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O BRASIL NA QUESTÃO DOS DIREITOS HUMANOS: UM PAÍS DE

DUAS CARAS

por Fábio Konder Comparato

Na cerimônia de conclusão do curso do Instituto Rio Branco, de


preparação à carreira diplomática, a presidente Dilma Roussef
declarou que o tema dos direitos humanos será promovido e
defendido “em todas as instâncias internacionais sem concessões,
sem discriminações e sem seletividade”.

A declaração foi acolhida com aplausos de todos os lados, muito


embora ela nada mais represente do que o cumprimento de um
expresso dever constitucional. A Constituição Federal, em seu art. 4º,
inciso II, determina que o Estado brasileiro deve reger-se, nas suas
relações internacionais, pelo princípio da “prevalência dos direitos
humanos”.

Acontece que nessa matéria o Estado brasileiro – e não apenas este


ou aquele governo – segue invariavelmente a regra dos dois pesos e
duas medidas. A presidente da República corre o sério risco de passar
à História como seguidora da máxima: Façam o que eu digo, mas
não o que faço!

Em 24 de novembro de 2010, o Brasil foi condenado por


unanimidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em
razão de crimes de Estado cometidos durante a chamada “Guerrilha
do Araguaia”. Até agora, passados cinco meses dessa decisão
internacional, nenhum dos nossos (mal chamados) Poderes Públicos
fez um gesto sequer para iniciar a execução dessa sentença
condenatória. Ressalte-se que, além de declarar que a decisão do
Supremo Tribunal Federal de admitir a anistia dos torturadores e
assassinos do regime militar “carece de efeitos jurídicos”, a Corte
Interamericana de Direitos Humanos exigiu, entre outras medidas,
que se implementasse um curso “obrigatório e permanente de direitos
humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças
Armadas”. Escusa dizer que tal curso não pode ser coordenado nem
pelo Sr. Nelson Jobim nem pelo deputado Jair Bolsonaro.

Pior ainda. Inconformado com a decisão da Comissão


Interamericana de Direitos Humanos, que mandou suspender as
obras de construção da Usina de Belo Monte, em razão do
desrespeito aos direitos fundamentais dos indígenas que de lá foram
expulsos, o governo da presidente Dilma Roussef, amuado, resolveu
retirar a candidatura do ex-ministro Paulo de Tarso Vannuchi para
ocupar justamente o posto de membro daquela Comissão, em
substituição a Paulo Sérgio Pinheiro. Ou seja, “já que é assim, não
brinco mais”.

Para dizer a verdade, essa duplicidade do Estado brasileiro em


matéria de direitos humanos – o que se faz aqui dentro nada tem a
ver com o que se prega lá fora – não é de hoje.

Durante todo o período imperial, a escravidão de africanos e seus


descendentes tinha duas faces: uma civilizada e benigna perante os
europeus civilizados, outra brutal e irresponsável cá dentro.

Em 1831 o governo do Regente Diogo Feijó promulgou uma lei que


submetia a processo-crime por pirataria e contrabando, não só os
traficantes de escravos africanos, mas também os seus importadores
no território nacional. A mesma lei determinou que os africanos aqui
desembarcados seriam de pleno direito considerados livres. No
entanto, até 1850, como denunciou o grande advogado negro Luiz
Gama, “os carregamentos eram desembarcados publicamente, em
pontos escolhidos das costas do Brasil, diante das fortalezas, à vista
da polícia, sem recato nem mistério; eram os africanos, sem
embaraço algum, levados pelas estradas, vendidos nas povoações, nas
fazendas, e batizados como escravos pelos reverendos, pelos
escrupulosos párocos”.
Na verdade, a Lei Eusébio de Queiroz de 1850, que extinguiu
efetivamente o tráfico negreiro, só foi aplicada porque a armada
inglesa, autorizada pelo Bill Aberdeen de 1845, passou a apresar os
barcos negreiros, até mesmo dentro dos nossos portos.

Pois bem, uma vez extinto o comércio infame de seres humanos, o


governo imperial passou a sofrer a pressão internacional para abolir
a escravidão. Na conferência de Paris de 1867, convocada para tratar
do assunto, as nossas autoridades não hesitaram em declarar que “os
escravos são tratados com humanidade e são em geral bem alojados e
alimentados… O seu trabalho é hoje moderado… ao entardecer e às
noites eles repousam, praticam a religião ou vários divertimentos”.
Só faltou dizer que os brancos pobres se acotovelavam na entrada das
fazendas, para serem admitidos como escravos…

Como combater essa duplicidade de conduta tradicional entre nós,


em matéria de direitos humanos?

Só há uma maneira: denunciar abertamente os verdadeiros autores


desses crimes, perante o único juiz legítimo, que é o povo brasileiro.

É indispensável, antes de mais nada, mostrar que essa reprovável


duplicidade de caráter é um defeito específico das falsas elites que
compõem a nossa oligarquia.

É preciso, porém, fazer essa denúncia diretamente perante o povo,


pois em uma democracia autêntica é ele, não os governantes eleitos,
quem deve exercer a soberania.

Acontece que, numa sociedade de massas, uma denúncia dessas há


de ser feita, necessariamente, através dos meios de comunicação de
massas. Ora, há muito tempo estes se acham submetidos à dominação
de um oligopólio empresarial, cujos membros integram o núcleo
oligárquico, que controla o Estado brasileiro.

Chegamos, assim, à raiz de todas as formas de duplicidade que


embaralham a vida pública neste país: tudo é feito em nome do povo,
mas este é impedido de tomar qualquer decisão por si mesmo. O
soberano constitucional acha-se em estado de permanente tutela.

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