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APRESENTAÇÃO

Dentro dos objetivos traçados por J. Guinsburg para


a coleção Elos, reuni neste volume dois trabalhos. O pri-
meiro deles é um ensaio escrito em março/abril de 1970,
sob o título "Superação e ruptura da idéia de uma lingua-
gem exclusiva para cada gênero literário", destinado a uma
coletânea organizada por César Fernández Moreno, Ame-
rica Latina en su literatura, publicada em espanhol, em
1972, sob os auspícios da UNESCO (México, Siglo Vein-
tiuno Editores). O segundo, uma entrevista concedida em
novembro de 1972, em Lisboa, ao poeta e crítico E. M. de
Melo e Castro, sobre a poesia brasileira de vanguarda e
suas relações com a portuguesa. O primeiro trabalho é
publicado aqui em seu texto integral, acrescido da biblio-
grafia que o acompanhava originalmente. O segundo, por
se tratar de entrevista gravada, foi objeto de uma reelabo-
ração cuidadosa, que o tornou mais adequado para a pu-
blicação em livro. (Anteriormente 7 havia sido estampado,
mediante transcrição direta do •registro oral, sem revisão
suplementar, na Antologia da Poesia Concreta em Por-
tugal, organizada por José Alberto Marques e E. M. de
Melo e Castro, Editora Assírio & Alvim, col. "Documenta
Poética", Lisboa, 1973.) Acredito que os dois trabalhos,
agora reunidos, se entrosem e guardem continuidade, pois,
em mais de uni ponto, representam abordagens mutua-
mente complementares de questões afins de poética e de
.
poesia.
Haroldo de C ampos
São Paulo, novembro de 1976
tão. :e O agudo senso de un1a operação sincrônica dessa
natureza que se pode vislumbrar nas seguintes palavras de
Borges: " . . . el Tiempo acaba por editar antologías admi-
rables ( . . . ) nueve o diez páginas de Coleridge borran la
gloriosa obra de Byron ( y el resto de la obra de Cole-
ridge) ".
2. MASS-MEDI A: SUA INFLU ENCIA

Um dos pontos cruciais no processo de dissolução da


pureza dos gêneros e de seu exclusivismo lingüístico foi a
incorporação, à poesia, de elementos da linguage1n pro-
saica e conversacional, não apenas no campo do léxico,
frisado em especial por Mukarovsky, mas também no que
respeita aos giros sintáticos. Daí, a partir de premissas
que podem ser rastreadas, por exemplo, num Heine, num
Gautier e mesmo em certo Musset irônico (muito mais
atual que o propugnador da "poesia-soluço", que classi-
ficamos entre os ron1ânticos "extrínsecos" ), se desenvolve
a linha "coloquial-irônica" do Simbolismo ( assim deno-
minada por Edmund Wilson) , de um Corbiere e de um
Laforgue, que contemporanean1ente informa a "logopéia"
de um Eliot e de um Pound.
Lingüisticamente, este problema pode talvez ser visto
como un1 conflito no ân1bito daquilo que os estruturalis-
tas praguenses, nas Teses de 1929, chamavam "modos de
manifestações lingüísticas", isto é, a "manifestação oral"
e a "manifestação escrita" e, em segundo lugar, a "lingua-
gem alternativa com interrupções" e a "linguagem monolo-
g~d~ contínua". A determinação e a mensuração da asso-
c~açao desses modos com as funções da linguagem, vale
dizer, c~m os vários dialetos funcionais, é a questão que
14 se propoem, neste passo, os subscritores das Teses . Foca-
artístico muitas vezes antecipa de uma ou mais gerações'.. .,,.
·
eia e a tecno Iog1a. O · "f · d d ·
s1gru 1ca o o mosaico telegráficó~: e ª c1en ..
manifestaçõe~ . j~rnalísticas n~o esc~pou à , m~nte de E~_: A~ ~~~
Ele soube util!za-lo em ~uas 1nvençoes notave1s : o poema simbo~
lista e a est6na de detetive. Ambas estas formas exigem do leit
uma participação ?º tipo "faça você ~esmo" (do-it-yourself)~
Apresentando uma imagem ou processo incompleto, Poe envolvia
seus leitores no processo cr~ativo, de um modo que Baudelai~e
Valéry, T. S. Eliot e muitos outros admiraram e procurara~
seguir.

3. O PROCESSO DE DESTRUIÇÃO DOS G~NEROS

3 . 1 Um precursor: Sousândrade

Esta introdução foi algo longa, mas necessária. Ela


não nos afastou de nosso objetivo específico, mas, ao
contrário, permitir-nos-á entrar em cheio no âmago dele,
munidos já de um cabedal de idéias que nos facilitará a
leitura significativa do espaço literário brasileiro, e mais
amplamente latino-americano, que nos cabe enfocar.
Qual seria, dentro do problema de uma superação
do cânon dos gêneros e de sua linguagem exclusiva, a
situação da literatura latino-americana?
Sabemos que o nosso Romantismo poético - mo-
mento-chave, como até aqui ficou exposto, para a consi-
deração dos modernos aspectos da questão - é um Ro-
mantismo defasa.do e epigonal, extensamente dependente
dos modelos europeus, e não dos modelos "intrínsecos",
ne~li~enciados mesmo em suas pátrias de origem, mas,
pr1nc1palmente, dos paradigmas "extrínsecos" (a oratória
hug?ªºª: '? intimismo soluçante de Musset, a religiosidade
1acnmator1a de Lamartine) . Se Valéry é tão severo com
os mestres franceses de nossos românticos ("l'oeuvre ro-
18 mantique, en général, supporte assez mal une lecture ra-
A_ experiência de Caetano e ~il n~ mús}~a Popular
brasileira parece dar uma nova d1mensa_o pratica a esse
mesmo problema, revertendo para a orahdade as técnicas
de uma poesia partitura! e tipográfica.
Com . o caso da poesia concreta rematamos nosso
estudo. Realmente, aqui, já se passa dos problemas de uma
semiologia restrita ( a linguagem verbal e a literatura nela
baseada) para os de uma semiologia ou semiótica geral,
onde os caracteres que Jakobson chama "pan-semióticos",
e que a linguagem verbal partilha com outros sistemas
de signos, são metódica e conscientemen te explorados.

50
ASPECTOS DA POESIA DE VANGUARDA
NO BRASIL E EM PORTUGAL
(Entrevista de Haroldo de Campos
a E. M. de Melo e Castro)

EMC : Neste momento, qual é a posiç·ão da Poesia


Concreta e Experimental no - Brasil, e nomeadamente o
grupo Noigandres? O que é que estão a fazer, qual é
a interferência crítica, criativa e de comunicação geral?

HC : A poesia concreta no Brasil desenvolveu-se


em torno da revista-livro Noigandres (publicada de 1952
a 1962; 5 números, o último uma antologia). Em segui-
da, teve como porta-voz a revista Invenção (5 números,
a partir de 1962). Nos anos 50, houve na poesia concreta '
brasileira um aspecto que eu considero muito importante:
um trabalho cofetivo, uma espécie de voluntário anoni-
mato dos componentes da equipe, no sentido de conseguir
algo como uma arte geral da palavra, impessoal, como
síntese possível dos traços comuns e postas entre parênte-
ses as diferenças estilísticas individuais. Isto se deu, em
particutar, num certo momento que nós chamamos a "fase
áurea" ou "heróica" da poesia concreta, consubstanciada 51
mostrar que os que não se dão conta disto estão "por
fora", vivem num mundo ainda pré-mallarmeano . .. Isto
parece uma coisa extremamente clara hoje. Pelo menos
em termos de teoria literária, pode-se dizer que é muito
difícil ter dúvidas agora a respeito da importância funda-
mental dessa revolução da escritura mallarmaica. As vezes
o que acontece é que um teórico da literatura, um crítico
que se informa dos problemas do ponto de vista teórico-
-literário, pode aceitar nesse plano a existência dessa rup-
tura, acolher a necessidade da superação de um certo
mundo de formas . Mas já quando passa ao terreno da
aferição do propriamente criativo, então esse mesmo teó-
rico, esse mesmo crítico sofre uma "defasagem" de sensi-
bilidade, não consegue no plano sensível dar a resposta
adequada às propostas criativas que enfrenta, acompanhar
na prática aquilo que ele, pelo menos em princípio, é
capaz de admitir teoricamente . . . Tenho reparado isso
nos discursos teórico-literários recentes : há realmente o
advento de algo como a consciência de uma nova era, a
era da escritura ou do texto, alguma coisa de pacífico,
quase. O que muitas vezes ocorre, porém, é que críticos
de mentalidade tradicional apropriam-se desses termos, dos
termos da nov..u?oética do estrutural ou do pós-estrutural,
como se procedessem a uma "cosmese" para encobrir suas
idéias velhas . . . Substituem apenas a nomenclatura: em
vez de falarem em forma e conteúdo, falam em estrutura,
em signo, mas as idéias continuam as mesmas, as escolhas,
o gosto literário, o mesmo . . .

EMC : É apenas uma mudanç_a de terminologia . . .


HC : É uma "cosmese" ... É um problema de "esté-
tica", não no sentido filosófico da expressão, mas na acep~ 67
ção dos "salões de beleza", dos "esteticistas" da maqui-
lagem .. .

EMC: Havia aqui uma pergunta que eu gostava de


fazer, que era a seguinte: - Você esteve para trabalhar
com McLuhan?
HC: Não, não houve este fato. Eu participei, isto
sim, de um evento muito interessante: em 66, uma mesa-
-redonda internacional, organizada pelo Pen Club de
Nova York, no âmbito de um grande congresso de escri-
tores que promoveu. Uma discussão sobre "o escritor
na era eletrônica", que era presidida por McLuhan. De
todos os participantes do panei, eu era o único que
realmente estava "de acordo". . . ( evidentemente, quan-
do falo "de acordo", nada está implicado em termos de
adesão) . Eu estava podendo dialogar com McLuhan em
termos de uma comunidade de interesses, falava exata-
mente a mesma linguagem, porque, para mim, os proble-
mas que McLuhan estava tentando expor àquele auditó-
rio eram problemas que faziam parte da minha prática
diária de poeta. Quer dizer: falar da superação da idéia
estrita de livro, da importância do elemento ideogrâmico,
da importância das estruturas "verbivocovisuais", era
uma problemática que fazia parte do meu dia-a-dia poé-
tico desde o começo dos anos 50. Participar do diálogo,
nesses . termos, foi para mim a coisa mais natural do
mundo. A linguagem em que McLuhan falava, em ter-
mos . de teoria da comunicação, de estrutura dos nel1-'
n:edza; era um dado de minha prática poética, da pr~-
tica dos meus amigos poetas, dos experimentos da poesia
concreta. De modo que houve uma conjunção, por um
68 lado, de uma prática real, decorrente de um pensamento
podem de repente nos surpreender com algo inteiramente
novo, quando desvel~dos à luz de ~m ponto de vista que
procura ler neles aquilo que de mais provocativo e inven-
tivo têm para uma óptica nossa contemporânea ...
EMC: Foi exatamente por exemplo o que o Helder
Macedo acaba de fazer com Bernardim Ribeiro, é uma
coisa realmente extraordinária dentro dessa óptica.
HC: Você veja as redescobertas de poetas como Sou-
sândrade, Pedro Kilkerry, a possibilidade de reler todo o
barroco, o notável trabalho que fez por exemplo o Rodri-
gues Lapa com as Cantigas d'Escarnho e de Mal Dizer,
daqueles trovadores medievais que se revelaram contem-
porâneos nossos absolutamente sincrônicos, falando a lin-
guagem do nosso tempo, uma imensa inventividade, de\
qual sobretudo decorre uma lição de humildade: é preciso
ter muita capacidade inventiva, muita perícia artesanal,
para estar à altura daqueles homens, aqueles aparentes
antepassados, quase anônimos, que na verdade se mostram
poetas nossos contemporâneos, companheiros do trabalho
diário que estamos tentando fazer.
(Gravação feita na noite de 2 de novembro de 1972, em
Lisboa. O texto da transcrição do registro oral foi reela-
borado e refundido por HC, especialmente para a presente
publicação). ·

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