Você está na página 1de 10

CURSO SOBRE A LEI DE ABUSO DE AUTORIEDADE (LEI 13.

869/19)

Aula 1

Professor: Samer Agi

LEI DE ABUSO DE AUTORIEDADE (LEI 13.869/19)

INTRODUÇÃO AO TEMA

É importante estudar a presente lei sem preconceitos, seja de primeira ou última ordem. A
lei é polêmica e permite embates e opiniões em diversos sentidos.
No curso haverá a concentração no instituto técnico jurídico da legislação, mas as
polêmicas também serão enfrentadas. É possível encontrar uma interpretação constitucional para
cada um dos dispositivos legais.
Portanto, a lei objeto de estudo é constitucional, não importa se o Senado ou a Câmara de
alguma forma coabitaram por motivos escusos e deram a luz a essa lei, não importa se os sujeitos
responsáveis pelo combate ao crime, os chamados médicos que cuidavam da gestante tinham o
dever de combater os vírus que nela se alojavam e se excederam e aceleraram o parto, o que
importa é que a criança nasceu, tem direito de viver e merece ser respeitada.
Só uma lei assassina outra lei, uma lei só morre porque outra assim quis ou a própria lei
assim determinou, esta última chamada de autorrevogabilidade da norma.
Nos casos em que a lei não encontra qualquer interpretação constitucional possível ela é
considerada natimorta, o que não é o caso da lei objeto de estudo.

CAPÍTULO I

DISPOSIÇÕES GERAIS

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


Art. 1º Esta Lei define os crimes de abuso de autoridade, cometidos por agente público, servidor
ou não, que, no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las, abuse do poder que lhe
tenha sido atribuído.

O caput do art. 1º deixa claro que o agente público pode ser servidor público ou não e para
a prática do crime de abuso de autoridade é desnecessário que o sujeito esteja no exercício das
suas funções, basta que ele abuse do poder a ele conferido a pretexto de exercer suas funções,
por vezes ele nem está exercendo tais funções.

O abuso de poder é o uso indevido, expressão que vem do latim, abusar é usar quando não
deveria ter usado, dizer o que não deveria ter sido dito, exigir o que não deveria ser exigido. Por
vezes a conduta do agente público nasce lícita e o abuso consiste no excesso dessa conduta, por
outras vezes, desde o nascedouro a conduta do agente público é ilícita.

§ 1º As condutas descritas nesta Lei constituem crime de abuso de autoridade quando


praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si
mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal.

O § 1º consagra o especial fim de agir, só há crime de abuso de autoridade quando o


agente age animado por um dos elementos subjetivos descritos nesse parágrafo.

O especial fim de agir é chamado pela doutrina de dolo específico, expressão que encontra
críticas. Para que haja o crime de abuso de autoridade é necessário que o sujeito aja com a
finalidade de prejudicar outrem. A título de exemplo, a decretação da prisão preventiva é em
prejuízo de alguém, mas a finalidade de prejudicar alguém não deve animar o agente público, a
decretação da prisão deve ter como finalidade impedir a reiteração da prática criminosa, garantia
da ordem pública e econômica, assegurar a aplicação da lei penal e etc.

Exemplo: Candidato a eleição em determinado Estado que um mês e meio antes do pleito
eleitoral teve decretada a sua prisão preventiva em razão de um crime cometido na eleição
anterior, quatro anos antes, esse candidato era o primeiro lugar nas pesquisas, nesse caso não há
contemporaneidade, risco a ordem pública e econômica, garantia da aplicação da lei penal e

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


conveniência da instrução penal. De fato, há a decretação da prisão preventiva 50 dias antes da
eleição, o candidato que era o primeiro lugar em corrida acirrada com o segundo lugar nas
pesquisas é preso preventivamente, uma semana depois com uma ordem de habeas corpus ele é
posto em liberdade. Contudo, a presente eleição acabou para esse candidato. A decisão da
decretação da prisão preventiva se tomada com a intenção de prejudicar o individuo, se a ordem
for manifestamente incabível ou tiver o intuito de beneficiar terceiro há crime, nesse caso o poder
judiciário definiu a eleição, pois o primeiro lugar não irá assumir mais e não cabe ao poder
judiciário definir quem serão os membros de outro poder, tal conduta fere a separação de
poderes. Portanto, nesse caso há crime de abuso de autoridade.

Não é possível condutas com intuito de benefício próprio, não deve ser esse o ânimo do
agente e a sua intenção. Nos crimes em espécie essa característica fica mais clara.

No que diz respeito à vedação das condutas praticadas por mero capricho ou satisfação
pessoal, alguém pode dizer que qualquer agente público que cumpre a sua função experimenta
uma satisfação pessoal, pois é gratificante o agente público como um agente de mudança, pois a
realidade que o cerca foi transformada por ele. Porém, a satisfação pessoal do agente público no §
1º deve consequência e não causa, é o que o agente colhe e não o que ele planta, o agente público
deve ser orientado pelo interesse público e a finalidade deve ser o cumprimento de sua função
institucional. Em suma, a satisfação pessoal deve ser consequência da atividade desempenhada e
não se pautar em mero capricho.

Exemplo: delegado de polícia civil que prende sujeito embriagado, sob o efeito de drogas, seminu
e o coloca em frente a logo da polícia civil, chama os veículos de imprensa e permite
questionamentos. Nesse caso há uma execração pública permitida, incentivada e
instrumentalizada pelo chefe da delegacia. O delegado realiza tais atos, em seguida dá entrevista,
vale ressaltar que antes mesmo de a operação ser cumprida já havia um veículo da imprensa
parado em frente à casa do individuo que seria preso. Pouco tempo depois o delegado se
candidata a um cargo eletivo (prefeito municipal, deputado estadual e etc). É notável que esse
delegado se promoveu às custas de alguém do povo que foi preso, justa ou injustamente, a pena é
de prisão e não de execração pública, uso de algemas nos pés, ser exposto seminu as lentes dos

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


jornais e televisão. O delegado no caso exemplificado buscou sua auto promoção e interesse
pessoal, o que caracteriza o crime de abuso de autoridade.

A lei deve servir ao interesse público e não ao agente público, a satisfação do interesse
pessoal é consequência e não causa.

§ 2º A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura


abuso de autoridade.

O § 2º deixa claro que a lei de abuso de autoridade não trata de crimes de hermenêutica.
Há casos em que não é caracterizada a divergência na interpretação, mas sim a ordem
manifestamente ilegal.

Exemplos: decretação de prisão pela prática de um crime culposo, decretação da prisão


preventiva em 2019 pela prática de um crime que ocorreu em 2010 por alguém que não exerce
mais cargo público ou função de poder, além disso, não há noticia de reiteração criminosa. Nesses
casos não há divergência, pois são matérias pacificadas. Portanto, o desrespeito a matérias
pacificadas conduz a ordens manifestamente incabíveis. No caso em que a conduta possui
finalidade de prejudicar o individuo, aí sim será caso de crime de abuso de autoridade.

CAPÍTULO II

DOS SUJEITOS DO CRIME

Art. 2º É sujeito ativo do crime de abuso de autoridade qualquer agente público, servidor ou
não, da administração direta, indireta ou fundacional de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e de Território, compreendendo, mas não se
limitando a:

Tendo em vista o diálogo com o direito administrativo, é preciso compreender o que é a


administração indireta, ela é composta por autarquia, fundações, pessoas jurídicas de direito
público, sociedades de economia mista e empresas públicas. Por outro lado, a administração
direta é composta pela União, Estados, DF, Municípios e os órgãos que pertencem a essas pessoas
Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda
jurídicas, tais órgãos não possuem personalidade jurídica, vale lembrar que os territórios possuem
natureza jurídica de autarquias.

Rol exemplificativo do art. 2º das pessoas que podem praticar o crime de abuso de
autoridade.

I - servidores públicos e militares ou pessoas a eles equiparadas;

II - membros do Poder Legislativo;

III - membros do Poder Executivo;

IV - membros do Poder Judiciário;

V - membros do Ministério Público;

VI - membros dos tribunais ou conselhos de contas.

Os incisos do art. 2º deixa claro que os agentes políticos podem praticar o crime de abuso
de autoridade.

As normas estudadas até agora são não incriminadoras e explicativas. O parágrafo único do
art. 2º traz o conceito de agente público.

Parágrafo único. Reputa-se agente público, para os efeitos desta Lei, todo aquele que exerce,
ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação,
contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou
função em órgão ou entidade abrangidos pelo caput deste artigo.

Exemplo: funcionário da prefeitura que está no balcão da repartição pode ser autor de crime de
abuso de autoridade, quando ele valendo-se de suas funções e do poder que a ele foi conferido,
abusa, com a intenção de prejudicar alguém, de beneficiar a si mesmo ou a terceiro ou o
funcionário prática a conduta por mero capricho ou satisfação pessoal.

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


A lei confere um caráter bem amplo à definição de agente público.

O sujeito passivo imediato dos crimes da lei de abuso de autoridade é o Estado, pois a
administração pública foi violada, a conduta abusiva fere o interesse público, o princípio da
legalidade. Por outro lado, o sujeito passivo mediato desses crimes é o particular que é atingido no
caso concreto, é aquele que sofre a execração pública, por exemplo.

Há relatos de pessoas devendo o valor estimado de 2 milhões de reais e ser decretada a


indisponibilidade de 148 milhões de reais, o magistrado instado a se manifestar não disponibiliza o
valor no intuito de prejudicar essa pessoa, o art. 36 dessa lei define tal conduta como abuso de
autoridade.

O bem jurídico tutelado pela lei de abuso de autoridade é o normal funcionamento da


administração pública e os direitos fundamentais do cidadão, como liberdade, honra, privacidade,
imagem, dentre outros.

Os crimes previstos na lei de abuso de autoridade conferem uma garantia ao cidadão de


maior respeito aos seus direitos fundamentais, porque exige com maior rigor a observância do
princípio da legalidade pelo agente público.

O princípio da legalidade consagrado na Constituição consagra a autonomia privada ao


particular que pode fazer tudo, desde que não esteja proibido, mas para o agente público é
permitido fazer somente aquilo que a lei determina ou autoriza.

O art. 3º da presente lei veio no projeto lei 7.596 e foi vetado, mas o veto foi derrubado,
pois o artigo, o veto e a derrubada do veto eram desnecessários, isto porque, se não existisse o
art. 3º nada seria diferente do que ele diz, porque a lei de abuso de autoridade prevê que sejam
aplicadas em matéria processual o CPP e a lei dos juizados especiais. Portanto, o art. 3º diz o que o
CPP diria se ele não existisse.

CAPÍTULO III

DA AÇÃO PENAL
Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda
Art. 3º Os crimes previstos nesta Lei são de ação penal pública incondicionada.

A ação penal pública incondicionada é a regra, quando a lei nada diz a ação penal será esta,
tal fato significa que o titular da ação penal é o MP, esse órgão recebe os autos do inquérito
policial, se o réu estiver preso ele tem 5 dias para oferecer denúncia, se o réu estiver solto ele tem
15 dias para oferecer a denúncia, não é necessária a representação de quem quer que seja.

§ 1º Será admitida ação privada se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, cabendo
ao Ministério Público aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva, intervir em todos
os termos do processo, fornecer elementos de prova, interpor recurso e, a todo tempo, no caso de
negligência do querelante, retomar a ação como parte principal.

A previsão da ação penal privada subsidiária da pública encontra guarida na Constituição


Federal, há um temor na comunidade jurídica de que atualmente os investigados, acusados,
condenados e seus respectivos advogados, aqueles com maior instrução, poder político e
econômico oferecerão queixa crime uma atrás da outra em face de agentes públicos, em
verdadeira represália pelo simples cumprimento das funções institucionais desses agentes. Porém,
esse temor não se justifica, pois a ação penal é pública e não privada, cabe ação penal privada
somente se a ação penal pública não for intentada no prazo legal, isto é, se o MP for inerte.

O promotor de justiça que recebeu os autos de um inquérito policial que apurou a prática
de um crime de abuso de autoridade pode promover o arquivamento, se não houver crime,
requisitar novas diligências, se forem necessárias ou oferecer denúncia. Somente no caso em que
o MP não fizer nenhuma das hipóteses anteriormente mencionadas é que nascerá a legitimidade
do particular. No caso em que o MP promove o arquivamento dos autos, não há que se falar em
ação penal privada.

Contudo, as pessoas citadas podem ir até a delegacia e registrar uma ocorrência, podem
também requerer a instauração de um inquérito policial ou de um procedimento administrativo
disciplinar, mas se essas pessoas dão causa a instauração de um procedimento em face de alguém
que elas tem ciência que é inocente, essas pessoas estarão sujeitas as penas do crime de

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


denunciação caluniosa, e as penas desse crime são superiores as penas dos delitos da lei de abuso
de autoridade.

§ 2º A ação privada subsidiária será exercida no prazo de 6 (seis) meses, contado da data em que
se esgotar o prazo para oferecimento da denúncia.

O prazo para o oferecimento da denúncia é de 5 dias quando o réu estiver preso e 15 dias
quando o réu estiver solto, esgotado esse prazo sem a manifestação do MP a ação privada
subsidiária poderá ser promovida no prazo de 6 meses, contado da data em que se esgotar o
prazo para oferecimento da denúncia.

Nos casos em que a vítima do crime de abuso de autoridade morre quem terá legitimidade
para a ação penal privada subsidiária da pública será o CADI (cônjuge, ascendente, descendente e
irmão), a preferência é na seguinte ordem: cônjuge, ascendente, descendente e irmão, se dois
legitimados intentarem a ação penal privada subsidiária da pública será observada essa ordem de
preferência, caso qualquer dos legitimados se mostre displicente e inerte outro legitimado pode
assumir a titularidade da ação.

O CPP fala em cônjuge, está abrangido por essa expressão o companheiro? (Art. 31 do CPP)

Na visão do professor e magistrado Samer Agi não é possível que essa expressão abranja o
companheiro, mas há a equiparação na constituição de casamento e união estável, no sentido de
que são entidades familiares. Contudo, em matéria penal é preciso lembrar-se dos ensinamentos
de Von Liszt e a sua conhecida expressão de que a lei penal é a Carta Magna do delinquente, ele
pode fazer tudo o que não está previsto na lei penal. Nesse caso a norma penal tem caráter
hibrido, porque se o sujeito não era casado, mas vivia em união estável e é aplicado o
entendimento de que a expressão do art. 31 do CPP se aplica ao companheiro, pode haver o
tratamento do autor do abuso com um maior rigor, porque há uma possibilidade maior de o autor
do abuso ser punido, isto é, essa extensão prejudica o suposto autor do crime e para Samer Agi se
trata de analogia in malam partem.

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


Se há a mesma razão, em qualquer outra esfera do direito deveria haver o mesmo direito,
se o cônjuge pode oferecer ação penal privada, o companheiro também deveria ter o mesmo
direito, caso fosse o caso pertencente à esfera extrapenal ou em benefício do réu, em desfavor
não é admissível essa equiparação. Contudo, o STJ entende de forma diferente, para esse Tribunal
o companheiro pode oferecer ação penal privada.

A posição defendida por Samer Agi disciplina a impossibilidade de retroatividade do


casamento para prejudicar o suposto autor do fato delituoso.

Exemplo: na época em que foi praticado o crime a vítima era solteira, ela se casou um mês depois
do crime e passado algum tempo faleceu. Nesse caso não há legitimidade do cônjuge para a
propositura da ação privada, porque haveria uma retroatividade, o mesmo entendimento se aplica
ao companheiro. Essa lei processual penal trata-se de uma lei hibrida, já que existe repercussão
penal e a possibilidade de o individuo ir para a prisão ou não está intimamente ligada a essa
norma.

O juiz nomeará um curador especial para verificar a conveniência ou não do ajuizamento


da ação penal quando a vitima for menor de idade, deficiente mental, doente mental e retardado
mental, essas são expressões são utilizadas pelo Código de Processo Penal. A nomeação do
curador especial poderá ser de oficio ou a requerimento do MP

Nesses casos em que há a presença de uma absolutamente incapaz ou relativamente


incapaz o juiz poderá nomear um curador especial que não está obrigado a oferecer a ação penal
privada subsidiária da pública.

É possível que o juiz nomeie o curador especial quando houver conflito de interesses entre
a vítima do abuso de autoridade e o seu representante legal.

Exemplo: um adolescente é vítima do abuso de autoridade praticado por um policial que


coincidentemente era namorado de sua mãe, o MP está inerte e a mãe do menor não quer
oferecer a queixa crime, porque seu namorado é o policial, nesse caso há um conflito de
interesses, hipótese em que o juiz nomeará um curador especial para a mãe do menor.

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda


Lembrando que caso o MP promova o arquivamento, requisite novas diligências ou ofereça
denúncia, não caberá ação penal privada subsidiária da pública.

Não há razão de uma maior preocupação com a utilização indevida do processo penal, com
o mecanismo de perseguição dos réus condenados, investigados e seus respectivos advogados em
face de agentes públicos que simplesmente cumpriram ou estão cumprindo os seus deveres
institucionais.

Material elaborado por Divina M. Araújo Miranda

Você também pode gostar