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OS CRIMES DA FÉ E A LEI DE CHARLATANISMO NA AMAZÔNIA

BRASILEIRA1

THE CRIMES OF FAITH AND THE LAW OF CHARLATANISM IM THE


BRAZILIAN AMAZON

Elisandro Desmarest de Souza2

Marco Antônio Domingues Teixeira 3

INTRODUÇÃO:
A prática religiosa é notável em todo o mundo, destacando-se sua utilidade
para a sociedade como elemento de apaziguamento social, controle social e, em
sociedades, onde o Estado tem reduzido papel de prestador de serviços
essenciais, como educação, saúde e acesso à informação e formação, além de
mediador das relações sociais. As Igrejas e suas lideranças, sejam clérigos,

1
Resumo apresentado ao GT Rondônia: Colonização, Pobreza, Violência e Direitos Humanos, no
IV Congresso Internacional DHJUS – Justiça, democracia e reconstrução. Programa de Mestrado
Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça.
2
Graduado em filosofia pela Universidade Federal de Rondônia (2019). Atualmente Graduando em
Direito e Mestrando do Programa de Pós-graduação em Filosofia, com ênfase na área de pesquisa
em Ética e Filosofia Política Contemporânea da Universidade Federal de Rondônia. E-mail:
elisandrodesmarest@gemail.com Lattes:http://lattes.cnpq.br/0684841892216928 ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-8106-2507.
3
Doutorado em Ciências Desenvolvimento Socioambiental pela Universidade Federal do Pará
(2004). Mestrado em História pela Universidade Federal de Pernambuco (1997). Possui graduação
em História pela Universidade Federal do Pará (1982). Atualmente é professor do Departamento
de História da Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Pós-doutoramento em Estudos Culturais
pelo Programa Avançado em Cultura Contemporânea - PACC, da Universidade Federal do Rio de
Janeiro - UFRJ (2019). E-mail: marcoteixeira204@gmail.com Lattes:
http://lattes.cnpq.br/9049709740814534 ORCID: http://lattes.cnpq.br/9049709740814534
padres, pastores, babalorixás, Yalorixás, Xamãs e outros sempre tiveram
importante papel, que em sociedades mais prósperas são responsabilidade do
Estado, que é o Ente capaz de fazer cumprir o bem social e a prevalência da Lei e
da ordem. Entretanto, no Brasil, em geral e na Amazônia, em específico, tais
práticas terminam não ocorrendo, entre amplos segmentos das populações
nacionais, notadamente as mais distantes dos centros de poder, as mais
periféricas e desguarnecidas pela presença dos agentes do Estado, as mais
pobres e os grupos considerados tradicionais, quer por suas especificidades
socioambientais ou culturais e econômicas. Na maior parte dos casos ligados a
esse enorme contingente de brasileiros, as Igrejas são a única instituição
agregadora e capaz de inspirar confiança, paz no convívio social e cura nas mais
diversas aflições. Tais práticas vêm sendo realizadas por religiosos e Igrejas muito
antes da colonização e continuam a acontecer até os dias atuais. Entretanto,
como são sociedades e instituições constituídas por humanos como aqueles que
elas assistem e orientam, muitas dessas instituições e seus representantes
terminam enveredando por áreas perigosamente próximas ou inseridas no
universo criminal. Os crimes da fé e das igrejas são mundialmente conhecidos e
estudados pelo Direito, pela História, Sociologia, Ciência Política, Antropologia,
dentre outros. Em muitos casos essas instituições antecedem ao próprio Estado
de Direito e Igrejas e grupos religiosos sempre arrogaram para si, o direito de
julgar, absolver, condenar, curar e mesmo matar em nome de uma ordenação
divina. Crimes múltiplos foram realizados em nome da fé, desde perseguições e
extermínios étnicos, até abusos sexuais contra desprotegidos, menores de idade e
incapazes. Entretanto, um crime em especial chama a atenção na legislação que
trabalha com os crimes da fé, o charlatanismo. Através do Artigo 283 do Decreto
Lei nº 2.848 de 07 de Dezembro de 1940, instituiu-se na República Brasileira a
chamada Lei do Charlatanismo, que é percebido no Art. 283, através da seguinte
redação – “Inculcar ou anunciar cura por meio secreto ou infalível: Pena -
detenção, de três meses a um ano, e multa. Curandeirismo.” Este trabalho se
propõe ao estudo das práticas consideradas “charlatãs” no conceito de práticas
religiosas, um campo difícil de ser dimensionado uma vez que preces e bênçãos
são consideradas práticas aceitáveis pelo Estado Nacional, que através da Carta
de 1988, reconhece a liberdade de pensamento e prática religiosos. Então, em
que momento as práticas religiosas de bênçãos e rituais de cura passam a ser
considerados charlatões? Na História do Brasil, temos relatos de diversas práticas
curandeirísticas associadas aos princípios religiosos, que devem ser analisados
separadamente de outras práticas medicinais alternativas, para o caso de nosso
estudo. O herbalismo é utilizado muito antes da medicina científica e alopática
serem conhecidos e reconhecidos. Sabe-se, mesmo, que em espécies animais
não humanas, indivíduos e grupos de animais buscam ervas e plantas específicas
para curarem determinados males. No caso religioso, a prática do herbalismo
associa-se a cultos xamânicos, benções e mesmo maldições. As restrições de
dieta e a obrigatoriedade de consumo de certos produtos por tempo determinado e
em quantidade especificada, são abordados já nos livros das religiões monoteístas
de todo o mundo. Além disso, a religião requer que a associação desse consumo
de ervas, que pode ser ingerido, de uso tópico ou em forma de banhos e inserções
físicas, sejam feitos e elaborados complexos ritualísticos que envolvem orações
públicas ou secretas, posse espiritual do corpo, transe mediúnico e manifestações
físicas daquilo que seria o “sagrado e o “sobrenatural”. Estes elementos associam-
se a outros tipos de obrigação que podem ter, desde o caráter de “doações”
financeiras ou de outros bens, prestação de serviços diversos, mesmo de caráter
sexual ou criminal. Aí unem-se as práticas lícitas (orações, bênçãos e remédios da
medicina popular), às práticas ilícitas, extorsão, abuso de poder, escravização
física e mental, despojamento de bens, etc. A isso chamaremos de charlatanismo
religioso, crime que pode ser tipificado no artigo 238 do Decreto Lei 2.848 de
1940. Queremos salientar que esse artigo foi, amplamente utilizado, contra os
praticantes de religiões populares, ditas como religiões de terreiro, obrigado seus
praticantes a vexames e humilhações perante o Estado e a sociedade, tais como a
necessidade de registro de suas casas religiosas da Delegacia de Jogos e
Diversões da localidade e o registro de seus participantes no Serviço Psiquiátrico
Nacional, além das recorrentes “batidas policias” nos locais religiosos com a
consequente prisão de religiosos, objetos de culto e destruição das localidades
sacrossantas. Na atualidade, esses vícios de um estado colonialista, vêm sendo
extirpados, mas as práticas da intolerância religiosa ainda são amplamente
difundidas por grupos religiosos mais hegemônicos, contra grupos populares e
contra indivíduos em específico, levando, mesmo segmentos criminosos, como os
autodenominados “Narcotraficantes de Jesus” a imporem seus credos às
comunidades em que atuam e a fecharem, destruírem, violarem, violentarem e
matarem praticantes de cultos considerados proibidos pelos dominantes locais. Na
Amazônia essa prática funcionou primeiro com os padres católicos que se
utilizaram de sua hegemonia e alianças com os poderes de diversas escalas para
perseguir e punir os praticantes de religiões diversas, estimulando, desde a
destruição de seus objetos sacros, até a violência física, mental, social,
escravização e morte aos seus praticantes. Atualmente alguns grupos
hegemônicos cristãos não católicos, transitam por esse perigoso terreno da
intolerância e do charlatanismo. Os crimes que cometem são, recorrentemente,
apresentados pela mídia e, não raro, denunciados por vítimas às instâncias da
justiça, por via de defensorias, procuradorias ou mesmo mediante a contratação
de serviços advocatícios. Entretanto, como o poder dessas instituições, em muitos
casos vem, novamente, se confundindo com o poder do próprio Estado ou de
Instituições que o representam para a solução de tais casos, a maior parte das
denúncias nunca são completa e exemplarmente resolvidas. Tal fato da margem a
um maior crescimento desses segmentos charlatães, que abusam de sua retórica,
oratória do direito constitucional á liberdade de culto, para promover o
cerceamento e a eliminação física ou cultural de grupos e pessoas adversos. Em
Rondônia, possuímos diversos relatos de mídia e jornais que registram esse tipo
de comportamento, denotando a pouco salutar união entre segmentos e pessoas
que exercem profissão, onde representam o Estado e suas instituições e
sociedades, grupos e indivíduos ligados a determinados segmentos religiosos, que
abusam do direito à livre prática de credo, e a utilizam em beneficio próprio sob a
forma de enriquecimento, sempre registrados em nome da instituição religiosa,
mas também da violência física e mental contra pessoas e igrejas adversas. Esse
é um fenômeno que vem sendo estudado tanto regionalmente, quanto,
mundialmente, levantando questionamento sobre quais são os limites legais da
livre prática dos credos e pregações ou da cura milagrosa. Em nosso trabalho nos
proporemos a estudar três tipos de crimes de charlatanismo religioso, encontrados
nas páginas das mídias em Rondônia: Abuso físico e sexual, etnocídio contra
indígenas e enriquecimento de grupos e indivíduos a partir de curas milagrosas
em igrejas que marcam hora e seção de milagres. Verificaremos, ainda como o
poder público vem se comportando diante de tais fatos e até que ponto a lei é
cumprida ou desconsiderada.
METODOLOGIA
A pesquisa vem se desenvolvendo a partir de leituras bibliográficas consagradas
sobre a questão da fé e da religiosidade na Amazônia e no Brasil, as práticas de
curandeirismo, transe, possessão e lutas entre grupos considerados hegemônicos
religiosamente, contra outros, considerados subalternizados. TUMELEIRO (2019),
considera que: “A pesquisa bibliográfica é um procedimento exclusivamente
teórico, compreendida como a junção, ou reunião, do que se tem falado sobre
determinado tema.
Como ensina Fonseca (2002, p. 32) a pesquisa bibliográfica é feita a partir do
levantamento de referências teóricas já analisadas, e publicadas por meios
escritos e eletrônicos, como livros, artigos científicos, páginas de web sites.
Por isso, qualquer trabalho científico deve ser iniciado com uma pesquisa
bibliográfica.
Este passo inicial permite ao pesquisador conhecer o que já se estudou sobre o
assunto.
Entretanto, existem pesquisas científicas que se baseiam unicamente na pesquisa
bibliográfica, procurando referências teóricas publicadas com o objetivo de
recolher informações ou conhecimentos prévios sobre o problema a respeito do
qual se procura a resposta (FONSECA, 2002, p. 32).
Assim, a pesquisa bibliográfica, para Gil (2007, p. 44) tem como principais
exemplos as investigações sobre ideologias ou aquelas que se propõem à análise
das diversas posições acerca de um problema.”’
A documentação sobre esses temas é farta e de fácil acesso nas mídias e redes
da internet. Ainda de acordo com TUMELEIRO (2019), a pesquisa documental
recorre a fontes mais diversificadas e dispersas, sem tratamento analítico, tais
como: tabelas estatísticas, jornais, revistas, relatórios, documentos oficiais, cartas,
filmes, fotografias, pinturas, tapeçarias, relatórios de empresas, vídeos de
programas de televisão, etc. (FONSECA, 2002, p. 32).
A pesquisa documental é um tipo de pesquisa que utiliza fontes primárias, isto é,
dados e informações que ainda não foram tratados científica ou analiticamente.
A pesquisa documental tem objetivos específicos e pode ser um rico
complemento à pesquisa bibliográfica.
Os documentos analisados podem ser atuais ou antigos, e podem ser usados para
contextualização histórica, cultural, social e econômica de um lugar ou grupo de
pessoas, em determinado momento da história. Por essa razão, é um tipo de
pesquisa bastante utilizado nas ciências sociais e humanas.
Além disso, permite fazer análises qualitativas sobre determinado fenômeno, mas
também é possível fazer análises quantitativas, quando se analisam bancos de
dados com informações numéricas, por exemplo.
Nesse contexto é que recorreremos a cinco casos previamente selecionados e já
transitados em julgados para apresentarmos nossas argumentações.

RESULTADOS
Os resultados da pesquisa nos revelam, até o presente momento, que mesmo
sendo um país laico, o Estado Brasileiro, faz evidentes opções religiosas,
tolerando práticas ostensivamente inconstitucionais, como a catequese de povos
indígenas, que contribui para o etnocídio das culturas ainda remanescentes, além
de suportar práticas charlatãs, evidentemente reconhecidas, em mídias televisivas
e em centros de cura e religiosidade, que, não raramente, terminam em
escândalos de proporções internacionais. A prática do charlatanismo foi combatida
com violência em décadas passadas por regimes autoritários, sempre contra
religiões populares e subalternizadas, como as chamadas religiões de terreiro.
Entretanto, o Estado vê e permite práticas religiosas em suas corporações
policiais, jurídicas, legislativas e escolares, em todos os casos, favorecendo
claramente, alguns grupos e interditando outros. A prática do charlatanismo, dessa
forma, se torna tolerada e assimilada pelo estado, onde políticos e autoridades
diversas se beneficiam dela nos mais diversos sentidos da palavra.
As discussões nos mostram que rumamos para um crescente intervencionismo do
poder religioso de grupos hegemônicos sobre a questão da laicidade da Carta de
1988 e que o charlatanismo religioso está, hoje, amplamente ajustado ao discurso
político e politizado de determinados grupos.
Concluímos, de forma ainda parcial, que a sobrevivência das práticas religiosas
charlatãs permanece como ferramenta que expressa a aliança de grupos
conservadores e hegemônicos financeiramente e belicamente, para controle e
manutenção de uma ordem que prevarica entre o público e o privado e que amplia
abismos sociais.
Palavras-chave: religiosidade, fé, cura, charlatanismo, crimes religiosos.

Referências
ALBUQUERQUE, R.P. de. A liberdade religiosa e a prática de charlatanismo,
curandeirismo e estelionato nas igrejas evangélicas. Disponível
em: http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-liberdade-religiosa-e-a-pratica-de-
charlatanismo-curandeirismo-e-estelionato-nas-igrejas-evangelicas,57129.html. Acesso
em: 02/09/2021
ANDREUCCI, Ricardo Antônio. (2012). Mini Código Penal Anotado - Saraiva, 5ª
Ed.
CARVALHO, R.C.P. de. (S/D) Estelionato religioso. Disponível em:
https://canalcienciascriminais.com.br/estelionato-religioso. Acesso em: 02/09/2021
FONSECA, J. J. S.(2002). Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC,
2002. Apostila.
GIL, A. C. (2007). Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
Metodologia da pesquisa científica. Fortaleza: UEC, Apostila.
GIL, A. C. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007.
PEREIRA, Sérgio Henrique da Silva. (2015). Charlatanismo e Curandeirismo: da fé
as publicidades de medicamentos e de estética corporal. Disponível em:
https://jus.com.br/artigos/42583/charlatanismo-e-curandeirismo-da-fe-as-
publicidades-de-medicamentos-e-de-estetica-corporal Acesso em 02/09/2021.
SILVA, Aline Eloi dos Santos (2019). Estelionato Religioso Liberdade
Religiosa à Luz do Direito Penal Brasileiro. Disponívelem:
https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-penal/estelionato-religioso-liberdade-
religiosa-a-luz-do-direito-penal-brasileiro/ Acesso em 02/09/2021.
TUMELEIRO, Naína. (2019) Pesquisa bibliográfica: material completo com 5 dicas
fundamentais. Disponível em: https://blog.mettzer.com/pesquisa-bibliografica/ acesso
em 02/09/2021.

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