Quando Winnicott enuncia sua célebre frase "não existe tal coisa
chamada bebê" (194 7b, p. 99), está afirmando, enfaticamente, a
impossibilidade de se descrever um bebê3 sem abordar também o
meio ambiente, já que, nos primórdios da vida, não encontramos
seres infantis que existam por si sós, fora do ambiente em que vivem
e se desenvolvem. Assim, a perspectiva de Winnicott não é o estudo
do bebê sozinho, ficção impossível de existir ná vida real, mas do
par mãe-bebê que constitui, por outro lado, o modelo de referência
da situação psicanalítica.
Uma das questões fundamentais de Winnicott consiste em
abordar o tipo de inter-relação que permite ao bebê começar a
ser, construir sentidos para uma existência pessoal e fazer com
que a vida valha a pena de ser vivida. W~icott analisa, de uma
perspectiva tanto teórica quanto clínica, como falhas severas nessa
inter-relação, no início da vida, impedem ou perturbam o processo
de amadurecimento pessoal, ocasionando patologias que dizem
respeito aos sentidos da existência - as doenças psicóticas. Como
seu modelo de referência da doença psíquica é o distúrbio psicótico,
e não o neurótico, suas indagações se referem fundamentalmente
à questão do sentido e às condições que possibilitam ao indivíduo
3 Para se referir à criança muito nova, Winnicott utiliza a palavra "bebê" ou ''lactente" e,
mais raramente, "infante". O termo infante (ou infans, em latim), que significa "sem fala",
apontaria, como nos alerta Rodulfo, para uma imagem deficitária do lactente, e não para suas
capacidades (cf. Rodulfo, 2008, p. 160).
19
s probletnas da vida - ou fra
desenvolver-se e lidar com o cassar
nessa tarefa. foco de Winnicott será, da mesma fo
~ ao amor, o . t . 11na
Em relaçao b b,.. e sua 1nãe; o m erJogo amoroso '
ntre o e e . • 9Ue
a troca amorosa e d senvo)vendo o senttmento arnoros
Pennite ao bebe" amadurecer, entido num texto de . oe
ar Nesse se · ' 1958, Winnicoull
a capacidade de am · . d termo "Amor" vão se modificand
. Os sentidos o · . o,
considera que esso de amadurecunento. No início
. fâ eia, com o proc 'd 'fi '
durante a m·an 'fi ex1st1r
. . res pirar' estar vivo J ent1 ca-se a ser
"(i) dAmor s1gm ca .' ) Enfatiza-se, assim, o valor do ''ser
O"(Winnicott 195 81, P· 19 ·
ama
amado", ou seJa,
. dos' cm'd ado8 amorosos maternos, como condição
21
·dez e nas primeiras semanas ou n-i
últimos meses de grav1 C eses d
" d pois se recuperam. onseguem desen
vida de um bebe, e e l b VoJv
a
• 1com base em suas em ranças cons . er
esse estado tão especia . 'd be·be"s cientes
e inconscientes de um dia terem si O •
. ., .
. do com a ideia de um
Polem1zan ,. estado ,., s1mb1ot1co
. . _ u de
0
.mterdepend"enc1a . -m • icial entre o bebe e sua mae, .Wmn1cott ~ . consid era
.
que existem tremen das diferenças entre a cond1çao . psicológica
. da
mae~ e a do beb"e. A ma"'e , pessoa adulta e.relativamente
, . . mdependent
. e,
desenvo1ve a preocupação materna pnmana, ,. . que consiste . .em uth.,,
tipo especial de identificação com o bebe, diferente da identificação
primária dele. Essa identificação com o lactente é o "aspecto da
personalidade [que] toma o poder temporariamente" (Loc. cit.) e que,
porque é capaz de "sentir-se no lugar do bebê" (ibid., p. 403), permite
à mãe atender incondicionalmente a suas necessidades.
As necessidades do bebê, embora no começo sejam principalmente
fisiológicas, não se restringem ao funcionamento orgânico, já que está
se iniciando o silencioso processo de amadurecimento psicológico do
indivíduo: a integração egoica, a personalização, a constituição do si-
mesmo e o contato com a realidade externa. Tampouco as necessidades
emocionais podem ser reduzidas aos impulsos instintivos, porque o que
está em jogo não são gratificações eróticas ou fiustrações, mas a própria
constituição subjetiva, a possibilidade de ser, ou seu fracasso. Nesse
sentido, W~icott_se refere a necessidades emocionais, e não a desejos,
porque sua nao satisfação provocaria o-raves d d .
, . . º"
ps1qmco. As necessidades precisam da p . ,. , anos ao ama
b' urec1mento
. . . enquanto a Jógica d drovisao
para sua sat1sfaçao, . am 1enta1 adequada
O
para sua realização. Des d ~SeJo prescinde do ambiente
se mo o, ao teonzar s0 b .
Winnicott combina, num mesm . re as necessidades,
o conceito o t. d
remete à ideia de obrigatório ou imp . ', sen 1 0 do necessário, que
. resc1nd1veI O , , .
Essas necessidades dos primó~d •o . . 'e carater do ps1qmco4.
I s sao descrita
8
4 Com a noção de necessidade w· . . nos seguintes termos:
. . . , tnn1cott int
1~etaps1colog1a freud1ana,já que a necessidade r~duz uma cate .
nsco de severos danos é psíquica en ' que implica a ob . gona que revoluciona a
. ' , 1 vez de s rtgato · d
remete automaticamente a uma dimensã d .0 mente orgâni ne ade da satisfação ao
s, Gc.tes egoi
°
sobre a noção winnicottiana de neces .dº J eseJante e sexual Sca,bm~ Caráter psíquico não
. o re ISt
cas (Lejarraga o, consultar Reflexões
, 2008)
22 .
Por causa dessa identificação com O bebe,. elas [as mães] mais ou
menos sabem o que ele necessitª· Refi ro-me a coisas
. v1ta1s
. . como
ser segurado
. . no colo, mudado de 1ado, de1tado
. e levantado ser
acanctado; e naturalmente
. ' alim entªd0 de um modo sensato, ' o
que envolve mais do que a satisfaçao . . de um mstmto
. . (Wmmcott
. .
l 965vc, p. 67. Itálico nosso). '
Assim,
. a descrição das
- necessidades emoc1ona1s
. . do 1actente
alude a inúmeras
. "coisas vitais" , que podenam
. ser smtet1za
. . das,
em tennos gerais,. como necessidade de com umcaçao
. ,. com outro
h~ano, de ser visto e ser cuidado, de contato íntimo, corporal e
afetivo.
P~a pode~, corresponder a essas necessidades,, a mãe precisa
contrair essa doença normal", que lhe possibilita desenvolver
cuidados sutis e sofisticados, empáticos e não técnicos, porque é
capaz de se identificar com seu bebê. Como diz Winnicott: "sem tal
identificação acho que ela não seria capaz de prover o que o lactente
necessita no começo, que é uma adaptação viva às necessidades do
lactente" (Id., 1960c, p. 52. Itálico no original).
Winnicott descreve os cuidados mat~mo~ iniciais em termos
de três funções fundamentais, qu~ são: 1) o holding (segurar), que
abrange os cuidados que atendem às necessidades emocionais do
lactente; 2) o handling (manipular), que se ref~re ao toque corporal
que permite ao bebê ir formando a parceria psicossomática, e 3) a
apresentação dos objetos. Apresentando os objetos que o bebê está
pronto para procurar, a mãe pennite ao bebê a ilusão de estar criandO
o mundo dos objetos, tomando real seu impulso criativo.
Entretanto, em relação à totalidade dos cuidados matemos, .
Winnicott utiliza o termo lwlding, afinnando: "De minha parte, dou-
O
me por satisfeito em usar o verbo segurar [holding], e ampliar _s_eu
significado para que possa abranger tudo aquilo _que, nes~ ~cas1ao,
,. , , c.az" (Winnicott l987e, p. 4. Itáhco no ongmal). O
uma mae e e 1i ' 1 · ·d d
•
holding materno, propiciado por uma mãe devotada, me UI _cm a .os
, . b no início o holding físico
tanto físicos quanto ps1qu1cos, em ora, '
23
seja "possivehnente a única forma em que a mãe pode demonstr,
ao lactente seu amor,, (Wi'nnicott' 1960c' p. 48). r
Quan doama~e na~o desenvolve o estado de .preocupação materna
pnmana,
. , . fracassan do na adaptação
· às necessidades emocionais do
bebê essas falhas não serão sentidas por ele como falhas maternas
mas ~rovocarão ruptura na sua continuidade de ser, ameaçando co~
a aniquilação de seu incipiente eu. Como O bebê é um "ser imaturo
que está continuamente apique de sofrer uma agonia impensável''
(ld., 1965n, p. 56. Itálico no original), os cuidados defeituosos da
mãe no estágio inicial podem ter consequências devastadoras. Assim,
as falhas ambientais severas produzem as agonias impensáveis
como a desintegração ou o despedaçamento, o cair para sempre, . '
a perda da conexão com o corpo, a perda de sentido do real e de
orientação, e outras angústias psicóticas. Trata-se de angústias de não
ser que se encontram na base dos distúrbios psicóticos e horderline
interrompendo a continuidade de ser do bebê, porque o obrigam
a reagir à intrusão ou ao abandono matemos. O amadurecimento
psicológico, nos momentos iniciais, tem como condição que a linha
de vida do bebê seja pouco perturbada por reações à intr ~
e, poss1.b1.htado
. ~
pela proteçao de uma mãe devotad usao, o que
d
~ quebra a lmha
reaçoes . de vida d O excesso
. do lactente constitu · a. . ~e
traumat1ca
, . e provocando ameaça de aniquil~ão.
' tn o uma s1tuaçao
Por outro lado, o ambiente suficientemente b
0
"capacita o bebê a começar a existir, a ter expe ."m' nos · , d'tos,
. Primor
rienc1as' a consftu.
um ego pessoal, a dominar os instintos e a defront I ir
dificuldades inerentes ã vida" (Winnicott, 1 n ar-se com todas as
958
d
mãe protege, com seu holding, a continuidade p. 404 ). Quando a
. real, o que fundaeasserb do beb"e, este
pode começar a ser e a sentir-se
saúde psíquica. ases da futura
Embora fosse avesso ao sentimentalismo
a negação do o'd.IO e da am b'1va renc,a
. próprios
' 9liedo Pres suporia
materno, Winnicott utiliza o termo "amor", ern va'r• sentjlllento
como condição dos cuidados maternos suficienternent ias passage
08
suas palavras: "Sabemos que, em se tratando de criançase bo ns. Nas'
Pequenas
é só o amor por aquela criança que toma a pessoa confiável o
suficiente" (Winnicott, l 965t, p. 33). Em outro texto, ele afirma:
"É algo [cuidados iniciais do lactente] que só se torna possível
através do amor. Dizemos, por vezes, que a criança precisa de
amor, mas queremos significar com isso que só alguém que ame
a criança pode fazer a necessária adaptação à necessidade ... " (ld.,
1954b, p. 208. Itálico no original). No mesmo sentido, Winnicott
considera que "se poderia usar a palavra 'amor' aqui [em referência
a esses cuidados matemos], correndo o risco de soar sentimental"
(Id., l 965vc, p. 69).
Deste modo, alertados contra idealizações do amor materno,
vemos que o sentimento amoroso constitui elemento essencial
do estado de preocupação materna primária. Winnicott enfatiza,
como vimos, que a devoção materna consiste principalmente em
identificação. Assim, entendemos que o amor materno, cuja forma
mais intensa e visceral se dá no estado de preocupação materna
primária, consiste em uma forma particular de identificação: a
identificação materna.
Por outro lado, o amor materno tem como ingrediente
indispensável a sensação prazerosa da mãe. Diz Winnicott:
2. O ódio materno
No famoso artigo de 194 7, "O ódio na contratransferência"
( 1949f), Winnicott aborda o ódio sentido pelo analista no trabalho
25
. . ,ticos e antissociais, comparando-o co ,
com pacientes psico , 'd 111 o Orj·
,. seu bebê recem-nasc1
que suscita na mae . . h, o. 1o
Por que razões a mãe odiaria seu bebê? Winnicott lista dezoito
motivos que levariam uma mãe a odiar seu bebê: ele é impiedoso,
tirânico, machuca-a, morde-a e interfere em toda sua vida e
atividades, entre outras coisas irritantes. Apesar dessas inúmeras
perturbações, a mãe se sacrifica por ele, atendendo-o prontamente
em todas suas necessidades. Nesse sentido, é notável, na mãe, "sua
capacidade de ser tão agredida e sentir tanto ódio por seu bebê sem
vingar-s~ dele,.e sua_ apti~o para,, es~rar por recompensas que
podem Vil' ou nao mmto ma.is tarde (Wmnicott, f, p. ).
1949 286
Os sentimentos de ódio, da mesma forma que •
_ sao
amorosos, nao ~ equivalentes
. entre mãe· e filho . w· os .sentimentos
. , . nao
que, nos pnmord1os, ~ existem
. sentimentos ·d inn1cott
,ct·· entende
. separando-se de Melan,e
nisto . Klem,. para quem e •od. to no bebê -
derivado do instinto de morte inato, apresenta,seOdO 10 do lactente,
inicia). Embora o bebê possa ser cruel e impiedoso esde O momento
com sua voracidade, essa destrutividade não der· ' atacando a mãe
só "à medida que o bebê toma-se capaz de se siva do . 0, d"10, Já
. que
. . o termo ,o'd'10 , passa a ter senti.do para desentir urna
mte1ra, · Pessoa
conjunto de seus sentimentos" (Id., 1949f, p. 285) Pocrever um certo
a mãe falhar em atender suas necessidades, o bebê / ?~tro lado, se
sua contmm . 'dade de vi'da e seus processos mtegrativ
. a1 Interroll'lper
os e111
curso
26 '
mas não vai ·poder odiá-la, já que não a percebe como pessoa total
nem como realidade externa. Assim, o ódio da mãe antecede o ódio
do filho, já que "a mãe odeia o bebê antes que este a odeie, e antes
que ele possa saber que sua mãe o odeia" (Loc. cit. ).
O ódio é considerado uma conquista do processo de
amadurecimento, que pressupõe o desenvolvimento da agressividade
e o reconhecimento do mundo externo ao eu. Quando o bebê passa a
reconhecer a existência de uma realidade situada fora de seu controle
onipotente e, em vez de destruir magicamente o mundo, se toma
capaz de "odiar, agredir e gritar", essa agressão concreta adquire
"um valor positivo, e o ódio converte-se num sinal de civilização"
(Id., 1964d, p. 270).
Contudo, se a atitude materna for sentimental e a irritação5 e o
ódio negados, a criança terá dificuldades, ao amadurecer, de "tolerar
toda a extensão de seu ódio",já que "ela [a criança] precisa de ódio
para poder odiar" (Winnicott, 1949f, p. 287). Da mesma forma, um
paciente psicótico, em que existem amor e ódio simultâneos, só
poderá tolerar seu ódio pelo analista se este for capaz de odiá-lo.
Como conciliar aformulação winnicottiana de que a mãe "odeia
o bebê desde o início" (Winnicott, l 949f, p. 285), tendo motivos
de sobra para isto, com a noção da devoção materna? Como pode
a mãe que ama e, ao mesmo tempo, odeia seu bebê, adaptar-se
sensivelmente às urgentes necessidades deste, sem falhar em
demasia? Em outros termos, como articular a ambivalência materna
com o estado de preocupação materna primária?
Segundo Winnicott, se for capaz de reconhecer e perceber seu
ódio, a mãe pode armazená-lo, ou seja, mantê-lo reservado, para ser
utilizado nas situações apropriadas. O ódio poderá ser comunicado
ao bebê num momento posterior, quando a mãe pode começar a
falhar na sua adaptação inicial e a frustrar o bebê em pequenas doses.
5 No ciclo de palestras radiofônicas transmitidas pela BBC, publicadas com o títul~ "O que
irrita?" (Winnicott, J993i, p. 77), Winnicott dedica 3 delas, em março de 1960, a quest~o
dos sentimentos desagradáveis que pareceriam incompatíveis com o amor materno - o ódio
materno.
27
A · 'medida . que 8 mãe entra em contato com sua irritaç""ªºe
ssim,
ódio ª ter um domi'nio e urn controle
pode . sobre esses sentini entosse~
' capac1'dade de controlar o ód10
Essa • Jeva-nos • a refletir s bre,•
questão ~ da am b'1val"ncia
e materna. A . mae comum
, eduma.pessoa. 0ad Ulta
que atmgm. . a am b'1val"ncia
e ' ou seJa, que e capaz ... e ter sentinie ntos
contraditórios - amor e O, dio - em re 1açao • ao mesmo
• ob·ieto.
Entretanto, esses sentl·mentos' a nosso ver, . nao estariam . . nu Pé de
111
igualdade, apresentando importantes diferenças. Michael BaJint,
no texto A respe,-1o do amor e do ódio (1951 . ), contemporâneo
. . do
rt
a 1go. wmmco
• · tt'ano
1 , questi'ona· a. perspect1va
· . klem1ana que . atribu·
. 1
um status igual ao amor e ao ódJO. Considerando que o indivíduo
saudável deve ser capaz tanto de amar quanto de odiar, o auto,
entende que, na saúde psíquica, o amor tende a ser um sentimento
bastante finne e estável, enquanto o ódio, ao contrário, é apenas
potencial ou incidental'. Para Balint, o amor e a saúde seriam bons
companheiros, enquanto o ódio e a saúde apenas se toleram por
pouco tempo (Balint, 1951, p. 150). Desta perspectiva, pensamos
que a ambivalência materna não significa que o amor e o ódio sejam
sentimentos paralelos, com valor equivalente. Assim, a mãe devotada
comum, que ama seu bebê, também desenvolve sentimentos de
ódio por ele, mas esses sentimentos não teriam mesmo status
O
que o amor, sendo ocasionais e passageiros. Concordando com a
interpretação de Balint, entendemos que nas pessoas d, · h,
um predomímo . do amor sobre o ódio, o que pern, •te , sau... ave1s a
contmuar oferecendo seu holding •llJ doab
e não se vingar maeb,.. comum
• ,
1
sente 1rntaçao
. . ~ ou o JO
'd· por e1e. e e quando
28 'º (13ª 1. ar em
Ir\~ l9SJ).
No texto "A etiologia da esquizofrenia infantil em termos do
fracasso adaptativo", de 1967, refletindo sobre a esquizofrenia da
intãneia inicial - categoria que, na sua visão, equivale ao termo mais
atual de "autismo" - Winnicott levanta a hipótese do ódio materno
inconsciente e reprimido como elemento fundamental na etiologia
dessa patologia. Esclarecendo que considera natural e não prejudicial
que a mãe ame e odeie seu bebê, Winnicott entende que o lactente
no estado de extrema imaturidade não tem como lidar com o "desejo
de morte reprimido" (Winnicott, 1968a, p. 196) da mãe. Assim, o
bebê se protege por meio de sofisticada organização de defesa: a
"invulnerabilidade" (Id., ibid.), espécie de fortaleza intransponível
para que nada do mundo externo o atinja, o que faz sofrer o meio
ambiente mais do que a criança, e se torna característica do autismo.
A mãe deseja a morte de seu bebê, mas nega esse sentimento, e
cuida dele com comportamentos opostos a seu ódio, resultado
de formações reativas. Na "Introdução" ao livro Pensando sobre
crianças, os organizadores comentam que em 1928, 40 anos antes
da publicação do texto mencionado, Winnicott afirmava que "A
influência mais importante sobre a vida de uma criança é a soma
das ações e reações impensadas da mãe, e das outras relações e
amigos; não são as ações refletidas que têm os principais efeitos"
(Winnicott, 1996a, apud Shepherd et alii, 1996, p. 24), considerando
que essa observação é fundamental e base da nova hipótese sobre
o autismo. O bebê se defende, tornando-se invulnerável, do ódio
materno inconsciente, apesar de que os comportamentos manifestos
da mãe sejam formações reativas que negam seu desejo inconsciente
de que o bebê morra.
Vemos que, nesse texto sobre autismo, o ·conceito de ódio
inconsciente da mãe não pode ser equiparado ao ódio materno que
Winnicott descrevia, listando suas razões, em 1947. O ódio materno
que estaria na origem da esquizofrenia infantil é um desejo ativo
de morte do bebê, negado e atuado por formações reativas. O ódio
da mãe devotada comum é um ódio passageiro, uma irritação que
· · d . de
não precisa ser negada nem chega a se const1tutr em um eseJo
29
.
, dio da mãe suficientemente boa se
rt dO filho Assim, o o . . , a1tem
mo e • d predomínio deste, isto e, da identifi a
com o amor, haven o cação
empática materna.
3. A mutualidade mãe-bebê b 7
Quando a ma ""e é suficientemente ,. oa , no momento inic.ta 1,
idados do bebe, estabelece-se um cont
envolven do-se com oS Cu ato
, . entre e1es. Esse contato é uma forma poderosa de. comunicaç"ao,
mt1mo
que nao - se tiun dam enta no uso das palavras. . .A. verbalização
. não te111
qualquer significado nessa comunicação mtcial: pois O que importa
é a "atitude [que] se reflete nas nuanças, no ntmo e em milhares
de outras formas que podemos comparar à variedade infinita da
poesia" (Winnicott, 1968d, p. 85). Esse contato inicial é chamado
por Winnicott de comunicação direta ou silenciosa, o que não deve
ser entendido necessariamente como ausência de sons·verbais, já que
a mãe pode cantar ou falar com seu bebê, mas aponta para a ideia
de que o sentido do que é comunicado não passa pela linguagem
verbal. As palavras maternas, que podem ser abundantes ou estar
ausentes, não importam pelas significações verbais, mas pelo tom
e pela atitude com que são enunciadas. Assim, a comunicação é
chamada de "silenciosa" independentemente dos ruídos, barulhos
ou sons verbais que permeiem o contato mãe-bebê.
Winnicott nos adverte de que evita de propósito utilizar a
expressão
. _"comunicação inconsciente", porque so, do pon to de
v1sta
. da.mae podemos falar de inconsciente , J'a' que nao ~ . t ·. d
ex1s e am a
mconsc1ente, nem consciente no bebê m , ,. . .
. ' ' asso tendenc1as matas para
o crescimento e o amadurecimento.
A comunicação silenciosa inicial , d .
baseada no calor do seio nos bati e pre ommantemente corporal,
. , . ' mentos cardí .
respITatonos, no cheiro materno et . ~cos, nos movunentos
. . e., constttumd0 "
reciprocidade na experiência física" (I · . . uma questão de
d., 1b1d., p. 89). ,
7 A expressão "mãe suficientemente b ,,
. oa , que às
uma proposta normahzadora e moral 1·2 Vezes é inte
concepção não idealizada da fu nção rn ante
t ' é ur1
11·
zada por w· rpretad
. a erroneamente como
a ema'' (W· . Jnntcott "
innicott, 1968d Para transmitir uma
, p, 80).
30
A comunicação não é simétrica entre a mãe e o bebê, já
que. enquanto
. para o bebe" "tudo e' uma przmezra
· · exper1enc1a"
·,,. ·
(W1nmcott, 1968d, P· 84. Itálico no original), a mãe é uma adulta
que pode retroceder à experiência infantil, porque já foi um bebê.
A comunicação inicial contém essa dicotomia fundamental
'
cabendo diferenciar o que é comunicado pela mãe ao bebê do que
é comunicado pelo bebê à mãe.
Como estamos abordando um tipo de comunicação que independe
da linguagem, a primeira questão é sobre o que é comunicado pela
mãe ao bebê. Winnicott se refere ao holding materno, que gera um
"contexto de confiança" (Id., ibid., p. 86) pelo fato de o bebê ser
segurado e manipulado. Assim, a mãe estaria comunicando que é
confiável e devotada. Entretanto, "o bebê não ouve ou registra a
comunicação, mas apenas os efeitos da confiabilidade" (ld., ibid.,
p. 87). Como é humana e não perfeita, a mãe comete pequenos
erros e os corrige cuidando de seu bebê. Esse vaivém de pequenas
falhas e cuidados, que é o estofo da comunicação, permite ao
bebê desenvolver uma sensação de segurança e confiabilidade. A
_alternância entre falhas e cuidados é o que permite ao bebê registrar
a confiabilidade,já que, se não houvesse pequenos erros, se existisse
uma perfeição mecânica, o bebê não teria como perceber os cuidados
nem lhe ocorreria uma "sensação de segurança e um sentimento de
ter sido amado" (Loc. cit. Itálico nosso). Nas palavras de Winnicott:
"São as inúmeras falhas, seguidas pelo tipo de cuidados que as
corrigem, que acabam por constituir a comunicação de amor,
assentada sobre o fato de haver ali um ser humano que se preocupa"
(Loc. cit. Itálico nosso). Logicamente, essas pequenas falhas não
podem ser confundidas com as falhas adaptativas de uma mãe que
não é capaz de se identificar com o bebê.
Enquanto a mãe comunica para o bebê sua confiabilidade, o
que O bebê comunicaria a sua mãe? Alguém poderi.a r~sponder que
0
bebê mostra e comunica seu desamparo, mas Wmmcott entende
que, apesar do fato óbvio de seu desvalimento, bebê tem imenso
potencial para continuar a viver. Além do mais, as pessoas que
31
cuidam dele também são desamparadas, havendo "talvez .
um confronto de desamparos ,, (Id., 1.b1.d ·, P· 91 ). Na sua visãate llle8'11 0
bebê comunica à mãe podena . se resumir . em " termos de . cr· o, .o .qu eo
quando há saúdeativ1d ªde
• • 1
e complacência" (Loc. c1t.), predominando,
espontâneo e criativo do lactente. A ssim, . 0 be b"e comunica 'ai0 gesto
. ~ pessoa1- que d.12 respeito go de
propriamente seu - sua contn·buiçao
. . .
espontaneidade e cnat1v1dade •• ,•
ongmanas. ªsua
Outro aspecto fundamental da comunicação inicial consiste
brincadeiras que se desenvolvem entre mae ~ e beb"e, estabelecend n~
~ . 0 ~se
a experiência da mutualidade. A noçao de mutuahdade, teorizada e
1969, é outra forma de descrever a comunicação direta e pré-verb:
dos primórdios. Winnicott entende que muito cedo, talvez até antes da
12ª semana, os bebês, quando são alimentados, são capazes de brincar
que eles também amamentam a mãe, colocando um dedo na sua boca.
Winnicott entende que "não existe uma comunicação entre o bebé e a
mãe, exceto à medida que se desenvolve uma situação de alimentação
mútua" (Winnicott, I 970b, p. 198), ou seja, quando o bebê, ao ser
alimentado, brinca que ele também alimenta a mãe. A mutualidade
é considerada "o começo de uma comunicação entre duas pessoas"
(Loc. cit.) sendo que, nessas brincadeiras rudimentares, "nascem a
a.feição e o prazer da experiência" (Id., 1968d, p. 89. Itálico nosso).
A experiência da mutualidade, a nosso ver, abrange tanto
a comunicação direta inicial, que pode ser descrita como a
reciprocidade ou sintonia dos corpos vivos, quanto uma comunicação
mais sofisticada, que ocorre quando se inicia a experiência
compartilhada do brincar. Nesse sentido, diz Winnicott: "Temos o
fato de que somente no brincar é possível a comunicação, exceto a
comunicação direta, que pertence à psicopatologia ou a um extremo
de imaturidade" ( 197 Ig, P· 80). Assim, na extrema imaturidade temos
a comunicação ~ire~a, cor~oral, ~ndando a base de confiança que
Possibilita as pnmeiras brmcade,ras entre O bebê e .~ e
. ~ " . sua mae, qu
constituiriam a comumcaçao propnamente dita".
Winn icott é enfático em afirmar que a experiênci· d .d d
. . a a mutua11 a e
na~o deriva nem se relacwna diretamente com os jrn • . •
111 1
PU sos 10stmt1vos,
32
já que o que está em jogo é a comunicação íntima entre mãe e bebê
e não a gratificação instintiva. Ele diz: '
8 A noção de "objeto subjetivo", teorizada por Winnicott na última déc~d~ de sua vida,
alude ao início da relação objetal, em que o objeto é criado pelo bebê (e comc1de com o ~ue
ele encontra, seja a própria mãe ou os objetos apresentado~ por ela~ não sendo rec_onhec1do
na sua extemalidade. Os objetos subjetivos são confiáveis e sentidos co~o ~ea1s p~r~ue
constituem O mundo subjetivo do bebê, ou seja, o mundo que pode ser expenenc1ado cnattva
e prazerosamente, sem sacrifício de sua espontaneidade.
33
1
. mque só o falso si-mesmo
. • submissa e - d
estiv
essi
uma comumcaçao a recuperar a sensaçao e ser re 1
. . d Nesse caso, par e. t t . . ae
Partic1pan o. . d' 'duo pode se aias ar emporana, e
1 ·o o m ivt
'l'b 11 nte
restaurar o equ1 n ' artilhada opondo-se a se cornunic
do mundo da realidade comp munica;ão silente com os Objet'
restabelecendo, assim, a co . os
subjetivos. .
. . d' tmgue o que seriam dois opostos da comunicação·.
Wmmcott
.. , . uma não comunicação ativa ou reativa•
·isaça"'o bas1cae
umanaocomuruc
Embora se comunique com sua mae, 0
- bebê também pode não se
comunicar . o que pode acontecer em alguns momentos ~ dos estados
.
tranqmlos . ' de nao- mtegraça
• • 0 , constituindo
. uma nao comunicação
básica e natural. A não comunicação ativa se refere,, como no caso
menc1on . ad o anten•onnente , a' "',=-scolha ativa e saudavel de não se
comunicar, que ocorre quando a criança já atingiu certo grau de
integração e é capaz de reconhecer a realidade compartilhada.
Contudo, a não comunicação também poderia ser reativa, o que aponta
para reações patológicas de isolamento e desconexão do mundo.
Entretanto, para Winnicott, "embora as pessoas normais se
comuniquem e apreciem se comunicar, o outro fato é igualmente
verdadeiro, que cada indivíduo é isolado, permanentemente sem se
comunicar, permanentemente desconhecido, na realidade, nunca
encontrado" (l 965j, p. 170). Assim, no âmago da e ·d
. .
segundo Wmmcott, ha, um nucleo
, do si-mesmo iso] da a pessoa,
. d
_ comumcave
nao . , 1. ParadoxaImente, a pessoa tem a o, . e11va o,
ser reconhec1<ia•1 e se comumcar, • mas também necessidade
. de
seu núcleo mais íntimo e pessoal _ sagrado _ dePrecisa preservar
com o mundo externo (cf. Winnicott, 196Sj, p. quaJquer contato
a solidão existencial é algo a ser preservado as17O). Dessa forma,
.
sentimento do si-mesmo.
. , Pecto esse
1·sto, nos diz Winnicot . 1do
. nc1a
tradição psicanalítica que exige do paciente falar tudt, Colide com a
importantes implicações tanto teóricas quanto clíni O de si, trazendo
l 965J,. p. 170). cas (cfw·•nnicott,
Para efeitos deste trabalho, interessam-nos es .
comunicaçao. ~ s1·1 ente e mt1ma
, . que se estabeIeee entre Peciati-n· ente
11
tnae e b b a
eê
34 --- e
que fortalece no bebê a sensação de ser real e de existir- e, também,
a ideia de que o bebê alterna naturalmente momentos de comunicação
com outros em que, relaxado, não se comunica.
Recapitulando, vemos que mãe e bebê desenvolvem uma
comunicação afetiva e íntima, a experiência da mutualidade,
possibilitada pelo amor materno. Como vimos, apesar de se referir
a uma fonna de comunicação "mútua", início do brincar conjunto
mãe-bebê, a mutualidade pressupõe profundas diferenças entre a
condição psicológica da mãe e do bebê. Enquanto a mãe, sem deixar
de ser adulta e relativamente autônoma, se identifica com o bebê
porque já teve a experiência de ter sido bebê, este depende de forma
total e absoluta da mãe, desenvolvendo um tipo de identificação
totalmente diferente da materna: a identificação primária.
35
Com cuidados materno s suficientemente bons, confiáveis,
37
a experiência de ser e sua linha de vida - ou conti .
- não é interrompida por intrusões ambientais , O mund nuidade de ser
0
pleno de sentido e as trocas com o ambiente, significa . se torna
." . de ser, m
a expenencia .' 1da apercepção f: tivas ·Assi 111
. d'1ssocutve
' az corn '
bebê se sinta real e a vida valha a pena. Nas palavras d w· 9Ue 0
38
e identificação com o bebê para possibilitar-lhe a experiência da
ilusão, sendo um ambiente de holding. Nesse sentido, Winnicott diz
que "a mãe-ambiente é humana, e a mãe-objeto é uma coisa, embora
também seja a mãe ou parte dela" (1965j, p. 166).
Dias nos faz notar que, enquanto os estados excitados se
relacionam mais diretamente com o estabelecimento do contato
com a realidade, os estados tranquilos são condição para que se
desenvolvam as tarefas de integração no tempo e no espaço e o
alojamento da psique no corpo (cf Dias, 2003, p. 174).
A condição para poder viver as situações relaxadas de não
11
integração é a confiança na mãe, quando o bebê se sente bem
' .
sustentado. A medida que a mãe permanece presente e empática,
sustentando (holding) o bebê no tempo e permitindo-lhe a quietude,
ele pode sentir-se seguro e confiante. Assim, o lactente pode se
entregar a um estado em que não há excitação, um estado calmo de
não integração, sem ordem mas não caótico (o caos é a quebra da
linha de ser, a desintegração), alternando esses momentos de sossego
com os estados excitados.
Os estados calmos são os momentos de repouso e alheamento
que, num estágio posterior, vão permitir ao bebê conquistar a
capacidade de estar só. Estando só na presença de alguém, a criança
pode descansar e "descobrir sua vida pessoal própria" (1958g, p.
35). Winnicott descreve esses momentos de repouso, equivalentes
ao relaxamento dos adultos:
A criança tem a capacidade de se tornar não integrada, de
devanear, de estar num estado em que não há orientação, de ser
capaz de existir por um momento sem ser nem alguém que reage às
contingências externas nem uma pessoa ativa com uma direção de
interesse ou movimento (Id., ibid., p. 35).
11 Na vida adulta, quando a integração se toma um fato, não serâ mais ~ossível retomar
aos estados de não integração dos primórdios, exceto na loucura, mas a1 não se trata de
não integração e relaxamento, mas de desintegração (cf Winnicott,.19~8,' p. 13?), ~ontudo,
certas técnicas de relaxamento ou meditação talvez possibilitem ao individuo attngtr eSt ados
similares aos primitivos.
39
Os estados tranquilos não se reduzem a ser os espa
. ·t d "12 . Ços
intervalares dos "relacionamentos exci " a os
. ., constituindo as
b b
situações privilegiadas em que o e e expenencia a continuid d
.. 'd d d ae
de ser. Esses estados têm, assim,_uma postttvt ª e, . e~e~penhando
papel primordial na experiência do lactente de mt1m1dade
. . co lll
a mãe e na sua experiência de ser, base da constituição do SJ..
mesmo. Por outro lado, para que os impulsos dos estados excitados
possam constituir um gesto espontâneo e ser sentidos como reais
é necessário que ocorram no pano de fundo da tranquilidade e nã~
como reação a estímulos.
Cabe destacar que as experiências de tranquilidade não foram
teorizadas pela psicanálise clássica, que concebe o início da vida
psíquica em termos da dinâmica pulsional - estados excitados.
Na perspectiva de Winnicott, os estados tranquilos, essenciais na
constituição da experiência de ser, na experiência da mutualidade e
nos processos integrativos em marcha, são irredutíveis aos impulsos
instintivos.
Embora o prazer, na tradição psicanalítica, associe-se sempre à
satisfação instintiva, Winnicott sugere que haveria uma particular
sensação prazerosa nos estados calmos. "Se o bebê pudesse
falar", comenta o autor, "diria: 'Aqui estava eu, desfrutando uma
continuidade de ser"' (1964c, p. 37).
Entretanto, alguns bebês pouco podem usufruir os estados
tranquilos, pois são continuamente estimulados pelas mães a
responder, sorrir e dar mostras de sua vivacidade, para tranquilizá-
las. Nesses casos, quando o ambiente é por demais intrusivo, a
criança só encontra no isolamento defensivo a única forma de
recuperar seu sentido de ser.
j
40
Os estados tranquilos, como vim os, correspondem
do cuidado materno, nomeado por w· . a um aspecto
mn1cott de mã b'
1954, Winnicott descreve a mãe-amb. e-am tente. Em
·1 " (1955 36 tente como a "mãe do amor
tranqui o c, p. 5)' que
· se cont ... a, mãe do a
rapoe · d·
O termo "amor tranquilo" não c. mor excita o.
se re1ere a uma caract , f dO
da mãe, 1nas ao amor tranquilo do beb" ,., ens tca amor
• e pe1a mae, da mesma forma
que .o amor excitado corresponde ao amor mstmttvo . . . do lactente
Assim, embora a palavra "amor"' no iníci· 0 , stgm . 'fi que "ser amado" ·
remetendo
. ao amor materno ' também encon tramos, a partir . dessa'
condição fundante,. a alternância no lactente entre seu amor excitado .
e seu amor tranqutlo, . podendo
. este último ser ehamado de a1e1çao.c. . ~
Nas palavras de Wmntcott: "A mãe vem sendo amada pelo bebê
como aquela que incorpora todos esses aspectos. o termo 'afeição'
passa a ter lugar nesse contexto" (1955c, p. 360). Interessa-nos
destacar a expressão "amor tranquilo", embora pouco utilizada por
Winnicott, porque acreditamos que aponta para uma modalidade
amorosa - a afeição, próxima da ternura- de relevância fundamental
na concepção do autor sobre o amor.
Recapitulando, abordamos inicialmente a preocupação
materna primária, definida como uma forma particular de
identificação, indissociável do amor, que permite à mãe atender
incondicionalmente às necessidades do bebê. Esse amor materno
intensificado não significa ausência de ambivalência, já que a mãe
também tem sentimentos de irritação e ódio pelo bebê, que podem
ser controlados e lhe ajudam na tarefa de falhar e desiludir o bebê
num momento posterior. Vimos depois a experiência da mutualidade
mãe-bebê, comunicação íntima que permite ao bebê começar a ser e
a se sentir real. A experiência de ser do bebê, que é o começo de uma
existência pessoal, depende da mutualidade e da função especular
da mãe; aspectos que integram, de uma forma mais geral, o holding
materno. Essa experiência de ser se relaciona especialmente com
os estados tranquilos de não integração, que correspondem aos
cuidados de uma mãe-ambiente. Os estados tranquilos adquirem
. . 'd d . , t't em os momentos por excelência
uma pos1t1vi a e, Jª que cons t u ·
41
vem os processos de integração e em que 0
em que se desenv Ol . . . ." .
,. . • a identidade 111c1p1ente, a expenenc1a de ser
bebe expenenc1a um . ~ . . .
Abordamos até aqui, principalrnente, as cond1çoes amb1enta1s que
pennitem ao bebê começar a existir, fundando as ~ases de um viver
· t· d 'vel Assi·m nosso fio condutor fot o amor materno
ena 1vo e sau a . ,
nos primórdios, no estágio da dependência absolu~, que possibilita
o início da existência psíquica. Em função d1sso, focamos a
identificação primária e as experiências tranquilas do bebê, deixando
para o próximo capítulo os estados excitados.
Podemos retomar, agora, o primeiro sentido dado por Winnicott
ao termo "amor", em que amor significa existir, e estar vivo
identifica-se a ser amado. O bebê, no início da vida psíquica, só
pode começar a existir se tiver uma mãe capaz de se adaptar ativa
e prazerosamente a suas necessidades; isto é, se for amado por uma
mãe empática e devotada.
O amor materno não é descrito em termos de impulsos
instintivos, mas de identificação. Trata-se de uma identificação
empática, que permite à mãe entrar em sintonia com o bebé e
se colocar no lugar dele, atendendo a suas necessidades. Na
preocupação materna primária, quando o amor materno se exacerba
e se toma visceral, a identificação empática com o bebê não só é
intensificada como ocupa toda a "personalidade" da mãe. Desse
ponto de vista, a devoção materna pode ser comparada ao fenómeno
do ~,~aixon_amento, em que se produz, como diz Piera Au]agnier,
um investimento exclusivo no objeto da paixão" (Aulagnier, 1985,
p. l 57), concentrando todos os pensamentos e imagens no objeto
amado.
• • Entretanto ' d1·fieren temente da pa1xao,. ~ o amor materno, para
Wmnicott' não .,parece
. · 1SIOnado
ser impu · • .
mstmtivamente. Da mesma
forma,
d . a expenencia de d b b,..
ser O e e, que prenuncia a constituição
o s1-mesmo e a unidade . . .
ue ~ d . . . ego1ca, const1tu1 um fenómeno primário
q nao enva da vida mstintual.
Finalmente, Winnícott alude
fundamental tanto d ~ ao prazer como ingrediente
na evoçao matem
do bebê na íntimíd d ª quanto na experiência de ser
a e com a mãe · O autor se refere às "tão grandes
42
sensações de prazer [que] participam do íntimo vínculo físico e
espiritual, que pode existir entre a mãe e seu bebê" (1945c, p. 33).
A nosso ver, esse prazer que forma parte da experiência da mãe e
do bebê nos primórdios, e que vai estar presente pela vida afora
no brincar, na experiência cultural, na amizade e na experiência
amorosa, não poderia ser reduzido ao prazer erógeno. Esta questão,
que fica aqui apontada e, por enquanto, em suspenso, será retomada
e trabalhada no capítulo quatro.
43