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O ANARQUISMO HOJE

UM PROJETO PARA A REVOLUÇÃO SOCIAL


Projeto da capa
Plínio Augusto Coêlho

Ilustração da capa
Fo t o d e p a s s e a t a a n a r q u i s t a e m Pa r i s , e m 2 0 0 4 ,
Alexandre Samis

Impresso no Brasil
2005
União Regional Rhône-Alpes
da Federação Anarquista Francófona

O ANARQUISMO HOJE
UM PROJETO PARA A REVOLUÇÃO SOCIAL

Tradução
Plínio Augusto Coêlho

IEL
Instituto de Estudos Libertários
Sumário

Nota dos Editores 9

Apresentação 13

O que motiva a nossa ação


A igualdade econômica e social 15
A liberdade 5

Nossas recusas políticas


A recusa do Estado 27
A recusa do capitalismo, da lógica do lucro,
do salariado e da moeda 30
A recusa da religião 33

O projeto de sociedade anarquista


O federalismo libertário 37
A organização federal anarquista 42
A autogestão generalizada da produção 46
A organização da repartição 51
A educação libertária 54
A informação 56
A gestão dos conflitos 58

A prática revolucionária
A revolução 65
A implicação nas lutas sociais 75
Federar as lutas! 83

À guisa de conclusão... 85
NOTA DOS EDITORES

Nessa época em que a farsa da política partidária é


desnudada, tomamos a iniciativa de publicar o projeto dos
companheiros da União Regional Rhône-Alpes que apre-
senta, com alguma profundidade, a doutrina anarquista.
De nosso ponto de vista, é fundamental mostrar à sociedade
que existem caminhos outros para a política, diferentes da
resignação ovina da imensa maioria e do jogo corrupto dos
partidos da esquerda e da direita, males inerentes à demo-
cracia representativa.
Como qualquer projeto – e como o próprio grupo coloca
no início de seu texto –, uns acharão por demais detalhado,
e outros, demasiadamente superficial, estando ainda su-
jeito a acertos e erros. Por tocar em questões tão difíceis e
polêmicas, mesmo ao universo libertário, tais como: natu-
reza humana, dinheiro, consenso, família, violência, greve
geral, revolução entre outras, o grupo traz, muito mais do
que algo acabado, uma contribuição para as discussões.
Assim como o leitor terá pontos de concordância e dis-
cordância, nós também os temos, reservando-nos o direito
de não concordar com tudo o que aqui é proposto ou ex-
posto. Apesar disso, julgamos de plena importância a publi-
cação deste livro, que contribui para mostrar à sociedade
que o anarquismo – ao contrário do que dizem nossos detra-
tores, de todas as capelas e matizes, que têm interesse em
perpetuar seus controles e poderes – não está ultrapassado,
10 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

e serve sim, no mínimo, como riquíssima fonte inspiradora


à construção de uma nova organização societária de base
igualitária e antiautoritária, passando ao largo das estru-
turas letais à humanidade, estruturas essas legitimadoras
da exploração, esta inerente ao capitalismo e ao Estado.
Para além dos pontos já citados o texto da União Re-
gional Rhône-Alpes revela a existência do próprio grupo,
organizado sobre bases especifistas, filiado à Federação
Anarquista Francesa de orientação sintetista. Uma situação
contraditória para uma grande maioria de libertários que
se acostumou a encarar as duas formas de organização
como antagônicas e, em não raros momentos, rivais em
contextos históricos dos mais variados. Opostos, os mo-
delos de síntese e o específico, surgiram como alternativas
à uma encruzilhada metodológica diante da qual foi colo-
cada a ideologia anarquista, após o triunfo do bolchevismo
na Revolução Russa e sua conseqüente expansão, através
dos PCs, pelo restante do planeta. A síntese, por um impe-
rioso desejo de garantir autonomia aos grupos filiados,
fundou seus princípios em um federalismo radical, optando
por preservar na forma de articulação dos grupos a essência
mesmo do corpo doutrinal libertário. O especifismo, talvez
a tentativa mais clara de estabelecimento do nexo entre o
aliancismo de Bakunin, nos primeiros tempos da AIT, pas-
sando pelo Partido Anarquista de Malatesta e mesmo da
experiência ucraniana de Makhno, buscou dar uma resposta
mais unificada ao esforço que vinham empreendendo os
anarquistas no campo das lutas sociais.
Entretanto, e de forma não menos surpreendente, os
militantes franceses, ironicamente os de um país onde tan-
tas querelas tiveram origem, apresentam-nos uma leitura
objetiva para assuntos tão antigos quanto complexos rela-
NOTA DOS EDITORES 11

tivos à Revolução Social. É justamente deles que nos chega,


não apenas em argumentação clara e direta, mas como indi-
cativo para o reinício da marcha, uma proposição que traz
diluída nas questões abordadas todo um acúmulo de expe-
riências de centenas de organizações libertárias. Em um
momento, diante de um novo milênio, em que os anarquis-
tas de todas as partes se vêem em uma outra esquina do
tempo e precisam decidir, diante agora da clara insuficiência
do velho bolchevismo, os rumos das novas estratégias de
Revolução, iniciativas como essa nos parecem de capital
importância.
Dessa forma, ignorando as profundas cicatrizes de du-
ros confrontos, protagonizados por proponentes das duas
formas de organização, o texto agora traduzido para o por-
tuguês, induz-nos mesmo a imaginar se as imensas tarefas
que aguardam os anarquistas colocaram, por hora, as
questões, estrito senso, de modelo de organização, em plano
inferior à necessidade que têm demonstrado os militantes
de fazer o anarquismo recobrar seu lugar de origem no
campo da luta de classes. Talvez, e só assim poderíamos
conceber esta ousada conjectura, tal heterodoxia seja mes-
mo a saída encontrada pelos novos militantes para, sem
maiores especulações sobre as garantias de sucesso, en-
cetar um movimento capaz de liquidar o atual sistema capi-
talista.
Não há dúvida, entrementes, que à complexidade do
neoliberalismo os anarquistas opõem também formas
ainda mais criativas de combate. Contra ele, a nosso ver,
movimentos crescem e habilitam jovens ativistas a entra-
rem nas organizações libertárias. Por toda a parte, como
se deu em outros momentos da história, a memória revolu-
cionária inspira, mas por ser memória e não nostalgia, em-
12 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

purra para frente diversas táticas de luta. Em favor desse


influxo as novas gerações têm dado o melhor de suas
energias e, a despeito de velhas feridas mal cicatrizadas,
parecem preferir o “bom combate” à discutir em torres de
marfim a forma, em detrimento da luta, da Revolução Social.
APRESENTAÇÃO

O período dos anos oitenta terá sido, para alguns,


aquele das desilusões e do desencantamento. Em 1981, fal-
sas esperanças foram depositadas na esquerda, notada-
mente para barrar as ondas de demissões provocadas pelas
reestruturações capitalistas desde 1973. O estado de graça
do qual beneficiou, nesse momento, o poder, e a vontade de
uma grande parte dos militantes sindicalistas de nada fazer
que pudesse incomodar os novos dirigentes acabaram por
laminar os movimentos sociais que surgiram sob os diver-
sos governos de direita.
A escroqueria do miterrandismo não pode, no entanto,
tudo explicar. As raras tentativas para impulsionar lutas
radicais romperam-se contra um obstáculo muito mais grave,
conquanto menos visível: todo um discurso dominante de-
senvolvera-se e lavara o pensamento político. Os “novos
filósofos” fizeram-nos o elogio da democracia como o me-
lhor dos mundos; lenta e seguramente o militantismo, as
idéias de revolução e luta de classes, os termos burguesia e
proletariado foram ordenados sob a rubrica das coisas ultra-
passadas. A implosão dos países ditos socialistas amplificou
a idéia segundo a qual a transformação do mundo era im-
possível. Bastava afirmar sua vontade de mudar a sociedade
para ser tachado de irrealista, e, até mesmo, irresponsável!
No decorrer dos anos, um pensamento minimalista obstruiu
os horizontes: era preciso fazer o mais urgente (os Restau-
14 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

rantes do Coração1), melhorar o que podia sê-lo (continuar,


apesar de tudo, a votar, porque o outro candidato era pior)
e, sobretudo, não ser demasiado revoltado. Como se o fato
de positivar (fórmula na moda) pudesse resolver os pro-
blemas!
Essa época está conclusa? Ninguém pode predizer o
futuro. De qualquer modo, podemos observar que as elei-
ções presidenciais de 1995 realizaram-se em um clima de
luta social. Pareceria que a resignação e a abdicação coletiva
começam a ceder o lugar a revoltas de uma determinação
às vezes impressionante. Foi o caso para uma pequena par-
cela do movimento secundarista contra o C.I.P.2 e bem mais
ainda durante o movimento social de novembro-dezembro
de 1995. Além disso, não é difícil perceber que a busca de
novas perspectivas tornou-se a coisa mais importante em
jogo: o conjunto da classe política é ele próprio obrigado a
reconhecer, não há mais projetos...
Não há mais projetos? Em sua pasta de gestor do sis-
tema, seguramente... De nosso lado, temos, com certeza,
uma alternativa a propor!

União Regional Rhône-Alpes


de la Fédération Anarchiste

1
Associação caritativa fundada pelo comediante Coluche, em 1985, que
consiste na distribuição diária de milhares de refeições gratuitas e serviço
de alojamento para carentes. (N.T.)
2
C.I.P.: Comitê de Iniciativa e Proposição para a Pesquisa. (N.T.)
O QUE MOTIVA A NOSSA AÇÃO

A constatação ante as injustiças sociais, as que sofre-


mos pessoalmente ou aquelas feitas ao próximo, provoca
a nossa revolta e dizemos que não podemos permanecer
inoperantes diante de tal situação...
Mas só o sentimento de revolta não quer dizer muita
coisa: ele é bem relativo. O que parecerá inaceitável para
uns não o será forçosamente aos olhos de outros. Por sub-
missão, inconsciência ou ideologia, alguns não vêem, infe-
lizmente, nada de abjeto no racismo; ou estimam normal
estar submisso às ordens de um chefe! De fato, tudo de-
pende de nossa vivência, de nossa reflexão, de nossa ética,
do que consideramos como possível. De nosso lado, se con-
testamos radicalmente a sociedade atual é porque estamos
convictos de que uma sociedade de liberdade e igualdade é
realizável.
Essa exigência de igualdade e liberdade é a nossa pri-
meira motivação. Ora, esses termos foram de tal forma de-
formados (pelos religiosos, pelos fascistas, pelos liberais
ou pelos marxistas...) que nos é preciso redefinir a significa-
ção concreta que lhes damos.

• A igualdade econômica e social

Os aristocratas do Antigo Regime justificavam suas


16 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

posições sociais referindo-se ao divino e ao seu “sangue


azul”. Hoje, ainda, a desigualdade fundamental entre os
seres humanos continua a ser proclamada: talentos desi-
gualmente repartidos “desde o nascimento” condenariam
uma fração da humanidade à “mediocridade” enquanto a
outra (composta de ricos homens de negócios e grandes
personalidades políticas...) seria naturalmente chamada a
dominar. Não é isso que tentam nos ensinar nos livros es-
colares, por meio das biografias desses grandes burgueses
e chefes de Estado “que fazem a história”?...
Esses discursos simplistas são encontrados em con-
versações cotidianas e reflexões “anódinas”. Quantas vezes
ouvimos frases como: “Essa pessoa tem talento, um dom,
é normal que ela ganhe mais!” É certamente a um autêntico
consenso de desigualdade que estamos confrontados. Con-
tra tais idéias adquiridas, afirmamos que as “diferenças de
potencialidades inatas” (supondo que elas existam real-
mente, o que no plano científico ainda faz objeto de inúme-
ras polêmicas) são negligenciáveis em relação à influência
do meio social. Os famosos “níveis de competências”, nos
quais as hierarquias tencionam estabelecer-se, nada mais
são que o produto de uma educação, e mais globalmente
de um sistema de classes, que condicionam nossa vida desde
a mais tenra idade. Quando se é operário especializado em
uma fábrica não é porque se é bom apenas para isso. É
porque nada o permitiu ou “incitou” a fazer outra coisa! É
evidente que, via de regra, faz-se longos estudos apenas
se se pode beneficiar de um apoio familial (no plano finan-
ceiro e/ou cultural). Evidentemente, existirão sempre dife-
renças: igual não deve ser confundido com idêntico. Os indi-
víduos não são comparáveis a “folhas em branco” sobre as
quais o ambiente social escreveria a integralidade do texto.
O QUE MOTIVA A NOSSA AÇÃO 17

As personalidades existem, felizmente! Em contrapartida,


num contexto favorável, cada pessoa, em função de seus
centros de interesses e seus desejos, torna-se capaz de de-
senvolver conhecimentos e aptidões para atividades com-
plexas. Para um, será na arte, para o outro num campo
científico; para um terceiro, num ofício requerendo um forte
senso prático ou disposições particulares para o diálogo
etc..
Nosso igualitarismo vai, pois, opor-se à “meritocracia”.
Como seu nome o indica, esse princípio consiste em fundar
as hierarquias sobre o mérito. Assim, para os democratas,
a justiça social limita-se a garantir uma igualdade das “opor-
tunidades” e dos “direitos”, sem fazer por um único se-
gundo o processo da competição e de suas conseqüências.
É um modo de nos dizer: “Vocês terão, de início, as mesmas
vantagens, e só haverá uma única regra do jogo; ao final,
os melhores deverão ser recompensados por seus esforços,
por seu senso de responsabilidade e iniciativa...” Nesse sis-
tema, os privilégios do nascimento são oficialmente aboli-
dos: quer se tenha nascido no seio de uma família rica ou
pobre, nada mudará... Em teoria, qualquer um de nós está
autorizado a se tornar engenheiro ou alto funcionário! E
apresentam-nos como modelo esse filho de operário, esse
“self-made man” que, por sua “coragem”, sua “tenacidade”
e sua “habilidade”, fez fortuna! Em resumo, querem nos
persuadir de que as possibilidades de ascensão social são
iguais para todos... Que absurdo! Não se pode ousar susten-
tar que cada um pode elevar-se socialmente porquanto o
sistema hierárquico estabelece, por definição, “ganhado-
res”e “perdedores”! Na realidade, sabemos o que acontece:
os “sucessos” espetaculares de pessoas emanadas de clas-
ses populares são raras exceções e a classe burguesa não
18 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

tem qualquer dificuldade em preservar suas prerrogativas,


mesmo que seja pela herança.
Para prevenir o risco dessa reflexão subversiva sobre
a igualdade, a propaganda liberal jogou continuamente com
o medo da uniformização, do nivelamento por baixo. Mas
por que a igualdade impediria a diversidade das culturas e
dos costumes? Por que ela tornaria impossível consumir e
trabalhar segundo seus gostos pessoais? Por que signifi-
caria um empobrecimento generalizado quando vivemos to-
dos, a grande maioria, abaixo do salário e da renda médios?
A igualdade econômica acarretaria, ao contrário, a melhoria
do nível de vida para a imensa maioria! Mais do que isso,
ela é uma condição inevitável à emancipação e ao desenvol-
vimento de cada um, permitindo relações humanas sem do-
minação.
A desigualdade é também praticar discriminações ou
legiferar em função da cor da pele, do sexo, das preferências
sexuais, da idade.

Contra o racismo

O racismo não é apenas uma opinião pois ele sempre


acaba por provocar agressões, pela vontade de aniquilar
indivíduos ou populações inteiras. No racismo, encontramos
esquematicamente três ingredientes: o medo, a frustração
e a ideologia. É bem sabido que temos sempre medo do que
não conhecemos. “Eles não são como nós”: assim se expri-
me, no primeiro grau, essa espécie de peste emocional que,
de hábitos culturais a fantasmas da segurança, torna sus-
peito todo “estrangeiro”. A rejeição pelo “imigrante” é o es-
túpido e criminoso meio de exteriorizar suas angústias, des-
carregar sobre bodes expiatórios, encontrar alguém mais
O QUE MOTIVA A NOSSA AÇÃO 19

desprezível do que si mesmo, humilhando um outro indiví-


duo. Esse fenômeno de alienação também decorre do siste-
ma de desigualdade e capitalista: enquanto os operários ou
os desempregados “franceses” concentram seu ódio contra
aqueles que eles denominarão os árabes, os negros ou os
judeus, seus patrões e seus dirigentes dormem tranqüilos!
O racismo não se resume, pois, a reflexos primários.
Arma de dominação, ele tem de saída uma dimensão política
e ideológica. Foi o racismo que legitimou e tornou possível
a escravidão, depois a colonização sob pretexto de uma
“missão civilizadora”. É esse o verdadeiro motor do racis-
mo: justificar a priori e a posteriori os atos de dominação e
de exploração.
Segundo as épocas e as circunstâncias, a ideologia ra-
cista estruturou-se sobre diferentes noções e argumenta-
ções. O racismo, de início, afirmou a teoria segundo a qual
a humanidade é divisível em grupos biológicos, alguns
sendo “superiores” aos outros. Evidentemente, trata-se de
uma aberração. A ciência provou incontestavelmente que
não existem “raças humanas”; que é absurdo querer assim
catalogar as populações. Do ponto de vista da genética,
pode existir menos diferenças entre um habitante do conti-
nente africano ou asiático e um “ocidental” do que entre
dois “ocidentais”.
Em seguida, a noção de superioridade é destituída de
sentido: se existem culturas diferentes, todas têm suas com-
plexidades e suas riquezas, e não se pode reter critérios de
avaliação para classificá-las.
Enfim, o racismo não se reduz a essa classificação bioló-
gica. Essa referência não lhe é indispensável. A cultura (a
língua, os costumes, as tradições etc.), fornece-lhe um adu-
bo amplamente suficiente.
20 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

Não se poderia, então, ignorar o quanto racismo e na-


cionalismo estão ligados, embora alguns queiram nos con-
vencer de que a nação pode ser generosa e respeitosa das
diversidades.
De maneira global, a representação nacionalista da so-
ciedade afirma:
• que as diferenças e os antagonismos no seio da “na-
ção” são de importância negligenciável.
• que as similitudes, fáceis de serem encontradas, con-
tudo, entre nossa sociedade e aquelas dos “estrangeiros”,
não são significativas.
Ou seja, nossa “nação” é considerada como uma enti-
dade única, cujos elementos são, todos, intimamente liga-
dos, “tal como uma grande família”! Isso supõe que devería-
mos nos identificar, antes de tudo, pelo pertencimento a
“nosso grupo nacional”, enquanto comunidade superior
de interesse. Não apenas todas as oposições de classes são
“esquecidas”, mas é a apologia in fine da preferência nacio-
nal; e sabemos o que este termo significa. A nação, por
definição, não pode ser pluricultural sem perder o que é
suposto fazer sua identidade e sem se condenar em seu
princípio (em países como os Estados Unidos, a pluricultu-
ralidade traduz-se por uma compartimentalização, guetos,
e uma hierarquização das “comunidades”). Quando muito,
tolera a noção “de integração”, que se traduz pela obrigação
imposta aos “estrangeiros” de fundir-se na cultura do “país
de acolhida”.
Não há uma boa e uma má interpretação do naciona-
lismo: os partidos políticos, que se gabam continuamente
de agir “pela grandeza da França e no interesse dos france-
ses”, têm, todos, por esse simples fato, uma enorme respon-
sabilidade no recrudescimento da xenofobia, quaisquer que
O QUE MOTIVA A NOSSA AÇÃO 21

sejam as nuances de seus discursos. O Front National3 con-


tentou-se em fazer a promessa em relação ao muito consen-
sual mito patriótico, com um slogan: “A França aos fran-
ceses” que, no fundo, reflete uma idéia partilhada por todos
os nacionalistas.
Anarquistas, somos a-nacionalistas: não nos reconhe-
cemos em nenhuma nação. Sabemos que somos de uma
classe social, que falamos uma ou várias línguas, que ama-
mos tal ou qual região do mundo, que partilhamos tais ou
quais gostos musicais com outros... É isso que nos define
enquanto entidades sociais, e nada mais. Aqueles que racio-
cinam em termos de comunidades orgânicas ou étnicas já
têm um revólver na mão para fazer os outros marcharem a
passo cadenciado ou ao som do hino nacional.

Contra o sexismo

Todas as formas de sexismo têm um ponto em comum:


elas consideram as mulheres como sendo de valor “inferior”
aos homens. Mais amplamente, o sexismo é uma norma
social que tende a atribuir a cada sexo um papel preciso na
sociedade, um certo tipo de atividade e comportamentos.
Em sua versão mais reacionária, se podemos nos expri-
mir assim, o sexismo reserva às mulheres a esfera privada,
a educação das crianças, os trabalhos domésticos etc.. O en-
clausuramento, em nome da vida do lar, condiciona a ausên-
cia de autonomia. O sexismo reserva às mulheres “traços
de caráter”: por muito tempo a histeria foi taxada de essen-
cialmente feminina. Ao contrário, o homem pode evoluir

3
Front National: Partido de extrema direita cujo líder é Jean-Marie Le Pen.
(N.T.)
22 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

na esfera pública como em terreno conquistado: nas diver-


sas hierarquias e ramificações do Poder, os cargos de “res-
ponsabilidade” são-lhe “naturalmente” reservados.
Se as relações no seio das famílias e nos casais modi-
ficaram-se profundamente desde há vinte anos, o sexismo,
contudo, permanece extremamente presente. Basta obser-
var em torno de si para se dar conta disso: a violência física
e psicológica contra as mulheres está longe de desaparecer!
O número de estupros e violências “domésticas” mostra-o
bastante bem (uma mulher em cada grupo de oito é vítima
de violências sexuais antes da idade adulta). No plano pro-
fissional, quando as mulheres são “autorizadas” a apresen-
tar-se no mercado de trabalho, elas são fortemente incitadas,
para não dizer forçadas, a exercer certos trabalhos e não
outros: elas estarão “em seus lugares” nos escritórios, nos
salões de beleza ou nas escolas, não nos setores de ativida-
des técnicas. Na maioria dos casos, e com iguais qualifica-
ções, elas perceberão salários inferiores aos dos homens.
As mulheres são sempre obrigadas a “ser sedutoras”. São
sempre esse “objeto do desejo” que faz vender, por intermé-
dio da publicidade, automóveis e desodorantes masculinos.
É sempre a imagem da dona de casa (de menos de cinqüenta
anos!) que escolhe entre duas caixas de sabão em pó.
Quanto aos homens, se eles são, sem dúvida, mais
convidados do que antes a servir-se da sedução, eles devem,
segundo a expressão consagrada e profundamente estú-
pida, provar “que possuem”! “O homem” deve saber lutar,
ser física e moralmente forte. Se ele conhece algumas piadas
bem “machistas”, longe de estar inclinado a calar-se, ele
será, na maioria dos casos, apreciado por sua “jovialidade”
(?) e seu “conhecimento das coisas da vida” (!?). Azar o dele
se chorar: ele será “uma mocinha” e... um “veado”!
O QUE MOTIVA A NOSSA AÇÃO 23

O sexismo também é, e amplamente, o ódio homófobo:


a rejeição da homossexualidade masculina e feminina, esses
comportamentos sendo correntemente taxados de anorma-
lidade, desvio, incapacidade de ser de seu sexo. É por isso
que nos damos muito bem conta de que a norma sexista, se
ela é, de início, contra as mulheres, ela também o é contra
uma parte dos homens. O sexismo tudo falseia, inclusive as
relações amicais. Ele aliena e oprime os homens que têm, ou
teriam, o desejo de viver de outra maneira suas relações
amorosas (seja de maneira heterossexual, seja homosse-
xual ou bissexual) e torna-os igualmente vítimas de violên-
cias sexuais (é o caso para um homem em cada grupo de
dez, antes da idade adulta).
Os ataques redobrados, nesses últimos tempos, contra
o aborto e a contracepção, o fanatismo religioso de um João
Paulo II e suas encíclicas estão aí para lembrar-nos que
nada jamais é totalmente adquirido e que o combate pela
liberdade sexual e pela igualdade social entre os homens e
as mulheres é sempre atual. Combate eminentemente polí-
tico, pois, ainda neste caso, o sexismo é um instrumento
de controle: assim como o racismo, ele serve de “válvula de
escape” aos indivíduos dominados.

• A liberdade

O que quer dizer ser livre? Concretamente, a liberdade


é um poder: aquele de agir ou não agir. Somos livres quando
ninguém nos impede de fazer de nossa vida o que queremos
e quando ninguém nos impõe sua vontade (pela força ou
pela manipulação). A liberdade é, de saída, uma relação
social (ela não existe na natureza, é uma criação humana).
24 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

Não podemos ser livres lá onde existe uma hierarquia de


comando e poderes de coerção: quando um Estado obriga-
nos a efetuar um serviço nacional (militar ou civil) ou
quando estamos à mercê dos patrões que têm todo o poder
de empregar-nos ou demitir-nos, somos, evidentemente,
sempre “livres” de nos revoltar, mas não somos livres, so-
cialmente falando.
Segundo a famosa fórmula “a liberdade de uns pára
lá onde começa a dos outros”, apresentam-nos a liberdade
como algo que devemos evitar. Ela seria, inclusive, extrema-
mente perigosa por ser sinônima de “fazer tudo e qualquer
coisa”: “Se eles fossem totalmente livres de fazer o que
bem lhes aprouvesse, os humanos se entredestruiriam em
um caos generalizado e a vida em sociedade tornar-se-ia
impossível!”... Este discurso não é ingênuo. Ele permite jus-
tificar o princípio da Autoridade e transformar a liberdade
num “ideal inacessível”. Não é mais que um motivo de en-
cantamento, reservado para efeito de barganhas dos tribu-
nos políticos. Nos atos, só são toleradas liberdades parciais,
enquadradas pelo Direito e pela Lei. A Constituição autoriza-
nos a greve bem comportada e o direito de associação, mas
azar daquele que ousar não se submeter e rebelar-se! Em
resumo, estamos todos em liberdade vigiada!
Em oposição a esta visão redutora tanto quanto hipó-
crita, os anarquistas desenvolveram uma concepção social
da liberdade humana. Quando, em suas revoltas e suas
lutas, as populações exigiram a liberdade, não se tratava
de uma liberdade abstrata e filosófica, mas uma liberdade
associada ao princípio igualitário. Para nós, a liberdade não
pode existir sem a igualdade econômica e social. Liberdade
e Igualdade são indissociáveis. A liberdade é plena e inteira
quando o indivíduo, emancipado de todas as tutelas e de
O QUE MOTIVA A NOSSA AÇÃO 25

toda dominação, tem a possibilidade de construir e manter


relações voluntárias com os outros. Se ser todos livres
significa a ausência de dominação, é preciso, para que eu
seja perfeitamente livre, que os outros também o sejam: a
liberdade de cada um é a condição da liberdade de todos, e,
como dizia Bakunin, “A liberdade dos outros amplia a
minha ao infinito.”
Por sinal, visto que os indivíduos são seres sociais, a
liberdade não é a recusa de todas as disciplinas. Para orga-
nizar-se com os outros, o indivíduo deve assumir engaja-
mentos, estabelecer entendimentos e respeitá-los. Alcança
sua completa liberdade quando pode escolher seus contra-
tos e negociar seus termos. Enfim, toda censura é-nos insu-
portável pois ela supõe um poder, uma Autoridade para
exercê-la. Se uma opinião parece-nos perigosa, no que ela
representa e deixa supor como atos vindouros, nada resol-
vemos proibindo-a. Sustentar que não se deve deixar a
palavra aos inimigos da liberdade é o melhor meio de se ir
à ditadura.
NOSSAS RECUSAS POLÍTICAS

Dessas primeiras reflexões decorre uma série de posi-


ções, sobre o Estado, o capitalismo e a religião.

• A recusa ao Estado

Primeiramente, o Estado não é um instrumento neutro


que se pode utilizar para bom ou mau discernimento. A
partir do momento em que um grupo dispõe dos meios de
opressão (militares e policiais) permitindo-lhe agir segundo
seus interesses, não devemos nos surpreender com o fato
de que ele os utiliza! Falar de abuso de poder é ridículo,
pois a que serviria o poder se ele não abusasse? Tomem o
mais generoso dos operários, dêem-lhe um trono e ele
transformar-se-á num ditador paranóico!
Em segundo lugar, rejeitar o Estado não é rejeitar a
organização. Aqueles para quem o Estado é de uma abso-
luta necessidade, fazem, voluntariamente ou não, sérias
confusões entre Estado e Sociedade. É verdade que os seres
humanos não podem viver sem ordenar suas relações e
suas ações. Precisam, para isso, dotar-se de estruturas po-
líticas e de organizações de gestão. Todavia, é completa-
mente falso crer que o Estado é a única forma de organiza-
ção possível ou que ele é um inevitável mal menor.
Confiscando inúmeras funções de utilidade coletiva (como
a saúde, a educação, os transportes etc.) o Estado quer se
28 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

dar uma legitimidade sem falha, persuadir-nos de que é


indispensável.
Trata-se de uma gigantesca escroqueria: as classes do-
minantes construíram os aparelhos de Estado para servirem
a seus interesses e não para a sociedade. O Estado é um
instrumento de repressão, controle e gestão, que opera con-
tra nós e que limita ou esmaga nossas iniciativas de auto-
organização.
Para que a sociedade funcione, não precisamos ser diri-
gidos, e, recusando o Estado, propomos o federalismo liber-
tário e a autogestão (assunto que iremos tratar mais adiante),
quer dizer, modos de funcionamento que dão aos indivíduos
a possibilidade de coordenar as atividades sociais, tratando
de iguais a iguais.
Por nosso antiautoritarismo, somos conduzidos a nos
diferenciar dos democratas. A democracia é, etimologica-
mente, a idéia do poder do povo, mas, historicamente, é a
referência à democracia ateniense (na qual havia escravos!)
ou à democracia atual, que se desenvolveu desde a Revo-
lução americana e afirmada com a Revolução francesa. Para
evitar cair na armadilha do jogo de linguagem, podemos
dizer que o problema fundamental é o da delegação de po-
der: ser democrata é pensar que o povo deve eleger seus
governantes (pelo sufrágio universal).
O “democrata” permanece, pois, no esquema dirigentes/
dirigidos. Se a ditadura é o pior dos sistemas políticos, cons-
tatamos que, na democracia, o poder dos indivíduos, das
coletividades, dos grupos sociais etc., reduz-se a um bem
que se apequena. Os “cidadãos” não têm qualquer controle
sobre seus eleitos: se estes últimos não respeitam seus en-
gajamentos (como é habitualmente o caso!), ninguém pode
destituí-los, foi-lhes dado um autêntico cheque em branco...
NOSSAS RECUSAS POLÍTICAS 29

Entretanto, alguns dirão: “Se tal candidato decepciona, ele


não será reeleito”... E então? Será um de seus acólitos que
o será, para refazer uma política praticamente idêntica! Ou
então, o candidato jurará por seus grandes deuses que,
dessa vez, “obedecerá seu programa” e, uma vez mais, enga-
nará o crédulo eleitorado!
Por sinal, seria preciso interrogar-se com relação aos
verdadeiros poderes dos governos! No jogo econômico, os
dirigentes, quaisquer que sejam suas intenções prévias, não
têm margem de manobra significativa. Eles estão subordi-
nados aos interesses capitalistas. Gerem a crise social por
falsas políticas de emprego, pela caridade e pela “ação so-
cial”, pela repressão.
Enfim, a democracia é a primazia da regra majoritária.
Em relação a isso, o referendo é, segundo parece, a for-
ma de governo mais “democrática”: os “cidadãos” não são
convocados a intervir diretamente na “vida política do país”?
Ora, é uma evidência, a maioria nem sempre tem razão.
Entregar-se sem condição a seu juízo para tomar deci-
sões sobre tudo é extremamente perigoso: iremos aceitar
votar sobre questões como a pena de morte, a expulsão dos
imigrantes (ou filhos de imigrantes), o direito de as mulhe-
res trabalharem? Não podemos aceitar submeter a um voto
o que não é negociável e o que conspurca o princípio da jus-
tiça social!
Isso posto, não somos sistematicamente opostos ao
voto.
Podemos recorrer a ele se ele for concebido como um
modo de decisão aceito por todos, a fim de ter, num dado mo-
mento, indicações quanto às posições de cada um, resolver
rapidamente questões técnicas, escolher entre diferentes
opções econômicas de produção.
30 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

• A recusa ao capitalismo, à lógica do lucro,


ao salariado e à moeda

O capitalismo é um sistema econômico embasado no


fato de que uma classe social, a burguesia, é proprietária dos
meios de produção, distribuição e troca. Essa apropriação
privada das capacidades produtivas da humanidade acen-
tuou-se desde o começo do século XIX, de início na Europa,
e não cessou de desenvolver-se até estar atualmente esten-
dida ao conjunto do planeta. Uma variante, o capitalismo
de Estado, impôs-se entre 1917 e 1990, o que se denominou
erroneamente de países socialistas. A burguesia foi ali
substituída pela burocracia do Estado, única proprietária.
No capitalismo, os detentores dos capitais financeiros,
das empresas, dos instrumentos técnicos, das redes de co-
mércio etc., têm o controle absoluto dos processos de pro-
dução, desde a definição das necessidades de consumo até
a organização do trabalho, a política de emprego, os locais
de implantação das empresas... Aqueles que, como a maioria
de nós, só possuem seus braços, seu savoir-faire ou seus
conhecimentos intelectuais, são obrigados, para viver, a alu-
gar seus serviços a empregadores em troca de um salário
(os liberais falam de “contrato”, como se o assalariado fosse
livre para negociar, nas mesmas condições, com o patrão!).
Malgrado aqueles que, ao se falar de luta de classes,
fazem caretas, existe, de fato, um proletariado em confronto
permanente com uma burguesia. É desta relação de força
entre exploradores e explorados que depende o nível de
vida de uns e a taxa de lucro dos outros.
Os capitalistas desenvolveram um grande número de
“boas razões” para justificar seu sistema. Sustentam que
o lucro é a remuneração correspondente aos riscos finan-
NOSSAS RECUSAS POLÍTICAS 31

ceiros assumidos pelos acionistas. O argumento é dema-


siado fácil e falso! Quando um patrão investe em uma nova
produção, o capital engajado provém do desvio e da apro-
priação de uma parte do trabalho realizado pelos assalaria-
dos de uma indústria. O capitalista “aposta” com os frutos
do trabalho coletivo que ele roubou!
Pequenos patrões, bem como grandes barões da indús-
tria, sustentam que, sem perspectiva de enriquecimento pes-
soal e sem competição, a sociedade não mais poderia fun-
cionar por falta de “estímulo” para dinamizar as iniciativas
individuais. O exemplo da falência dos “países socialistas”
é, muito amiúde, apresentado para afirmar que o capitalis-
mo é a organização que garante a cada um, uma oportuni-
dade de promoção social e bem-estar, por pouco que se faça
os esforços necessários. Este raciocínio é falsificador, pois
a “igualdade de oportunidades” (como nós já o dissemos
anteriormente) nunca é certa, porquanto a transmissão dos
títulos de propriedade bem como dos modelos culturais fa-
zem com que as riquezas e o poder transmitam-se de gera-
ção em geração, nas mesmas classes.
Quanto à função estimulante do enriquecimento pes-
soal, é um argumento truncado. Para nós, a cooperação e o
apoio mútuo (sem os quais todo trabalho, inclusive hoje,
seria impossível) são as únicas condições indispensáveis
ao progresso econômico e social. A concorrência, ao contrá-
rio, além de conduzir os indivíduos a perderem suas vidas
para ganhá-las, geram formidáveis desperdícios. Em vez
de reagrupar energias com um objetivo comum, ela as dis-
persa numa guerra econômica. Para aumentar o consumo,
os bureaux de estudos limitam voluntariamente o tempo
de vida dos produtos. Novas gamas de produtos, simples-
mente remodelados saem das empresas para causar ilusão.
32 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

Enormes recursos são aplicados na publicidade e no marke-


ting para condicionar os consumidores...
A eficácia e a racionalidade do capitalismo permanecem,
contudo, idéias fortemente ancoradas nos espíritos, notada-
mente em razão da seguinte suposição: a economia de
mercado seria a melhor para satisfazer as necessidades dos
indivíduos. Assim, dizem-nos: “Se o capitalista quer vender,
ele deve encontrar compradores. Se as mercadorias não en-
contram compradores, ele falirá, a não ser que encontre
outros produtos correspondendo às expectativas dos consu-
midores.” A lógica de mercado levaria, então, os chefes de
empresas a aproximar-se o máximo possível da demanda...
Esse raciocínio é correto... exceto que ele omite dizer que
essa demanda não reflete as necessidades sociais das popu-
lações, mas sim o poder de compra das diferentes classes
de consumidores! Tendo em vista que todas as produções
estão sujeitas a objetivos de rentabilidade, as necessidades
das populações sem recursos são ignoradas: no capitalismo,
aquele que não tem dinheiro não existe.
Esta evidência conduz-nos à crítica da moeda. Esta não
é, como dizem os economistas, um simples e cômodo meio
de troca. Para repartir as riquezas produzidas, os humanos
poderiam ter encontrado muitas outras soluções! E, ainda,
constatamos que o capitalismo sabe por si mesmo dela pres-
cindir quando isso se revela oportuno: é, por exemplo, fre-
qüente que países negociem entre si acordos de troca em
razão das incertezas que planam sobre o sistema monetário
internacional. Se a moeda é parcialmente um instrumento,
é enquanto suporte fundamental da realização do lucro.
Sem ela, a possibilidade de acumular valores permaneceria
extremamente reduzida; sem o entesouramento (a ação de
juntar dinheiro), o capitalismo não teria se desenvolvido!
NOSSAS RECUSAS POLÍTICAS 33

Com o dinheiro, o sistema de dominação dotou-se igual-


mente de uma poderosa arma de alienação ideológica: na cor-
rida pelos ganhos, a utilidade e o valor social das coisas pas-
sam ao segundo plano ou são simplesmente esquecidos. A
moeda, e não é uma de suas características menos importan-
tes, permite mascarar a realidade das relações de explora-
ção. Quando um proprietário extorque uma mais-valia ao
locatário, a relação de exploração não é imediatamente
visível: presume-se que o locatário “está pagando o custo
de construção e manutenção” do imóvel, mas o montante
do roubo não é mostrado em nenhum lugar. A exploração,
o roubo pela interface da moeda, é um método, em resumo,
muito mais hábil que a antiga escravidão, “direto” e brutal...
O dinheiro cria um poder que escapa de todo controle.
Sabemo-lo: o que há de mais anônimo do que uma cédula
de dinheiro? O que é mais “indecifrável” do que as múltiplas
transações nos mercados financeiros internacionais?

• A recusa à religião

Dos integrismos (católicos, islamitas...) às tendências


“modernistas” e “progressistas”, e até mesmo “revolucioná-
rias”, a religião está longe de se reduzir a um pensamento
único. Não se pode combater essa nebulosa unicamente
pela referência aos crimes da Inquisição, às exações de seus
componentes mais obscurantistas. É o fundamento da reli-
gião que devemos combater. Anarquistas, não somos ape-
nas anticlericais (opostos à influência do clero nos assuntos
públicos), somos ateus. Isso significa que negamos a exis-
tência de todas as divindades, afirmando que elas são puros
produtos da imaginação humana!
34 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

Como se pode lutar contra a crença em Deus? A crença


sendo hermética ao raciocínio científico, Deus é, pela força
das coisas, indemonstrável e não-demonstrável!
De nada serviria, então, tentar provar, de um ponto de
vista lógico, que Deus não existe. Todavia, fazendo atenção
ao que subentende o fenômeno religioso, quer dizer, desve-
lando suas finalidades e seus intentos não declarados, evi-
denciamos as razões objetivas do ateísmo.
Para o indivíduo que quer se tranqüilizar, a religião é
uma fuga no misticismo e no moralismo: submetendo-se a
mandamentos superiores, ele se libera de sua responsabili-
dade e de sua individualidade. Crer em Deus é dar-se um
Senhor e “Deus sendo tudo, o mundo real e o homem são
nada (...) Deus sendo o senhor, o homem é escravo” (Ba-
kunin).
Para as Igrejas, que são Estados, a ordem moral é o
meio de manter os povos na submissão. Elas constante-
mente serviram as burguesias, abençoaram os exércitos e
excomungaram os revoltosos, utilizando aspirações popu-
lares a “um mundo melhor”! Proudhon escrevia concer-
nindo à relação entre o poder e a Igreja: “A idéia econômica
do capital, a idéia política do governo ou da autoridade, a
idéia teológica da Igreja são três idéias idênticas e recipro-
camente conversíveis: atacar uma, é atacar a outra... O que
o capital faz sobre o trabalho, e o Estado sobre a liberdade,
a Igreja opera-o, por sua vez, sobre a inteligência. Essa
trindade do absolutismo é fatal, na prática bem como na
filosofia. Para oprimir eficazmente o povo, é preciso acor-
rentá-lo em seu corpo, em sua vontade, em sua razão.”
Entretanto, se somos radicalmente hostis em relação
ao pensamento religioso, nossa luta não pode passar por
uma interdição do direito de culto, interdição que seria uma
NOSSAS RECUSAS POLÍTICAS 35

medida simultaneamente ineficaz e contrária aos nossos


princípios libertários. Enquanto o indivíduo, adulto e res-
ponsável, quiser crer, orar ou fazer peregrinações, que ele
o faça livremente. As discriminações sociais contra indiví-
duos em função de suas convicções religiosas não são
admissíveis.
A questão da escola confessional coloca um problema
mais espinhoso, visto que se trata do confisco da educação
de indivíduos que ainda não são autônomos por parte dos
religiosos. Não há pior arregimentação do que aquela come-
tida contra crianças e adolescentes, seja por Igrejas, seja
por Partidos, organizações políticas ou seitas! Como comba-
ter esse autoritarismo inqualificável, e que não merece qual-
quer excusa? Se proibir pela força as escolas confessionais
produz fatalmente efeitos contrários àquele buscado (admi-
tindo essas escolas e os religiosos em posição de vítimas),
podemos, em contrapartida:
• Recusar-lhes todo auxílio econômico.
• Denunciar sem descanso sua existência e mostrar
que, para além de todos os seus discursos de aparência
“generosa”, os teólogos opõem-se sempre à liberdade do
indivíduo, ao desenvolvimento de sua autonomia e de seu
senso crítico.
• Opor-lhes, sobretudo, um sistema educativo que ofe-
reça as melhores condições de ensino, pois é a própria trans-
formação social que deve, em definitivo, privar as Igrejas
de sua credibilidade.
O PROJETO
DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA

Quando nos aventuramos em definir as estruturas de


uma nova organização social, há dois obstáculos que deve-
mos evitar: ser demasiado vago e demasiado preciso!
Ser demasiado vago, é fechar as portas do futuro afas-
tando de nós aqueles que exigem (e é pefeitamente compre-
ensível) precisões antes de engajar-se. É condenar-se ao imo-
bilismo, à estagnação e a ser, em definitivo, apenas uma seita
sem importância, cuja única atividade limita-se à verborra-
gia, à negação, à agitação estéril.
Ser demasiado preciso, é engajar de modo imprudente
o futuro, um futuro incessantemente mutável. É arriscar
encerrar a vida social num esquema predeterminado, o que
não deixaria de degenerar rapidamente num dogmatismo
estreito e liberticida.
Entre esses dois pólos, tentaremos encontrar uma justa
medida expondo as grandes linhas do que poderia ser uma
sociedade anarquista, sem pretender dar todas as respostas.

• O federalismo libertário,
algumas considerações gerais

O Federalismo libertário contra o Estado

Quando evocamos o federalismo, a maioria das pes-


38 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

soas pensa imediatamente em países como os Estados


Unidos da América ou a Suíça. De início, ele é apenas uma
variedade de governo e não parece absolutamente revolu-
cionário. Entretanto, tendo em vista que o federalismo sig-
nifica aliança, tomar essa palavra ao pé da letra para aplicá-
la ao conjunto da vida social, política e econômica, é colocar
de antemão uma crítica radical ao capitalismo e ao Estado.
Economicamente, não pode existir verdadeira aliança
senão entre indivíduos iguais.
Politicamente, o federalismo libertário condena toda po-
tência militar e toda instituição policial; ele é inimigo do
centralismo que conduz à subjugação. Quem diz poder cen-
tral diz tutelamento, vigilância, comando, ditadura!
Observemos, de passagem, que as políticas de descentrali-
zação e regionalização não tornam o Estado mais simpático:
se ele aprendeu a delegar responsabilidades a instâncias
territoriais, nem por isso tornou-se mais justo. Foram ape-
nas os métodos de opressão que mudaram!
Federar, de um ponto de vista anarquista, é criar fede-
rações em todos os níveis, generalizando o princípio da
livre associação. Trata-se de coordenar sistemas autoge-
ridos, pequenas coletividades em reagrupamentos os mais
vastos, e não aglomerar instituições organizadas sobre um
modo autoritário!

O Federalismo libertário, a noção de responsabi-


lidade e de contrato

O federalismo libertário quer cimentar a sociedade por


um laço social cujo elemento essencial é a adesão a projetos
e obras comuns. É uma nova concepção do contrato social,
sobre a base do voluntariado e não da coerção.
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 39

A sociedade libertária bane, contudo, toda forma de


constrangimento? Não, visto que explicamos no parágrafo
relativo à liberdade que celebrar um contrato significa saber
assumir engajamentos e respeitá-los. Sem querer refazer
aqui grandes teorias sociológicas, mas para evitar desgar-
rar-se num otimismo idealista, é importante levar em consi-
deração realidades simples. O ser humano não é natural-
mente mais disposto ao apoio mútuo do que à dominação
(em relação a isso, ele não tem natureza) e parece-nos incon-
testável que os indivíduos transformam efetivamente, por
suas ações, as estruturas sociais, e que essas estruturas
sociais agem por sua vez sobre os indivíduos, criando con-
textos, condicionando os hábitos, determinando as possibi-
lidades de ação. É o que se denomina em outros termos,
uma relação interativa.
Não se pode, então, conceber o indivíduo como um ator
todo-poderoso de sua vida e, partindo dessa idéia, estamos
convencidos de que uma sociedade anarquista, como qual-
quer outra sociedade, não poderia funcionar unicamente
pela boa vontade de seus membros. São os próprios modos
de organização que devem acarretar comportamentos liber-
tários, individuais e coletivos.
O contrato federativo comporta, assim, um aspecto
incitativo e um aspecto constrangedor. Para precisar nosso
pensamento e tomar o exemplo do trabalho, é justamente
por uma nova organização deste último que poderá manter-
se a motivação, o interesse que se dá a seu trabalho. Desde
o instante em que somos postos em medida de nos reapro-
priarmos de nossa atividade profissional, onde não somos
mais peões, engrenagens, executantes, mas atores de um
sistema que produz para todos, muito raros são aqueles
que não se interessam por nada. Quando trabalharmos para
40 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

nós e não mais para enriquecer patrões, nós nos daremos


conta bem rápido de que a preguiça natural e anti-social
era apenas um mito inventado pelos dominadores para justi-
ficar suas posições. Por sinal, o constrangimento do pacto
federativo é um constrangimento livremente consentido e
igualitariamente negociado. Para se compreender bem, não
se trata da coação exercida por um chefe. São as regras,
estabelecidas pelas diferentes partes, que são constran-
gedoras: respeitar horários, conduzir até o fim o projeto
que foi decidido coletivamente. É o constrangimento que
decorre infalivelmente da associação... No discurso dos par-
tidários da Autoridade, é ,de início e antes de tudo, a relação
de submissão que leva a grande massa dos indivíduos a
trabalhar. A motivação aparece aí como uma noção subsidiá-
ria, um simples plus: se é preciso motivar o assalariado, é
para que ele seja mais rentável. Para nós, as coisas não se
colocam absolutamente nesses termos. É o constrangimento
(tal como o definimos precedentemente) que é um comple-
mento à motivação quando esta falta. E conhecemos bem
esse fenômeno nas associações ou nas organizações mili-
tantes, quando o caráter desagradável de certas tarefas
acabam por vencer o entusiasmo dos primeiros tempos.
Todavia, visto que o constrangimento do contrato federativo
não pode ser o motor da motivação, ele também não pode
“substituí-la”: quando um de nós não está mais motivado
pelo que faz, não podemos nos contentar em lembrar-lhe
seus engajamentos. Devemos nos preocupar imediatamente
para encontrar soluções para reorganizar sua atividade a
fim de que ela volte a ser gratificante.
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 41

Uma organização social sem moeda

A questão do laço social, da responsabilização e do


constrangimento leva-nos a tornar a falar da moeda. A idéia
segundo a qual o dinheiro é um fenômeno insuperável está
fortemente ancorada nos espíritos e torna muito difícil sua
contestação. Os argumentos a favor da manutenção da
moeda articulam-se em torno de três eixos principais:
• Para poder gerir a sociedade, dizem-nos, é necessário
avaliar os produtos, as ações econômicas, estabelecer orça-
mentos, estimar investimentos, calcular o valor das coisas
a serem trocadas.
• A moeda é, inclusive, considerada um instrumento
da justiça social; se não há moeda, como veremos que um
indivíduo toma mais do que a sua parte da riqueza coletiva?
• E, cúmulo supremo da alienação, a moeda vai inclu-
sive veicular uma imagem de liberdade: se não é mais possí-
vel vender os frutos de seu trabalho, como o pintor poderá
viver, porquanto seus quadros, é o caso de dizê-lo, não terão
mais preços? Como o escritor poderá vender suas obras?
Como o músico poderá receber por seus concertos etc.? Em
resumo, poder ganhar dinheiro parece ser a garantia da
independência...
Na realidade, vimos qual era a função real da moeda,
e sabemos o que vale a liberdade no sistema monetário: nada
ou muito pouco! Concretamente, responder a essas interro-
gações é propor, como tentamos fazer aqui, um modo de
funcionamento global da sociedade, que integraria, em suas
múltiplas facetas, a ausência de moeda.
Afirmamos (e insistimos nessa questão, pois, amiúde
nos perguntaram sobre isso) que as atividades culturais,
longe de serem prejudicadas pela supressão da moeda, serão,
42 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

ao contrário, decuplicadas. Tudo de que necessitam os indi-


víduos são as possibilidades materiais para exprimir-se; e
a verdadeira criação, aquela que anima a paixão, desdenha
das perspectivas de lucros! É cada um de nós que, graças a
uma redução maciça da jornada de trabalho, terá a possi-
bilidade de cultivar-se, pintar, escrever, fazer teatro, dar
concertos; liberado da lógica do lucro e do vedetismo (essa
elite talentosa ou considerada como tal), a arte, produção
social fundamental, será muito mais popular e autêntica.
Afirmaremos igualmente, no transcurso deste texto, a
possibilidade de organizar o trabalho, coordenar as relações
entre as federações, estabelecer projetos e objetivos de
produção, criar um laço entre o trabalho e o consumo, sem
intermédio desse utensílio mercantil que é a moeda.

• A organização federal anarquista

Antes de tudo, devemos nos perguntar quais funções


sociais devem ser organizadas, e, correndo o risco de esque-
matizar, iremos repertoriar algumas grandes categorias.
Temos:
• A definição dos grandes objetivos de produção, em
função das necessidades recenseadas.
• O funcionamento interno das unidades de produção:
fábricas, explorações agrícolas, organismos de serviços para
as indústrias, as coletividades e os particulares.
• A coordenação dessas unidades em vastas redes, visto
que elas não podem existir independentemente umas das
outras: é preciso que elas disponham dos instrumentos, dos
produtos, dos prédios e das infra-estruturas (estradas, fer-
rovias e aeroportos...) condicionando seu bom funcionamento.
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 43

• A repartição dos bens de consumo, das moradias...


• Os serviços de saúde, de segurança civil, de trans-
portes públicos...
• As estruturas de educação e formação e mais ampla-
mente tudo o que se reporta à transmissão da informação
e dos saberes.
• Resta, enfim, regular conflitos de todos os tipos, seja
entre dois indivíduos, seja entre um indivíduo e um grupo
ou entre duas federações, entre comunas ou regiões...
Iremos agora definir de que modo se estabeleceriam as
federações para desempenhar essas funções organizadoras,
quais seriam as suas relações; depois, explicaremos o que
poderiam ser a autogestão generalizada da produção e a
organização da repartição. Terminaremos pelas questões
da educação, da informação e da gestão dos conflitos.

O federalismo libertário: uma dupla dimensão

Se observarmos a vida social, podemos constatar que,


de um lado, vivemos todos e todas em lugares: uma cidade,
uma região; por outro lado, exercemos atividades especí-
ficas: nosso ofício, nossos estudos, nossa arte, e, num plano
mais lúdico, nossos lazeres.
O federalismo deve integrar essa dupla dimensão: insti-
tuiríamos, num plano geográfico, federações comunais, re-
gionais, em seguida, intercomunais e inter-regionais, e, pa-
ralelamente a essas coletividades, existiriam federações de
trabalhadores, por ramo profissional, por ofício, por tipo de
produção e serviço. Para ser ainda mais concreto, haveria
federações da construção civil, da construção metalúrgica,
da indústria eletrotécnica e da mecânica, da eletrônica e da
informática, da agricultura e do agro-alimentos, dos trans-
44 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

portes, dos serviços (limpeza, vigilância técnica para a se-


gurança das instalações, conselho e engenharia).
Devemos igualmente contar com as múltiplas asso-
ciações particulares que completariam a arquitetura da so-
ciedade e que seriam atrizes insubstituíveis do movimento
social e da convivialidade (não podemos, com efeito, ima-
ginar uma sociedade que não seja feita de “instituições”
bem azeitadas!).

A cooperação entre as federações

Esse duplo federalismo não deve, contudo, permitir pen-


sar que haveria uma fronteira clara e estanque entre as
federações de comunas e as federações de trabalhadores.
Elas estariam, ao contrário, e pela força das coisas, estrei-
tamente imbricadas.
Se uma federação de produção tenciona criar uma nova
unidade, ela não pode decidir sozinha o local da instalação.
Essa escolha também diz respeito à Comuna e à Região,
mesmo que fosse só para garantir a melhor adaptação das
infra-estruturas de estradas e ferrovias. Essas federações
terão ainda muito mais a dizer se se tratar de uma fábrica
que represente riscos elevados de poluição e acidentes. Do
mesmo modo, as federações da formação profissional deve-
rão cooperar estreitamente com as federações de trabalha-
dores, bem como com as federações de Comunas, para deci-
dir os estágios a aplicar. As federações da construção civil
referir-se-ão às Comunas que conhecerão, melhor do que
qualquer outro organismo de estatísticas, as demandas em
moradias. Os transportes públicos, ou os organismos de
saúde, sempre planificarão suas implantações e seu desen-
volvimento segundo as informações que lhes serão trans-
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 45

mitidas pelas diversas federações concernidas pela aplicação


desses projetos (sobre as capacidades técnicas disponíveis
e as necessidades sociais).
No que concerne à organização da repartição dos bens,
ela seria assumida por federações de consumidores criadas
no seio das comunas. As federações de trabalhadores entre-
gariam os produtos a organismos comunais que geririam
uma rede de depósitos, autogeridos pelos habitantes, pelos
bairros, cidades etc. Isso porque, se trabalhadores dedicam-
se a assegurar o funcionamento cotidiano dessas estrutu-
ras, sua particularidade seria a de ser controladas direta-
mente pelos indivíduos que se inscrevessem nessa tarefa.
Esses dois tipos de federação, produção e consumo, esta-
riam em constante relação, a fim de garantir a adequação
entre a oferta e a procura.

O papel das Comunas e das Regiões numa so-


ciedade anarquista

O federalismo comunal merece que nele nos detenha-


mos um instante, pois ele deve ser, segundo nosso ponto
de vista, relativizado.
Nesse início de século XXI, e para as sociedades indus-
trializadas, seria absurdo conceber uma organização social
tendo por base exclusivamente entidades geográficas.
A produção e a distribuição organizam-se em redes
numa escala mundial; com o crescimento das possibilidades
de comunicação e transporte, os indivíduos não limitam mais
sua socialização a um bairro ou a uma cidade. Tanto melhor:
se alguns se aprazem a deplorar o fim das vidas de bairro
nós não lamentaremos o espírito provinciano que era seu
corolário. Isso posto, a comuna, numa sociedade libertária,
46 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

continuaria a ser indispensável para todas as atividades


sociais de proximidade. Em constante colaboração com ou-
tras comunas e federações de trabalhadores, os habitantes
poderão ali decidir planos de planejamento do espaço (urba-
nismo). É ali que se coordenariam a gestão das federações
de consumidores, a das estruturas educativas, dos organis-
mos de informação e dos serviços coletivos tais como os do
equipamento sanitário, da limpeza e manutenção de calça-
das e ruas, da segurança civil (prevenção contra os riscos
de incêndios e riscos industriais...). É nas comunas que
poderiam se criar organismos encarregados da repartição
e da manutenção do conjunto de moradias, sob forma de
administrações de bairros. Será necessário, além disso, coor-
denar as relações entre as comunas, e isso em nível mun-
dial, a fim de evitar que uma região, naturalmente mais rica
que uma outra, outorgue-se privilégios e com a finalidade
de regular os problemas de escolha de produção que possam
ocorrer entre diferentes regiões do mundo.
No plano político, as comunas e suas federações são
chamadas a ser locais de debates por intermédio de fóruns
locais, abertos a todos, sem distinção (reflexões sobre os
problemas encontrados, expressão das críticas e das propo-
sições, elaboração de projetos...)

• A autogestão generalizada da produção

O federalismo libertário não pode existir sem a autoges-


tão, que é o controle, concreto e cotidiano, pelos indivíduos
e pelas coletividades de indivíduos, da vida social, econô-
mica, política e cultural.
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 47

Autogestão e mandatos

Nesse sistema, no qual não há nem economia de mer-


cado, nem planificação autoritária, é a população que decide
e valida as grandes orientações, durante as assembléias das
Federações, das reuniões de Comunas, de Regiões etc..
Como é impossível que todo mundo se ocupe de tudo, indiví-
duos são mandatados para coordenar o processo de aplica-
ção das políticas assim definidas, e equipes são encarrega-
das de estudar e preparar esses projetos, manter as relações
entre as federações e fazer circular a informação. Se os man-
datados tomam iniciativas, eles o fazem no estrito âmbito
de seus mandatos; eles não têm poder decisional propria-
mente dito. Não dispõem de qualquer meio coercitivo para
impor essas decisões e podem ser destituídos a qualquer
momento se não respeitarem suas obrigações.

Autogestão e propriedade

As unidades e redes de produção não pertenceriam a


qualquer grupo em particular. É o conjunto da coletividade
humana que as possuiriam. As federações, os indivíduos
iguais que as compõem, teriam a sua gestão. Elas decidiriam
construir tal fábrica, lançar tal tipo de fabricação ou serviço,
transformar um sítio industrial ou abandoná-lo; coordena-
riam a circulação e a utilização das matérias-primas e das
máquinas. Mas elas não seriam “proprietárias” dos meios
de produção, no sentido em que não poderiam deles dispor
para proceder a transações para o exclusivo benefício de
seus membros. Em nossa idéia, as federações não são cor-
porações nem cartéis econômicos. Cada federação integra-
se numa política cujo primeiro objetivo é a satisfação das
48 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

necessidades de todos. Elas são apenas instrumentos dessa


política global e coletiva.

A autogestão e o estatuto do trabalhador

A autogestão implica um estatuto radicalmente novo


para os trabalhadores. Não seríamos mais assalariados de
tal ou qual empresa capitalista, sob às ordens de um patrão
e de seus diretores, gerentes e outros chefetes. Seríamos
aderentes de federações, trabalhadores federados, simples-
mente!
Tomaríamos parte na vida de nossa federação, assisti-
ríamos a diversas reuniões para decidir quanto à organiza-
ção de nosso trabalho, para regular os conflitos (que surgem
inevitavelmente em qualquer grupo), para fazer balanços
de atividade ou para formular proposições.
O contrato que passaríamos com nossa federação (con-
cernindo à jornada de trabalho, a ocupação de um cargo
definido etc.) seria, então, um autêntico contrato: estabele-
cido em igualdade com os outros e não ditado por um “em-
presário” sob a ameaça do desemprego!
Aqui, ainda, devemos precisar que não decidiríamos uni-
lateralmente quanto às nossas orientações profissionais.
Como já dissemos, nossa liberdade é forçosamente uma liber-
dade social e nunca se pode esperar fazer exatamente o que
nos apraz, sem nos preocuparmos com os problemas coleti-
vos. Se, por exemplo, em função de fenômenos de qualquer
tipo relativos a tais ou quais ofícios, federações têm um
elevado efetivo de trabalhadores, será necessário que elas
adotem medidas, sobretudo se outros ramos têm dificuldade
para encontrar novos aderentes! E se a ocasião se apre-
senta, seria tomada a decisão, após acordo entre as federa-
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 49

ções, de bloquear, por um tempo, as adesões em certos campos


profissionais. De todo modo, de nada serviria que 300.000 in-
divíduos exercessem uma ocupação na informática se 200.000
fossem suficientes para realizar os objetivos de produção.

Autogestão e emprego

Se falar de emprego talvez lembre em demasia a orga-


nização atual do salariado, nós o retomamos no sentido
em que os indivíduos teriam essa garantia de poder dedicar-
se a exercer um ofício.
Sem ter qualquer coação econômica empurrando as
federações a uma cega lógica de rentabilidade a curto termo,
elas teriam toda a liberdade para ajustar constantemente
a organização do trabalho às variações da população ativa
(as pessoas em idade de trabalhar) e aquelas da produtivi-
dade (a eficácia que os progressos tecnológicos conferem
ao trabalho).
Os trabalhadores seriam os únicos juízes da duração
da jornada de trabalho a efetuar, e organismos de formação
tomariam as iniciativas adequadas para tornar possível
todas as “reestruturações” (quando hoje, conseguir um
estágio “sério”, diz respeito ao percurso do combatente!).

Autogestão e rotatividade das tarefas

A não-divisão do trabalho é a condição sine qua non


da igualdade social e política. Amiúde, ouvimos a seguinte
objeção: “Quem vai reivindicar em prioridade trabalhar em
canteiros de obras, descarregar caminhões, fazer a limpeza
industrial, se puder escolher ocupar uma função de dese-
nhista, médico, arquiteto ou conselheiro técnico?... Vocês
50 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

não encontrarão ninguém e o sistema paralisará...” Este


argumento subentende duas questões diferentes: um tra-
balho seria recusado porque é demasiado penoso ou porque
ele não é bastante (ou absolutamente) valorizado.
À primeira questão, responderemos que não é tolerável
que indivíduos permaneçam, por toda a sua vida, em traba-
lhos braçais, em tarefas repetitivas, enquanto outros reser-
vam-se os trabalhos mais agradáveis, mais variados, menos
fatigantes, caso contrário, de nada adiantaria falar de igual-
dade.
Quanto à segunda questão, ela reflete muito bem a
alienação de nossa época! É, com efeito, o sistema capita-
lista e meritocrático que atribui a certas tarefas um caráter
subalterno enquanto outros são socialmente sobrevaloriza-
dos. Na realidade, bem sabemos que nenhum trabalho é
mais estúpido que outro, pois a varredura das calçadas é
tão indispensável quanto a engenharia industrial. É uma
razão a mais para mostrar que a objeção não se sustenta,
pois, num sistema no qual todos os trabalhos fossem igual-
mente considerados, não haveria mais essa corrida ao pres-
tígio que hoje conhecemos.
Poderíamos, enfim, nos perguntar se a aplicação da
rotatividade das tarefas não provoca problemas insuperá-
veis. Se a concebermos de maneira simplista, pensando que
um indivíduo deve exercer todos os ofícios, ao menos uma
vez, ela é uma utopia irrealizável. Felizmente, neste nível,
todas as adaptações são possíveis: de um lado, a rotativi-
dade pode operar-se em meses ou anos, se a função exige
uma longa aprendizagem e uma grande experiência; por
outro, ela não é um objetivo em si mesmo. Não iríamos
manter uma contabilidade, em meses ou em horas, com
tabelas para cada trabalho, do que fazem os outros! Ainda
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 51

que levando em conta os constrangimentos, os imperativos


particulares ligados aos diferentes ofícios, o essencial será
que cada um assuma globalmente sua parte de trabalhos
penosos (segundo, evidentemente, suas capacidades físi-
cas). Nada impediria um engenheiro ou um professor deixar
periodicamente seu trabalho teórico para participar dos tra-
balhos de limpeza e manutenção ou de construções! Nada
impediria que os indivíduos partilhassem sua semana, seu
mês ou seu ano entre dois empregos, um mais agradável e
o outro mais monótono. Parece-nos que há aqui uma ques-
tão ética incontornável.

• A organização da repartição

O laço entre o trabalho e o consumo

Pensamos que o fato de dever trabalhar para poder


consumir é algo óbvio. Se, na sociedade atual, todas as va-
riantes de recusa do trabalho (absenteísmo ou desemprego
voluntário) são totalmente legítimos, como manifestação
de uma resistência à exploração, reafirmamos, uma vez
mais, que não somos contra o trabalho, mas contra o modo
como ele é organizado pelos capitalistas.
Falávamos no parágrafo relativo à responsabilidade e
à motivação: numa sociedade na qual teríamos a liberdade
de controlar nosso trabalho, fazê-lo para nõs tanto quanto
para os outros, seria surpreendente que a “preguiça” assu-
misse uma amplitude tal que devêssemos nos proteger dela.
Todavia, devemos considerar casos desse tipo.
Imaginemos que, no seio de nossa comuna, um de nós
recuse dedicar-se a algo, ou que se inscreva num coletivo
52 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

de trabalhadores e que falte regularmente em seu posto,


ou que passe suas jornadas de trabalho completamente
alheio ao bom encaminhamento do coletivo. Pois bem, após
ter tentado tudo para compreender por que isso ocorre, para
propor-lhe outros acordos, e se essas tentativas revelam-
se infrutuosas, ele deverá assumir sua “má vontade”. Nós
lhe diríamos para ir procurar uma outra comuna, um outro
coletivo de trabalho que o aceite!
Enfim, se grupos de indivíduos não quiserem trabalhar
no âmbito das federações da sociedade anarquista, porque
recusam, por exemplo, a industrialização (a exemplo de al-
guns ecologistas de hoje), eles serão evidentemente livres
para viver como bem o desejarem. Se quiserem reagrupar-
se para viver em comunidade autônoma, por que não? Se
quiserem viver em autarcia na miséria material, privando-
se do que proporciona o progresso tecnológico, isso é as-
sunto deles e só a eles concerne.

A regulação do consumo

Fizeram-nos a pergunta dezenas de vezes: na ausência


do dinheiro, e se os indivíduos não são mais obrigados a
gerir um orçamento, como evitar que os produtos mais ra-
ros, mais belos, mais novos, sejam tomados de assalto? Se,
num depósito, põe-se em auto-serviço todos os cd’s do esto-
que, poderia ser, de fato, que os primeiros não deixassem
nada para os outros (conquanto uma sociedade libertária,
em que há engajamento de responsabilidade, incitar-nos-
ia sem dúvida a adotar comportamentos radicalmente dife-
rentes). As federações de consumidores podem facilmente
encontrar métodos para regular o acesso dos produtos a seus
aderentes. Os sistemas de empréstimo e encomenda já não
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 53

existe em nossa sociedade? Nada impediria de generalizá-los.


Todas as novidades (em materiais audiovisuais, informá-
ticos etc.) poderiam, num primeiro momento, ser colocados
em sistema de empréstimo, a fim de poder servir sucessiva-
mente a inúmeros indivíduos, no aguardo de sua fabricação
em larga escala. Todos os pedidos particulares de produtos
mais ou menos específicos, poderiam gerar reservas. No que
concerne à alimentação, não seria absolutamente difícil pre-
ver uma distribuição comedida e controlada dos gêneros
raros. As federações de consumidores encarregariam os tra-
balhadores dos depósitos para vigiar a fim de que ninguém
abusasse: se tal ou qual indivíduo se servisse todas as
vezes dos melhores produtos, o papel dos permanentes seria
de opor-lhe uma recusa e discutir com ele, e, inclusive, apre-
sentar o problema durante uma assembléia geral do orga-
nismo se a situação se tornasse conflituosa. Mas chegar a
tais extremismos seria certamente algo muito raro.
A moradia apresenta sem dúvida problemas mais com-
plexos. Duas questões devem ser abordadas: a da proprie-
dade e a da repartição propriamente dita. Hostil à proprie-
dade privada dos meios de produção, somos a favor da pro-
priedade de uso. Isso quer dizer que um indivíduo é consi-
derado proprietário de bens quando os utiliza para si
mesmo. Assim, sua moradia torna-se uma propriedade ina-
lienável. Enquanto ele morar nela, ninguém pode tomar-
lhe sem seu consentimento e por qualquer motivo que seja.
O princípio da acumulação do patrimônio pela herança
desaparece. Em contrapartida, sempre existiria a possibi-
lidade de deixar, ainda em vida, uma moradia às pessoas
de sua escolha, sob a condição que elas a arrumassem.
Em seguida, a obra construtiva da revolução será jul-
gada pela capacidade de fornecer a todo indivíduo, a toda
54 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

família, uma moradia dispondo de todo conforto tecnica-


mente possível. Nas zonas urbanas, deveremos repensar
inteiramente a ocupação dos solos. Os bairros residenciais
e as cidades H.L.M.,4 manifestação gritante da injustiça so-
cial, deverão desaparecer materialmente para a reconstru-
ção de moradias, coletivas ou individuais, com a constante
preocupação da igualdade. O que não excluiria, ao contrá-
rio, planos de urbanismo diversificados e originais, após
terem sido objeto de debates públicos no seio das Comunas.
Todavia, vocês poderão nos perguntar como as Comunas
irão gerir a repartição das residências individuais e dos apar-
tamentos em habitação coletiva? Uma vez mais, devemos
ordenar as coisas: é a demanda que deve comandar a pro-
dução. Tomemos um exemplo: se o conjunto da população
manifesta o desejo de um loteamento individual, então, a
idéia da habitação coletiva deverá pura e simplesmente ser
abandonada! Tudo dependerá das necessidades e dos dese-
jos exprimidos pelos habitantes, e, durante o período em
que ocorrerá essa transformação, as Comunas repartirão
provisoriamente, pela negociação, o conjunto de moradias
disponíveis. Quanto às residências mais luxuosas, as Co-
munas poderiam decidir socializá-las e transformá-las em
residências de vilegiatura, de saúde, locais de vida etc. To-
das as soluções são uma vez mais imagináveis.

• A educação libertária

Falando da educação após a produção e a repartição,


não gostaríamos de permitir crer que a consideramos menos

4
HLM: Habitation à Loyer Modéré. Habitações populares. (N.T.)
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 55

importante. A educação continuamente suscitou um fortís-


simo interesse por parte dos anarquistas, conscientes de que
a personalidade do indivíduo, sua psicologia e seu senso
ético começam a modelar-se nos primeiros anos de sua vida.
Definiremos a educação libertária em alguns grandes pon-
tos.
Inscrita na igualdade de uma sociedade sem classes, a
educação deve ser organizada para dar a cada um as mes-
mas possibilidades de acesso ao saber e em todos os campos.
No âmbito da recusa da divisão do trabalho manual/intelec-
tual, devemos ser sensibilizados e incitados muito cedo a
todas as formas de atividades sociais e econômicas, das mais
simples às mais complexas.
A educação libertária rejeita o doutrinamento. Não é
aplicando um discurso “anarquista” a “alunos”, ou seja,
empregando métodos contrários a nossos fins, que as crian-
ças e os adolescentes aprenderão a pensar livremente. O
sistema educativo de uma sociedade anarquista dar-lhes-á
os meios intelectuais de sua autonomia desenvolvendo ao
máximo seu senso crítico.
Disso decorre que a escola libertária será pública e
laica. Não uma laicidade de Estado, mas uma laicidade ga-
rantidora de uma liberdade de iniciativa em todos os sen-
tidos. Se a educação não pode ser deixada a cargo de reli-
giosos ou seitas, a escola deve ser um espaço no qual se
estuda e se debate sobre todas as questões, onde se aprende
a refletir e a argumentar, a construir suas idéias pessoais.
Porquanto não será permitido que professores ensinem uma
religião (ou ensinem o fascismo), os programas serão conce-
bidos para examinar cuidadosamente os discursos teológi-
cos e ideológicos a fim de compreender tudo o que a eles se
refere. Um debate aberto para a sociedade integra forçosa-
56 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

mente a integralidade das interrogações filosóficas, cientí-


ficas e políticas.
O acesso ao saber não deve ser limitado a uma faixa
etária: todo adulto deve poder escolher tempos de estudos,
a duração desses períodos sendo fixada pelas Federações
da Educação (em função de seus meios).
A organização dos sistemas educativos deve associar
os trabalhadores da educação, os jovens e, em certa medida,
os pais. Evidentemente, não podemos pressagiar aqui o
que seriam as relações pais-filhos numa sociedade libertá-
ria. A emancipação dos jovens das tutelas parentais impli-
caria que eles assumem o mais cedo possível sua indepen-
dência. Segundo nosso pensamento, a socialização dos indi-
víduos não passa forçosamente pela família, mesmo a famí-
lia não-autoritária. Se toda criança necessita de referências,
referenciais, a instauração de uma sociedade libertária
obriga a uma nova reflexão sobre a “autoridade parental”.

• A informação

A informação, numa sociedade autogestionária, teria


uma importância capital. Ser informado é a primeira condi-
ção para que as populações operem escolhas políticas em
todo conhecimento de causa. Hoje, a mídia fornece-nos fatos
de atualidade, mas as informações sobre a gestão das em-
presas não são acessíveis. As contabilidades públicas são,
por sua complexidade, inutilizáveis pelo comum dos mortais!
O sistema atual de dominância tem, por sinal, interesse
em aumentar essa complexidade para justificar a existência
de uma elite que “sabe” (ou finge saber) o que se esconde
por trás dos múltiplos gráficos e equações econômicas!
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 57

Devemos distinguir dois tipos de informações: as infor-


mações de caráter profissional e aquelas relativas às atuali-
dades políticas, culturais etc..
As Federações informariam a seus aderentes e à popu-
lação o balanço de suas atividades. Elas prestariam contas
de seus problemas, das diferentes inovações tecnológicas,
dos novos investimentos projetados (em meios técnicos e
humanos) ou das relações que elas mantêm. Apresentariam
aos consumidores os produtos fabricados, seu modo de difu-
são, sua qualidade etc. (o que substituiria a publicidade mer-
cantil, que desinforma o público mais do que o informa).
A mídia do audiovisual, do rádio e da imprensa escrita
serão obra de comunas, regiões, reagrupamentos particula-
res, segundo todas as afinidades possíveis. Tendo em vista
a ausência de dinheiro, a mídia da imprensa escrita não
poderá vender suas publicações. Estas últimas serão forço-
samente gratuitas. Mas, então, perguntar-nos-ão, se não
há mais a sanção do mercado, como serão determinadas
as quantidades de tiragens? É, uma vez mais, a demanda
exprimida pelos indivíduos (e retransmitida pelas Comunas)
ou pelas estatísticas sobre o escoamento dos exemplares
nos depósitos de distribuição, que fornecerão as indicações
necessárias aos organismos editores. Eles terão por missão
imprimir um conjunto de títulos, nas proporções definidas
pelas comunas. Se não puderem publicar todos os títulos,
engajar-se-ão em fornecer os materiais e as matérias-primas
para que as associações tenham os meios de se auto-editar
(a repartição dos meios técnicos será evidentemente feita
na medida das possibilidades, dos estoques de papel dispo-
níveis). Em fim de contas, o único limite à edição será físico:
as quantidades de papel e a capacidade produtiva das gráfi-
cas. E as pequenas associações ali encontrarão uma imensa
58 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

vantagem pois não mais serão desfavorecidas pelo sacro-


santo limite de autofinanciamento. No audiovisual, o obje-
tivo também será garantir uma produção muito diversificada.
Isso não exclui a existência de grandes canais, organizados
como as outras estruturas sociais, tendo por base a auto-
gestão, com uma parte das emissões concebidas e animadas
por profissionais. Com efeito, os ofícios da animação e do
jornalismo não serão improvisados, ao menos se se quiser
conservar uma certa exigência de qualidade. Como na im-
prensa, as federações dos ofícios do audiovisual disponibili-
zarão os meios adequados aos grupamentos associativos.

• A gestão dos conflitos

A sociedade libertária não seria uma sociedade “ideal”,


sem conflitos, e esses conflitos não teriam todos a mesma
envergadura e a mesma gravidade.
Os conflitos no seio de um coletivo de trabalho ou de
uma federação não apresentam problemas particulares:
cabe aos trabalhadores desses coletivos estabelecerem suas
regras de funcionamento. O contrato, em caso de não-res-
peito das cláusulas, pode ser rompido. Cada indivíduo e
grupo de indivíduos é livre para se posicionar em outros
coletivos de trabalho se problemas de incompatibilidades
de humores revelam-se insolúveis. As divergências entre
duas federações (sobre um plano de trabalho, sobre entre-
gas, sobre uma ocupação dos solos...) podem ser resolvidas
pela negociação. Se necessário, as duas federações apela-
riam para uma comissão interfederal de conciliação.
A democracia direta pela via do sufrágio pode ser prati-
cada desde que os objetivos ligados a escolhas de gestão
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 59

não suscitem oposição política real e desde que a unanimi-


dade não seja necessária à coesão social. Não haveria motivo
para discutir por meses para decidir se tal rua vai ser fechada
para a circulação de automóveis, se um bairro deve ser re-
novado ou se se deve, na unidade de produção em que se
trabalha, reorganizar postos de trabalho! Do mesmo modo,
a ausência de unanimidade entre federações regionais não
deve bloquear durante anos a construção de uma rodovia.
Após informação e debate, essas questões podem ser resol-
vidas por voto dos mandatados federais ou referendo.
Além disso, os procedimentos de voto poderiam variar
segundo a importância relativa dos problemas. Para as deci-
sões de menor importância, a maioria simples seria sufi-
ciente. Em outros casos (por exemplo: o deslocamento de
uma unidade de produção acarretando uma reorganização
da atividade profissional para os trabalhadores dessa uni-
dade) poder-se-ia aplicar a maioria de três quartos ou de
dois terços; tantas modalidades devendo ser definidas pelas
Federações.
Conflitos mais sérios, de ordem política, podem surgir.
Seria o caso de divergências dizendo respeito à escolha de
sociedade. Tomemos um caso teórico: a questão da produção
e da circulação automobilística. Seria, evidentemente, do
interesse de todos desenvolver ao máximo os transportes
coletivos, mais econômicos em energia e mais inteligentes
por serem mais racionais. Todavia, não é difícil imaginar
desacordos com relação a esse ponto. Alguns seriam radical-
mente contra o automóvel, em nome de um antiproduti-
vismo retrógrado, enquanto outros seriam partidários de
conservar uma importante produção de veículos e confor-
táveis infra-estruturas de estradas e, sobretudo, de auto-
estradas. Como resolver a questão quando um problema
60 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

desse tipo pode produzir inclusive confrontos? E quando


vemos a determinação de uma parcela de nossos ecologistas
de hoje, não podemos duvidar de que a questão das auto-
estradas, que para nós não justificaria, no fundo, qualquer
“dramatização”, seria levada muito a sério! Não há aqui
remédios miraculosos: que a maioria imponha sua escolha
à minoria ou que esta última possa opor um direito de veto,
em ambos os casos, uma parte da população faz-se lesar. A
única solução permanece a busca maximal do consenso:
isso passa por uma completa informação dos indivíduos
sobre os assuntos em questão, debates, uma disposição das
federações para a diplomacia. Podemos, com efeito, pensar
que, consagrando a isso o tempo necessário, uma solução
de compromisso poderia ser encontrada.
Isso posto, não esqueçamos que nenhum modo de to-
mada de decisão pode conciliar escolhas que não são con-
ciliáveis, e tornar inútil o militantismo de oposição. O impor-
tante é que essas oposições exprimam-se por argumentos
e não pela violência física.
Poderíamos ter tomado exemplos mais sérios: coletivi-
dades religiosas poderiam reivindicar o controle sobre a
educação de suas crianças. Outros reacionários poderiam
lutar em favor de um retorno à antiga ordem, ao autorita-
rismo, à economia de mercado. Diante dessas contestações,
não devemos empregar nem a repressão, nem a censura;
como o sistema libertário será julgado por suas ações con-
vincentes, será preciso fazer com que ele funcione suficien-
temente bem para cortar esses movimentos de todas as ba-
ses sociais.
Em todo estado de causa, se o modo de resolução des-
ses conflitos em sociedade anarquista não pode ser perfeito,
a mais magnífica das vitórias seria a de ter acabado com a
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 61

barbárie guerreira, com esses governos e maquinações po-


lítico-militares que arregimentam as multidões para sinis-
tras farsas patrióticas e sanguinárias; e é essa possibilidade
que nos ofereceria uma sociedade liberta dos Estados, em
que as diferentes regiões do mundo seriam federadas numa
união mundialista e em que o desarmamento seria a regra.
Após esses conflitos de natureza coletiva, devemos
abordar aqueles de tipo inter-individual: as agressões, os
roubos, os crimes...
Para expor corretamente o problema, sabemos que a
delinqüência é, em sua quase integralidade, o resultado de
uma sociedade de desigualdade e da opressão.
Mais de 80% dos indivíduos condenados o foram por
razões econômicas: ladrões, escroques, dealers. O dinheiro
não é a causa do roubo mas ele o facilita em grande medida,
justamente porque não tem odor. Sem a moeda poderíamos
evitar toda incitação à fraude, à escroqueria, ao roubo. Sem
a frustração econômica gerada pelo modelo do consumo de
massa e a miséria, podemos supor, sem correr o risco de
sermos utópicos, que os atos de agressão e roubo por esses
motivos financeiros não mais existiriam.
Em contrapartida, nenhuma sociedade, por mais justa
e igualitária que seja, poderá erradicar completamente as
agressões sexuais ou os crimes passionais. Se não podemos
pensar que em sociedade anarquista tudo correrá às mil
maravilhas, podemos esperar reduzir drasticamente o nú-
mero das agressões e dos crimes desse tipo. Com efeito, as
relações entre os indivíduos não são independentes da orga-
nização social. Quando são afirmadas, e praticadas nos fa-
tos, a igualdade e a liberdade social, essas relações, hoje
baseadas em modelos de dominação, de posse e ciúme, mu-
dariam forçosamente de natureza. As mutações nas rela-
62 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

ções afetivas tocariam de início a velha instituição da fa-


mília: alguns gostariam, nesses anos de “crises”, de no-la
apresentar como a célula de base, o casulo primeiro, graças
ao qual o indivíduo se constrói! É, contudo, o inverso: a
família reduz o número dos referenciais do indivíduo, res-
tringe seu campo de socialização, inculca-lhe, enfim, desde
a mais tenra idade, as noções de obediência e, sobretudo, de
exclusividade, isto é, de fidelidade. Essa educação traduz-se
ulteriormente pelos sentimentos de ciúme e posse doentia.
Provocando uma revolução cultural, a revolução social mo-
dificaria profundamente os savoir-être (saber-ser).
Entretanto, face aos indivíduos, mesmo em número me-
nor, que representariam sempre um perigo para outrem, como
deveria proceder a sociedade anarquista? Não podemos acei-
tar nem a justiça “espontânea” das massas, com seus méto-
dos expeditivos — o linchamento do acusado — nem a insti-
tuição judiciária, supondo um aparelho de controle e uma
polícia. Pensamos que a organização social federativa deve,
também neste caso, dotar-se de estruturas autogestioná-
rias: caberão às comunas mandatar, não “juízes” todo-
poderosos, mas comissões encarregadas de investigar os
fatos, e, eventualmente, assegurar um acompanhamento
social de tal ou qual indivíduo reconhecido culpado. É ape-
nas se a pessoa não é mais responsável por seus atos que
a Comuna pode decidir colocá-la numa estrutura de cui-
dados. O essencial é, para não reproduzir os hospitais psi-
quiátricos e as prisões de nossa época, garantir um controle
coletivo e a total transparência dos procedimentos. Não ha-
veria mais julgamento definitivo, e cada ação de sanção
(cujo número seria, recordemo-lo, extremamente reduzido)
assumiria a forma de um questionamento sobre as causas
desses “desvios”. Isso porque a sociedade libertária não
O PROJETO DE UMA SOCIEDADE ANARQUISTA 63

poderia julgar sem se questionar: se um indivíduo foi vio-


lento contra a sua companheira ou seu filho, é que subsiste
uma frustração e que os modelos de relações afetivas entre
os indivíduos devem ser de novo o objeto de um debate
coletivo.
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA

O projeto que acabamos de expor dá um sentido à


nossa ação nas diferentes lutas que tentamos impulsionar.
Ele estrutura nossas primeiras recusas e propõe uma se-
qüência à nossa condenação dos sistemas de dominação.
Resta explicar o que é nossa prática revolucionária, que
formas de lutas devemos aplicar, quais são os meios a em-
pregar para alcançarmos nossos fins.

• A revolução

Os interesses dos exploradores sendo inconciliáveis


com aqueles dos explorados, os conflitos sociais são a per-
manente expressão da luta de classes, e a revolução é seu
possível resultado.
Não encaramos a revolução como uma grande noite.
Sabemos muito bem que nada se faz por magia de um dia
para o outro. A revolução é um longo processo. É no trans-
curso do desenvolvimento de um movimento social que ela
se constrói. Da dinâmica das lutas nascem novas tomadas
de consciência; das experiências e dos debates no seio desse
movimento emergem projetos de alternativas sociais.
É quando a relação de força entre exploradores e explo-
rados bascula em favor dos segundos que se produz a rup-
tura: quando os assalariados desencadeiam uma greve ge-
66 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

ral e começam a explorar os patrões, a fazer funcionar as


empresas e os serviços públicos para o coletivo.
A greve geral expropriadora é, com efeito, a etapa pivô
do processo revolucionário. Assim que se produz essa rup-
tura, é preciso continuar na via da auto-organização, da
autogestão e do federalismo. As organizações de luta, das
quais o movimento social tiver se dotado, no transcurso dos
anos anteriores, serão os instrumentos dessa reorgani-
zação.
Os sindicatos, as associações de bairros, as diversas
associações e organizações políticas anarquistas fornecerão
as primeiras estruturas de autogestão a fim de coordenar
o mais rápido possível os serviços públicos, a produção dos
bens e sua repartição.
Enfim, nenhuma caça às bruxas deverá ser praticada:
um indivíduo que tiver sido anteriormente policial, cura ou
patrão, se ele aceitar os princípios da nova sociedade, será
reconhecido igual aos outros. Ele não poderá ser cobrado
por sua antiga posição social, isso a fim de evitar tribunais
revolucionários de sinistra memória.

Revolução e violência

Na maior parte do tempo, a idéia da revolução desen-


cadeia um medo, o medo da violência. Ora, a violência já
não está presente nas relações sociais do sistema capitalista
e estatista? Guerras entre Estados e, no cotidiano dos assa-
lariados, a violência física e psicológica está presente. Sim,
a revolução será forçosamente confrontada a esse problema.
Não podemos imaginar a burguesia e a classe política se
deixar desapossar de seus bens e de seu poder sem reagir.
Ainda hoje eles aplicam-se em reprimir as revoltas: o Serviço
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 67

de Informações Gerais da polícia ficha os elementos subver-


sivos, as milícias patronais carregam contra os piquetes de
greve, empresas de segurança privada alugam seus serviços
a proprietários para expulsar squatters... Tão logo o Estado
e o patronato sentem-se ameaçados em sua existência, eles
empregam todos os meios de repressão à sua disposição.
Face a essa reação do Poder, o movimento revolucioná-
rio deverá organizar-se para sua defesa. É preciso, contudo,
cuidar para que essa violência defensiva seja assumida e
controlada coletivamente a fim de evitar que alguns sintam-
se tentados a dela fazer uma estratégia enquanto tal (cons-
tituindo-se em grupos ou em ramificações armadas).
Em resumo: nenhuma apologia da violência é aceitável
pois nós a odiamos mais que tudo. Todavia, nenhuma der-
rubada da ordem atual poderá ser feita de uma maneira
totalmente pacífica. O movimento revolucionário deve, por
conseqüência, prevê-lo, sem perder seu objetivo fundamen-
tal: a expropriação dos exploradores, o desmantelamento
do Estado e a aplicação imediata de uma organização social
federalista e autogestionária.
Enfim, a questão que nos fazem amiúde refere-se a sa-
ber se vale a pena pagar esse preço: o risco que representa a
tentativa de uma revolução não é demasiado elevado? E,
em vez de engajar-se em tal aventura da qual poderíamos
sair quebrados, não seria melhor contentar-se com vitórias
e avanços parciais? Em outros termos, não deveríamos
abandonar a ambição revolucionária em proveito de uma
forma de reformismo radical, quer dizer, contentar-se com
lutas sociais para fazer recuar pouco a pouco a dominação?
O problema não deve ser assim apresentado. De início,
há momentos na história em que o movimento social,
achando-se em posição de força, representa um perigo ina-
68 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

ceitável pelo Poder. Não é, pois, o movimento social que


escolhe forçosamente o instante do confronto. Em seguida,
as revoluções ou os movimentos insurrecionais não se fa-
zem sob encomenda. São as lâminas de fundo e não produ-
tos de decisões puramente racionais. Maio de 68 não foi
previsto por ninguém, tampouco a amplitude da crise, há
alguns anos, pelo movimento dos squats na Holanda. En-
fim, o medo de ultrapassar o ponto de não-retorno foi amiú-
de o que bloqueou os movimentos sociais (a primeira ilus-
tração desse fenômeno foi a paralisia dos escravos revolta-
dos de Espártaco frente a Roma), e constatamos que essas
hesitações tiveram conseqüências mais catastróficas do que
as tentativas revolucionárias afirmadas em contextos de-
masiado desfavoráveis. Tudo isso para dizer que a enorme
parte de espontaneísmo dos fenômenos revolucionários
proibe-nos pensar programá-los. Nenhuma organização,
nenhum partido pode pretender desencadear uma revolução
ou retardar seu acontecimento. Em contrapartida, nós a
desejamos, pois ela é o único meio de pôr fim ao sistema
atual e suas violências. Agimos para dar-lhe todas as opor-
tunidades de sucesso, e, quando uma tentativa desse tipo
se produz, nosso papel deve ser o de atuar para que ela seja
a mais construtiva possível, estar prontos a barrar as opo-
sições dos partidos contra-revolucionários e a reação do
Estado. Se o risco é efetivamente grande, é ainda mais peri-
goso agir como se pudéssemos viver tranqüilamente sem
sofrer os golpes da organização social autoritária. Se uma
parte de nós pode sempre se virar por meio de uma inicia-
tiva individual, a submissão conduz fatalmente a mais mi-
séria. Se as lutas sociais retornarem, elas resultarão cedo
ou tarde em novos confrontos de envergadura contra a bur-
guesia. Cabe-nos agir para que esses confrontos não resul-
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 69

tem em pura perda, que não sejam sobressaltos para recair,


em seguida, numa sociedade sempre tão injusta e destrui-
dora dos indivíduos, mas que, ao contrário, possamos supe-
rar os obstáculos para conquistar nossa total liberdade.

Contra o autoritarismo revolucionário

A imagem da revolução suportou pesadamente exações


e crimes cometidos pelos revolucionários autoritários. Na
França, sob a Revolução francesa em 1793, o Terror é posto
na ordem do dia sob a pressão dos sans-culottes que vêem
nela a possibilidade de desmascarar os açambarcadores e os
inimigos internos. De início dirigida contra os moderados (gi-
rondinos, dantonistas...), ela se voltará, em seguida, contra
o movimento igualitarista, contra os sans-culottes, os en-
ragés e os clubes populares, revelando-se como instrumento
de um poder inimigo da revolução social. A revolução bol-
chevique na Rússia, a revolução chinesa e outras revoluções
ditas “socialistas”, sem exceção, apenas instauraram a dita-
dura de burocracias, de um capitalismo de Estado que explo-
rava e oprimia a imensa maioria. As práticas autogestio-
nárias e as aspirações à auto-organização foram canaliza-
das depois destruídas sistematicamente pelas novas classes
dirigentes que se consagraram a reprimir tudo o que não
era conforme à sua “linha”, para preservar seu poder e seus
interesses de classe.
A revolução anarquista deve adotar práticas conformes
a seus fins, e é por isso que rejeitamos os preceitos do mar-
xismo-leninismo e do trotskismo: o vanguardismo, a idéia
de etapa transitória, a “ditadura do proletariado”.
À primeira vista, pareceria que marxistas e anarquistas
estariam de acordo quanto ao desaparecimento do Estado.
70 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

Em um texto intitulado A origem da família, da propriedade


privada e do Estado, Engels escreve: “Com o desapareci-
mento das classes sociais desaparecerá inelutavelmente o
Estado. A sociedade que reorganizará a produção na base
da associação livre e igual dos produtores, relegará a má-
quina de Estado ao lugar que lhe convém: ao museu das
antiguidades, ao lado da roda de fiar e do machado de bronze.”
Marx, de seu lado, foi pouquíssimo prolixo sobre a futura
sociedade.
Mas quando se aborda a questão da transição, nosso
ponto de vista torna-se inconciliável com aquele dos mar-
xistas-leninistas. Para estes últimos, a passagem ao socia-
lismo efetua-se por meio da ditadura do proletariado e da
instauração de um “Estado operário”: “O proletariado ser-
vir-se-á de sua supremacia política para centralizar todos
os instrumentos de produção nas mãos do Estado, quer
dizer, do proletariado organizado em classe dominante” (Ma-
nifesto do Partido Comunista, 1848). Para Lenin, “É neces-
sário utilizar provisoriamente os instrumentos, os meios e
os procedimentos do poder do Estado contra os explorado-
res, do mesmo modo que, para a supressão das classes, a
ditadura provisória da classe oprimida é indispensável”.
Sejamos sérios: primeiramente, a “ditadura do prole-
tariado” é um non-sens. O proletariado é o que é porque
ele é explorado e dominado. Se não é mais o caso, ele não
existe mais. E se não mais existe, como poderia exercer sua
ditadura e sobre quem? Para nós, tal retórica é apenas o
pretexto para justificar a ditadura pura e simples do Partido
único! Em segundo lugar, um Estado não pode perecer por
si mesmo. Ao contrário, ele faz tudo para permanecer de pé
e reforçar-se! O stalinismo não foi, portanto, a degeneres-
cência de um Estado operário (para retomar as palavras
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 71

dos trotskistas) mas a seqüência sinistra e lógica da tomada


de poder bolchevique. O único período transitório que reco-
nhecemos é aquele durante o qual trabalha a perspectiva
revolucionária, e, após a ruptura, aquela em que as novas
estruturas federalistas e autogestionárias instalam-se e
assumem suas atribuições.
Por sinal, os resultados obtidos estando condicionados
pelos métodos empregados, afirmamos que o fim não justi-
fica os meios, ele está contido nestes. O vanguardismo, que
corresponde ao papel dirigente de uma elite autoproclamada
sobre a massa, é contra-revolucionária por essência. Ne-
nhuma formação ideológica, nenhuma organização poderá
emancipar os indivíduos impondo-lhes a obediência, diri-
gindo-os. Essa visão das coisas conduz ao resultado inverso:
ela mata toda liberdade, faz nascer novos chefes, piores do
que os precedentes!
Nossa emancipação só poderá ser feita por nossa pró-
pria ação direta, isto é, sem encarregar quem quer que seja
de conduzir-nos, guiar-nos! Ao conceito de vanguarda, opo-
mos aqueles de forças de influências e de minorias agentes.
Segundo os contextos, existem em permanência indivíduos,
grupos, organizações que tomam iniciativas, desempenham
num dado momento, papéis de instigadores, catalizadores.
É nesse sentido que as organizações anarquistas espe-
cifistas são indispensáveis à construção e à politizaçào de
um movimento social revolucionário. Cabe aos/às militantes
anarquistas reagrupar-se para constituir um pólo de influên-
cia: para convencer, para apresentar críticas, análises e pro-
posições anarquistas, para defender os princípios de auto-
organização, impulsionar lutas sobre as bases da revolução
social... Mas estas organizações não podem e não devem
tender ao enquadramento ou à direção desses movimentos.
72 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

Contra o reformismo e o eleitoralismo

Como dissemos anteriormente, o Estado não é um ins-


trumento neutro. Conquistá-lo para tentar conduzir uma
política mais justa, de algum modo, tentar “humanizar” o
capitalismo é uma autêntica utopia. Nenhum governo de
“esquerda” poderá manter suas promessas, simplesmente
porque, ao aceitar as regras do jogo da economia de mercado
e da propriedade privada dos meios de produção, ele será
obrigado a fazer a política correspondente aos interesses
dos verdadeiros detentores do poder: os patrões de indús-
tria, os grupos financeiros, as multinacionais. Eis por que
a política de esquerda é um mito.
Apresentarmo-nos às eleições para tentar ser eleitos
não é, portanto, o nosso combate. A única coisa que conta
é a relação de força que serão capazes de estabelecer os
explorados, face aos patrões e aos governantes. A absten-
ção às eleições municipais, regionais, legislativas ou pre-
sidencialistas é um leitmotiv do movimento anarquista. A
abstenção é a expressão de uma recusa: aquela de prestar-
se à farsa dos partidos democratas. Acrescentamos imedia-
tamente a isso uma distinção capital: o abstencionismo da-
quele que aproveita o momento para ir pescar é tão perigoso
quanto o ato do cidadão que, crendo-se “responsável”, põe
um voto numa urna, significando a sentença de morte de
seu próprio poder político. Nosso abstencionismo nada tem
de ato passivo: ele é um meio de intervir denunciando a
política-espetáculo e afirmando a necessidade de uma to-
mada de consciência dos trabalhadores.
Não é raro que nos censurem esta tática, acusando-
nos de fazer o jogo da direita, e, inclusive, da extrema-
direita. Em 1981, era preciso dar uma oportunidade à es-
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 73

querda, depois se veria o que iria acontecer... E vimos muito


bem o que aconteceu! Evidentemente, sempre existirão os
incorrigíveis para nos certificar de que com a direita, a
situação teria sido ainda pior. Este raciocínio do “mal
menor” pode levar longe, muito longe! Tão longe que pu-
demos ouvir, em 1995, lamentáveis diálogos entre partidá-
rios da esquerda, alguns perguntando se um Chirac social
não era melhor do que um Balladur5 que confiara em Pas-
qua6... Atingimos aqui os cimos da política de balcão! Resta
o argumento “choque”: “Não votando, vocês favorecem a
progressão da extrema-direita!” Nossa resposta é clara: a
história mostrou-nos suficientemente que as democracias
jamais puderam (ou quiseram) barrar a via ao fascismo.
Na Espanha, em 1936, derrotado nas urnas, o fascismo,
cinco meses depois, ressurgia com maior força na rua. E,
além do mais, se falarmos daqueles que fazem o jogo do
Front National, temos muito o que dizer! Àqueles e àquelas
que têm memória curta, lembremos alguns fatos, a fim de
mostrar o quanto a esquerda, a histórica e a atual, aplicou-
se a perenizar um sistema e métodos, que, de fato, consti-
tuíram um viveiro fértil ao fascismo: foram os eleitos so-
cialistas do Front Populaire que, em 1940, votaram os plenos
poderes a Pétain7 (exceto trinta e seis deles). Foi a esquerda
socialista que deixou a Revolução espanhola ser esmagada,
recusando-se a vender-lhe armas. Foi ainda ela que encer-
rou os refugiados espanhóis em campos de concentração

5
Édouard Balladur, deputado francês, ex-primeiro-ministro entre 1993 e
1995. (N.T.)
6
Charles Pasqua, senador francês, ex-ministro do Interior no governo de
Édouard Balladur. (N.T.)
7
Philippe Pétain, marechal francês, chefe de Estado no regime de Vichy,
durante a ocupação nazista, entre 1940 e 1944. (N.T.)
74 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

antes de entregá-los aos fascistas. Foi o socialista Jules Moch


quem inventou, em março de 1948, os C.R.S..8 Foi o general
Bigeard, especialista da tortura, aquele que enviava cami-
nhões recolherem os mortos dos interrogatórios, para que
fossem, em seguida, lançados ao mar, quem declarou em
1981, em relação à vitória da esquerda: “Saibam que isso
não me incomoda. Fiz duas guerras colonialistas. Ambas
sob regime socialista.” Foi Mitterrand quem falou, antes
das eleições presidencialistas de 1988, de “limite de tolerân-
cia” em relação à imigração. Foi Fabius9 quem declarou: “Le
Pen apresenta as boas questões mas dá as más respostas”
(que boas questões apresenta Le Pen? Nenhuma!); foi a
esquerda que multiplicou os campos de retenção para os
clandestinos, enquanto só havia um durante o regime de
Giscard d’Estaing!10 Portanto, que os eleitores e as eleitoras
de esquerda não tentem dar lições aos anarquistas sobre
esse assunto!
Se era ingênuo votar à esquerda em 1981, hoje é ser
masoquista!

8
C.R.S.: Compagnies Républicaines de Sécurité. Organização policial co-
nhecida por sua violência na repressão de manifestações políticas. Ulti-
mamente vem sendo denunciada de atitude racista em relação aos imi-
grantes e descendentes. (N.T.)
9
Laurent Fabius, político francês do Partido Socialista, ex-Ministro da Eco-
nomia e ex-Primeiro-ministro, de 1984 a 1986. (N.T.)
10
Valéry Giscard d’Estaing, foi eleito em 1974 Presidente da França, sendo
derrotado em 1981 pelo candidato socialista François Mitterrand. (N.T.)
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 75

• A implicação nas lutas sociais

A politização das reivindicações

Os anarquistas parecem, às vezes, tão radicais que


algumas pessoas os imaginam indiferentes às lutas sociais:
mais exatamente, uma lógica do tudo ou nada os afastaria
dos combates de terreno. É desconhecer a história e a atua-
lidade do movimento!
Decidindo entrar nos sindicatos nos anos 1890, os
anarquistas marcaram profundamente o sindicalismo ope-
rário para fazer dele, nos anos que precederam à Primeira
Grande Guerra, na França bem como nos outros países la-
tinos, uma potência com a qual a burguesia, os governos e
os políticos social-democratas tiveram de se preocupar.
Hoje, não concebemos nosso militantismo sem um in-
vestimento nas lutas cotidianas. Aqueles ou aquelas que
se contentam com a pregação da boa palavra estão bem longe
de nosso anarquismo social.
Isso tendo sido reafirmado, deve-se compreender em
que bases políticas nós nos implicamos nas lutas reivindica-
tivas. Quando reagimos contra as condições de vida que
nos são impostas, contra os atos de opressão do Estado e
as conseqüências da exploração do capitalismo, somos con-
duzidos, digamos de maneira espontânea, a reivindicar.
Mas a questão das reivindicações é mais complexa do
que parece. Vemos, num primeiro momento, que muitas
delas são também reações imediatas, emanando de recusas
elementares. A primeira coisa a fazer se se quiser opor-se à
exploração de um patrão, é, evidentemente, exigir aumentos
salariais, melhores condições de trabalho e redução da jor-
nada de trabalho. Enquanto o interesse do patronato é pa-
76 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

gar-nos menos obrigando-nos a trabalhar cada vez mais


rápido e/ou por mais tempo, essas lutas podem inscrever-
se numa dinâmica de contestação global do sistema. Dize-
mos, elas podem, pois isso nada tem de automático. E com-
preendemos aqui que as reivindicações, em si mesmas, têm
implicações políticas bem diferentes segundo o sentido que
se lhes dá e os objetivos que se lhes associa.
Expliquemo-nos: se retomarmos o exemplo do aumento
salarial, dois tipos de discurso (ao menos) são possíveis. As
grandes centrais sindicais reformistas denunciam perma-
nentemente (e ainda!) a insuficiência dos salários, afirmam
que é preciso limitar as desigualdades, aplicar uma política
econômica mais justa etc.. Ao mesmo tempo, elas tudo farão
para impedir que se vá mais longe. Para elas, está fora de
cogitação querer combater o patronato em sua existência.
O objetivo associado à reivindicação permanece uma simples
reorganização do salariado e, portanto, do capitalismo. Na
realidade, sabemos que esse reformismo levou a contínuos
recuos e a perpétuos desencantamentos. O outro discurso,
aquele do qual somos partidários, consiste em dizer, toda
vez, que a oportunidade disso nos é dada: efetivamente,
devemos frustrar, no presente momento, os interesses dos
patrões. Reivindicar pela constante melhoria das condições
de trabalho, agir tantas vezes quantas sejam possíveis para
aumentar o preço de nosso trabalho, é manter a pressão
contra os nossos exploradores, é lutar palmo a palmo contra
eles. Mas o objetivo que buscamos não é o “compromisso”.
Enquanto o salariado existir, haverá exploração e desigual-
dades. Nosso objetivo é, então, que os assalariados orga-
nizem-se para abolir esse sistema. Cabe a nós, em seguida,
explicar nosso projeto societário. Tal é o modo como conce-
bemos a politização de uma reivindicação imediata.
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 77

Barrar as manipulações ideológicas

Envolver-se nas lutas sociais é também denunciar todas


as desinformações, todas as manipulações ideológicas. To-
memos de novo alguns exemplos.

• O “rombo” da previdência social

Se, em seu local de trabalho, você pode demonstrar, com


o apoio de números, que o famoso rombo da previdência
com o qual a mídia nos cansa os ouvidos não existe, você
terá certamente a atenção de sua platéia, visto que aqueles
que denunciam esse bluff são raros. Todavia, os números
não são secretos, todos podem ter acesso a eles. E eles nos
ensinam coisas interessantes!
Percebemos que o deficit consiste antes de tudo em dí-
vidas não pagas. Os 56,4 bilhões de rombo de 1993 decom-
põem-se da seguinte maneira: 35,9 bilhões devidos pelo pa-
tronato e 9,2 bilhões devidos pelo Estado. A isso somam-se
19,1 bilhões atribuídos ao regime geral dos deficits dos ou-
tros regimes de aposentadoria (militares, agricultores, arte-
sãos e comerciantes). No total, 67,6 bilhões de francos de
contribuições injustas, sem as quais o regime geral teria sido
superavitário em mais de 10 bilhões de francos! Isso não é
nada em comparação com o que nos custam os trustes farma-
cêuticos com medicamentos vendidos dez vezes o seu preço!
Além disso, tendo em vista a amplitude das desigualda-
des econômicas na repartição dos salários, das rendas e dos
patrimônios, falar de deficit da previdência é definitivamente
inadmissível.
Saibam que se tomarmos os dois milhões de famílias
mais ricas, o equivalente de seus privilégios alcança a soma,
78 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

mesmo só em termos de rendas, de mais de 800 bilhões de


francos por ano (Esse número representa a diferença entre
a renda real dessas famílias e a renda média. Estimativa
estabelecida segundo os dados sociais do I.N.S.E.E..11 E se
trata apenas de um cálculo sobre as rendas declaradas ao
fisco!). O que são, em comparação, os poucos 60 bilhões
que “faltariam” à previdência?
O deficit invocado é só um meio para justificar a trans-
formação da necessidade de saúde num mercado aberto ao
apetite de lucros dos grandes grupos financeiros!

• A “luta contra a exclusão”

A luta contra a exclusão é objeto de um vasto consen-


so: vemos até mesmo patrões se “mobilizarem” em torno
desse assunto e nos vangloriar os méritos da “empresa ci-
dadã”. Isso deveria bastar para nos advertir quanto à arma-
dilha...
Ideologicamente, a exclusão é uma noção falsificadora.
Não iremos negar que indivíduos estão, em grande número,
excluídos duravelmente do mundo do trabalho, isso é fato.
Ora, se seguirmos esta idéia, podemos dizer que toda desi-
gualdade é uma forma de exclusão, portanto, que o capita-
lismo caminha pelas exclusões.
O modelo da exclusão (com o conceito de sociedade dual)
não faz simplesmente referência às desigualdades e às pri-
vações. De modo mais perverso, ele tem a imensa vantagem
de mascarar a realidade da exploração.
Essa nova representação do universo social envia a
luta de classes ao esquecimento em proveito de uma nova

11
I.N.S.E.E.: Instituto Nacional da Estatística e dos Estudos Econômicos. (N.T.)
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 79

fronteira que separa a maioria dos incluídos de uma minoria


de excluídos. Ela pressupõe implicitamente a homogenei-
dade dos primeiros ou, ao menos, minimiza as contradições
de interesses em ação no “ventre” da sociedade. Por este
jogo de palavras, o poder tenta opor uma categoria de ex-
plorados a uma outra. Os assalariados empregados são
qualificados de privilegiados em relação àqueles que estão
desempregados, precários ou sem domicílio fixo.

• A ação social e caritativa

Com a pauperização de uma parte crescente da popula-


ção, a ação social tornou-se o argumento à venda dos par-
tidos. Essa ação social é uma autêntica gestão da miséria:
fazem moradias para os pobres, arquitetos inventam o
limite de sovrevivência para os SDF12 e prefeituras põem-se
a editar guias para eles! Com a RMI,13 a caridade (bem orde-
nada!) tornou-se, em 1984, um assunto de Estado. Os cré-
dulos de esquerda verão nela um formidável “progresso
social”. Para nós, a RMI banaliza o estatuto de miseráveis:
longe de ser um “progresso” a RMI instala duravelmente na
miséria centenas de milhares de indivíduos que não poderão
mais (ou muito dificilmente) sair desse sistema.
As associações caritativas multiplicam-se e as boas
almas dizem-nos: “Não critiquem isso! Vocês não podem
dizer que isso não serve para nada!” É assim que se deve
abordar as coisas? Certamente não é aos anarquistas que
se poderá censurar de não praticar o apoio mútuo e a soli-

12
S.D.F.: Sem Domicílio Fixo, correspondendo no Brasil aos Sem-teto. (N.T.)
13
R.M.I.: Renda Mínima de Inserção. Alocação concedida como antecipação
aos contribuintes mais necessitados antes da aposentadoria. (N.T.)
80 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

dariedade. Apenas, diferentemente das associações e


organizações caritativas e humanitárias, nós afirmamos
que a solidariedade não pode ser separada da luta política
e social. A solidariedade deve ser exercida na luta pois é
esta última que deve primar. É uma questão de escolha:
pode-se sempre decidir, num ímpeto de “grande generosi-
dade”, ocupar-se das pessoas em dificuldade, mas esses
esforços transformar-se-ão em pura perda se nehuma dinâ-
mica de resistência for criada! Segundo seus gestores, os
Restaurantes do Coração seriam a obra do século. Recen-
temente, eles festejavam com júbilo seus dez anos de exis-
tência. Que magnífica vitória! Esses dez anos são, ao con-
trário, a prova de que esse tipo de iniciativa é totalmente
incapaz de mudar qualquer coisa. O que eles fizeram em
dez anos para combater as causas da miséria, ou da exclu-
são, como eles dizem? O que fizeram, portanto, em dez anos,
a não ser jogar objetivamente o jogo dos dominadores, dedi-
cando-se a apagar as manifestações demasiado evidentes
da grande pobreza? Os benévolos dessas associações, que
crêem sinceramente tornar-se úteis, teriam agido melhor
se tivessem refletido sobre ações mais ofensivas e forço-
samente mais políticas, o que, por sinal, não teria sido con-
traditório com a prática de apoio mútuo!
Os humanitaristas creram poder dar lições aos militan-
tes políticos, gabando-se de seu pragmatismo e de seu senso
do concreto. Infelizmente, eles não têm motivo de se orgu-
lhar do balanço. A banalização da ação social sequer impe-
diu que se apliquem as mais abjetas caças aos pobres. Deve-
mos nos surpreender com isso? O sistema de enquadramento
dos excluídos parece tão bem azeitado que muitos políticos,
todas as tendências confundidas, autorizam-se, agora, a decla-
rar a esmola intolerável: vimos neste verão de 1995 em Pau
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 81

(prefeitura socialista), Tarbes (comunista), La Rochelle (Mi-


chel Crépeau, radical de esquerda), Valence (prefeitura de
direita!), Toulon (Front National). Em sua lógica, visto que
tudo é feito para a reinserção ou para assegurar ao menos
um mínimo vital, aqueles que permanecem na rua não têm
desculpa. Assim, eis os “vagabundos” e os SDF culpabiliza-
dos e criminalizados aos olhos dos honestos cidadãos!

• A “defesa do emprego”

Em nome da defesa do emprego, vão tentar fazer com


que engulamos enormes sapos como a generalização dos
empreguinhos (pudicamente denominados empregos de pro-
ximidade); os presentes ao patronato vão se multiplicar sob
forma de subsídios e isenções de impostos.
As políticas antidesemprego prosseguem e asseme-
lham-se. É porque os governos, quaisquer que sejam suas
inclinações, “liberal” ou “social”, nada controlam do jogo
econômico mundial, e, sendo apenas os gestores políticos
dos interesses da burguesia, não têm solução real a propor.
Em que podem agarrar-se? Entre outras coisas, em mani-
festações de protecionismo (vocês se recordam da campanha
publicitária “nossas compras são nossos empregos”?) que
favorecem o terreno a todas as divagações nacionalistas e
xenófobas. Há muito tempo o Partido Comunista escolheu
o campo do voltar-se para a Nação com seu “produzamos
francês”. Sem muito esforço, o Front National pôde adaptar
para “produzamos com franceses”, até hoje, em que a apli-
cação do princípio da preferência nacional acelera-se, cente-
nas de auxiliares de ensino não puderam obter postos de
trabalho por essa razão, e a discriminação racista é moeda
corrente no mercado de trabalho.
82 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

• A redução, a “partilha” e o “arranjo” da jor-


nada de trabalho

Contra o desemprego, uma única solução pareceria efi-


caz: a redução da jornada de trabalho. Sabendo que o debate
sobre o assunto não poderia ser evitado, a classe dirigente
municiou-se, de imediato, de “novas” fórmulas. Com efeito,
a redução da jornada de trabalho é uma reivindicação histó-
rica do movimento operário; marcada por um caráter dema-
siado subversivo, ela não podia ser retomada tal qual.
Quando, no século XIX, os trabalhadores começaram a
lutar pelas 3 x 8 (oito horas de trabalho, oito horas de lazer,
oito horas de repouso), não era para organizar o capitalis-
mo, mas no espírito de combatê-lo. Até os anos setenta, a
redução da jornada de trabalho associava-se a uma severa
crítica: não se queria mais perder sua vida tentando ganhá-
la. Para a burguesia, era preciso, então, apresentar a redu-
ção da jornada de trabalho como uma simples solução con-
juntural (e entre outras) à “crise do emprego”. Suas modali-
dades de aplicação deviam igualmente satisfazer as exigên-
cias imperativas do patronato em matéria de flexibilidade.
Assim surgiram os fetiches da partilha, da organização e
da anualização do tempo de trabalho. Três expressões for-
temente sinônimas, pois todas se juntam num ponto: os
assalariados são chamados a fazerem sacrifícios em soli-
dariedade com os solicitadores de emprego. Trabalhadores
vêem-se obrigados a aceitar diminuições de seus vencimen-
tos ou optar por aposentadoria antecipada com menos de
três quartos de seu salário... É provável que essas políticas
terão apenas um efeito muito limitado sobre o emprego. De
todo modo, seremos os únicos perdedores. Na hipótese em
que a taxa de desemprego venha realmente a baixar, esteja-
A PRÁTICA REVOLUCIONÁRIA 83

mos certos de que esse fenômeno será seguido de um au-


mento da precariedade e de um nivelamento por baixo dos
salários. É inaceitável. No que nos concerne, defendemos a
redução maciça da jornada de trabalho não apenas sem
perda do poder de compra como também nos opondo a todo
congelamento dos salários. E afirmamos que a luta contra
o desemprego e a precariedade passa obrigatoriamente por
uma contestação global do sistema: no âmbito do mercado
capitalista, não há solução que permita fazer economia de
um combate de classes.

• Federar as lutas!

Essa vontade de sustentar um combate global traduz-


se pela recusa de encerrar as lutas em múltiplos terrenos
de intervenções específicos.
O erro seria fechar-se em reivindicações categoriais.
Realidades cotidianas — sem nenhuma dúvida diversas e
diferentes — não devem conduzir-nos a secionar o movi-
mento social. Não iremos raciocinar como os dominadores
que são os primeiros a promover a individualização dos
problemas, e a dividir o proletariado multiplicando os esta-
tutos sociais. Bem sabemos que a ameaça do desemprego
concerne a todos os assalariados. Então, dizer que os indiví-
duos que são privados de emprego têm interesses próprios
a defender e que devem, por conseqüência, organizar-se de
maneira autônoma é um discurso perigoso, tão perigoso
quanto aquele dos assalariados que se acantonam num
corporativismo frio e confortável. Reivindicar um aumento
da RMI ou sua extensão aos com menos de 26 anos não
pode conduzir a lugar algum senão a reforçar essa gestão
84 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

da miséria que denunciamos. É preciso acabar com essas es-


tratégias de clientelismo: os indivíduos assalariados, de-
sempregados ou atingidos pela grande pobreza têm todos
os mesmos inimigos e os mesmos interesses. Por isso, eles
devem mobilizar-se juntos, sobre objetivos comuns.
Mais amplamente, todos os combates de emancipação
e liberação, tenham eles por alvo o sexismo, o racismo, o
militarismo, o fascismo, o clericalismo etc., só podem lograr
êxito se se unirem numa ação de classe contra o Estado, o
capitalismo e a religião.
Segundo nosso ponto de vista, não podemos combater
o Front National sem denunciar as responsabilidades da
direita bem como da esquerda, e, sobretudo, sem deixar de
propor um projeto societário global. Não podemos fazer anti-
militarismo sem lutarmos contra as noções de Estado e Na-
ção. Também não podemos manifestar o anti-racismo sem
combater em seu âmago o princípio da nacionalidade. Não
podemos fazer anti-sexismo, defender a contracepção e a
liberdade de aborto sem atacarmos os fundamentos da reli-
gião (e sua abordagem do direito à vida). Não podemos nos
aplicar à defesa da proteção social sem nos posicionarmos
em relação à colaboração de classes que representa a gestão
paritária dos organismos em questão. Não podemos nos
engajar em reivindicações sobre a escola sem recusar o eli-
tismo que grassa no ensino (público ou privado), sem com-
bater a feudalização do sistema educativo às necessidades
do patronato e sem nos opormos simultaneamente às Igre-
jas e à laicidade de Estado.
Todos os problemas estão estreitamente ligados entre
si e fazem parte de uma única e mesma problemática polí-
tica. Eis a convicção que inspira cada uma de nossas toma-
das de posição.
À GUISA DE CONCLUSÃO

O objeto deste livro não é apresentar um projeto e um


método prontos. Alguns o acharão demasiado preciso e
categórico, outros o estimarão demasiado impreciso e incom-
pleto. O essencial é que ele desempenhe seu papel de ins-
trumento militante, permitindo àqueles e àquelas que não
conhecem, ou mal, o anarquismo, possam descobri-lo ou
melhor apreendê-lo. É uma contribuição que se integra ao
nosso esforço: refazer de nosso movimento uma força po-
lítica e social conseqüente, capaz de influir no curso da his-
tória.
O anarquismo leva a questionar muitas coisas; e se
podemos referir-nos a experiências revolucionárias (sendo
a mais importante aquela realizada na Espanha em 1936-
38), nenhuma sociedade pôde ainda se desenvolver a longo
termo.
Estamos conscientes da amplitude da mudança que
desejamos, das dificuldades que isso coloca. Mas estamos
convictos de que o anarquismo não é uma teoria ultrapas-
sada como alguns “historiadores” querem muito amiúde
fazer crer. Abraçando o conjunto dos problemas de atuali-
dade, o anarquismo está em condições de apresentar, nas
sociedades industrializadas bem como naquelas de pre-
dominância rural, uma resposta à questão social. Essa ques-
tão pode resumir-se numa frase: como organizar a sociedade
para que os indivíduos vivam em igualdade e livres? É uma
86 O ANARQUISMO HOJE - UM PROJETO PAR A A REVOLUÇÃO SOCIAL

interrogação que atormenta a humanidade desde seus co-


meços, desde as revoltas de escravos da Antiguidade, desde
as jacqueries14 da Idade Média, a Revolução francesa, as
Revoluções russas, espanholas...
Não tratamos aqui do aspecto histórico do anarquismo:
ele não podia ser tratado num livro tão breve. O que pode-
mos dizer, é que o anarquismo, na escala do tempo da socie-
dade e como doutrina política constituída, é um movimento
recente: aproximadamente um século e meio. A história não
sendo predeterminada, o único sentido que ela pode assumir
será aquele que os indivíduos, decididos a vencer a opres-
são, saberão imprimir-lhe. Inútil, portanto, lamentar-se pela
eterna lei do mais forte, por essa maldita natureza humana
(que só existe nos espíritos) ou “a eterna” lei que faz do ho-
mem um lobo em relação a seus congêneres. Inútil, enfim,
esperar que as mentalidades mudem para se lançar na luta
social pois elas só se modificarão no transcurso dos aconte-
cimentos.
Uma coisa é certa: traçaremos nosso caminho ca-
minhando!

14
Revoltas de camponeses. (N.T.)

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