nos deixam
indignados (por exemplo, na cultura islâmica, é inconcebível que a mulher mostre a face, ao
contrário do que acontece na cultura ocidental). A diversidade cultural e os conflitos que
ela acarreta sugerem-nos novamente o problema do relativismo: tudo é relativo ou poder-se-á
estabelecer algum consenso entre as diferentes culturas?
A resposta a esta questão pode ser diferente consoante a atitude que tomarmos face à
real diversidade cultural que os nossos dias põem a descoberto. Podemos indicar três modelos de
referência a partir dos quais se compreende melhor esta questão.
• Monoculturalismo - modelo que defende a homogeneidade cultural pela imposição
de uma cultura oficial. Exemplos: modelo republicano e universalista francês.
Pode levar a fenómenos de assimilação (em que a cultura dominante asfixia as
culturas minoritárias), ao etnocentrismo (significa a tendência natural para nos
identificarmos com a sociedade e a cultura de que fazemos parte integrante:
aceitamos as normas, os valores e as regras que a nossa sociedade nos transmite, sob
pena de sermos marginalizados caso não as respeitarmos). No seu extremo, o
etnocentrismo pode levar ao racismo (defende a existência de diferentes raças
humanas e a inferioridade de umas em relação a outras, fundamentando-se pela
suposição de que a diferença é biológica ou inata), ou ao etnocídio (extinção de
dada cultura).
• Multiculturalismo ou Relativismo Cultural - modelo que defende as diferenças
culturais dentro de um mesmo Estado ou nação, sob a tutela de uma mesma legislação;
parte do princípio de que as minorias têm o direito de ser diferentes. Exemplos: modelo
comunitarista norte-americano, Canadá. Este movimento está ligado à
manifestação de certas minorias étnicas, regionais, que, em nome de uma
identidade cultural específica, pretendem alguma independência. Assenta na ideia
de um relativismo cultural, isto é, da diversidade - cada cultura tem as suas
particularidades resultantes de uma história própria - que é preciso respeitar. Na
prática, o relativismo pode promover a abertura ao individualismo e ao
particularismo, à ausência de valores comuns e à segregação (manter as minorias,
grupos étnicos ou outros, em comunidades isoladas, o que proporciona, a título de
exemplo, o florescimento de guetos culturais). Estas consequências práticas
desvirtuam os princípios formais do multiculturalismo (reconhecimento da igualdade
das pessoas e das culturas, não discriminação, etc.).
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O essencial de Filosofia 10º Ano Filosofia
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O essencial de Filosofia 10º Ano Filosofia
A Dimensão Ético-Política
1. Intenção ética e norma moral
Ética e moral
“Os especialistas de filosofia moral não se entendem quanto à repartição do sentido entre os
termos moral e ética. A etimologia é a este propósito inútil, na medida em que um dos termos
vem do latim e outro do grego e os dois se referem, de uma maneira ou de outra, ao domínio
10
comum dos costumes. ”
O texto indica-nos que a etimologia dos termos moral e ética não é suficiente para clarificar as
diferenças que existem entre eles. Moral provém do latim (mores, ou seja, hábitos, costumes),
enquanto ética provém do grego (ethos, isto é, costume, maneira de proceder). No entanto, a
moral distingue-se da ética como uma realidade se distingue do pensamento que sobre ela se
exerce. Numa primeira aproximação, podemos dizer que a ética é uma reflexão sobre a moral.
Assim sendo, a moral é um conjunto de princípios, normas, juízos e valores de carácter
prescritivo que, vigentes numa dada sociedade, são interiorizados pelos seus membros, antes
de qualquer reflexão sobre o seu significado e a sua importância. A ética será a reflexão sobre
essa esfera da conduta humana, tendo por finalidade encontrar o agir bem, a vida
orientada pelo bem. Refletindo sobre a conduta e o comportamento dos seres humanos,
sob o prisma da bondade e da maldade, da justiça e da injustiça, a ética propõe-se
encontrar o sentido moral da vida, com vista à sua realização.
Existe, por conseguinte, um primado da ética sobre a moral. A lei moral, a norma, será
apenas um meio para se alcançar a verdadeira finalidade, isto é, uma vida moralmente realizada.
A disciplina que reflete sobre essa finalidade é, obviamente, a ética. Por isso, cabe à
ética estudar os comportamentos e os diversos códigos morais, analisando os problemas morais
e proporcionando princípios e critérios que justifiquem estas ou aquelas normas. Nesse
sentido, a moral é objeto da ética ao nível da fundamentação, proporcionando à ética um
conjunto de códigos e normas sobre os quais ela reflete. Sendo uma reflexão teórica sobre
a moral, a ética fornece a justificação e a validação da moral, influenciando assim os
comportamentos e as atitudes. Ela analisa a natureza, a função e o valor dos juízos morais,
ajudando-nos a fazer avaliações morais mais ponderadas, quer quanto ao comportamento
alheio e ao papel das instituições, quer, sobretudo, quanto ao nosso comportamento e às
nossas decisões.
“O filósofo não cria a moral, reflete sobre a que já existe, critica-a, depura-a e sistematiza-a,
mas não a inventa. O que faz é: (1) analisar a linguagem da moral (...); (2) mostrar o carácter
10
Paul Ricceur, Un Siècle de Philosophie, Gallimard/Centre Pompidou
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Esta tarefa do filósofo revela-nos a importância da ética na nossa vida. Ela ajuda-nos a
fazer avaliações morais mais justas, a fundamentar racionalmente as nossas decisões, a conhe-
cermo-nos melhor e a aperfeiçoarmo-nos, possibilitando-nos um maior discernimento em
matéria de moral individual e no âmbito da moral pública. Em especial, recorremos à
reflexão ética quando se nos deparam dilemas morais. Trata-se de situações de conflito
de valores, decorrente da circunstância de esses valores se revestirem de idêntica
importância.
Um exemplo simples permite perceber este problema. Suponhamos que um amigo meu
cometeu um roubo. Se me inquirirem quanto ao crime, devo denunciar o meu amigo ou não? A
verdade e a amizade são os dois valores que aqui estão em conflito. Existem inúmeras
situações na nossa vida que nos colocam perante estes conflitos. A eutanásia, o aborto, a
fecundação in vitro, a poluição ambiental, etc., representam outras tantas situações que
nos colocam perante a necessidade da reflexão ética, sublinhando a sua importância, não
só na esfera íntima, como também no domínio público.
Vejamos mais este dilema:
“Os pais de uma menina que padece de uma enfermidade mortal (leucemia crónica da
medula óssea) queriam a todo o custo salvá-la da morte e estavam, dispostos a oferecer-se, eles
próprios, como doadores para o transplante de medula de que a filha necessitava para continuar a
viver. O médico informou-os de que isso não seria possível e que só o transplante de
medula de um irmão poderia resolver o problema. Então, os pais tomaram a seguinte
12
decisão: conceber outro filho para poder salvar a sua irmã de uma morte certa. ”
Pergunta-se: será correto conceber uma criança para salvar a vida de outra pessoa? Não
será a criança concebida para salvar a irmã usada aqui como simples meio e não como fim
absoluto? Que razões podem ser invocadas a favor e contra a decisão dos pais da
menina? Que pensará, quando crescer, a criança concebida unicamente para salvar a vida
da irmã? Não estaremos perante uma violação dos direitos dessa criança?
Este dilema coloca-nos perante a exigência da reflexão ética, mas também perante a cons-
ciência das dificuldades em fundamentar uma moral definitiva e válida para todos. Ainda
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J. L. Aranguren, Propuestas Morales, Terramar
12
in J. N. Vicente, Razão e Diálogo, Porto Editora
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assim, só uma postura esclarecida e dialógica permitirá, senão resolver, pelo menos obter um
consenso mínimo quanto a estas questões.
“As minhas intenções são inclinações conscientemente aceites e assumidas por mim. (...)
A intenção é sempre intenção de realizar algo, é sempre ativa, implica uma certa tensão tendo em
vista a realização de uma ação (...). Quando tencionamos 1 realizar algo, pomo-nos numa certa
13
tensão para executar o que tencionamos. ”
Se a intenção é conscientemente aceite e assumida por mim, então isso significa que ela é
o fundamento interior da ação. Mas nem toda a intenção pode ser satisfeita; ela confronta-se
com os costumes e com as normas exteriores, nem sempre coincidentes com a interioridade.
Assim, a intenção é avaliada pela norma. A norma será o padrão de medida, servindo de
modelo de comportamento a nível social. Uma vez que o individuo vive sempre inserido
numa sociedade, a qual se rege por códigos de conduta institucionalizados que servem de
padrão ou medida de avaliação das ações praticadas pelos diversos membros, a
intenção ética confronta-se necessariamente com o contexto moral próprio dessa
cultura.
Assim, enquanto a intenção representa o lado pessoal e íntimo da ação, as normas são ins-
titucionalizadas, supra pessoais, encontrando-se fora do indivíduo, embora este as interiorize.
Enquanto a intenção é da responsabilidade do sujeito da ação, remetendo para a sua autonomia,
a norma impõe-se a partir do exterior, remetendo para a heteronomia.
Enquanto a intenção é conscientemente assumida, as normas integram-se em códigos,
servindo de modelos de avaliação das ações e tendo subjacentes a si um conjunto de valores
socialmente legitimados.
Em conclusão, importa sublinhar que as normas obrigam porque expressam valores em
que a sociedade acredita e o indivíduo também, desde que já tenha passado pelo processo de
socialização e integrado esses valores. É por isso que, em parte, as alternativas morais
individuais já se encontram canonizadas, havendo uma coincidência dos códigos
externos com a nossa autodeterminação. Mas nem todas as normas são universais. Os
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J. Mosterín, Racionalidad y Accíon Humana, Alianza Editorial
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dilemas morais servem de exemplo disso mesmo. Além disso, poderão existir certas
normas sociais que será sensato questionar, sobretudo se puserem em causa a dignidade
da pessoa humana.
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E em que consiste a consciência moral? Podemos afirmar que esta é uma consciência mais
alargada, constituindo a identidade pessoal uma dimensão mais elevada, uma vez que assume
determinados ideais e normas para o comportamento.
Assim, a consciência moral é uma espécie de juiz interior que ordena o que deve ou
não e . ser feito, tendo em conta a realização do bem e o impedimento do mal. Ela aparece como
voz crítica relativamente à ação.
Mas a consciência moral não se forma de uma vez por todas. Ela é fruto de uma lenta
evoluç-ão. Esta evolução depende do desenvolvimento cognitivo, das relações sociais que o
indivíduo estabelece e do meio sociocultural em que vive. De um modo geral, podemos dizer que
a consciência moral evolui da heteronomia para a autonomia, ou seja, começamos por
interiorizar as normas e obedecemos-lhes por medo do castigo - heteronomia - e esta
situação evolui para um patamar mais elevado, ao qual nem todos chegam, que consiste
em nos auto-determinarmos em função de princípios e valores morais justificados de
forma racional - autonomia. Sendo evolutiva, a consciência moral acha-se em
crescimento, amadurecendo com as suas experiências de natureza moral.
Além disso, a consciência moral é uma presença intermitente, porque só intervém quando
temos de enfrentar problemas e conflitos de carácter moral.
Sendo fonte de juízos, de raciocínios, de sentimentos, e procurando ajustar-se às normas
interiorizadas a consciência moral é constituída por diferentes elementos do nosso psiquismo,
pelo que possui uma estrutura complexa. Por essa razão, é também detentora de uma estrutura
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dialética, verificando-se uma interação entre aqueles elementos, em função da situação concreta
do agir.
Nalguns casos, a consciência moral pode assumir um papel de alerta da consciência coletiva,
sobretudo quando esta partilha determinados valores que podem pôr em causa a dignidade
da pessoa humana. Um exemplo deste alerta pode ocorrer quando alguém decide manifestar-se
contra a pena de morte numa sociedade que a legitima. Noutros casos, pode ser exigida à
consciência uma procura de soluções, sobretudo quando os problemas morais são
completamente novos ou apresentam uma estrutura dilemática, como já referimos.
Liberdade
Sendo dotados de consciência moral, podemos optar livremente. Tendo consciência das conse-
quências dos nossos atos, podemos ser responsabilizados por elas. E em que consiste a
liberdade moral? A experiência mostra-nos que alguns dos nossos atos escapam ao
domínio da razão. sendo provocados por forças e causas que não somos capazes de
controlar. Além disso, existem ações involuntárias que só dificilmente poderemos fazer
depender da nossa liberdade. Ainda assim, não deixamos de nos considerar livres. Sentimo-
nos detentores de uma liberdade interior que escapa a qualquer coação externa. Isto significa que
podemos respeitar ou infringir as normas morais, podemos cumprir ou não o nosso dever,
escolher o Bem ou optar pelo Mal, Destas escolhas obteremos ou a satisfação do dever
cumprido ou o remorso do seu incumprimento.
Mas a liberdade moral pode também ser encarada a um outro nível. Com efeito, ao assumir a
responsabilidade por determinada ação, estou também a assumir a autonomia e o poder
para dar a mim próprio uma lei moral. Deste modo, sou um legislador moral e detenho
uma autonomia e independência em relação às leis da natureza. Sendo assim, serei
livre, por um lado, enquanto manifesto a minha independência relativamente aos
desejos naturais e às inclinações egoístas e, por outro lado, enquanto desenvolvo uma atitude
de submissão às leis morais que dou a mim próprio, agindo determinado por elas.
O outro e a responsabilidade
Agindo livremente, somos responsáveis pelas nossas ações. E o que é a
responsabilidade? Em termos do Direito Civil, a responsabilidade é a obrigação de reparar o mal
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feito a alguém; em termos do Direito Penal, exprime a situação daquele que pode ser
punido por um delito ou um crime. Na filosofia e na moral, a responsabilidade é a
consciência de se ser autor de determinado ato ou objeto; é o facto de o indivíduo
ter de responder pelos seus atos, assumindo-os e reconhecendo-se o autor deles.
A quem pedir responsabilidades? À pessoa, naturalmente, porque é livre e capaz de discernir o
bem do mal. Ainda assim, podemos admitir a existência de uma partilha de responsabilidades
por parte de várias pessoas envolvidas numa ação comum. É o que alguns autores
designam de responsabilidade solidária.
Perante quem somos responsáveis? Desde logo, somos responsáveis perante nós mesmos,
perante a nossa consciência.
Cada um dos nossos atos contribui para a construção de nós próprios. Por outro lado, esses atos
definem a nossa relação com os outros. Por isso, somos também responsáveis perante o
outro.
Mas quem é o outro? Em muitos discursos filosóficos contemporâneos, o ser humano
passou a ser definido essencialmente como relação. Ao primado do indivíduo sobrepõe-se o pri-
mado da relação, do encontro, da comunicação, da reciprocidade. O sermos-uns-com-
os-outros é um dado primário da existência humana. O outro é imprescindível à constituição do
eu. O outro é o meu semelhante, sendo, ao mesmo tempo, diferente de mim. Na minha
relação com ele, posso encará-lo sob três aspetos:
a) como concorrente: o outro é aquele com quem nada tenho a ver, aquele que disputa o meu
lugar e contra quem tenho de competir, numa relação de conflito. por vezes até de aniquilação
(escusado será dizer que a este nível não existe qualquer preocupação ética);
b) como elemento de um contrato: certas teorias sociopolíticas consideram que os indivíduos
são mónadas que estabelecem contratos entre si, uma vez que não podem sobreviver uns
sem os outros. A relação com o outro é apenas acidental e estratégica, reduzindo-se a um
pacto de não agressão, uma forma de assegurar a defesa de interesses distintos e
antagónicos;
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c) como um tu-como-eu: quando o outro for visto como um outro eu, a quem se concede
a dignidade de pessoa. Só assim estaremos diante dessa dimensão ética de sermos-uns-com-
os-outros. Nas experiências do acolhimento, do amor, da amizade é que se descobre
autenticamente essa dimensão, reconhecendo-se o outro como um valor absoluto, com dignidade
própria.
Reconhecendo no outro essa dignidade, sou capaz de ver nele uma identidade distinta, um
universo de significações diferente do meu, exigindo da minha parte uma atitude ética. O
outro possui direitos e perante ele devo assumir os meus deveres. Temos uma responsabili-
dade atual perante o outro que vive sob o nosso encargo e perante a sociedade de
cujos benefícios usufruímos. Além disso, somos responsáveis para com as gerações
futuras. A nossa ação de hoje não deve comprometer a sobrevivência humana no futuro.
É neste contexto que se inscreve a proposta ética de Hans Jonas:
“O perigo que nos espreita agiganta-se com a possibilidade do holocausto nuclear, da destruição
da natureza e da desumanização total do homem e, por isso, a “hermenêutica do perigo” é
implacavelmente crítica perante todos os paradigmas (...). Não podemos falar de um vago ideal
de humanidade, mas do Homem concreto ameaçado num mundo em perigo, a cuja volta se
deve formar o cordão da solidariedade.”
M. B. Pereira, "Do Biocentrismo à Bioética", in Revista Filosófica de Coimbra
É diante desta ameaça real que a responsabilidade perante as gerações futuras se impõe. Os
vindouros não devem ser encarados como seres distantes, mas como futuros seres
humanos, fujas condições de vida devem ser respeitadas.
A relação intersubjetiva (relação eu - tu) passa sobretudo pelo diálogo, num contexto social
caracterizado pela existência de instituições. Instituições perante as quais temos uma dívida
cultural. E o que são as instituições? São conjuntos de convenções ou regras constitutivas
que definem e determinam posições e relações numa área determinada de modo
convencional. Ou seja, as instituições estabelecem, mediante regras, os papéis e os
estatutos de cada indivíduo, impondo limites e obrigações. Desde a família às instituições
educativas, económicas, políticas, culturais, o objetivo destas diferentes esferas consiste
em regular e pautar as relações interpessoais. Por isso, na vida em sociedade o agir
individual encontra-se mais ou menos institucionalizado, o que significa que existem
regras de comportamento que definem o que é aceitável ou reprovável. Tais regras
permitem regular os nossos atos, ou configurar e constituir as relações humanas, evitando
a desordem e a anarquia.
É neste contexto que podemos falar de consciência cívica. Inseparável da consciência
moral, ela refere-se à convivência social. É uma instância cujo objetivo é julgar, avaliar e
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J. Mosterín, Racionalidad y Acción Humana, Alianza Editorial
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O ser humano
O ser humano é um ser marcado por uma dualidade: é, por um lado, um ser sensível, um ser da
Natureza, estando condicionado pelas suas disposições naturais, que o levam à procura do prazer
e à fuga da dor. Este especto primário define o egoísmo que preside à vertente animal do ser
humano. Por outro lado, é um ser racional, isto é, alguém capaz de se regular por leis que impõe
a si mesmo. Tais leis revelam a sua autonomia, tendo a sua sede na razão. São leis morais que o
levam a praticar o bem, em detrimento dos seus caprichos e interesses individuais. Assim, o ser
humano é um ser dividido entre a sua inclinação para o prazer e a necessidade de cumprir o
dever. Tanto se pode deixar arrastar pelos seus instintos, como determinar-se pela razão.
Ao contrário do animal, que está determinado a agir desta ou daquela maneira, o ser humano
possui uma margem de liberdade, podendo agir de acordo com princípios que impõe a
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BOA VONTADE
“Neste mundo, e até fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom
sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade. (...)A boa vontade não é boa por
aquilo que promove ou realiza, (...), mas tão-somente pelo querer (...). Ainda que faltasse a
esta vontade o poder de fazer vencer as suas intenções (...) ela ficaria brilhando por si
mesma como uma joia, como alguma coisa que em si mesma tem o seu pleno valor. A
15
utilidade ou a inutilidade nada podem acrescentar ou tirar a este valor. ”
Como vemos pela leitura do texto, Kant faz da boa vontade a condição de toda a
moralidade. A boa vontade é boa pelo seu próprio querer, sendo governada pela razão. A
moralidade é concebida independentemente da utilidade ou das consequências que possam
advir das ações. Estamos perante uma ética não consequencialistas. Ter saciado a fome a trinta
pessoas ou apenas uma é irrelevante para aferir a moralidade destes atos. Tudo depende
da intenção com que as ações em causa foram realizadas. Ora, a intenção é o que caracteriza a
vontade. A uma boa vontade corresponde uma boa intenção. A intenção moral só é conhecida
pela consciência do indivíduo.
Mas como saber quando uma vontade é boa? 0 dever
A vontade é boa quando age por dever. O conceito de dever contém em si o de boa vontade,
escreve Kant. O dever será uma necessidade de agir por respeito à lei que a razão dá a si
mesma. Mas, antes de nos referirmos a essa lei, é preciso ter em conta o seguinte: uma ação
pode ser conforme ao dever e, no entanto, não ser moralmente boa. A pessoa pode agir de
acordo com o dever, mas movida por interesses egoístas. É o caso da atitude daquele comer-
ciante que é honesto para com os seus clientes apenas para ter mais lucros. Ele não engana,
não rouba, não viola as leis. Exteriormente, a sua ação está de acordo com o que deve ser feito.
Mas, ao fazer tudo isso a fim de promover o seu próprio negócio, este comerciante não agiu
moralmente bem. A sua ação foi apenas um meio para atingir um fim pessoal. Não
agiu por dever.
O valor moral de uma ação reside na intenção. Daí que seja importante distinguir moralidade de
legalidade. Se aquela caracteriza as ações realizadas por dever, esta caracteriza as ações que
estão em conformidade com o dever, mas que podem muito bem ter sido realizadas com fins
egoístas.
15
Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Atlântida
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É, portanto, o sentimento do dever, o respeito pela lei moral, que deve determinar a nossa ação. E
o que é a lei moral?
A lei moral
Agir por dever exige um conhecimento das regras, das normas, a que se tem de obedecer. Que
regras são essas? Ora, Kant não se preocupa em inventariar um conjunto de regras concretas.
Pelo contrário, procura o fundamento de todas as regras, ou seja, usando um exemplo, não
se trata de saber se devo mentir ou não devo. Trata-se de encontrar o que está na base da
minha opção pela mentira ou pela honestidade. É por isso que Kant distingue máximas
de leis morais. As máximas são os princípios subjetivos da ação, os princípios concretos
segundo os quais agimos. São consideradas pelo sujeito como válidas apenas para a sua vontade.
As leis morais, por sua vez, são objetivas, isto é, são consideradas como válidas para a vontade
de todo o ser racional, enunciando a forma como se deve agir.
Nesse sentido, podemos afirmar que só a máxima que se possa tornar uma lei universal é que
possui valor moral, isto é, se a máxima se puder universalizar, se puder ser válida para todos, ela
converte-se numa lei moral. Escreve Kant: Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao
mesmo tempo querer que ela se torne lei universal (Kant, Fundamentação da Metafísica dos
Costumes, Atlântida). Vejamos como essa lei se aplica com um exemplo do próprio Kant.
“[Um homem], a quem tudo corre bem, vendo outros homens (a quem ele bem poderia
socorrer) a braços com enormes dificuldades, raciocina deste modo: "Que me importa? Que
cada um tenha a felicidade que o Céu queira conceder-lhe e que ele mesmo possa por si
conquistar; não lhe tirarei nem a mais pequena parte do que possui, nem sequer o invejarei:
apenas não sinto qualquer inclinação para contribuir seja de que maneira for para o seu bem-
estar ou para lhe prestar assistência na desgraça!" Ora, se esta forma de encarar as coisas
se tornasse uma lei universal da natureza, a espécie humana poderia sem dúvida subsistir
muito bem (...). Mas, se bem que seja perfeitamente possível a subsistência de uma lei universal
da natureza conforme a esta máxima, é contudo impossível querer que um princípio deste
teor seja universalmente válido como lei da natureza. Pois uma vontade que tomasse esta
decisão entraria em contradição consigo mesma; de facto, poderá apesar de tudo acontecer
que este homem venha em certas circunstâncias a precisar do amor e da compaixão dos
outros, e que ele mesmo se veja privado de qualquer esperança de obter a assistência
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desejada, em virtude de uma lei da natureza emanada da sua própria vontade. ”
16
Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Lisboa Editora
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Kant indica-nos, neste exemplo, que é impossível querer que o princípio de recusar auxílio a
quem dele precisa possa ser universalmente válido. Com efeito, quem se dispõe a
recusar o auxílio poderá vir, por sua vez, a precisar do auxílio alheio e entraria em
contradição com a sua própria vontade. Se esta máxima não se pode universalizar, então não
se deve agir de acordo com ela.
Assim, a fórmula kantiana não nos diz para agirmos desta ou daquela maneira, não nos dá
o conteúdo da lei, apenas nos indica a forma como devemos agir. Este é o princípio moral
fundamental, um mandamento incondicional, assumindo a forma de um imperativo categórico.
O que é um imperativo categórico? Kant distingue imperativo hipotético de imperativo categó-
rico. Enquanto aquele apresenta uma ação como meio para alcançar determinado fim (por exem-
plo, estuda, se queres tirar boas notas), o imperativo categórico indica que a Acão é necessária
e boa em si mesma, independentemente dos fins que se possam alcançar com ela.
Mas o imperativo categórico pressupõe que existem fins absolutos. Um fim absoluto é repre-
sentado pela pessoa humana. Ao contrário das coisas, que têm um preço, a pessoa possui um
valor único, possui dignidade. Por conseguinte, não deve ser tratada como uma coisa, o
que lhe retiraria dignidade. Nesse caso, o imperativo categórico adquire outra formulação:
Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa
de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca como meio (Kant,
Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Atlântida).
A Liberdade
Cada indivíduo, enquanto ser racional, é autor das leis que impõe a si mesmo. A lei moral,
universalmente válida, tem origem na razão. Sendo assim, cada indivíduo é legislador e
responsável por aquilo que faz. A moralidade pressupõe, portanto, a autonomia da vontade.
Numa palavra, pressupõe a liberdade. E em que medida é que o indivíduo é autónomo?
Autonomia face a quê? É autónomo na medida em que é capaz de agir
independentemente das leis da natureza. De facto, na natureza tudo se encontra
determinado. As leis físicas expressam esse determinismo. Em contrapartida, no reino moral
existe a liberdade. O ser humano é livre sempre que se submete às leis da sua própria
razão. Nesse caso, não somos livres quando fazemos aquilo que nos apetece, mas
sim quando cumprimos o nosso dever, ou se quando nos submetemos à lei moral que
existe em nós.
Assim, o ser humano é habitante de dois mundos: o da natureza e o da moralidade, o
determinismo e o da liberdade. Se deve agir, é porque pode agir. Além disso, o valor moral com
ação não reside nas consequências, mas sim na intenção. Daí a proposta kantiana traduz
uma ética deontológica. Centrando-se no dever e na racionalidade, é uma ética formal,
uma vez que não indica regras concretas do agir, antes a sua forma, e é também uma ética
que na se baseia na procura da felicidade, antes na realização da lei moral.
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O hedonismo
O utilitarismo clássico adota o princípio hedonista segundo o qual a finalidade da vida humana é
a felicidade. A felicidade poderá ser encontrada pela vivência ou fruição de diferentes
prazeres (ligados ao corpo ou ao espírito). Stuart Mill atribui maior importância aos pra-
zeres ligados ao espírito e aos sentimentos nobres da amizade, da honestidade, do amor,
etc. São estes prazeres que verdadeiramente permitem ao homem ser feliz.
Todas as ações desenvolvidas pelo homem terão como principal objetivo a felicidade.
A felicidade identifica-se com o Bem Supremo. Todas as ações moralmente boas surgem, assim,
como instrumentos para alcançar a felicidade. Com efeito, caberá ao indivíduo - sempre em pro-
cesso de evolução - o papel de escolher acertadamente e agir com retidão no sentido do
bem.
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É segundo este critério que toda a ação útil se torna legítima. Todavia, a felicidade alcançada não
faz do critério moral utilitarista um critério fomentador do egoísmo.
Dissemos já que os prazeres espirituais são os que, segundo Stuart Mill, proporcionam a ver-
dadeira felicidade. Com efeito, a moral utilitarista não exclui o altruísmo e a dedicação ao outro.
“A moralidade utilitarista reconhece nos seres humanos o poder de sacrificarem o seu próprio
maior bem pelo bem de outros. Só se recusa a admitir que o próprio sacrifício seja um bem.
Para ela, um sacrifício que não aumenta nem tende a aumentar o total de felicidade é um
desperdício. A única renúncia pessoal que aplaude é a devoção à felicidade - ou a alguns
meios para a felicidade - dos outros, seja da humanidade considerada coletivamente ou
de alguns indivíduos dentro dos limites impostos pelos interesses coletivos da
18
humanidade. ”
Segundo a ética utilitarista, o princípio da maior felicidade estabelece que as ações praticadas
devem ser capazes de trazer a máxima felicidade para o maior número possível de indivíduos.
Ora, a máxima felicidade para todos (humanidade) surge como o objetivo principal da filosofia
utilitarista.
O consequencialismo
A conceção utilitarista da moralidade faz depender a moralidade das ações das suas con-
sequências: se o resultado de uma ação for favorável ao maior número, então a ação será
moralmente correta e moralmente incorreta se os resultados não forem positivos para a maioria.
Independentemente do que se tenha praticado, o valor da ação estará sempre nas vantagens
que foi capaz de trazer ou nas consequência(s) da sua concretização.
Criticando a perspetiva kantiana, Stuart Mill manifesta a sua desconfiança face à importância
atribuída ao motivo da ação em detrimento das consequências da ação:
“Compete à ética dizer-nos quais são os nossos deveres, ou por meio de que teste podemos
conhecê-los, mas nenhum sistema de ética exige que o único motivo do que fazemos seja o
sentimento do dever; pelo contrário, noventa e nove centésimos de todas as nossas ações são
realizadas por outros motivos - e bem realizadas, se a regra do dever não as condenar.
17
John Stuart Mill, Utilitarismo, Porto Editora
18
John Stuart Mill, Utilitarismo, Porto Editora
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(...). Os moralistas utilitaristas foram além de quase todos os outros ao, afirmar que o motivo,
embora seja muito relevante para o valor do agente, é irrelevante para a moralidade da ação.
Aquele que salva um semelhante de se afogar faz o que está moralmente certo seja o seu
motivo o dever, seja a esperança de ser pago pelo incómodo; aquele que trai um amigo
que confia em si é culpado de um crime, mesmo que o seu objetivo seja servir outro
19
amigo relativamente ao qual tem mais obrigações. ”
19
John Stuart Mill, Utilitarismo, Porto Editora
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Já dissemos que a consciência moral não possui apenas uma dimensão pessoal. Ela exprime-se
na vivência em comunidade. Por conseguinte, passa-se o mesmo com a ética. Os valores
pessoais dependem, pelo menos em parte, da pressão social. Existe um conjunto de normas e de
regras sociais que configuram a ética individual.
Sendo assim, a responsabilidade moral é inseparável da responsabilidade política e
jurídica, a qual estabelece os padrões do modo correto de viver em sociedade. Entre a moral
individual e a moral pública existem interações que definem aquele que se considera ser
o modo mais correto de agir.
“O homem tem uma inclinação para entrar em sociedade, porque em semelhante estado se
sente mais como homem, isto é, sente o desenvolvimento das suas disposições naturais. Mas tem
também uma grande propensão a se isolar, porque depara ao mesmo tempo em si com a
propriedade insocial de querer dispor de tudo ao seu gosto e, por conseguinte, espera
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resistência de todos os lados (...). ”
Este texto de Kant revela-nos a dupla faceta do ser humano. a sociabilidade e a insociabilidade.
Pela primeira, o ser humano desenvolve as suas disposições naturais; pela segunda, resiste à
própria ordem social. Este antagonismo está na base da criação do direito. De facto, é
preciso compatibilizar a necessidade de viver em sociedade com as exigências da vida coletiva, ou
seja, trata-se de adequar os direitos aos deveres. Tal adequação permite a realização da
sociedade civil, enquanto unidade de pessoas que consentem viver em conjunto através de leis.
O Estado
Não há liberdade sem uma organização social. Esta implica um exercício de dominação
por parte de um poder legítimo, que é investido de autoridade. Por outro lado, o equilíbrio
entre o exercício deste poder e as liberdades individuais é sempre precário, exigindo uma
constante negociação. É preciso procurar harmonizar os ideais e os desejos pessoais
com a vida em sociedade. Mas, em compensação, podemos afirmar que a realização das
liberdades individuais não poderia verificar-se se não houvesse uma sociedade
organizada em instituições. As organizações políticas e sociais não visam apenas promover
a igualdade e a justiça; visam também proporcionar aos cidadãos o máximo
desenvolvimento das suas potencialidades.
A organização e a estruturação da sociedade civil num determinado território remete-nos para o
conceito de Estado. O que é o Estado? É um conjunto organizado de instituições (políticas,
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Kant, A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, Edições 70
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“O que os faz a todos [isto é, a todos os indivíduos] estar dispostos a ceder o seu poder de punir, a
fim de ser unicamente exercido por aqueles de entre eles que para isso foram escolhidos, e de
acordo com aquelas regras que a comunidade, ou quem a autoridade autorizar para esse fim,
estabelece. E é nisto em que consiste o direito original e o princípio do poder tanto legislativo como
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executivo, bem como o dos governos, e das próprias sociedades. ”
O Direito
A instância que permite garantir a liberdade dos indivíduos é, precisamente, o direito. Este
distingue o que é aceitável do que é inaceitável, garantindo que uma ação seja legalmente
permitida. O direito requer a existência de um poder público imparcial que exerça uma função de
arbitragem, entre forças e interesses em conflito. Deste modo, o direito é o “conjunto das normas
que regulam a vida social e que instituem uma arbitragem indispensável num universo modelado
pelo conflito, a violência e a luta” (J. Russ, Philosophie. Thèmes et Textes, A Collin). Assim, o
direito assegura a coexistência das liberdades, colocando todos os membros em situação
de igualdade, e garantindo as condições de coação para evitar ou sancionar as ações que
atentam contra a liberdade dos outros. Os grandes objetivos do direito serão a paz e a
justiça.
A universalidade da justiça implica garantir a igualdade de tratamento a todos e, por outro lado,
o direito à diferença.
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John Locke, (1690), "Ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do governo civil”
in Aires Almeida et al. (orgs.), Textos e Problemas de Filosofia, Plátano Editora
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V. Camps, Los Valores de la Educación, Anaya
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Se o direito à diferença é uma expressão da liberdade, é preciso não esquecer que o direito à
igualdade lhe é anterior. É importante desenvolver ações reivindicativas apelando ao direito à
diferença, desde que não se esqueçam os direitos universais.
Há, no entanto, um aspeto que importa sublinhar, perante a recente preocupação com o direito à
diferença. É que a justiça não se pode esgotar na universalidade da igualdade perante a lei. Ela
deve ser também equitativa. Com efeito, sendo geral, a lei nem sempre prevê casos
específicos aos quais não se pode aplicar com o mesmo rigor. A equidade representa
precisamente esse equilíbrio entre a igualdade perante a lei e o reconhecimento do direito à
diferença.
Uma das perspetivas mais importantes de justiça dos últimos tempos é apresentada pelo filósofo
americano John Rawls, na sua obra Teoria da Justiça. O filósofo defende, precisamente, a ideia de
que a justiça social implica a equidade.
Este duplo princípio visa garantir o reconhecimento das diferenças existentes entre os indiví-
duos. Com efeito, a sua posição na sociedade é díspar e, portanto, é preciso dar oportunidade a
todos de participarem em diferentes cargos e posições na sociedade, sempre no
sentido de promover o máximo de vantagens possível para os que se encontram em
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Só existindo equidade é que pode existir justiça social, que consiste, afinal, numa
compensação das desigualdades, redistribuindo os bens essenciais, a fim de que todos possam
usufruir desses bens.
“A "diferença" tem de passar, assim, de ser uma simples realidade social, cultural, económica ou
biológica para elevar-se também a valor jurídico-político, evitando que as "diferenças" fácticas
de qualquer tipo (raça, religião, género, cultura, naturais, biológicas, condições sociais e
económicas...) possam ser, como foram em diferentes momentos históricos, usadas para inferio-
rizar e para justificar situações de discriminação, situações de dominação, marginalização ou
exclusão, ou possam ainda ser desnaturalizadas e descaracterizadas, através da
implementação de políticas de igualdade ou de homogeneização.
Deve afirmar-se que a "igualdade" entre os seres humanos pode ou, inclusive, deve admitir
"diferenças" pessoais entre eles - pois estas são as que os identificam como tais e que lhes
permitem expressar necessidades específicas - mas não pode admitir desigualdades ou
diferenças sociais e económicas entre eles, porque estas são as que os discriminam
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socialmente. ”
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M. J. F. Dulce, Globalizácion, Ciudadania y Derechos Humanos, Universidade Carlos III
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Cada vez mais é importante recuperar esta dignificação da atividade política, já que vivemos num
espaço público de discussão e de liberdade de expressão.
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P. Ricoeur, Lectures
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H. Arendt, La Crise de Ia Culture, Gallimard
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