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Participação social na conquista das políticas de saúde

ARTIGO ARTICLE
para mulheres no Brasil

Social participation in the achievement of health policies


to women in Brazil

Ana Maria Costa 1

Abstract This article analyzes the evolution of the Resumo Esse artigo analisa a evolução, a partir dos
participatory process in women’s movements, espe- anos setenta, do processo participativo dos movi-
cially those related to feminism, in the elaboration mentos de mulheres, especialmente aqueles identifi-
of health care policies to women in Brazil, from the cados com o feminismo, articulado à construção de
1970s until the present time. For this purpose, it is políticas para a saúde das mulheres no Brasil. Para
based on bibliography and on documentary isso, se apóia na bibliografia e análise documental.
analysis. The article determines the collaboration Identifica o caráter inicial colaboracionista que pre-
character that predominated in the beginning of the dominou na relação dos movimentos feministas com
feminist movements’ relations with State institu- as instituições do Estado e sua recente atuação nas
tions, and their recent actions regarding institu- instâncias institucionalizadas de participação e con-
tionalized instances of social participation and con- trole social. Assinala ainda mudanças de eixos de
trol. It further underlines some changes in the polit- luta desses movimentos, antes defensores da saúde
ical activism of these movements, formerly advocat- integral das mulheres e abordando toda a complexi-
ing comprehensive health care to women and ap- dade de suas amplas demandas e necessidades, para
proaching the complexity of the broad demands and uma atuação focalizada, essencialmente voltada aos
needs, and subsequently shifting to the defense of a direitos reprodutivos. Ao lado dos numerosos avan-
focused acting, essentially when it comes to repro- ços identificados, a autora ressalta a necessidade de
ductive rights matters. Parallel to the acknowledge- disseminação do debate sobre o tema da saúde das
ment of several achievements, the author emphasiz- mulheres em todos os espaços de interlocução entre
es the necessity of disseminating the debate over governo e sociedade civil, repolitizando este debate e
women’s health care in every space available for di- fortalecendo as demandas das mulheres.
alogue between the Government and the civil soci- Palavras-chave Saúde da mulher, Participação so-
ety in order to re-politicize this debate and to cial, Gestão participativa em saúde das mulheres
strengthen women’s demands.
Key words Women’s health care, Social participa-
1
tion, Participatory governance in women’s health
Departamento de Apoio à
Gestão Participativa, SGEP,
Ministerio da Saúde. SAFS
Sul Quadra 2 ,Lotes 5 e 6,
Edificio Premium, Bloco F/
303. 70070-600 Brasilia DF.
ana.costa@saude.gov.br
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Panorama e contextos de controle da fecundidade, em alusão à provável


escassez dos recursos naturais, assim como à ne-
Todas as iniciativas do Ministério da Saúde relaci- cessidade de assegurar equilíbrio e proteção ambien-
onadas ao controle da natalidade nos anos setenta tal. Essa reconfiguração do debate internacional,
sofreram a oposição de diversos e difusos setores, com a clara adesão de importantes setores ambien-
desde os movimentos à esquerda como também talistas às idéias de controle populacional, ocasio-
os mais conservadores, incluindo a Igreja Católi- nou um mal-estar no movimento feminista, até
ca. O movimento sanitário foi um dos importan- então clássico aliado dos ambientalistas.
tes núcleos de resistência à implantação, no país, Se, no que diz respeito à aprovação das propos-
de programas de controle demográfico e parte desse tas trazidas para o campo do desenvolvimento, os
movimento subsidiou a sustentação técnica e polí- esforços empreendidos no Cairo pelos países mais
tica conferida ao Programa de Assistência Integral ricos foram frustrantes, o mesmo não se pode di-
à Saúde da Mulher (PAISM) concebido em 1983. zer sobre o debate e seus resultados acerca do tema
Posteriormente, foram se definindo alianças estra- população. Embora o Cairo tenha emudecido frente
tégicas envolvendo setores de governo, particular- a importantes questões demográficas, como o foi
mente o Conselho Nacional dos Direitos das Mu- no caso do envelhecimento, da mortalidade geral e
lheres, ao lado do Ministério da Saúde e do movi- das migrações1, aprofundaram-se as questões de
mento feminista. fecundidade e de planejamento familiar, fortaleci-
O tema planejamento familiar mostrou-se re- do, desde então, pela condição de integrante da es-
corrente nas conferências sobre população em 1974, fera dos direitos humanos.
em Bucareste; 1984, no México e em 1994, no Cai- A Conferência Internacional sobre População e
ro. Nessas conferências, a posição formal do Bra- Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, de-
sil esteve identificada pela defesa do livre arbítrio fine saúde reprodutiva como um estado de com-
das pessoas e dos casais em relação ao número de pleto bem-estar físico, mental e social em todas as
filhos, desatrelando práticas contraceptivas dos matérias concernentes ao sistema reprodutivo, suas
interesses relativos a controle demográfico. A con- funções e processos, e não a simples ausência de
ferência do Cairo, diferente das demais, contou doença ou enfermidade (Capítulo VII, parágrafos
com grande participação da sociedade civil brasi- 7.2). Para o campo da saúde, entretanto, esse con-
leira, especialmente do movimento feminista. ceito é critico em decorrência da fragmentação as-
Nas décadas de oitenta e noventa, o debate avan- sociada exclusivamente à reprodução que despreza
ça e fortalece a articulação a favor do controle do as dimensões da complexidade da saúde integral2.
crescimento da população, desta vez domesticada e Na celebração dos resultados do Cairo pelos
inserida no discurso por políticas para os direitos movimentos feministas, não convém desvalorizar
sexuais e reprodutivos e saúde da mulher, a qual os contextos e avanços nacionais em relação ao
transparece no plano de ação resultante da Confe- tema da integralidade contida no precedente deba-
rência sobre População e Desenvolvimento, realiza- te e nas formulações de políticas públicas para a
da em 1994, no Cairo. A conferência do Cairo teve saúde das mulheres. A consciência desta fragmen-
seu objetivo ampliado para debater o programa de tação trouxe a discussão, que se desdobra ao lon-
ação relacionado à dimensão demográfica do de- go dos anos noventa, sobre o conceito de saúde
senvolvimento sustentável, intensificando o esfor- reprodutiva envolvendo os movimentos feminis-
ço empreendido no Rio de Janeiro, em 1992, na tas e diversas organizações internacionais no es-
Conferência Mundial do Meio Ambiente. No Rio, forço de tentar articulá-lo com os direitos repro-
foram frustrantes as conquistas relacionadas à de- dutivos e sexuais. Esse esforço tem a intenção de
finição de políticas de redução do crescimento de- estabelecer “um vínculo entre saúde e direitos re-
mográfico tendo sido valorizado, especialmente, os produtivos, em uma perspectiva que integra pre-
temas do saneamento, da situação socioeconômica missas de desenvolvimento eqüitativo e direitos
mundial e dos desequilíbrios da biosfera1. humanos”3. No Brasil, o Conselho Nacional dos
A pressão sofrida pelo Brasil durante a Confe- Direitos da Mulher, na Plataforma de Ação de Pe-
rência Mundial sobre o Meio Ambiente, realizada quim, manifesta-se claramente sobre o assunto:
no Rio de Janeiro em 1992, liderada pelos Estados os direitos humanos das mulheres incluem seu di-
Unidos e integrada por seus parceiros do chamado reito a ter controle sobre as questões relativas à
Primeiro Mundo, introduz uma inovação no argu- sexualidade, incluída sua saúde sexual e reproduti-
mento neo-malthusiano sobre a necessidade do va, a decidir livremente a respeito dessas questões,
controle demográfico. Dessa vez, a argumentação sem verem-se sujeitas à coerção, à discriminação
se fundamenta na necessidade de garantir a política ou à violência.
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Não há duvida que, nos anos noventa, a cen- tuação de risco, ainda hoje não dimensionado, para
tral participação do movimento feminista brasi- a saúde das mulheres atendidas pela BEMFAM.
leiro nos processos e nos resultados das conferên- O CPAIMC era financiado pela Agency for In-
cias do sistema ONU e paralelas, além de sua grande ternational Development (AID), através da Family
capacidade de articulação com feministas de todos Planning International Assistance (FPIA), Pathfin-
os países, conformou alianças estratégicas que re- der Foundation e outras, cuja estratégia, mais agres-
sultaram em inegável acúmulo de poder de inter- siva e eficaz, foi fundamental na consolidação da
venção de ativistas nacionais, o que, de certa for- ideologia contraceptiva intervencionista no meio
ma, conferiu ao movimento feminista brasileiro médico. Para tanto, financiou treinamentos de pro-
grande respeito no plano internacional. fissionais vinculados ao ensino da medicina, da en-
fermagem e de outras áreas afins, além de sustentar
uma verdadeira rede de médicos que atuavam na
Saúde materno infantil: realização de esterilização cirúrgica via laparosco-
relações governo-sociedade pia, doando o equipamento e subsidiando as suas
atividades. O CPAIMC distribuiu material e insu-
As tentativas do Ministério da Saúde, tanto no caso mos contraceptivos para diversas outras institui-
da incorporação da paternidade responsável ou ções congêneres, usando de sua prerrogativa legal
mesmo na formulação do Programa de Prevenção de isenção de impostos para importação como en-
da Gravidez de Alto Risco na década de setenta, fo- tidade de utilidade pública, sem fins lucrativos6. A
ram eficazmente combatidas pela sociedade brasi- presença assídua da Igreja nesse debate, que persis-
leira. Movimentos e lideranças sociais junto com os tiu ao longo das décadas de sessenta e setenta, re-
partidos políticos clandestinos do campo progres- forçava a sua moral doutrinária que vincula a prá-
sista polemizaram as idéias e princípios dos grupos tica do sexo à procriação. Essa posição foi relativa-
pró-controle demográfico que sustentavam estas mente flexibilizada no final dos anos setenta, quan-
iniciativas. O argumento estruturante destas forças do a Igreja passou a admitir o controle da fecundi-
sociais era o avanço das estratégias imperialistas dade, desde que o método utilizado fosse o da abs-
americanas, interessado na baixa densidade demo- tinência periódica. Essa flexibilidade para o uso do
gráfica, e a necessidade de ocupação territorial para método denominado pela Igreja como natural re-
a defesa da autonomia e soberania nacional. presentou importante avanço na modificação das
A fragilidade política com que o Ministério da herméticas orientações consagradas no Concílio de
Saúde enfrentava o tema do planejamento fami- Trento, realizado no século XVII.
liar criou um vácuo institucional do Estado, o que No endurecimento da ditadura militar brasi-
favoreceu a ação das instituições de cunho “con- leira nos anos setenta, reforça-se o discurso da se-
trolista”, que agiam de forma desordenada em todo gurança nacional ameaçada pelo grande contin-
o território nacional. Dentre elas, a Sociedade Civil gente de pobres e numerosas famílias, “presas fá-
de Bem-Estar Familiar no Brasil (BEMFAM) e o ceis para a propaganda de idéias subversivas”. Fica
Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à ressaltado, ainda, o recrudescimento de idéias eu-
Mulher e à Criança (CPAIMC) foram as de maior gênicas expressas, por exemplo, na declaração do
relevância4. General Valdir Vasconcelos, em 1982, sobre a con-
A BEMFAM, criada em novembro de 1965 dição de sub-raça de brasileiros que não atingiam
como uma entidade privada sem fins lucrativos, as mínimas condições físicas e de saúde exigidas
tinha sua sede no Rio de Janeiro e foi a primeira para o ingresso no serviço militar, indicando, se-
instituição a realizar o planejamento familiar no gundo ele, a premência de controlar nascimentos
país, atuando em quase todo o território nacional. desta subespécie.
Filiada à Federação Internacional de Planejamento A radicalização dos militares em relação ao
Familiar (IPPF), foi considerada de utilidade pú- tema da demografia vinculado ao crescimento da
blica a partir de 1971. No início, a ação da BE- população pode ter sido a motivação necessária
MFAM foi caracterizada pela criação de clínicas de para o surgimento da indignação de novos atores
atendimento e distribuição de anticoncepcionais neste processo do debate. Note-se que, ao longo
para pobres, em diversos estados. A expansão para dos anos setenta, as idéias dos movimentos femi-
centenas de municípios se fez pelo Programa de nistas internacionais eram introduzidas no país
Distribuição Comunitária de Anticonceptivos, ado- conferindo argumentação substantiva ao iniciante
tado especialmente na região nordeste5. A distri- feminismo brasileiro.
buição de métodos contraceptivos sem critérios e Manifestando suas preocupações com as mu-
sem o monitoramento clínico constituiu uma si- lheres, objeto específico das políticas demográfi-
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cas, as feministas, organizadas em dispersas e frá- curso consensual baseado nos princípios do direi-
geis organizações, introduziram no debate posi- to à saúde e na autonomia das mulheres e dos
ções firmes sobre as suas aspirações, desconstru- casais sobre a definição do tamanho da prole. Esse
indo os argumentos em cena e conclamando a au- consenso entre governo e setores da sociedade civil
tonomia das mulheres na escolha dos seus desti- teve como respaldo, no setor da saúde, o processo
nos relacionados à procriação. Com críticas às ins- avançado da reforma sanitária brasileira no país.
tituições que atuavam no controle demográfico, Anos mais tarde, o movimento da reforma sanitá-
as feministas se contrapunham aos argumentos ria contabilizaria sua grande conquista ao inscre-
de ocupação do território nacional que mutilavam ver a saúde, na Constituição Federal, como direito
a autonomia das mulheres7,8. do cidadão e dever do Estado.
Desde 1960, as brasileiras vinham processando Em 1983, o Ministério da Saúde cria o Progra-
a ruptura com o papel social que lhes era atribuí- ma de Assistência Integral à Saúde da Mulher
do, introduzindo-se no mercado de trabalho e (PAISM), no qual prevalece a análise da complexi-
ampliando suas aspirações de cidadania. Contro- dade das questões de saúde das mulheres orien-
lar a fecundidade e praticar a anticoncepção passa tando a integralidade da política e ressaltando a
a ser aspiração das mulheres. A sexualidade plena autonomia destas sobre questões reprodutivas. O
e os novos padrões de comportamento sexual des- PAISM foi apresentado em 21 de junho de 1983,
vinculam a maternidade do desejo e da vida sexual. pelo então Ministro da Saúde Valdir Arcoverde,
Essa conjuntura implicou a necessidade de políti- por ocasião de seu depoimento à Comissão Parla-
cas de acesso aos métodos contraceptivos. mentar de Inquérito que investigava os aspectos
Embora os governos fizessem vistas grossas à do crescimento populacional. Depois de um mo-
ação das instituições de controle demográfico, o mento inicial de dúvidas e ataques, o movimento
país não dispunha de nenhuma política sobre o de mulheres passou a defender o PAISM. Em 04/
tema e, portanto, os serviços públicos de saúde 01/1986, por meio da Portaria 3.360/86, o Instituto
estavam despreparados para essa demanda. Os Nacional de Assistência Médica da Previdência So-
serviços existentes vinculados à BEMFAM ou CPA- cial (INAMPS) define o PAISM como referência
IMC tinham qualidade duvidosa e ofertavam pla- para a atenção às mulheres e orienta estratégias de
nejamento familiar dissociado de atenção à saúde, sua implantação, refletindo a conjuntura do tra-
com limitação da disponibilidade aos métodos de balho articulado dessa instituição com o Ministé-
alta eficácia. Isso resultava em risco à saúde das rio da Saúde por meio das Ações Integradas de
mulheres e não permitia a livre escolha contracep- Saúde (AIS)10.
tiva. Esta critica compôs o conjunto das reivindi- Mais tarde, a Constituição Federal de 1988 ins-
cações feministas. titui o Sistema Único de Saúde (SUS) e define o
O cenário ficou cada vez mais complexo, entre- planejamento familiar como de livre arbítrio das
meando demandas reais com ideologias: os setores pessoas. Abrangendo um conjunto de princípios e
esquerdistas insistiam na soberania nacional ao diretrizes programáticas, o PAISM contempla as
passo que, na classe média, crescia a demanda pela diversas etapas, ciclos de vida e situações de saúde
oportunidade da livre escolha dos métodos con- das mulheres, incluindo, naturalmente, os assun-
traceptivos, surgindo valores de liberdade pessoal tos da reprodução. No que diz respeito ao planeja-
na decisão acerca do número de filhos com eman- mento familiar, afirma a livre escolha e preconiza
cipação da mulher9. Resultado da exclusão social, que os indivíduos não se submetam a riscos para a
as classes populares assumem a redução do núme- saúde em decorrência da procriação e da anticon-
ro de filhos como uma questão de sobrevivência. cepção, garantindo “o direito de todos os segmen-
Esta conjuntura impôs atitudes ao governo e cum- tos da sociedade à livre escolha dos padrões de
pre reconhecer que as fontes inspiradoras destas reprodução que lhes convenham como indivíduos
mudanças nas políticas de saúde da mulher que ou como casais [...]”11.
resultaram no PAISM foram, pela vertente da saú- O PAISM esclarece que o planejamento famili-
de, o movimento da reforma sanitária e, pela ver- ar deve incluir ações para a anticoncepção e tam-
tente das concepções políticas específicas sobre as bém atenção aos casos de infertilidade. Com o pro-
mulheres, o então incipiente movimento feminista. pósito de garantir autonomia na escolha dos mé-
todos e do controle da fertilidade, são valorizadas
as práticas de educação em saúde e sexualidade,
O PAISM: uma política para as mulheres? entendidas como instrumentos para disseminar as
informações e possibilitar capacidade crítica às
Como resultado desse processo, prevaleceu o dis- mulheres para a eleição de métodos. O programa
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recomenda ainda que se ofereça o conjunto de tec- mento sanitário14. As demandas em torno do pro-
nologias disponíveis para a anticoncepção e que a jeto de reforma sanitária, apresentado e debatido
atenção ao planejamento familiar seja realizada no na 8ª Conferência Nacional de Saúde por cerca de
contexto da atenção à saúde; portanto, sob as di- 5.000 participantes, em 1986, com forte atuação
retrizes do princípio da integralidade da saúde12. das mulheres, permitiram o reconhecimento so-
Na esfera do poder legislativo, ressalta-se, en- bre as especificidades do tema saúde da mulher e
tre outras iniciativas, a lei de regulamentação do aprovaram, entre as resoluções da 8ª Conferência
planejamento familiar em 1996. No plano do Nacional de Saúde, a convocação imediata da Con-
executivo, as normas editadas pelo Ministério da ferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher.
Saúde relacionadas ao parto, pré-natal, violência, Refletindo as premissas da 8ª Conferência Nacio-
entre outros, representam reais avanços na opera- nal de Saúde, a Conferência Nacional de Saúde e
cionalização do PAISM pelo SUS. Direitos da Mulher, organizada também em 1986
No entanto, todo este avanço no plano da legis- pelo Conselho Nacional de Direitos da Mulher, com
lação ou mesmo das iniciativas do poder executivo o apoio dos movimentos de mulheres de todo o
não foi suficiente para estabelecer mudanças no Brasil, do Ministério da Saúde e Ministério da Pre-
padrão de queda da fecundidade no Brasil: fenô- vidência, reafirmou e detalhou as diretrizes norte-
meno que se inicia na década de sessenta e que atra- adoras das políticas de saúde da mulher sintoniza-
vessa os anos oitenta e noventa, chegando à virada das com o PAISM, transformando-as em resolu-
do século com a média de 2,3 filhos por mulher. A ções programáticas. O Quadro 1, contendo uma
queda da fecundidade é resultado do uso generali- seleção reduzida dessas resoluções formuladas por
zado de contraceptivos de alta efetividade no con- cerca de 900 participantes, ilustra a riqueza do de-
trole da procriação, como no caso das pílulas e da bate e das perspectivas de mudanças na organiza-
esterilização cirúrgica, que configuram os métodos ção da atenção à saúde da mulher.
mais utilizados13. Essa constatação é evidência dire- As resoluções da Conferência Nacional de Saú-
ta de que o PAISM não modificou a condição da de e Direitos da Mulher foram transformadas em
vida reprodutiva das mulheres brasileiras. instrumento político, “Carta das mulheres brasi-
leiras aos constituintes”, e neste documento, a saú-
de reafirma-se como tema central da agenda dos
A luta pela integralidade movimentos de mulheres. A carta continha duas
da saúde das mulheres premissas: a de que saúde era um direito de todos
e dever do Estado e que a mulher tinha o direito à
A ebulição política dos movimentos sociais e sin- atenção a sua saúde, independente do seu papel de
dicatos nos anos oitenta, fruto das insatisfações mãe.
com as condições de vida, e trabalho, e condução Lutava-se pelos princípios de atenção integral
política do governo, eclodiram nas greves no final à saúde da mulher e enfatizava-se a oposição à
dos anos setenta e nas manifestações de entidades coerção de entidades públicas ou privadas, nacio-
dos movimentos populares e sindicais ao longo nais ou internacionais, impondo ou negando o
dos anos oitenta. Na conjuntura de transição à acesso aos meios de regulação da fecundidade15.
democracia, a partir dos anos oitenta, a mobiliza- A Constituição de 1988 analisou mais de 120
ção dos movimentos sociais, inclusive a do movi- propostas e emendas substitutivas encaminhadas
mento de mulheres, se intensificou. pelos movimentos de mulheres ao Congresso Na-
O fortalecimento dos movimentos de mulhe- cional. Dos embates do movimento feminista com
res e a presença de lideranças e setores de mulheres as correntes conservadoras no processo constitu-
nos partidos políticos permitiu que, em 1985, fos- inte, o texto constitucional registra um inequívoco
sem criados os conselhos nacional e estaduais com avanço ao situar o planejamento familiar na esfera
a missão de defesa dos direitos da mulher, e im- dos direitos “Da Família, da Criança, do Adoles-
plantadas delegacias para mulheres. A participa- cente e do Idoso”. De acordo com o artigo 226 pa-
ção de lideranças feministas nas instâncias relacio- rágrafo 7º: [...] o planejamento familiar é livre deci-
nadas com a saúde pode ser dimensionada pela são do casal, competindo ao Estado propiciar recur-
ampliação da representação das mulheres na Câ- sos educacionais e científicos para o exercício desse
mara Federal e poder legislativo de estados e mu- direito e vedada qualquer forma coercitiva por parte
nicípios e pela presença de feministas sanitaristas de instituições oficiais e privadas16 .
comprometidas com a necessidade de mudanças Outro ponto positivo, na avaliação dos estudi-
profundas no sistema de saúde nos fóruns organi- osos dos direitos da mulher quanto na dos pesqui-
zados pelos movimentos de mulheres e pelo movi- sadores do movimento sanitário, é a ausência, no
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texto constitucional, de uma proposição apresen- sal e dever do Estado e do movimento feminista em
tada pela Igreja Católica e por setores evangélicos ver respeitada uma plataforma mínima de mudan-
relativa à defesa da vida desde a concepção. A inclu- ças nas concepções sobre o papel da mulher, decor-
são desta proposição representaria um retrocesso. reram mudanças radicais, ainda que no plano for-
O aborto [...] não foi incluído nem restritiva- mal, nas acepções sobre saúde e sobre saúde da
mente e nem de forma facilitadora [...]. Embora te- mulher. A ampliação do conceito de saúde para além
nha havido pressões e emendas para ampliar as possi- do acesso à assistência médico-hospitalar subja-
bilidades do abortamento estas não tiveram acolhi- cente à criação do Sistema de Seguridade Social e da
da. Mas tampouco a redação de uma das versões do extensão das fronteiras da saúde da mulher para
Relatório da Comissão da Ordem Social que o vetava latitudes e longitudes, nas quais o confinamento da
radicalmente teve condições de aprovação17. mulher à condição de reprodutora torna-se supe-
Das vitórias do movimento sanitário, no que se rado, instalam uma nova ordem nas relações entre
refere à consagração da saúde como direito univer- Estado, governo e sociedade.

Quadro 1. Resoluções selecionadas* da Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, 1986.

Temas Resoluções selecionadas

Assistência integral à saúde Res. 4. A criação do sistema único de saúde coloca um grande desafio para
da mulher na perspectiva a sociedade em geral e para os técnicos do setor em particular. Com
de consolidação do respeito à mulher, enquanto cidadã e usuária dos serviços de saúde, coloca
Sistema Único de Saúde igualmente o desafio de como inserir as questões específicas de sua
identidade e sua saúde no sistema único de saúde e de como efetivar o
controle social da população feminina sobre o processo da reforma
sanitária, a fim de assegurar seus direitos.
Res. 11. Reforçar o PAISM
Res. 13. A política de Assistência Integral à Saúde da Mulher deverá
assumir, progressivamente, a plena implantação do planejamento familiar,
em todos os seus aspectos, de forma que as entidades privadas controlistas
sejam desativadas.
Res. 14. Capacitação do setor público na produção de medicamentos e
tecnologia em saúde, estimulando a pesquisa de acordo com as
necessidades do PAISM.

Direitos reprodutivos Res.4. O atendimento à anticoncepção obedecerá aos seguintes critérios:


respeito à liberdade de escolha; acesso a todos os métodos existentes, com
orientação quanto a cada um deles; critérios de avaliação clínica e
acompanhamento pelos serviços de saúde, antes, durante e depois do seu
uso.
Res. 8. As ações de concepção e contracepção não serão atividades isoladas,
devendo ser assumidas e geridas pelo Estado, através de seus órgãos de
saúde, com a participação do movimento de mulheres, sem a ingerência de
interesses privados nacionais ou multinacionais.

Aborto Legalizar o aborto, já que o mesmo nas condições em que atualmente


ocorre no Brasil constitui um problema de saúde pública e saúde mental; e
propiciar assistência e condições para que a mulher que decida fazê-lo o
faça de forma consciente, sendo-lhe garantida assistência médica e
psicológica. O aborto não deve ser considerado como um método
contraceptivo, sendo por isso fundamental que seja dado à sociedade o
conhecimento dos métodos contraceptivos existentes, visando que o
aborto seja uma prática cada vez mais reduzida.

* As resoluções selecionadas referem-se a temas aprovados integralmente.


Fonte: Relatório final da Conferência Nacional de Saúde e Direitos da Mulher, 10 a 13 de outubro de 1986.
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O SUS nos anos noventa e a saúde da mulher: lheres rurais (Marcha das Margaridas); a articula-
avanços e dilemas ção das mulheres negras; as redes de mulheres so-
ropositivas; os movimentos pelo reconhecimento
No quadro recessivo dos anos noventa, o ajuste dos direitos sexuais das mulheres lésbicas, entre
fiscal passou a ditar os rumos da política brasileira. outros. Porém, a agenda de direitos da mulher re-
A subordinação dos problemas sociais à lógica eco- torna ao status de prerrogativa da sociedade civil.
nomicista afetou a organização dos movimentos As tentativas de apropriação dos espaços gover-
sociais. A fragmentação das políticas sociais, embo- namentais durante o mandato do presidente Fer-
ra concomitante ao estímulo à participação das en- nando Henrique não foram muito eficazes. O
tidades populares em conferências e conselhos seto- CNDM continuou a ser um órgão de caráter deli-
riais que pretendem mediar a interlocução da socie- berativo subordinado ao Ministério da Justiça19.
dade com o poder público, refletiu-se na pulveriza- É a internacionalização das agendas dos movi-
ção das demandas pela conquista de cidadania. mentos de mulheres que repõe o tema na pauta
O movimento de mulheres, tal como o sanitá- governamental. Porém, a absorção das questões
rio, passou a resistir às pressões e restrições e a da fecundidade e do planejamento familiar pelo
buscar avançar proposições para a efetivação do conceito de saúde reprodutiva deslocou a centrali-
PAISM. Ao tempo que amplia o engajamento dos dade da saúde integral da pauta das políticas de
movimentos sociais envolvidos na luta pela saúde saúde para as mulheres. Para autores como Las-
das mulheres às idéias proclamadas pelo PAISM, o sonde1, a adoção e difusão do conceito de saúde
movimento feminista passa a se instituir funda- reprodutiva conecta-se com a influência das políti-
mentalmente em organizações não governamen- cas demográficas ditadas pelos países centrais aos
tais, profissionalizando a sua atuação militante. países periféricos, com a vantagem da adesão de
Assim é que entidades do movimento feminista setores anteriormente críticos a essa conexão. No
passam a atuar, de forma profissional, como par- caso brasileiro, trata-se também de abandonar
ceiras do Ministério da Saúde na produção de avanços já conquistados na advocacia pautada na
materiais educativos e técnico normativos para a abordagem mais ampliada do reconhecimento das
atenção e o cuidado à saúde das mulheres. Pode-se verdadeiras dimensões e complexidades da saúde
afirmar que as feministas não priorizaram nos das mulheres.
anos oitenta e noventa a atuação nas instâncias A conjugação das tendências que marcaram os
estaduais e municipais de participação e de contro- anos noventa está relacionada às restrições na in-
le social da saúde das mulheres. Em um contexto terlocução dos movimentos de mulheres com o
específico, o então Ministro da Saúde, Adib Jatene, governo por meio Conselho Nacional de Direitos
nomeou como conselheira do Conselho Nacional da Mulher, aos limites à implementação do SUS, à
de Saúde uma feminista, Margareth Arilha, para forte ênfase nos programas de saúde fragmenta-
ocupar uma das vagas destinadas à sociedade ci- dos e às pressões emanadas do alargamento do
entífica. Essa iniciativa foi importante por ter per- intercâmbio internacional pela adoção de políticas
mitido a vocalização das demandas das mulheres de planejamento familiar. As denúncias sobre a
e o surgimento de novos posicionamentos políti- esterilização de mulheres negras no Brasil que fo-
cos naquele órgão colegiado. ram apuradas na Comissão Parlamentar Mista de
Já nos estados e municípios, constata-se, nesse inquérito instalada em 1991 reforçou a necessida-
período, um vazio absoluto de representações de de de regulamentar a Constituição de 1988 sobre o
movimentos de mulheres nos respectivos conse- tema, contribuindo com a primeira versão de pro-
lhos de saúde, particularmente de feministas. Isso, jeto que mais tarde resultou na Lei 9.263 de 1996.
no entanto, não impediu que esses movimentos, Esta lei regulamenta o planejamento familiar e atri-
mesmo concentrados territorialmente em poucos buiu ao SUS as responsabilidades pela execução de
estados, desenvolvessem um importante e qualifi- ações de regulação da fecundidade voltadas à ga-
cado trabalho participativo junto às instituições rantia de direitos iguais de constituição, limitação
de saúde, demandando a implantação de ações de ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou
saúde sintonizadas com o PAISM4. A rearticulação pelo casal. O PAISM, tomado como referência para
da organização das mulheres e da retomada do a elaboração desta lei, contribuiu para reafirmar a
tema saúde da mulher na agenda governamental inserção do planejamento familiar entre as ações
só ocorreu a partir de 1995, como reflexo da Con- de saúde destinadas à atenção integral à saúde da
ferência do Cairo realizada em 199418. De fato, no mulher em todos os seus ciclos vitais e reforçou o
âmbito interno, a mobilização de mulheres read- componente emancipatório da mulher quanto às
quire visibilidade com o fortalecimento das mu- decisões em saúde. Em seu artigo 4º, a lei 9.263
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propõe que o planejamento familiar se oriente por meiro refere-se à expansão das coberturas de aten-
ações preventivas e educativas e pela garantia de ção básica a toda população brasileira, decorrente
acesso igualitário a informações, meios, métodos da universalização do acesso e ampliação da oferta
e técnicas disponíveis para a regulação da fecundi- de serviços de saúde de base municipal com a es-
dade18. Para Correa e Piola20, o nível federal de tratégia do Programa de Saúde da Família. E o se-
administração apresentou, na dé-cada de noven- gundo diz respeito aos processos de mudança nos
ta, dificuldades e descontinuidade no processo de modelos de atenção às mulheres, especialmente re-
assessoria e apoio para implementação do PAISM. presentados por iniciativas voltadas à redução das
Contraditoriamente, o Ministério da Saúde prio- taxas de cesárea e à humanização do parto.
rizou a saúde da mulher partir de 1998, mas ado-
tou como estratégia reforçar apenas ações relacio-
nadas ao pré-natal, assistência ao parto e à anti- A situação atual da participação social
concepção, limitando assim a atenção integral da das mulheres por saúde
saúde da mulher à dimensão reprodutiva. Para o
câncer cérvico uterino, adotou a questionável es- Informações preliminares do Sistema Nacional de
tratégia de campanhas de realização de exames diag- Informações sobre Conselhos e Conselheiros de
nósticos. A oferta de serviços para a realização de Saúde – ParticipanetSUS – dão conta que, em 2007,
exames preventivos para câncer ginecológico deve entre 5.463 conselhos municipais de saúde, existem
ser permanente e amplamente disseminada na rede 276.542 entidades representando os usuários do
e esta campanha, sem fixar a atividade na rede SUS SUS. Dessas, apenas 623, ou seja, 0,23%, são relacio-
e sem preocupações com a retaguarda para o ca- nadas à temática das mulheres. Dentre estas 623
sos suspeitos identificados, acabou por deixar um entidades, observa-se que mais da metade delas
saldo eticamente complicado. Muitas entidades e (54,57%) são clubes ou associações de mães, 26,48%
organizações feministas emprestaram seu prestí- são de movimentos sociais de mulheres, 8,19% são
gio e mesmo sua capacidade técnica a estas iniciati- sindicais e o restante, de outras modalidades.
vas ministeriais. A representação dos movimentos de mulheres
Constata-se que, se o PAISM permanece como está presente no Conselho Nacional de Saúde (CNS)
norteador das ações no nível teórico, na prática ele não apenas por meio da entidade representativa do
não resistiu à fragmentação em programas por respectivo movimento como também as represen-
agravo ou condição que foram e são sucessiva- tações de população negra, população LGBT, po-
mente criados. Por outro lado, se esta fragmenta- pulação do campo, sindicalistas e outros que con-
ção é fato, observa-se também que no momento formam uma configuração favorável aos avanços
atual há uma clara difusão de responsabilidades nas questões de saúde das mulheres e seus direitos
entres os diversos órgãos e áreas do Ministério da sexuais e reprodutivos. A Comissão Interinstituci-
Saúde por atuar em saúde das mulheres e isso quer onal de Saúde da Mulher (CISMU), instância de
dizer que o tema se tornou transversal. assessoramento ao pleno do CNS, tem ampla pre-
No entanto, na prática, ainda existe toda sorte sença de setores representados e mantém uma re-
de problemas que impedem que as mulheres sin- gularidade de debates e de contribuições.
tam mudanças concretas na rede de serviços do É rara a presença da temática da saúde da
SUS. Destacam-se nesse contexto as grandes desi- mulher nas pautas e nos debates do CNS que fo-
gualdades de oferta, assim como as ações relacio- ram estudados por meio dos registros nas atas de
nadas ao climatério/menopausa; às queixas gine- reuniões ordinárias e extraordinárias do colegia-
cológicas; à infertilidade e reprodução assistida; à do. A Tabela 1 mostra as pautas sobre saúde das
saúde da mulher na adolescência; a doenças crôni- mulheres constantes das atas de reuniões realiza-
co-degenerativas; à saúde ocupacional; à saúde das no período de 2003 a 2007. Das 45 vezes que o
mental; a doenças infecto-contagiosas. tema foi objeto de pauta do CNS, por seis vezes
Ainda que o balanço das políticas de saúde das (13,3%) envolveu o debate e a aprovação de políti-
mulheres nos anos noventa não contabilize gran- cas e programas para as mulheres; oito (17,7%)
des avanços no que se refere à atenção integral à vezes tratou do tema de avaliação e monitoramen-
saúde das mulheres, é imprescindível assinalar dois to de políticas e programas; e em cinco (11,11) des-
movimentos significativos, que indireta ou direta- tes eventos o debate foi realizado acerca de situa-
mente alteraram o panorama institucional das ções críticas envolvendo posicionamento ético-po-
ações direcionadas à saúde das mulheres. O pri- lítico do referido colegiado.
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Tabela 1. Número de debates realizados pelo Conselho Nacional de Saúde com o tema saúde da mulher por
categoria: 2003 a 2007.

Número de debates com o tema saúde da mulher


Categoria
Número absoluto %
Debate e aprovação de políticas e programas 6 13,33
Avaliação/monitoramento de políticas e programas 8 17,77
Debate e posicionamento sobre situações críticas 5 11,11
Informes e indicações de representações do CNS 26 57,77
Total 45 100
Fonte: Atas do CNS 2003-2007.

A avaliação dos problemas da saúde da mu- . Aumentar em 50% o número de serviços de


lher e as demandas pela plena efetivação do SUS e saúde do SUS para a realização de laqueadura tu-
do PAISM retornam à pauta do movimento femi- bária e vasectomia em todos os estados;
nista por ocasião da I Conferência Nacional de . Reduzir em 15% a taxa nacional de cesariana
Políticas para Mulheres realizada em 2004 – Ano no SUS;
da Mulher – contando com a participação de cerca . Aumentar em 30% os serviços de atenção às
de 1.800 delegadas. Na esfera setorial, a 12ª Confe- mulheres em situação de violência nos municípios
rência Nacional de Saúde, realizada em 2003, que pólos de microrregiões;
teve como tema: “Saúde: um direito de todos e um . Aumentar em 15% a cobertura do exame Pa-
dever do Estado. A saúde que temos, o SUS que panicolau na população de risco (35 a 49 anos de
queremos”, produziu um relatório que também idade);
recomenda no sub-tema “Saúde e Gênero” o avan- . Aumentar em 25% a realização de cirurgias
ço na implementação da Atenção Integral à Saúde para reconstrução mamária;
da Mulher (PAISM), além de alertar para a neces- . Reduzir em 15% o número de complicações
sidade de considerar as especificidades, tais como de aborto no âmbito do SUS;
das mulheres negras, lésbicas, profissionais do sexo . Implantar comitês de morte materna em 100%
e indígenas. dos municípios com população superior a 50 mil
Sensível ao debate, o Ministério da Saúde lan- habitantes;
çou a Política Integral à Saúde da Mulher, proposta . Reduzir em 6% a incidência de aids em mu-
que busca retomar as proposições do PAISM, atu- lheres;
alizando-as e adequando-as às necessidades pre- . Alcançar 100% de cobertura com a vacina
sentes nos últimos vinte anos. O Plano Nacional dupla adulto em mulheres em idade fértil de 15 a
de Saúde (PNS), Um Pacto pela Saúde do Brasil 49 anos de idade, nas regiões Norte, Nordeste, norte
(2005), aprovado pela Portaria 2.607, de 10 de de- de Minas Gerais e no estado de Goiás, correspon-
zembro de 2004, teve como referência as delibera- dendo a 2.288 municípios, com vistas à proteção
ções da 12ª CNS realizada em dezembro de 2003 e da mãe e do concepto contra o tétano acidental e
o Plano Plurianual – PPA. Este instrumento de neonatal;
referência é indispensável à atuação das esferas de . Implantar/implementar cinco centros de re-
direção do SUS, pois tem o objetivo de contribuir ferência para atendimento à fertilização de casais
para a redução das desigualdades e iniquidades sorodiferentes para o HIV;
em saúde, mediante pactos de metas estratégicas . Garantir a pelo menos 60% das gestantes in-
para a melhoria das condições de saúde da popu- tegrantes das famílias beneficiárias do Programa
lação e para a resolubilidade do SUS. O plano Bolsa Família o acompanhamento segundo a agen-
contempla, dentre as iniciativas prioritárias do da de compromissos do setor saúde (vigilância ali-
Ministério da Saúde, a saúde da mulher e estabele- mentar e nutricional, vacinação e pré-natal).
ce como metas: O plano de ação busca consolidar os avanços
. Reduzir em 15% os índices de mortalidade no campo dos direitos sexuais e direitos reprodu-
materna; tivos, com ênfase na melhoria da atenção obstétri-
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ca, no planejamento familiar, na atenção ao abor- ficuldades do diálogo com a sociedade civil justifi-
tamento e no combate à violência doméstica e caram a fragilização de mecanismos de interlocu-
sexual. Agrega a prevenção e o tratamento das ção entre Estado e sociedade. O governo atual tem
DSTs, a atenção às mulheres vivendo com HIV/ dado provas de disposição ao diálogo e reconheci-
aids e às portadoras de doenças crônico-degene- mento político dos movimentos sociais e da socie-
rativas e câncer ginecológico21. dade civil; no entanto, análises futuras sobre as con-
Todas as metas deste plano necessitam ajustes sequências destas relações necessitam ser realiza-
locais para darem conta das diversidades e especifici- das. A presença de inúmeros dirigentes governa-
dades das mulheres brasileiras. É o caso das mulhe- mentais provenientes dos movimentos sociais ge-
res negras, das lésbicas, das indígenas, das ciganas, rou, muitas vezes, uma ausência de delimitação de
dentre outras. Orientação sexual, etnia, raça, classe compromissos e de papéis sociais que promiscu-
social e local de moradia são variáveis que incidem em, ou seja, confundem as relações sociedade civil e
diretamente sobre a saúde e condições de vida. É governo.
por isso que, com agenda fixa anual, milhares de Claro é que os processos participativos são fer-
mulheres do campo, as Margaridas, ocupam a Es- ramentas poderosas na garantia de direitos. Para
planada dos Ministérios e negociam com cada se- tanto, é necessário seguir a trilha da politização per-
tor suas pautas e reivindicações. Note-se que estas manente da sociedade civil e, ao mesmo tempo,
entidades rurais, especialmente a Confederação dos permitir soluções criativas de transformação da
Trabalhadores da Agricultura (CONTAG) e as vin- sociedade movidas pelos interesses coletivos, pela
culadas ao Movimento Sem Terra (MST), desen- justiça social e pela cidadania. Oxalá os novos femi-
volvem importantes projetos cujas finalidades vi- nismos oriundos destes novos tempos e matizes
sam ao fortalecimento político de lideranças femi- tragam força à luta pela saúde das mulheres. A saú-
ninas na atuação pela garantia do direito a saúde. de das mulheres deve ser concebida valorizando a
Dezenas de conferências nacionais setoriais fo- perspectiva de classe social e de gênero na determi-
ram realizadas ao longo dos dois mandatos do atual nação social da saúde e, desta visão complexa e
governo e, invariavelmente, todas elas apontam rei- ampliada, retomar a necessária articulação da saú-
vindicações e deliberações das mulheres. Entretan- de com as políticas sociais, incluindo as de seguri-
to, não há um balanço disponível de monitora- dade social, para produzir mudanças efetivas na
mento sobre o grau de atendimento destas deman- inclusão e no bem-estar social desta população.
das, mas é certo que, se comparados os diversos A tentativa nesta abordagem foi mostrar a pre-
relatórios das distintas conferencias setoriais, ob- sença da participação das mulheres na luta pela saú-
servam-se frequentes repetições de reivindicações de e quanto o percurso dos últimos vinte anos acu-
que muitas vezes reforçam umas as outras, mas mulou, apontando numerosos avanços. A marca é
que também são contraditórias entre si. da insistente presença da sociedade civil, entendida
A força política acumulada pelos movimentos como uma esfera social distinta do Estado e do
sociais nos últimos anos no país não pode ser ana- mercado, abarrotada de mulheres, cidadãs, associ-
lisada distanciada do contexto dos macro-cenári- ações e movimentos sociais que problematizam
os. As consequências sociais do cenário dos anos novas questões, praticam o advocacy, disputam seus
noventa que inaugurou a retirada estratégica do direitos e buscam ampliar a participação e a inci-
Estado foram o acirramento das desigualdades e o dência pública nos processos políticos, desafiando
aumento do desemprego. No plano político, as di- até mesmo os limites da política institucional.
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