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1a edição
Expressão Popular
São Paulo – 2020
SUMÁRIO
Uma caixa de ferramentas para fechar as nossas veias
Imperialismo na era da globalização
Exploração e superexploração na teoria do imperialismo
Capitalismo moribundo e competitivo
Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova Estratégia de
Segurança Nacional dos Estados Unidos
A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas
diante da ascensão da China
Sobre os autores
UMA CAIXA DE FERRAMENTAS
PARA FECHAR AS NOSSAS VEIAS
EMILIANO LÓPEZ
Introdução
O capitalismo é, acima de tudo, um sistema baseado no uso do
dinheiro no qual uma grande porção da riqueza é acumulada tanto
na forma de dinheiro quanto na forma de ativos, especialmente os
chamados ativos financeiros. Para que o sistema funcione, é
essencial que o valor do dinheiro não se desvalorize continuamente
frente às mercadorias; caso contrário, as pessoas evitariam o
acúmulo de dinheiro, que deixaria de ser uma forma de riqueza e
também um meio de circulação.
O capitalismo garante a estabilidade do valor do dinheiro de
diversas formas. Uma delas é a manutenção de um vasto exército
industrial de reserva, não apenas nas metrópoles mas também no
terceiro mundo. Esse exército de reserva “distante” também mantém
baixos os salários locais e, consequentemente, os preços das
matérias-primas lá produzidas, bem como mantém baixos os
salários dos trabalhadores na metrópole que são ameaçados pelo
desemprego devido à saída de capital para o terceiro mundo, caso
insistam em salários mais elevados.
No entanto, esses exércitos de reserva não são suficientes. Mesmo
que não haja aumento autônomo nos preços das matérias-primas e
dos salários em dinheiro devido à sua existência, os preços de
algumas commodities escassas ainda passariam por um aumento
de preços na medida em que a acumulação aumentaria a demanda
por elas. A ameaça que isso representa para o valor do dinheiro
também deve ser evitada, e isso é feito através da restrição da
demanda por tais commodities fora do setor capitalista, através do
estrangulamento do poder de compra em massa nessas localidades
(por exemplo, através da imposição de uma “deflação de renda”).
Historicamente, dois instrumentos típicos dessa “deflação de renda”
foram a pilhagem, sem qualquer quid pro quo, dos lucros produzidos
no terceiro mundo (economistas indianos anticolonialistas
chamaram isso de “drenagem de riqueza”), bem como a destruição
da produção de menor escala através das importações de produtos
da metrópole capitalista (o que os mesmos escritores chamaram de
“desindustrialização”) que criou, originalmente, o exército de reserva
“distante”. Todo esse arranjo abrangendo o mundo fora do
capitalismo propriamente dito é o que constitui o “imperialismo”. Ele
não termina com o colonialismo; ao contrário, sua importância
aumenta com a “financeirização”, quando a estabilidade do valor do
dinheiro se torna uma questão cada vez mais essencial (daí a
obsessão atual com “metas de inflação”).
Entretanto, o imperialismo como um arranjo se manteve
amplamente invisível à disciplina da Economia, mesmo aos seus
melhores praticantes, mesmo no período colonial. O próprio John
Maynard Keynes, em seu clássico trabalho As consequências
econômicas da paz, em que ele elabora sobre o “Eldorado
econômico” que a Europa pré-guerra representava, não menciona
que esse Eldorado repousava sobre uma elaborada estrutura do
imperialismo. O acesso da Europa aos alimentos do “novo mundo”,
um importante aspecto desse Eldorado, não teria sido possível se
esses alimentos não tivessem sido pagos, por meio de um arranjo
complexo, pela apropriação gratuita, por parte da Grã-Bretanha, de
uma parte do excedente de suas colônias e semicolônias
(“drenagem da riqueza”) e pela exportação de bens manufaturados
para suas colônias e semicolônias às custas de seus produtores
locais (“desindustrialização”).2
Imperialismo, no entanto, não é apenas um fenômeno limitado à
história. É necessariamente subjacente, como já mencionado, ao
capitalismo em todas as suas épocas, incluindo a atual era da
globalização. Vamos examinar essa questão em detalhe.
I
O espectro dos “rendimentos decrescentes” sempre assombrou os
economistas. Ricardo tinha celebremente visto “rendimentos
decrescentes” na agricultura levando a uma queda progressiva na
taxa de lucro, uma mudança progressiva dos termos de troca entre
manufatura e agricultura em favor desta última e o desenlace final
de um estado estacionário no qual mais crescimento se tornaria
impossível. Mesmo Keynes, na obra mencionada, viu “rendimentos
decrescentes” na produção de alimentos como prejudicial ao
Eldorado, ainda que a guerra não o tivesse feito. E, no entanto,
nenhum desses temores se tornou realidade. Os termos de troca
entre manufatura e agricultura mostraram uma tendência secular a
mudar contra, e não a favor, do último;3 e embora a taxa de
crescimento tenha diminuído sob o capitalismo nos últimos tempos,
isso não tem nada a ver com qualquer queda na taxa de lucro
causada por “rendimentos decrescentes”. Da mesma forma, o
mundo capitalista avançado não tem dificuldade até hoje em
satisfazer suas necessidades alimentares, desmentindo os temores
de Keynes. Como então explicamos esse contraste entre temores e
realidade?
Não podemos simplesmente afirmar que os “rendimentos
decrescentes” são um mito. A limitação do tamanho da terra é sem
dúvida uma realidade material a ser enfrentada. É claro que o
tamanho da terra pode ser aumentado, não em unidades naturais
mas em unidades efetivas, através do progresso tecnológico de
aumento de produtividade ou por meio de certos tipos de
investimento, como irrigação, que possibilita a implantação de
múltiplos cultivos. Em outras palavras, medidas de “aumento de
terreno” são certamente possíveis. Mas, na ausência destas, as
limitações do tamanho da terra aumentariam com o passar do
tempo; com o aumento da demanda, o “custo real” da produção
agrícola (para usar o conceito de Keynes), que significa que, para
um determinado salário em dinheiro e preços em dinheiro de outros
insumos, o preço de oferta desse produto aumentará ao longo do
tempo tanto mais ele tenha sido produzido.
Tal aumento no preço de oferta, no entanto, cria sérios problemas
para o capitalismo. Estes problemas surgem não por causa da
diminuição da taxa de lucro ou da queda em direção a um estado
estacionário, como temia Ricardo. Tais temores estão relacionados,
em todo caso, com as projeções de longo prazo. O aumento do
preço de oferta, na medida em que se traduz em um aumento do
preço, prejudica o valor do dinheiro, e essa é uma questão muito
séria e imediata para o capitalismo. Se os detentores de riqueza
acreditarem que o valor do dinheiro, em termos de mercadorias,
declinará com o tempo, ninguém irá reter riqueza em sua forma
dinheiro.
Pode-se pensar que, uma vez que todas as outras mercadorias têm
custos logísticos positivos, enquanto o dinheiro não tem nenhum,
uma mudança do dinheiro para alguma mercadoria como a forma de
manter a riqueza somente ocorrerá se alguma taxa mínima de
inflação no preço daquela mercadoria for esperada (para o qual
deve ocorrer primeiro e, portanto, ser esperado) que supere o seu
custo logístico; e se essa taxa de inflação limite não for atingida,
então não haverá nenhuma mudança do dinheiro para essa
mercadoria.
Mas dois pontos devem ser observados aqui. Primeiro, se algumas
pessoas esperam que a taxa de inflação exceda a taxa de custo
logístico de uma mercadoria, mesmo que a maioria não o faça,
então elas mudariam do dinheiro para aquela mercadoria; isso, no
entanto, forçaria o preço dessa mercadoria para cima e faria com
que mais algumas pessoas também passassem do dinheiro para
daquela mercadoria, devido às expectativas revisadas em relação
ao seu preço, e assim por diante. E se, devido ao aumento do preço
de oferta, ninguém espera que o preço da mercadoria diminua,
então um processo inflacionário assim iniciado eliminará o dinheiro
de seu papel de uma forma de riqueza.
Em segundo lugar, e mais importante, dentre terras agrícolas, a
massa de terras tropicais ocupa uma posição especial. Seu
tamanho é absolutamente fixo (na ausência de medidas de
“aumento de terreno”), mas produz uma gama de produtos para o
capitalismo que simplesmente não poderiam ser produzidos em
outros lugares, embora sejam de importância vital para ele. De fato,
a matéria-prima central da Revolução Industrial original que
impulsionou o capitalismo, o algodão cru, não poderia ser produzida
na metrópole, mas apenas nas regiões tropicais e subtropicais.
Consequentemente, à medida que a acumulação prossegue na
metrópole, o preço de oferta para uma gama de produtos passíveis
de produção na massa territorial tropical fixa aumentaria. A
consequente taxa de inflação excederia em muito qualquer taxa
limiar para uma mudança do dinheiro para mercadorias.
Qualquer aumento no preço de oferta é, portanto,
fundamentalmente incompatível com o papel do dinheiro como
forma de deter a riqueza. E, mesmo que guardar dinheiro para fins
de transação acarrete em possuir riqueza na forma dinheiro,
independentemente se mesmo por um momento fugaz, qualquer
coisa que elimine o dinheiro como forma de riqueza, ipso facto,
também elimina o dinheiro como meio de circulação e, assim, torna
uma economia monetária impossível. Portanto, esse aumento no
preço de oferta é fundamentalmente incompatível com uma
economia monetária.
É essencial para a viabilidade do sistema capitalista que esse
fenômeno do aumento do preço de oferta não possa se manifestar.
E é exatamente isso o que aconteceu ao longo da história do
capitalismo, razão pela qual os prognósticos ricardianos ou mesmo
as antecipações keynesianas nunca se materializaram de fato. Não
se materializaram não porque os rendimentos decrescentes são um
mito, mas porque o capitalismo recorreu a outros meios para
garantir que eles não se materializassem.
O imperialismo é um desses dispositivos que garante que o
fenômeno do aumento do preço de oferta não se manifeste. Com
efeito, como veremos, não é apenas um dispositivo possível, mas o
dispositivo tipicamente usado pelo capitalismo para esse propósito;
daí resulta que o imperialismo é imanente na própria forma dinheiro.
Vamos ver a razão e o modo pelos quais o imperialismo se torna
pertinente a toda essa questão.
II
Vamos discutir a agricultura antes de chegar às indústrias
extrativistas, cujo caso é similar. O tamanho fixo da massa de terra
tropical não seria um problema se o investimento no “aumento de
terreno” ou o progresso técnico de aumento da terra pudessem
ocorrer em grau suficiente para compensar o aumento do preço da
oferta. Mas isso normalmente precisa de investimento público. A
irrigação para o cultivo múltiplo nas regiões tropicais, como Marx
observou há muito tempo,4 requer o Estado, uma vez que a escala
de investimento excede, em muito, o que é possível ou mesmo
lucrativo para um produtor individual, que normalmente é um
pequeno produtor. Mesmo o progresso técnico de “aumento de
terreno” sob a forma de novas práticas, requer pesquisas que
somente o Estado pode levar a cabo e disseminar amplamente para
reduzir os riscos para os pequenos produtores. (Mesmo quando as
corporações multinacionais desenvolvem e disseminam novas
variedades de sementes e outros insumos que podem aumentar os
rendimentos, o grau em que essas inovações são adotadas
depende da disponibilidade de crédito subsidiado e de outros
insumos fornecidos pelo Estado).
Mas onde o Estado é obrigado a seguir o princípio de “solidez
financeira”, como era o caso dos países tropicais antes da
descolonização, quando o Estado tentava equilibrar seu orçamento,
e como novamente é o caso sob a globalização, quando a
“responsabilidade fiscal”, no sentido de uma proporção de deficit
fiscal/PIB de 3% ou menos, se tornou a “norma”, tais iniciativas por
parte do Estado se tornaram ainda mais evidentes por sua ausência.
A tendência espontânea sob o capitalismo (isto é, com exceção de
sua fase transitória de dirigismo pós-colonial) é evitar o “aumento de
terreno”.
Prevenir, portanto, que o aumento do preço de oferta se manifesta
assume, tipicamente, a forma da supressão da demanda ex post de
tais mercadorias, mesmo quando a demanda ex ante aumenta. O
não aumento da demanda ex post significa efetivamente que o
fenômeno do aumento do preço da oferta não se manifeste.
A supressão da demanda ex post pode em si ser feita de duas
maneiras: uma é por meio do que Keynes chamou de “inflação dos
lucros”, isto é, um aumento dos preços em relação à folha salarial
em dinheiro e à folha de rendimentos em dinheiro dos
trabalhadores; a outra é por meio do que se pode chamar de
“deflação da renda”, isto é, uma queda na folha salarial em dinheiro
e na folha de rendimentos em dinheiro dos trabalhadores para
determinados preços. O primeiro deles implica, mais uma vez, uma
ameaça ao valor do dinheiro e, portanto, à estabilidade do sistema
monetário.
É verdade que se pode imaginar uma situação em que a inflação
dos lucros é localizada, sem ameaçar as moedas metropolitanas,
isto é, na qual o aumento dos preços em relação aos salários em
dinheiro ocorre particularmente em um país ou conjunto de países
não metropolitanos, cuja taxa de câmbio se deprecia diante de
moedas metropolitanas. Mas mesmo essa localização da inflação
dos lucros minaria, necessariamente, o valor do dinheiro local e,
consequentemente, destruiria o sistema monetário local; e, além
disso, uma fuga de dinheiro para mercadorias dentro desse conjunto
de países poderia aumentar os preços de algumas mercadorias,
mesmo em termos de moedas metropolitanas e, portanto, causar
problemas para o valor do dinheiro na metrópole. Assim, mesmo
que ocorra tal inflação dos lucros, o meio mais favorável de suprimir
a demanda ex post no capitalismo, para impedir a manifestação do
aumento do preço da oferta, é a deflação da renda. Toda uma gama
de instrumentos é usada para garantir que a demanda ex post das
mercadorias com o aumento do preço da oferta seja suprimida, por
meio de uma diminuição na renda em dinheiro dos trabalhadores.5
Surge a questão: trabalhadores de onde? A preservação do valor do
dinheiro na metrópole, ao impedir qualquer manifestação do
aumento do preço da oferta, pode ser garantida pela imposição da
deflação de renda sobre qualquer segmento da população
trabalhadora que demande uma mercadoria em particular. Em
outras palavras, a deflação de renda pode ser imposta aos
trabalhadores tanto na metrópole quanto na periferia (ou em
ambos); nos dois casos, serviria a seu propósito. Mas parece irreal
imaginar que os trabalhadores da periferia seriam poupados
enquanto os da metrópole fossem pressionados. Sobretudo, a
estabilidade social do capitalismo metropolitano exigiria exatamente
o oposto disso, a saber, transferir o peso da deflação de renda o
máximo possível para a periferia. Daí surge a conclusão: o
capitalismo metropolitano impõe necessariamente a deflação de
renda sobre os trabalhadores da periferia, até mesmo sobre os
pequenos produtores cujos produtos estão sujeitos ao aumento do
preço da oferta ex ante (ou seja, a taxas inalteradas de ganhos em
dinheiro para eles).
O fato de que o capitalismo metropolitano necessariamente impõe a
deflação de renda aos trabalhadores da periferia permanece
inalterado, não importa de qual fase do capitalismo estamos falando
e não importa o que mais aconteça nessa fase. É uma característica
determinante do imperialismo. Em um mundo exclusivamente
capitalista, onde até mesmo as atividades de “rendimentos
decrescentes” estão dentro do setor capitalista, como a situação que
Ricardo havia visualizado, o termo “imperialismo” não terá
significado; a deflação salarial dentro do capitalismo será então a
única forma de deflação de renda. Mas quando existem outros
modos de produção e classes com uma existência espacialmente
distinta (como na massa territorial tropical ou na periferia em geral,
distinta do capitalismo metropolitano que se localiza principalmente
nas regiões temperadas), então a imposição da deflação de renda
também tem uma dimensão espacial; e essa espacialidade tem sido
tradicionalmente referida e capturada pelo termo imperialismo.
No período atual, em que o peso das finanças aumentou, a urgência
em preservar o valor do dinheiro tornou-se ainda maior. Portanto, a
necessidade de impor a deflação de renda em geral, e
principalmente sobre os trabalhadores da periferia, tornou-se ainda
mais urgente. O imperialismo, longe de desaparecer, tornou-se
ainda mais significativo. Que um segmento da burguesia da periferia
tenha se integrado ao capital metropolitano, que alguns países da
periferia tenham experimentado um alto “crescimento”, que os
trabalhadores da metrópole agora estejam sofrendo uma deflação
de renda de forma muito mais acentuada do que antes, são
diferenças que devem ser registradas com relação ao mundo
capitalista contemporâneo em contraste com seu passado. Mas,
depois de registrá-las, devemos também deixar claro que elas não
fazem um pingo de diferença para a realidade do imperialismo, isto
é, para o fato de que o capital metropolitano impõe a deflação de
renda aos trabalhadores da periferia.
Para alguns, pode até parecer que essa realidade do imperialismo
está em foco apenas quando estamos olhando para a esfera
limitada da agricultura, como temos feito até agora. Além do fato de
que, no cenário global, essa esfera está longe de ser limitada, tudo
o que foi dito até agora sobre a agricultura, especialmente sobre os
produtos da massa territorial tropical, vale igualmente para as
indústrias extrativistas. A imposição da deflação de renda sobre os
trabalhadores da periferia é também um meio de garantir que o
problema do aumento do preço da oferta não se manifeste em
relação aos produtos das indústrias extrativistas.
As indústrias extrativistas, no entanto, têm uma especificidade
adicional, a saber, ao contrário de uma massa territorial cultivada
por um grande número de camponeses, os minerais são
encontrados em locais específicos, cuja propriedade pode ser
facilmente monopolizada. Portanto, o capital metropolitano sempre
tenta monopolizar essa propriedade. Em um período de rivalidade
interimperialista, há rivalidade entre os diferentes segmentos do
capital metropolitano para adquirir a propriedade não apenas das
fontes minerais comprovadas, mas até mesmo de fontes em
potencial, como havia argumentado Lenin. Mas em períodos como o
presente, a globalização, levando à formação de um capital
financeiro internacional (distinto de um mero acordo internacional
entre capitais financeiros nacionais, como Karl Kautsky havia
visualizado), silencia as rivalidades interimperialistas em geral,
incluindo a rivalidade pela propriedade e controle sobre fontes reais
e potenciais de riqueza mineral. É no fato de estar sob o regime
neoliberal, em vez de sob o controle do Estado da periferia que
geralmente se colocam todos os matizes do capital metropolitano.
III
O antigo imperialismo, ou seja, o imperialismo com colônias, usou o
Estado colonial para impor a deflação de renda aos trabalhadores
da periferia, de modo que sua absorção do que a própria periferia
produzia pudesse ser reduzida e as mercadorias, assim liberadas,
pudessem ou ser levadas diretamente à metrópole, ou abrir caminho
para a produção de outras mercadorias demandadas pela
metrópole, de forma que as terras até então utilizadas para sua
produção pudessem ser transferidas. As duas principais formas de
deflação da renda foram: o sistema de tributação colonial, com
grande parte da receita sendo usada para comprar essas
mercadorias as quais acumuladas gratuitamente pelo poder colonial
como a “drenagem de excedente” mencionada anteriormente; e a
criação de desemprego, através da destruição da produção local
pelas importações da metrópole, isto é, o processo de
“desindustrialização” mencionado anteriormente. A
“desindustrialização” também liberou diretamente as mercadorias
até então absorvidas localmente, como as matérias-primas usadas
na produção têxtil e alimentícia, que haviam entrado na subsistência
dos pequenos produtores, agora deslocados.
O antigo imperialismo tinha a “vantagem” de que a principal potência
metropolitana da época, a Grã-Bretanha, podia manter sua
economia aberta aos bens dos países então recém-industrializados
sem se endividar (ao contrário, tornou-se o maior exportador de
capitais nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial). Por pelo
menos quatro décadas, até 1928, a Índia teve o segundo maior
excedente de exportação do mundo (atrás apenas dos Estados
Unidos); e isso apesar das importações de bens que causaram
desindustrialização doméstica. Mas esse excedente de exportação
foi totalmente apropriado pela Grã-Bretanha, não apenas para pagar
suas dívidas com a Europa continental, América do Norte e regiões
de recente povoamento europeu, mas também para permitir-lhe a
exportação de capital para essas regiões.6 Isso contrasta com a
posição da principal potência metropolitana de hoje, os Estados
Unidos, que também é o país mais endividado do mundo, com uma
dívida que cresce rapidamente. A diferença entre as duas situações
emerge porque os mercados e “drenagens” coloniais não podem
mais desempenhar o mesmo papel de antes, embora, sem dúvida,
os fenômenos de usurpação do mercado e drenagem de excedente
continuem, este último na forma, inter alia, de superlucros do
monopólio tecnológico, agora institucionalizado pelo Acordo Trips
(Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio, na sigla em inglês).
A importância reduzida da drenagem de excedente e dos mercados
da periferia surge não apenas pela descolonização política, mas
também porque a possibilidade de maior usurpação desses
mercados que já foram penetrados é limitada, enquanto as atuais
necessidades do capitalismo metropolitano são enormes.
No capitalismo contemporâneo, em contraste com o período
colonial, a aplicação de políticas neoliberais é o principal meio para
impor a deflação de renda aos trabalhadores da periferia. Existem
pelo menos cinco maneiras óbvias pelas quais essas políticas
provocam deflação de renda para os trabalhadores da periferia. A
mais óbvia é por meio do aumento massivo das desigualdades de
renda. As grandes reservas de força de trabalho que existem na
periferia, em países como Índia, China, Indonésia e Bangladesh,
longe de estarem esgotadas, aumentam em tamanho relativo, o que
mantém baixo não apenas os salários reais dos trabalhadores da
periferia, mas também dos trabalhadores da metrópole. Isso ocorre
porque os trabalhadores da metrópole agora têm que concorrer com
os da periferia, devido à disposição do capital metropolitano, uma
disposição que não existia anteriormente, em se mover rumo à
periferia, estabelecendo unidades de produção para atender não às
necessidades locais, mas sim às necessidades metropolitanas. O
vetor dos salários reais mundiais, portanto, não mostra nenhum
aumento; até diminui.7 Mas a produtividade do trabalho aumenta em
todos os lugares, resultando em um aumento de uma parte do
excedente. Isso impõe a deflação de renda ao povo trabalhador, ao
mesmo tempo em que cria uma tendência à “superprodução” global.
A segunda maneira pela qual a deflação de renda lhes é imposta
sob o neoliberalismo é por meio das medidas fiscais do governo.
Dado o fato de as economias serem abertas aos fluxos globais de
capital, incluindo os fluxos financeiros globais, os governos
concorrem entre si para oferecer concessões fiscais ao capital
globalizado, a fim de seduzi-lo para a instalação de plantas em seus
solos para promover o “desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, uma
vez que a “responsabilidade fiscal” impõe um limite ao tamanho
relativo do deficit fiscal, as concessões fiscais ao capital são
necessariamente equiparadas aos cortes nas despesas sociais, nas
transferências para os pobres, nos subsídios alimentares e no
fornecimento público de serviços essenciais, tais como saúde e
educação, todos elementos que prejudicam os trabalhadores, e
todos elementos que reduzem, em termos reais, o poder de compra
em suas mãos. A deflação de renda, assim efetuada, restringe o
consumo de bens essenciais como os alimentos, de modo que o
uso da massa territorial limitada para atender às demandas dos
ricos se torna possível sem colocar em risco o valor do dinheiro; o
que acompanha esse processo, no entanto, é o aumento da fome
entre as pessoas.
Os dados a seguir ilustram o ponto. Considerando o mundo como
um todo, entre o triênio 1979-1981 e o triênio 1999-2001, a
produção per capita de cereais (produção média anual dividida pela
população no meio do ano) caiu de 355 kg para 343 kg. (Os cálculos
para o triênio 2015-2017 também indicam 345 kg).8 Com a renda per
capita mundial em alta, uma vez que a elasticidade da renda da
demanda por cereais é positiva e como não houve uma significativa
redução de estoques entre 1999-2001 em comparação com 1979-
1981, seria de esperar um aumento significativo nos preços dos
cereais durante essas duas décadas e, portanto, também uma
mudança nos termos de troca em favor dos cereais com relação à
manufatura. Na verdade, porém, esses termos de troca para cereais
diminuíram em 46% entre 1979-1981 e 1999-2001!9 A virulência da
deflação de renda imposta aos trabalhadores, especialmente na
periferia, pode ser medida a partir disso.
A terceira maneira é por meio da redução da participação dos
pequenos produtores no valor agregado adicionado ao longo de
toda a cadeia produtiva, desde a colheita até o mercado de varejo.
Isso ocorre porque os pequenos comerciantes com pouco poder de
negociação, e as agências governamentais de compra e venda, que
antes existiam para dar uma participação “justa” aos produtores,
estão sendo cada vez mais substituídas por monopólios capitalistas,
incluindo corporações multinacionais.
A quarta maneira é por meio da continuação do processo colonial de
deslocamento forçado de pequenos produtores e comerciantes
locais por grandes empresas, incluindo corporações multinacionais.
O fenômeno da “desindustrialização” agora se espalha também para
o setor terciário, em que o Walmart e outras corporações desse tipo
precipitam uma nova rodada de deslocamento forçado combinado
com desemprego. Tal destino também aguarda artesãos,
pescadores e uma série de pequenos produtores.
A quinta e a última maneira é, sob muitos aspectos, a mais
significativa, a saber, o desencadeamento de um processo de
acumulação primitiva de capital em relação ao campesinato, no qual
o grande capital, em nome de “desenvolvimento” e “infraestrutura”,
toma para si não apenas as terras comuns ou terras do governo,
mas também as terras dos camponeses a preços “de liquidação”. A
imposição da deflação de renda ao campesinato afeta não apenas o
lado da demanda, mas também o lado da oferta de produtos
agrícolas; no entanto, isso significa apenas que, para a preservação
do valor do dinheiro, a pressão sobre a demanda deve ser ainda
maior.
A “globalização”, portanto, acelera acentuadamente o processo de
separação dos pequenos produtores de seus meios de produção.
Ao mesmo tempo, também aumenta o tamanho do exército
industrial de reserva global e ajuda a garantir que ele não se
esgote.10
IV
A própria existência de um conjunto de força de trabalho
desempregada e subempregada atua como uma medida da
deflação de renda; mas também impede qualquer possibilidade de
aumento salarial em dinheiro, um obstáculo que é vital para a
preservação do valor do dinheiro.11
A discussão mais comum sobre o papel do exército de reserva na
tradição marxista tende a enfatizar a restrição que este exerce sobre
os salários reais e, portanto, o fato de manter o processo de
exploração. Foi assim que o próprio Marx discutiu o assunto. Mas
enquanto na teoria de Marx as mudanças nos salários reais e em
dinheiro caminhavam juntas, uma vez que ele focava em um
universo com “dinheiro-mercadoria”, em um mundo com dinheiro-
crédito, essas duas mudanças não precisam caminhar juntas. Não é
suficiente, em tal mundo, que exista um fator restritivo, do ponto de
vista do capital, sobre o nível dos salários reais; também deve haver
um fator restritivo ao nível dos salários em dinheiro.
O exército de reserva em tal mundo, portanto, desempenha o papel
de estabilizar o sistema monetário, mantendo o nível dos salários
em dinheiro baixo. Não apenas preserva o processo de apropriação
da mais-valia; também mantém o sistema monetário em
funcionamento, para tanto, é claro, o tamanho do exército de
reserva deve ser grande o suficiente. Na era da globalização,
quando a mobilidade internacional do capital vincula os salários dos
trabalhadores da metrópole aos dos trabalhadores da periferia, o
próprio exército de reserva desempenha um papel global. Mesmo
que não esteja localizado na própria metrópole, ele desempenha um
papel global de manter baixo o vetor dos salários em dinheiro em
todos os países, inclusive na metrópole, transmitindo estabilidade ao
sistema monetário metropolitano. A manutenção de um exército de
reserva global complementa o processo de deflação de renda e é
parte integral da operação do imperialismo.
O exército de reserva global é, geralmente reproduzido de maneira
espontânea e até aumentado em tamanho relativo na era da
globalização. As crescentes desigualdades de renda global elevam,
ceteris paribus, a taxa de crescimento da produtividade do trabalho.
Isso ocorre porque os ricos, em média, não apenas demandam
menos produtos intensivos em trabalho do que os pobres, mas
também passam a consumir produtos cada vez mais novos com
mais rapidez, os quais são geralmente cada vez menos intensivos
em termos de trabalho. Portanto, sob a globalização, para qualquer
taxa de crescimento de produção, a taxa de crescimento do
emprego sofre uma desaceleração.
É verdade que a taxa de crescimento da produção em si foi maior
em algumas economias periféricas na era da globalização, mas
mesmo isso não tem sido suficiente para impedir um aumento
relativo nas reservas de trabalho, como sugere o termo “crescimento
sem emprego” usado no contexto de economias como a Índia.12
Uma fonte ainda mais importante para reabastecer e ampliar o
exército de reserva é, como vimos, o processo de acumulação
primitiva de capital, que se intensifica na era da globalização e lança
um vasto número de pequenos produtores deslocados forçosamente
em um mercado de trabalho no qual o aumento da demanda por
trabalho não é rápido o suficiente.
Uma implicação do processo acima referido deve ser observada. O
não esgotamento do exército de reserva nas economias periféricas
é importante não apenas para as burguesias dessas economias,
mas também para o capital metropolitano. Conclui-se que é ingênua
a crença de que, com o crescimento das economias periféricas, um
estado de escassez de força de trabalho surgirá mais cedo ou mais
tarde, colocando uma pressão ascendente sobre os salários e,
portanto, eliminando a pobreza: qualquer desfecho desse tipo estará
associado a um colapso do sistema monetário na metrópole, ao qual
ela resistirá ferozmente, juntamente com a grande burguesia local
que agora está integrada à metrópole.
V
O imperialismo atende a toda uma gama de exigências do
capitalismo, tal como adquirir mercados externos e garantir o
suprimento de matérias-primas, sem as quais, como apontou Harry
Magdoff,13 não haveria nenhum tipo de manufatura, por menor que
fosse sua participação no valor bruto da produção manufatureira.
Todos esses requisitos persistem na era da globalização, mas um
em particular toma a linha de frente, precisamente por causa da
presença abrangente das finanças, e que diz respeito à preservação
do valor do dinheiro. Um conjunto de processos associados ao
capitalismo na era da globalização, que não estão confinados à
metrópole, mas afetam profundamente a periferia, trabalham
espontaneamente para esse fim. O processo intensificado de
acumulação primitiva de capital (que, como Rosa Luxemburgo
observou, não se limita apenas à pré-história do capitalismo, mas o
acompanha ao longo de sua história); o reabastecimento e a
ampliação das reservas de trabalho na periferia devido a essa
acumulação primitiva e também devido às altas taxas de
crescimento da produtividade do trabalho no segmento capitalista; a
busca de políticas neoliberais que desencadeiam um processo de
deflação de renda muito diferente do que se segue por causa do
aumento no tamanho relativo do exército de reserva global; tudo
isso faz parte desse fenômeno. Todos esses processos que
envolvem a periferia em sua rede constituem elementos-chave do
imperialismo contemporâneo. Todos eles constituem imposições
sobre os trabalhadores da periferia contra os quais são impotentes
para agir, apesar da descolonização política, a menos que
desvinculem suas economias de um regime de capital liberalizado e
fluxos comerciais.
Argumenta-se frequentemente que, durante os anos 1950, 1960 e
1970, quando os Estados Unidos, como principal potência
capitalista, de fato projetaram a derrubada de governos que
tentavam adquirir maior controle sobre seus recursos nacionais às
custas das corporações multinacionais, de Mossadegh a Arbenz e
Allende, o imperialismo era um fenômeno real; mas agora não seria
mais. Em outras palavras, embora o imperialismo fosse um termo
significativo anteriormente, não apenas na era colonial, mas mesmo
nas décadas do pós-guerra, não seria mais agora.
Nosso argumento é precisamente o oposto disso. O imperialismo
tornou-se visível porque os regimes dirigistas que surgiram nas
antigas colônias após a descolonização procuraram, de diversas
maneiras, livrar-se de seu jugo. Procuraram adquirir maior controle
sobre os recursos nacionais; abandonaram o princípio de “solidez
financeira”, mesmo quando aumentaram os impostos sobre
capitalistas nacionais e estrangeiros, usando o setor público como
uma alternativa no caso de resistência capitalista e de não
cooperação; realizaram investimentos em “aumento de terras” e
progresso técnico sob a égide do setor público, o que evitou a
necessidade de qualquer deflação de renda; e comprometeram o
Estado com a tarefa de fornecer serviços essenciais. Tudo isso
significou um afrouxamento do estrangulamento imperial, razão pela
qual o imperialismo era tão visível na oposição a esses regimes.
Porém, com a imposição de políticas neoliberais na era da
globalização, o escopo para qualquer ação independente por parte
do Estado-nação contra as finanças globalizadas que poderiam
deixar seus territórios quando bem entendessem, ficaram
significativamente reduzidas. Em outras palavras, o Estado do
terceiro mundo passa por uma mudança da era dirigista para a era
neoliberal: de ser um Estado (mesmo que um Estado burguês) que
aparentemente está acima de todas as classes, intervindo para o
“bem social” e, portanto, em algumas ocasiões, agindo até mesmo
em nome dos oprimidos, a um Estado que promove quase
exclusivamente os interesses da oligarquia corporativo-financeira,
integrada ao capital globalizado, com o argumento de que seus
interesses são concomitantes com o “interesse social”. Com essa
mudança na natureza do Estado, de dirigista para neoliberal,
colocada em prática em toda parte por meio do processo de
globalização, a necessidade de qualquer intervenção imperialista
explícita desaparece (exceto para a aquisição de controle direto
sobre o petróleo, como no Iraque). Em suma, a invisibilidade do
imperialismo hoje significa que ele se tornou ainda mais poderoso,
não que desapareceu.
VI
O poder do imperialismo não se limita à mera possibilidade de fuga
de capitais. A globalização tende a minar, sistematicamente, todas
as possibilidades de resistência na periferia contra a hegemonia do
capital financeiro internacional. O crescimento do tamanho relativo
do exército de reserva dificulta a ação sindical; e os direitos
trabalhistas são prejudicados em nome da introdução da
“flexibilidade do mercado de trabalho” para atrair capital para
impulsionar o “desenvolvimento”. Também gera privatização de
unidades do setor público, “terceirização” de trabalho para o setor
não organizado, substituição de trabalho ocasional por
trabalhadores em tempo integral, mudança para “produção
doméstica” com salários extraordinariamente baixos, os quais fazem
com que a resistência dos trabalhadores organizados seja
dificultada. Simultaneamente, a expropriação do campesinato e a
deflação de renda imposta a ele também tendem a tornar a ação
camponesa muito mais difícil. As duas “classes básicas”, portanto,
ficam enfraquecidas.
Mas isso significa apenas que as formas tradicionais de resistência
de classe se tornam mais difíceis de replicar, e novas formas de
resistência devem ser desenvolvidas. Para distrair-se das
dificuldades econômicas que impõem ao povo sob a globalização,
os regimes neoliberais procuram encontrar adereços políticos para
sua sobrevivência, promovendo distintas formas de conflitos
sectários na sociedade, sejam eles étnicos, religiosos, culturais ou
de outra natureza. Ao fazê-lo, contribuem para a desintegração da
vida social. Tal tendência, no entanto, também cria as condições
para a derrubada do neoliberalismo, e um movimento através de
estágios em direção à transcendência do capitalismo, à medida que
deixa cada vez mais claro para o povo que a escolha, como disse
Rosa Luxemburgo, é entre o socialismo e a barbárie.
1
Este artigo foi autorizado a ser incluído neste livro pelos editores
da revista Monthly Review. Nós somos profundamente gratos aos
autores e editores da revista. A versão original do texto pode ser
encontrada em Patnaik, U. and Patnaik, P. “Imperialism in the era of
globalization”, Monthly Review, 67(3), julho-agosto de 2015.
2
Sobre o papel de tal “drenagem” e “desindustrialização”, ver
Bagchi, A. K. Perilous passage: the global ascendancy of capital,
Oxford University Press, Delhi, 2006; e Patnaik, U. “The free lunch:
Transfers from the tropical colonies and their role in capital formation
in Britain during the Industrial Revolution”, in: K. S. Jomo (ed.)
Globalization under hegemony: the long twentieth century, Oxford
University Press, Delhi, 2006, p. 30-70.
3
Para uma estimativa recente do movimento secular em termos de
comércio, ver Chakraborty, S., “Movements in the terms of trade of
primary commodities vis-à-vis manufactured goods: a theoretical and
empirical study”, Ph. D. Thesis, Center for Economic Studies and
Planning, Jawaharlal Nehru University, Nova Delhi, 2011.
4
Karl Marx, “The british rule in India” [A dominação inglesa na Índia],
The New York Daily Tribune, 25 de junho, 1853; reimpresso em
Iqbal Husain (ed.), Marx on India, Tulika Books, Nova Delhi, 2006.
5
Para uma discussão no contexto da Índia, ver Patnaik, U.,
“Deflationary neo-liberalism: an Indian perspective” in: P. Bowles, H.
Veltmeyer et al. (eds.), National perspectives on globalization: a
critical reader. Londres, Palgrave, 2007.
6
Ver Patnaik, U., “India in the world economy 1900 to 1935: the
Inter-war depression and Britain’s demise as world capitalist leader”,
Social Scientist, Volume 42, n. 1-2, Janeiro-Fevereiro, 1914.
7
Para os Estados Unidos, por exemplo, Joseph Stiglitz diz que:
“ajustado pela inflação, os salários reais estagnaram ou caíram; a
renda de um típico trabalhador homem em 2011 (32.986 dólares)
era menor do que em 1968 (33.880 dólares)”, New York Times, 13
de janeiro de 2013.
8
Os dados de cereais foram obtidos da FAO.
9
Agradecemos ao dr. Shouvik Chakraborty por este exemplo.
10
A discussão que segue se beneficiou muito do artigo de Foster, J.
B., McChesney, R.W., e Jonna, R. J., intitulado “The global reserve
army of labour and the new imperialism”, Monthly Review, vol. 63,
edição 6, novembro, 2011.
11
A discussão que segue se baseia em Patnaik, P., The value of
money, Columbia University Press, Nova York, 2009.
12
Entre 2004-2005 e 2009-2010, por exemplo, quando o PIB da
Índia estava aparentemente crescendo a uma taxa superior a 7% ao
ano, o número de trabalhadores cujo “status corrente” era estar
empregado cresceu a uma taxa de 0,8%, de acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra, o que é muito inferior à taxa de crescimento
da oferta de força de trabalho.
13
Harry Magdoff, The age of imperialism, Monthly Review Press,
Nova York, 1969.
EXPLORAÇÃO E
SUPEREXPLORAÇÃO NA TEORIA
DO IMPERIALISMO
JOHN SMITH
Monopólio e superexploração
Antes de nos aprofundarmos na natureza da exploração capitalista e
da superexploração imperialista, é válido considerar como essas
duas categorias estreitamente relacionadas se colocam em relação
a outro elemento constitutivo essencial do capitalismo: o monopólio.
O monopólio está inscrito no DNA do capitalismo, os capitalistas
individuais não se empenham tanto para concorrer quanto para
encontrar uma maneira de evitar a concorrência, obter uma
vantagem sobre os rivais, exercitar alguma forma de monopólio que
lhes dará lucros acima da média. A lei do valor, que em sua forma
mais simples explica que as mercadorias compradas e vendidas
livremente são vendidas pelo seu valor, resulta dos esforços
incessantes dos capitalistas individuais para violar essa lei. Sua
compulsão selvagem só pode ser contida por uma força externa, daí
a necessidade de um Estado e de um sistema de leis independentes
dos capitalistas individuais e, portanto, também as tentativas
incessantes de capitalistas individuais e grupos de capitalistas de
fugir destas leis ou de aparelhar o Estado para obter uma vantagem
sobre seus rivais.
O monopólio se apresenta de várias formas. Alguns dizem respeito
à produção, inovações tecnológicas que permitem que um
capitalista individual produza uma determinada mercadoria de forma
mais eficiente que outros; outras à distribuição, marca ou outras
formas de monopólio no mercado, como barreiras a novos
participantes no mercado, captura do Estado, acesso privilegiado a
insumos baratos etc.); tudo isso pode ter vida curta ou duradoura.
Para cada instância de monopólio corresponde uma renda, um
rendimento não derivado do trabalho, um lucro extra pelo monopólio
à custa de lucros mais baixos para o restante. O monopólio,
portanto, redistribui a mais-valia entre os capitais, mas não agrega
nada a ela.
Isso vale mesmo para inovações tecnológicas que reduzem a
quantidade de trabalho necessária para produzir bens de consumo
para os trabalhadores, somente quando essa inovação se
generaliza, ou seja, quando deixa de ser monopolizada por um
capitalista individual – em outras palavras, quando deixa de ser uma
inovação – se traduz em uma redução do valor da força de trabalho
e em um aumento correspondente na taxa de mais-valia. Somente
então, e se os trabalhadores não obtiverem nenhuma porção destes
lucros por meio de salários reais mais altos, a taxa de mais-valia
aumenta.
Embora o monopólio esteja relacionado à distribuição da mais-valia,
a exploração está relacionada com sua extração. E assim como
todo capitalista sonha em se tornar um monopolista, também está
no DNA de todo capitalista procurar maneiras de maximizar a
extração da mais-valia. Como acabamos de ver, n’O capital, Marx
analisa detalhadamente duas maneiras pelas quais os capitalistas
fazem isso – estendendo a jornada de trabalho para além do “tempo
de trabalho necessário”, isto é, o tempo necessário para substituir
os valores consumidos pelo trabalhador e sua família, que Marx
chamou mais-valia absoluta; e alterando a proporção entre o tempo
de trabalho necessário e o tempo excedente de trabalho em um dia
de trabalho inalterado por meio de avanços na produtividade que
barateiam os bens de consumo dos trabalhadores, que ele chamou
de mais-valia relativa. Ambas são totalmente distintas da redução do
tempo de trabalho necessário ao “empurrar salário do trabalhador
abaixo do valor de sua força de trabalho” a definição padrão de
superexploração, criticada mais adiante neste ensaio.
Resulta do exposto que a renda e a superexploração imperialistas
são conceitualmente distintas, mesmo que na realidade elas
estejam intimamente relacionadas. Samir Amin estava, portanto,
errado ao confundir os dois: “a parte visível da renda imperialista [...]
surge do grau dos preços da força de trabalho [...]. A parte
submersa da renda [surge do] acesso aos recursos do planeta”
(Samir Amin, 2018, p. 110).
Agora podemos juntar os dois elementos constitutivos do
capitalismo – monopólio / concorrência e exploração /
superexploração. Todo capitalista sonha em se tornar um
monopolista, mas para os capitalistas do Vietnã, Camboja, México e
outras nações do Sul, seus sonhos permanecem somente isso,
sonhos; eles não têm escolha senão depender exclusivamente da
extração da mais-valia de seus próprios trabalhadores, ao explorá-
los além dos limites, ou mais precisamente, retirar deles o que resta
depois que os monopolistas e imperialistas tenham tomado sua
parte.29 Em contraste, o capital monopolista imperialista tem a opção
de compartilhar parte de suas rendas monopolistas e rendas
imperiais com seus próprios trabalhadores, comprar a paz social e
expandir o mercado de seus bens , junto com recursos para
financiar o gasto estatal com poder duro e brando, a fim de reforçar
sua dominação imperialista sobre as nações subordinadas.
Se os conceitos de mais-valia absoluta e relativa de Marx são
insuficientes para explicar as realidades da exploração nas redes de
produção globais contemporâneas, de que mais precisamos? Em
poucas palavras, de um conceito teórico de superexploração. Mas
antes que possamos conceitualizar a superexploração, precisamos
de um conceito mais profundo e rico de exploração.
Conclusão
O impulso dos capitalistas ao monopólio, ou seja, seu desejo de
capturar mais-valia às custas de outros capitalistas, junto ao seu
desejo insaciável por trabalho superexplorável, se combinam para
definir a trajetória imperialista inata e inexorável no capitalismo. O
imperialismo e a superexploração estão, portanto, inseperavelmente
ligados. Uma teoria do imperialismo do século XXI deve explicar
como a superexploração modifica a relação de valores. Uma teoria
do imperialismo que não o faça é inútil, nula e, necessariamente,
uma negação do imperialismo, mesmo se aqueles que o negam
continuem a usar “imperialismo” como um termo descritivo.
Referências
14
“Vemos, cotidianamente, ‘sair’ o Sol, dar uma volta à Terra, para
depois se esconder. Sabemos, não porque o vemos, mas por
conhecimentos, que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas o
contrário” (Osorio, 2019, p. 2).
15
“O que é uma hipótese para a ‘análise geral do capital’, isto é, ao
nível do modo de produção, é assumido por algumas correntes
marxistas como uma lei de ferro. Se assume com isso que hipótese
deve prevalecer no capitalismo em todos os níveis de análise, em
todos os lugares e espaços e o tempo todo” (Osorio, 2018, p. 157).
16
O outro livro criticado por Vasudevan é Amin, 2018.
17
Esta citação é da epígrafe que antecede o artigo de Vasudevan.
Não está claro se as palavras são dos editores do Catalyst ou de
Vasudevan.
18
Não é minha intenção fazer uma comparação loquaz entre a
opressão imperialista e a opressão das mulheres, que em qualquer
caso não pode ser medida pelo acesso relativo a bens materiais. É
verdade que as mulheres contribuem com uma vasta quantidade de
trabalho doméstico não remunerado – mas o ponto relevante aqui é
que os níveis de consumo, acesso à saúde e educação etc.
dependem muito mais da nacionalidade do que do gênero.
19
Diz Lenin: “O movimento espontâneo da classe trabalhadora é o
sindicalismo [...], e o sindicalismo significa a escravização ideológica
dos trabalhadores pela burguesia. Portanto, nossa tarefa [...] é
combater o espontaneísmo e desviar o movimento da classe
trabalhadora do sindicalismo espontaneísta que se esforça para
ficar sob o controle da burguesia, e colocá-lo sob o controle da
social-democracia revolucionária” (Lenin, [1902] 1978, p. 50).
20
“Dependência” é um eufemismo para o imperialismo, uma
concessão feita ao desejo da burguesia nacional e “elites
modernizadoras” das nações sujeitas para o desenvolvimento
capitalista independente, e para as partes falsamente chamadas de
“comunistas”, que procuravam formar um bloco com aqueles nessa
base. O termo agora passou para a história e não pode ser
reescrito, mas pode ser e está sendo preenchido com novo
conteúdo revolucionário, especialmente no renascimento vívido e
em rápida expansão do marxismo e da teoria da dependência na
América Latina.
21
Callinicos voltou brevemente neste tema em seu livro: “Da
perspectiva da teoria do valor de Marx, o erro crítico [dos teóricos da
dependência] é não levar em conta a importância dos altos níveis de
trabalho produtividade nas economias avançadas” (Callinicos, 2009,
p. 179-180).
22
A participação do trabalho no PIB nos países imperialistas caiu
aproximadamente 60%, enquanto o gasto em educação no Reino
Unido, em 2019, consumiu 4% do PIB, ou aproximadamente 7% da
receita bruta do trabalho. Esta aproximação indica a magnitude
relativa dos custos de educação diante dos custos totais de
reprodução da força de trabalho. A “participação do trabalho” fica
distorcida pelos supersalários dos CEOs das principais empresas.
Por outro lado, o gasto com educação dos trabalhadores compõe
apenas uma parte do gasto total em educação, pois a proporção
real entre eles não se distanciará de 7%. Com relação aos custos de
treinamento... a maioria dos trabalhadores não recebe treinamento.
23
Estas conquistas estão agora sob grave ameaça já que o
imperialismo do Reino Unido se afunda cada vez mais na crise e
seus governantes procuram acelerar a destruição do contrato social
posterior à Segunda Guerra Mundial.
24
Ele afirma que Marini “sempre” concordou com isso e também
afirma que “este diagnóstico é aceito também pelos defensores
contemporâneos do conceito de superexploração”. Infelizmente, ele
não apoia essas afirmações com uma única citação de qualquer
uma das fontes por ele mencionadas.
25
A sentença da qual isso se derivou: “os melhores pontos em meu
livro são: 1) o caráter duplo do trabalho, segundo o modo com que é
expresso em valor de uso ou valor de troca (toda a compreensão
dos fatos depende disso) [...] 2) o tratamento da mais-valia,
independentemente de suas formas particulares, como lucro, juros,
aluguel de terreno etc.”.
26
Ao contrário, a dispersão salarial internacional e intranacional
aumentou durante a era neoliberal. Se a China ficar fora da cena, há
pouco evidência de convergência salarial ou de entradas, e a
hipótese de convergência fica ainda mais débil. Durante a crise
financeira mundial, quando as taxas de crescimento nos países
imperialistas ruíram, ao mesmo tempo, se produziu um “superciclo
de matérias-primas” alimentado pela especulação que melhorou
temporalmente os termos de troca e o crescimento econômico em
uma franja de nações do Sul.
27
Como apontou Amanda Latimer (2016, p. 1.142), “o trabalho de
Marini mina o mito de que a mudança para a mais-valia relativa na
Inglaterra foi inteiramente o produto da luta de classes nacional”.
28
Como em seus outros escritos, Sweezy desconsidera a distinção
entre trabalho produtivo e improdutivo, uma distinção que é sem
dúvida muito mais importante nos países imperialistas
desenvolvidos do que em suas colônias e neocolônias.
29
A China é uma exceção extremamente importante, mas ainda
parcial, e é por isso que está em rota de colisão com as potências
imperialistas em exercício, principalmente o Japão e os Estados
Unidos
30
“Quando Marx afirma que as empresas que operam com uma
produtividade abaixo da média obtêm menos do lucro médio [...]
tudo isso [...] significa que o valor ou mais-valia realmente produzido
por seus trabalhadores é apropriado no mercado pelas empresas
que funcionam melhor. Isso não significa, em absoluto, que eles
tenham criado menos valor ou mais-valia do que o indicado pela
quantidade de horas trabalhadas nelas” (Mandel, 1975, p. 101).
31
Ou melhor, vender a preços que correspondam à forma
modificada de seu valor, que Marx chamou de “preços de produção”,
preços consistentes com a equalização da taxa de lucro entre
diferentes capitais.
32
Com base nisso, Claudio Katz argumentou que “a teoria da
dependência não precisa de um conceito de superexploração
omitido por Marx” (Katz, 2017, p. 15); Jaime Osorio respondeu que a
proposta de Katz de “reformulação da teoria marxista da
dependência nada mais é do que um chamado ao seu repúdio”
(Osorio, 2018, p. 179).
33
Em A dialética da dependência, Marini argumenta: “o conceito de
superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que
inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa –
a que corresponde ao aumento da intensidade do trabalho. Por
outra parte, a conversão do fundo de salário em fundo de
acumulação de capital não representa rigorosamente uma forma de
produção de mais-valia absoluta, posto que afeta simultaneamente
os dois tempos de trabalho no interior da jornada de trabalho, e não
somente o tempo de trabalho excedente, como ocorre com a mais-
valia absoluta. Por tudo isso, a superexploração é melhor definida
pela maior exploração da força física do trabalhador, em
contraposição à exploração resultante do aumento de sua
produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a
força de trabalho se remunera abaixo de seu valor real (Marini,
1973, p. 93). Citado conforme a edição brasileira “Sobre a dialética
da dependência”. In: Stedile, J. P; Traspadini, R. Ruy Mauro Marini:
vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
CAPITALISMO MORIBUNDO E
COMPETITIVO
E. AHMET TONAK34
Introdução
Nessa era da globalização, o conceito de imperialismo perdeu parte
de seu prestígio teórico; até mesmo uma referência passageira pode
agora ser considerada banal e pouco sofisticada. Curiosamente, a
popularidade relativamente recente do conceito e a formulação de
novas teorias concorrentes do imperialismo se concentram
principalmente em suas manifestações políticas (como guerras e
invasões militares) ou nas consequências econômicas das relações
capitalisticamente imperialistas35 (como desigualdade e pobreza).
Sem negar o significado político e a urgência de desenvolver
análises do domínio político dos países capitalistas avançados (o
Norte Global) sobre os menos avançados (o Sul Global), concentro-
me aqui no papel desempenhado pelas relações econômicas
desiguais entre o Norte e o Sul em constituir a base da dominação
política. Ao mesmo tempo, vejo as fontes de desigualdade
doméstica e internacional como características embutidas no
desenvolvimento capitalista, para as quais a motivação do lucro é
fundamental. É dentro desse marco que os mecanismos de
transferência de valor devem ser vistos como os meios de
reproduzir desigualdades entre as economias capitalistas
sustentadas pelos processos globais de acumulação de capital.
Certos participantes ativos nos debates atuais sobre o novo
imperialismo, notadamente David Harvey, argumentam que a
interpretação clássica do imperialismo não tem mais muito poder
explicativo e que a direção da transferência de valor foi revertida nos
últimos anos.36 Embora as interpretações clássicas do imperialismo
– por exemplo, as de Bukharin, Luxemburgo e Lenin – não sejam
livres de falhas, não posso concordar com a rejeição de Harvey às
contribuições anteriores. E mais: acredito que a especulação de
Harvey quanto à reversão da direção da transferência de valor seja
infundada, tanto teórica quanto empiricamente. Contra tais opiniões,
eu argumentaria que o imperialismo está vivo e bem e, mais
importante, que limita as tentativas de desenvolvimento econômico
autônomo no Sul. Sem negar a dificuldade empírica de estimar seu
valor total e líquido, não há dúvida de que os países imperialistas
continuam a extrair riqueza do Sul Global.
Também é digno de nota que a maioria das novas conceituações do
imperialismo desde Lenin (e até mesmo desde Hilferding e Hobson)
se basearam na ideia de poder, especificamente do poder de
grandes empresas monopolistas. A afirmação de Lenin era bastante
direta: o capitalismo finalmente chegara ao seu estágio final –
capitalismo de monopólio – que era o imperialismo. Devo
acrescentar que várias modificações conceituais ao conceito de
capitalismo monopolista foram propostas desde a formulação
superficial de Lenin sobre o último estágio do capitalismo. Em
particular, a reconceitualização devida a Paul Baran e Paul Sweezy,
que consideraram o monopólio como a ausência de concorrência e
argumentaram pela inaplicabilidade da teoria do valor de Marx,
dominou a maioria das análises do capitalismo moderno na
esquerda.
Mas realmente é assim? E como exatamente a concorrência
desapareceu durante o final do século XIX? Eu argumentaria, ao
contrário, que a concorrência se intensificou em vez de desaparecer,
à medida que o capitalismo se desenvolveu e passou pelo processo
de centralização e concentração do capital. Aqueles que alegaram
que o estágio atual do capitalismo deveria ser entendido como
monopolista se basearam principalmente na noção implícita de livre
concorrência (ou concorrência pura ou perfeita) em relação à fase
anterior do capitalismo,37 uma noção que não tem relação com a
concepção de Marx de concorrência real como guerra entre
unidades de capital (e entre os próprios trabalhadores).38 Marx
supôs que essa concorrência bélica opera dentro e através das
nações, em outras palavras, que é um processo regulador central
que funciona tanto doméstica quanto internacionalmente.39
Obviamente, a própria base dessa concorrência é o fato de que o
capital é principalmente – e de fato exclusivamente – impulsionado
pelo lucro, e que essa preocupação não apenas produz ciclos e
crises, mas também aumenta o exército de reserva de força de
trabalho em escala global.
Embora geralmentese considere exatamente o oposto, eu
argumentaria que o papel do Estado se tornou mais, e não menos,
significativo à medida que o capitalismo se expandiu globalmente. A
principal função do Estado capitalista sempre foi criar um terreno
fértil para a obtenção de lucro, tanto em âmbito nacional como
internacional. O cumprimento dessa função anda de mãos dadas
com um arcabouço ideológico no qual os conceitos de liberdade
(leia-se: mobilidade do capital) e concorrência são não apenas
centrais, mas usados de forma fetichizada. Como David Gordon
disse,
o fio da navalha da concorrência capitalista se tornou mais afiado: empresas
locais são cada vez mais obrigadas a se igualar aos produtores de menor custo
nos mercados concorrentes globais ou correm o risco de terem seus pulsos
cortados. Gordon (1998, p. 28)
Hoje em dia, costuma-se dizer que todos os países devem se
submeter aos ditames da concorrência mundial. Sem produtos de
“classe mundial”, diz a tese, é provável que o padrão de vida de um
país se estagne, se não declinar catastroficamente.
A seguir, revejo brevemente as principais formas de transferência de
valor a partir do Sul, observando que sua importância relativa
mudou nas últimas décadas. Depois, foco no conceito de Marx de
“taxa de mais-valia”, e mostro como pode ser usado empiricamente.
Nesse contexto, aproveitarei a oportunidade para comentar sobre o
uso e abuso do termo superexploração. Por fim, sugiro algumas das
áreas de pesquisa menos exploradas e necessárias para melhorar
nossa compreensão da natureza das relações imperialistas na
economia mundial extremamente integrada de hoje.
Conclusão
Para recapitular, a teoria do imperialismo precisa de uma teoria da
concorrência global, e tal teoria pode ser desenvolvida com base na
noção de concorrência doméstica de Marx, apresentada n’O capital.
Essa tentativa envolve teorias do comércio internacional, da
determinação da taxa de câmbio real e da formação de preços
através da aplicação de uma teoria real da concorrência entre
setores e dentro de setores, internacionalmente.47 Portanto, o
próprio imperialismo não deve ser entendido como um exercício de
poder pelas empresas monopolistas do Norte sobre as mais fracas
do Sul. Em vez disso, as relações imperialistas devem ser vistas
como manifestações da natureza muito desigual, e historicamente
determinada, do desenvolvimento capitalista global. Essas relações
contêm várias formas de transferência de valor, que são os próprios
meios de perpetuar as relações imperialistas já existentes, em vez
de serem suas causas.
Referências
<https://thenextrecession.wordpress.com/2016/03/07/imperialism-
and-super-exploitation/>
SHAIKH, A. “Foreign trade and the law of value: Part I”, Science &
Society, 43, 3, p. 281-302, 1979. Disponível em:
<http://homepage.newschool.edu/~AShaikh/lawvalue1.pdf>.
SHAIKH, A. “Foreign trade and the law of value: Part II”, Science &
Society, 44, 1, p. 27-57, 1980. Disponível em:
<http://homepage.newschool.edu/~AShaikh/lawvalue2.pdf>.
34
Sem implicá-los, sou muito grato à I. C. Schick, V. Prashad, e Z.
Ü. Kutlu pelas sugestões.
35
Uso o termo capitalisticamente imperialista para distinguir meu
foco de outras relações imperialistas que existiram historicamente
entre países fortes e fracos (territórios, comunidades etc.) nos
modos de produção pré-capitalistas.
36
Como frequentemente citado, Harvey escreve que “aqueles de
nós que pensam as antigas categorias do imperialismo não se
enquadram muito bem nos tempos atuais, não negam os fluxos
complexos de valor que expandem a acumulação de riqueza e de
poder em uma parte do mundo às custas da outra. Nós
simplesmente achamos que os fluxos são mais complicados e que
mudam de direção constantemente. A drenagem histórica de
riqueza do Oriente pelo Ocidente por mais de dois séculos, por
exemplo, tem sido, em boa medida, revertida ao longo dos últimos
30 anos.” (Harvey, 2017, p. 169). John Smith identifica estes
autores, utilizando um termo um tanto quanto pesado, como os
“negadores do imperialismo”, e aqueles que têm diferentes
formulações sobre os mecanismos de transferência de valor como
“Euro-marxistas”, outro adjetivo politicamente carregado. (Smith,
2016 and 2018)
37
Curiosamente, vários aspectos da concorrência capitalista real,
como formulados inicialmente por Marx, são atribuídos ao
monopólio. Para demonstrar o desnecessário uso do monopólio e o
significado e a aplicabilidade funcional da concorrência ao
capitalismo moderno, substituí o termo “monopólio” por
“concorrência” (com pequenas modificações) na seguinte citação do
novo livro de Smith sobre imperialismo. Como os leitores podem ver,
a citação modificada faz todo sentido e a necessidade do termo
“monopólio” é, digamos,no mínimo, questionável: “A concorrência
ocorre de várias formas. Algumas dizem respeito à produção, isto é,
inovações tecnológicas que permitem que um capitalista individual
produza uma determinada mercadoria com mais eficiência do que
outras; outras, à distribuição (marca ou outras formas de
concorrência no mercado, barreiras para novos entrantes, captura
do Estado, acesso privilegiado a insumos baratos etc.); tudo pode
ter vida curta ou duradoura. É comum a todas as formas de
concorrência que elas redistribuem a mais-valia entre os capitais,
permitindo que capitalistas individuais ou grupos de capitalistas
obtenham lucros extras vendendo mercadorias por mais que valores
(isto é, mais que preços diretos que são proporcionais aos valores
de mercadorias) aos custos de lucros mais baixos para o resto”
(Smith, 2018).
38
A noção de concorrência de Marx como guerra é um dos
conceitos fundamentais do recente livro de Shaikh, Capitalismo, em
que a chamou de concorrência real, “[...] antagônica por natureza e
turbulenta em operação. É o mecanismo regulador central do
capitalismo e é tão diferente da chamada concorrência perfeita
quanto a guerra é diferente do balé. A concorrência dentro de um
setor obriga os produtores individuais a estabelecerem preços que
os mantenham no jogo, assim como os obriga a reduzir custos para
que possam reduzir os preços para competir de maneira eficaz. Os
custos podem ser reduzidos cortando salários e aumentando a
duração ou a intensidade da jornada de trabalho, ou pelo menos
reduzindo o crescimento salarial em relação ao da produtividade.
Mas estes devem enfrentar a reação do trabalho, razão pela qual a
mudança técnica se torna o meio central no longo prazo. Nesse
contexto, os capitais individuais tomam suas decisões com base em
julgamentos sobre um futuro intrinsecamente indeterminado. A
competição coloca vendedor contra vendedor, vendedor contra
comprador, comprador contra comprador, capital contra capital,
capital contra trabalho e trabalho contra trabalho. Bellum omnium
contra omnes.” (ênfase minha; Shaikh, 2016, p. 14).
39
É um fato frequentemente citado que Marx planejou, mas nunca
foi capaz de completar, um volume específico d’O capital, o sexto,
inteiramente dedicado à economia global (“o mercado mundial e as
crises”, nas palavras de Marx) (Mandel, 1976).
40
Para uma discussão detalhada desses pontos, consulte o fértil
artigo de Shaikh sobre comércio exterior, lei do valor e troca
desigual (1979, 1980). Este artigo também é útil para identificar as
diferenças entre os principais teóricos da troca desigual, como
Arghiri Emmanuel, Ernest Mandel e Samir Amin. Devo indicar que
alguns dos pontos do texto de Shaikh também foram desenvolvidos
por Javier Iguiñiz em sua tese de doutorado (orientada por Shaikh)
na New School (Iguiñiz, 1999).
41
Um trabalho empírico recente sobre troca desigual sugeriu que,
para o Sul, a transferência de saída de valor variou entre 10% e
20% (Ricci, 2019).
42
Uma conceituação altamente original e precoce da transição da
dominação de um tipo de circuito de capital para outro foi proposta
pelo marxista francês Christian Palloix (1977).
43
Este trabalho forneceu a base metodológica de outras estimativas
semelhantes em muitos países diferentes, incluindo as da Grécia
por Paitaridis e Tsoulfidis (2012), Tsoulfidis e Persefoni, (2014), e da
Turquia por Karahanoğulları (2009). Devo também mencionar as
importantes contribuições de Simon Mohun na atualização de
nossas estimativas (com algumas correções) com base na
disponibilidade de conjuntos de dados mais recentes (Mohun, 2005).
44
Algumas das primeiras estimativas foram feitas por Tonak (1980),
que aponta que os números mudaram de 376% em 1950 para 352%
em 1975.
45
Do nosso ponto de vista, os defensores do conceito de
superexploração, em última análise, pertencem à escola do
subdesenvolvimento, uma vez que, para eles, a questão tem sido
como identificar a fonte do “desenvolvimento do
subdesenvolvimento” dentro do domínio das chamadas causas
externas, isto é, o imperialismo. Entretanto, nessa perspectiva, o
subdesenvolvimento do Sul é o produto do desenvolvimento do
Norte e, nesse sentido, os dois processos estão entrelaçados.
Ademais, a abordagem da superexploração implica uma
passividade atribuída às classes trabalhadoras tanto no Sul quanto
no Norte.
46
De acordo com Smith, a troca desigual entre capitalista e
trabalhador (no sentido de que os trabalhadores são pagos abaixo
do valor da força de trabalho) leva à superexploração.
Dentro de um país, alguns relatos devem ser feitos sobre o
“problema da habilidade” em Smith, Ricardo e Marx. Um artigo
sobre Shaikh e Glenn (2018), sobre o qual taxas iguais de
exploração mesmo dentro de um país implicam salários desiguais,
é: https://ideas.repec.org/p/new/wpaper/1811.html
47
Algumas dessas áreas de pesquisa foram abordadas em nosso
livro anterior (Shaikh e Tonak, 1994), mas também de forma mais
abrangente no livro recente de Shaikh (2016).
NOTAS SOBRE A ATUALIDADE
DO IMPERIALISMO E A NOVA
ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA
NACIONAL DOS ESTADOS
UNIDOS
ATILIO A. BORON
Introdução
Nas páginas que seguem, compartilharemos algumas observações
sobre a atualidade do imperialismo e seu impacto sobre a guerra e a
paz no mundo atual e, especialmente, sobre o presente e o destino
da América Latina e do Caribe. Trata-se, sem dúvida, de um
conjunto de assuntos da maior importância porque o capitalismo
esteve desde seu nascimento associado à guerra e à arte militar.
Diversos escritos de Marx e Engels comprovam o cuidadoso
acompanhamento que ambos faziam das guerras em curso dentro e
fora do continente europeu. Em sua “Introdução”, de 1857, Karl
Marx nos diz que “a guerra se desenvolveu antes do que a paz” e,
por isso, ele se propõe a “mostrar a maneira com que certas
relações econômicas, tais como o trabalho assalariado, o
maquinismo etc., foram desenvolvidos pela guerra e nos exércitos
antes do que no interior da sociedade burguesa” (Marx, 1974, p. 56-
57). Mas dos dois jovens amigos, foi Friedrich Engels quem se
especializou no estudo sistemático da problemática militar. Este, a
quem, por sua paixão pelas questões da guerra, Marx havia
apelidado de “o general”, deixou inúmeros escritos dispersos ao
longo de sua obra que são uma fonte fundamental de reflexão sobre
o tema que nos interessa, e que nós, latino-americanos, deveríamos
estudar em profundidade.48
Obviamente que, por mais importante que seja este tema –
sobretudo em um continente como o nosso que, atualmente, alberga
80 bases militares dos Estados Unidos e algumas da Otan –, não
será o objetivo desta apresentação pesquisar as reflexões de Marx
e Engels sobre o assunto. Tampouco farei uma análise do corpus de
teorias acerca da guerra surgido no calor da Primeira Guerra
Mundial, em que Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Kautsky e, mais
tarde, Gramsci fazem extensa referência. O propósito desta
intervenção está fortemente marcado pelas exigências impostas
pela conjuntura e, por conseguinte, me limitarei a convidar os
leitores a buscar esses escritos militares dos pais fundadores e das
principais figuras do marxismo clássico. Em todo caso, será
suficiente apontar aqui que, na medida em que a tradição marxista
coloca no centro da dinâmica histórica o enfrentamento social, é
evidente que suas análises sociológicas e econômicas acabassem
se referindo, de alguma maneira, à guerra social, realizada aberta
ou encoberta. Por isso, no célebre Manifesto do Partido Comunista,
Marx e Engels falam da “guerra civil mais ou menos encoberta” que
se desenvolve nas sociedades burguesas, e de aí também a
permanente referência aos escritos sobre a guerra de Carl von
Clausewitz, o mais importante teórico da guerra naquele tempo.49
Dito isso, passemos a abordar a problemática central deste trabalho:
o imperialismo.
Relançamento imperial
É neste cenário que a liberalização financeira e comercial, junto à
violenta aplicação das políticas neoliberais em quase todo o mundo,
deu lugar ao terceiro ciclo de expansão imperialista, que ganha
impulso precisamente na década de 1990 e que continua até nossos
dias, incorporando profundamente, como áreas de caça do capital
imperialista, regiões e países outrora vetados a suas ambições:
Rússia, os países do Leste Europeu, China, Vietnã. Isso permite
falar de um imperialismo revigorado e estimulado por novos
horizontes nos quais desenvolver seus projetos. Vários são os sinais
distintivos deste tempo, mas gostaria de chamar atenção para dois
deles. Em primeiro lugar, o acelerado ritmo de concentração da
riqueza em todos os países, da China aos Estados Unidos, sem
nenhuma relevante exceção em âmbito mundial. Isso foi denunciado
pela Oxfam em seu relatório no Fórum Econômico de Davos, ao
apontar que, segundo estimativas oficiais, no momento atual, o 1%
mais rico da população mundial detém o controle de 51% da riqueza
do planeta, ou seja, mais do que os 99% restantes da população
mundial possuem. Relacionado a isso, um estudo realizado pela
Universidade de Zurique demonstrou que 147 megacorporações
controlam 40% da riqueza do planeta. O segundo sinal
característico da fase atual é a intensificação da corrida
armamentista, o surgimento de várias zonas de extrema tensão
bélica e o aumento no número de guerras e de suas vítimas.
Existem, hoje em dia, três pontos quentes no sistema internacional:
o barril de pólvora do Oriente Médio, infame consequência da
rapacidade dos Estados Unidos e seus comparsas europeus que
não hesitaram nem por um minuto em destruir países inteiros
(Líbano, Iraque, Líbia e atualmente a Síria) a fim de apropriar-se de
seu petróleo, que é a única coisa que lhes interessa.
Desencadearam uma série de dramas humanitários como o mundo
não via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo ponto
quente: a Ucrânia e sua extensão na Europa do Leste, em que o
ímpeto da Casa Branca e da União Europeia de conter o “urso
russo” (nada soviético!) levou a promover um golpe de Estado
naquele país, com o ativo protagonismo do Departamento de Estado
na pessoa de sua subsecretária, Victoria Nuland, e deslocar as
tropas da Otan para a própria fronteira russo-ucraniana. E isso
considerando que, quando caiu a URSS, os líderes das
“democracias” ocidentais juraram solenemente que a Otan “não se
movimentaria nem uma polegada para o Leste”. Não o fizeram. Só
que se movimentaram várias centenas de quilômetros para os
confins da fronteira russa. O terceiro ponto quente se localiza no
mar do sul da China, rico em petróleo, e que é um território em
disputa entre vários países: China, Japão e Vietnã, entre os mais
diretamente envolvidos. Esta é uma situação que pode facilmente
sair do controle, bem como as já apontadas, e de uma gravidade
especial: Washington pode reagir mornamente diante de uma
invasão da Rússia na Ucrânia, ou a uma retaliação de Moscou
contra a Turquia por causa de uma avião russo derrubado. Mas só
pode reagir com toda a sua força se a China, o segundo maior
orçamento militar do planeta, decidir atacar o seu sócio e vassalo
japonês.
Em resumo, esta fase, terceira na história da expansão imperialista,
apresenta, como todas as demais, a guerra como sua necessária
contrapartida. Esta lacerante realidade demonstra, pela enésima
vez, os erros da teoria do superimperialismo, ou ultraimperialismo,
elaborada inicialmente por Karl Kautsky e continuada por muitos de
seus seguidores contemporâneos que insistem em rechaçar a tese
de que o imperialismo poderia hoje, não necessariamente no
passado, mas sim hoje, desembocar em uma guerra entre potências
capitalistas. Apesar de seu glorioso passado soviético, a Rússia é
uma delas e, com suas peculiaridades, também o é a China. E para
os mais recentes documentos do Pentágono e do Conselho de
Segurança Nacional dos Estados Unidos, a Rússia é,
explicitamente, não um competidor mas sim o inimigo a ser
derrotado. Fora isso, há que se levar em conta que, ainda durante
os anos da bipolaridade Estados Unidos-União Soviética, as guerras
proliferaram sem cessar na periferia do sistema e, na atualidade, o
panorama, longe de ter melhorado, só se agravou.
Cinco transições
Sobre o documento elaborado pela equipe de Trump, é possível
dizer, sem exageros, que pretende ser um guia para a política
externa, mas prescinde de oferecer um mapa de navegação para o
piloto da Casa Branca. Ademais, analistas do sistema internacional
concordam em assinalar que o magnata nova-iorquino elabora e
executa sua política externa sem atender minimamente as regras
institucionais que tradicionalmente estiveram em vigor nos Estados
Unidos. Como os monarcas absolutistas, são os seus caprichos que
fazem a política internacional dos Estados Unidos, volúvel e instável
como seus óculos e suas mudanças de humor.
O eixo da ESN 2017 está na proteção do território estadunidense,
de suas fronteiras, contra o juhadismo, as migrações, as pandemias
e o narcotráfico; por outro lado, na necessidade de preservar a paz
por meio da força e de dissuadir seus inimigos – que a atacam a
partir da informática (Rússia), destruindo a livre imprensa e
deslegitimando a democracia ou a partir do comercial (China) – para
que não continuem com suas agressões.
Mas a descrição da estrutura e dinâmica do sistema internacional
estão ausentes da ESN 2017. O documento anterior, em troca, tinha
outra densidade teórica, que no gestado pela administração Trump
se dilui completamente, ao ponto de aparecer como um texto
declamatório, mais que uma análise; uma interminável série de boas
intenções, mas sem um relevo sério e preciso da situação atual do
sistema internacional e de sua provável evolução futura. Por isso
nos referimos um pouco mais alongadamente à estratégia
antecessora, na qual se identifica cinco transições globais, de
caráter histórico, que transformaram radicalmente o tabuleiro da
política mundial e, consequentemente, os imperativos da segurança
estadunidense. Os Estados Unidos devem compreender essa
dinâmica transicional, diz o documento, e influenciar suas trajetórias,
aproveitar as oportunidades que essas mudanças precipitam e
administrar-se com eficácia frente aos riscos que elas representam.
As transições identificadas pela ESN 2015 são as que seguem.
Primeiro, o poder internacional e sua distribuição mudaram
significativamente. Produziu-se um deslocamento no centro de
gravidade da economia mundial com o avanço da Ásia-Pacífico e,
sobretudo, da China. O G-20 desempenha novos papéis, que
deslocaram outras instâncias da organização internacional, como o
Banco Mundial e o FMI. Surgiram os BRICS, projetando uma
influência importante nos assuntos mundiais, sobretudo nas bordas
dos capitalismos centrais. Mas nessa questão, o documento aponta
especialmente três coisas: o potencial de crescimento da Índia, que
junto com a China representará 39% do PIB mundial em pouco mais
de uma década; a ascensão já produzida e consolidada da China
como a segunda economia do planeta e, como já dito, o principal
núcleo de dinamização da economia mundial; e, em terceiro lugar, a
“agressão” [sic!] da Rússia (NSS, 2015).55 A estigmatização deste
país se acentua na ESN 2017, quando o caracteriza como o inimigo
que “está utilizando ferramentas informacionais em uma tentativa de
minar a legitimidade das democracias. Nossos adversários têm
como objetivos os meios de comunicação, os processos políticos, as
redes financeiras e os dados pessoais” (NSS, 2017, p. 14). Por isso
os governantes da Rússia têm razão quando falam de “Russofobia”
que está infestado na ESN 2017 e nas atividades e nas iniciativas
do governo Trump. Se até o final da administração Obama, Moscou
era um adversário perigoso, com Trump passa a ser, clara e
diretamente, um malvado inimigo a ser derrotado.
Ambas as versões da ESN concordam – apesar de dizê-lo de
maneira oportunamente implícita – que o poderio relativo dos EUA
no campo internacional diminuiu. Os dados que avalizam tal
diagnóstico são irrefutáveis, mas não são expostos nos
documentos, o que constitui um tácito reconhecimento do que vimos
observando há um tempo na América Latina: o lento, porém
irreversível, declínio da potência hegemônica, negado
intransigentemente pelos seus porta-vozes e pelos seus lacaios
neocoloniais na Nossa América, apesar de saltar aos olhos e ser
reconhecido inclusive em um documento oficial tão importante como
este que estamos analisando.56 Isso atualiza a necessidade de
estudar a trajetória e a velocidade desse declínio, seu impacto sobre
o resto do mundo e as modalidades aberrantes em que, em termos
de violência, todo império incorre em sua fase de declínio. Explorar,
em outras palavras, se a “aterrissagem imperial” será suave (“soft
landing”), brusca (“rough landing”) ou simplesmente se ele cairá
como resultado do assédio dos “bárbaros” que o rodeiam.57
Inclusive um autor como Joseph Nye, tradicional acadêmico de
Harvard e alto funcionário de sucessivas administrações
estadunidenses, reconhece essa mutação do poder internacional e
o enfraquecimento do poderio do país. A linguagem que utiliza não
deixa lugar para dúvidas:
na primeira metade deste século, os EUA vão conservar sua primazia em
matéria de recursos de poder e vão continuar desempenhando um papel
fundamental no equilíbrio mundial de poder [...]. Porém, ainda que a era da
primazia dos EUA não tenha acabado, vai passar por mudanças importantes.
O que não se sabe é se essas mudanças vão aumentar a segurança e a
prosperidade mundiais ou não. (Nye, 2004)
Toda a nova teorização sobre o “poder brando” (“soft power”), do
qual Nye é um dos principais expoentes, se assenta sobre essa
premissa.
Uma reflexão final sobre esta primeira transição remete ao tema das
mudanças realizadas na principal configuração do poder no mundo
contemporâneo: o Estado. Muitos vão discordar dessa afirmação
dizendo que essa cristalização, na realidade, se materializa nas
grandes empresas transnacionais, e não no Estado. No entanto,
segundo nosso ponto de vista, não é assim. Assim como há
empresas pequenas, médias e gigantescas, também se pode dizer
o mesmo dos Estados. E enquanto as megacorporações de hoje em
dia não podem exigir para si – e menos ainda aplicar – na vida
prática o monopólio da violência legítima, os Estados serão mais
poderosos do que as empresas e vão continuar sendo a principal
cristalização do poder social – com seu núcleo duro classista – no
mundo contemporâneo, estabelecendo, ademais, o marco jurídico e
organizando o aparato coercitivo que as grandes corporações
necessitam para prosseguir depredando o planeta e submetendo
sociedades inteiras. Mas isso não significa que a imagem
convencional que os cientistas sociais têm do Estado seja a correta
e corresponda ao que é na atualidade. O politólogo e diplomata
Chester A. Crocker acertou quando disse que “a imagem clássica de
um Estado Leviatã, capaz de controlar, coagir, restringir, regular,
cobrar impostos e recrutar cidadãos para seus exércitos (e recrutar
também corporações) é antiquada” e já não corresponde à realidade
dos Estados no mundo de hoje (Crocker, 2015). Alguns ainda
conservam boa parte dos atributos hobbesianos clássicos, mas
mesmo nesses casos, suas capacidades se viram em certo modo
reduzidas pelas modificações produzidas no capitalismo
contemporâneo. São quase infinitos os interstícios e as fraturas da
sociedade burguesa e, além do mais, as novas tecnologias de
informação e comunicação oferecem uma grande quantidade de
escapatórias ao controle estatal que nem remotamente existiam no
passado, embora também ofereçam uma fenomenal capacidade de
vigilância e controle por parte das autoridades. O “Grande Irmão”
(“Big Brother”) de Aldous Huxley em Admirável mundo novo
antecipava com clarividência esta abominável realidade, mas o
aumento da capacidade de fiscalização tropeça no fato de que
essas mesmas tecnologias também oferecem inéditas capacidades
de fuga e resistência para quem, na sociedade, resiste ou deseja
combater o sistema. Ou então, como no caso das grandes
corporações, desejam escapar dos controles que um regime político
poderia impor sobre suas atividades. Em todo caso, a tese de
Crocker – “o mundo está à deriva e carente de liderança” – é
suficientemente forte para expor nitidamente a preocupação que se
instala nos corredores das agências do governo estadunidense.
Segunda transição: o documento da ESN de 2015 aponta que o
poder está sendo deslocado para baixo e para além do Estado-
nação. Inclusive Estados com controles frágeis devido à ausência
de eficazes “pesos e contrapesos” que contraponham a dinâmica
devastante do Executivo encontram demandas de prestação de
contas diante de atores subestatais, ou inclusive atores não estatais,
ancorados em uma sociedade civil cada vez mais empoderada. Os
exemplos que são oferecidos no documento vão desde os prefeitos
de megacidades até os grandes gerentes das megacorporações,
que dispõem de um poder de facto que não pode ser ignorado pelas
autoridades estatais. A juventude e uma classe média pujante,
ambas potencializadas em sua influência social e política por sua
familiaridade com as novas tecnologias, erguem também
importantes barreiras à ação estatal. Ainda que isso seja um
desenvolvimento que a ESN encara com bons olhos, em alguns
casos pode se traduzir na conformação de atores não estatais muito
violentos, portadores de instabilidade e de conflitos políticos muito
graves em Estados frágeis ou falidos, com o risco de rupturas
revolucionárias de consequências imprevisíveis ou o retorno a
despotismos tradicionais dispostos a preservar a proeminência do
Estado a qualquer custo em algumas regiões do Terceiro Mundo. O
já mencionado Crocker diz, por exemplo, que o antigo monopólio
estatal da gestão internacional é coisa do passado. Hoje,
numerosos e poderosos atores não estatais fazem sentir sua
influência no cenário global, favorecidos pelas novas tecnologias de
informação e as redes sociais que empoderaram sujeitos e
organizações que antes tinham chances mínimas – se é que tinham
alguma! – de gravitar no cenário mundial. O ininterrupto ciclo de 24
horas de notícias divulgado pelas grandes redes internacionais tem
a capacidade (nem sempre realizada) de resgatar milhões de
pessoas de sua passividade e isolamento, ao mesmo tempo que
potencializa a gravitação das gigantescas corporações
transnacionais e os mercados globais, os organismos
supranacionais como o G20, mas também o crime organizado em
escala internacional e as violentas milícias dos terroristas, ainda que
este autor não acabe de definir quem faz por merecer este
predicado. As companhias estadunidenses de subcontratação de
mercenários, os marines, o Estado Islâmico, quem? Agregaríamos
que para contornar os efeitos paralisantes da quarentena imposta
por conta da pandemia, uma parte significativa dos sujeitos do
campo popular e da esquerda se viu obrigada a aprender a utilizar
os instrumentos que as novas tecnologias da informação e da
comunicação oferecem, possibilitando novas formas do que poderia
chamar-se “associativismo digital” que antes não dispunha e que lhe
facilita a realização de estratégias de ação coletiva anteriormente
dificultadas, em grande medida, pela distância, a escassez de
recursos materiais e o desconhecimento mútuo entre os sujeitos
sociais. A combinação de uma renovada presença nas ruas na
saída da quarentena junto com a potencialidade organizativa e
conscientizadora do “associativismo digital” podem inclinar à
esquerda a saída da crise capitalista. Os “paraísos fiscais” que
articulam e viabilizam os negócios sujos de governos e corporações
em sua vinculação com o crime organizado, especialmente o
narcotráfico, também deram lugar à emergência de novos atores
que se movimentam na cena internacional, mas isso não é um
assunto que preocupa os redatores dos documentos de 2015 e de
2017. A lista seria extensa demais para os fins do presente trabalho.
Terceira transição: se assinala como outra das grandes transições
de nosso tempo a crescente interdependência da economia global e
os rápidos e profundos processos de mudança nas tecnologias da
informação, algo que já mencionamos anteriormente. Seus autores
observam o caráter dual desses processos: por um lado, a
internacionalização da acumulação capitalista, eufemisticamente
caracterizada com o nome neutro de “globalização”, facilita a
cooperação através das fronteiras e a liberação dos mercados,
porém, simultaneamente, dizem, cria vulnerabilidades diante dos
perversos desígnios de atores antissistêmicos. Os ciberataques, as
pandemias, o crime transnacional (narcotráfico, tráfico de pessoas e
órgãos, venda ilegal de armas etc.) que nesta última versão tem
como objeto de referência os imigrantes que tentam penetrar nos
Estados Unidos (por isso o muro que Trump pretende levantar)
expressam uma execrável realidade nova: as renovadas
capacidades daqueles que, no documento, são chamados de
“atores violentos extremistas”, cuja faculdade de atuar
malignamente cresce exponencialmente a partir dos maiores níveis
de interconexão do sistema em seu conjunto. Naturalmente, em
nenhum dos documentos da ESN, ao longo de todos os anos, se faz
a menor alusão à responsabilidade dos Estados Unidos no
surgimento destas variantes do “crime organizado” ou na aparição
de “atores violentos e extremistas”, como o Estado Islâmico, por
exemplo, comprovadamente demonstrado que sua origem,
desenvolvimento e fortalecimento foi possível graças ao apoio
financeiro, militar, diplomático e midiático dos Estados Unidos,
Israel, Reino Unido e Arábia Saudita. O mesmo vale dizer da crucial
responsabilidade dos principais países do capitalismo desenvolvido
na perpetuação de uma rede de “paraísos fiscais” que permitem a
evasão fiscal e o desfinanciamento dos Estados, a cobertura dos
atos de corrupção, a fuga de capitais e a fraude aos poupadores
ingênuos (Shaxson, 2014).
Quarta transição: analisada, não por acaso, de modo muito rápido
no documento de 2015 é a que se coloca publicamente nas
mudanças que estão ocorrendo no Oriente Médio e no Norte da
África, as quais desataram uma intensa luta pelo poder que,
segundo seus autores, poderia desestabilizar irreparavelmente uma
região fundamental para o mercado petroleiro mundial. Afirma-se,
por exemplo, que está em marcha uma luta geracional
desencadeada em toda região após a Guerra do Iraque e que se
manifestou de forma contundente com os levantes no mundo árabe
de 2011, que puseram fim às ditaduras no Egito e na Tunísia. Neste
contexto, o documento citado afirma que está em curso uma
redefinição das relações entre as diferentes comunidades étnicas e
entre os jovens cidadãos do mundo árabe e seus governos. Os
perigos de uma desestabilização em cadeia crescem por causa do
extremismo religioso ou do rechaço que governos autocráticos têm
em aceitar reformas democráticas, o que poderia incendiar uma
região crucial para a economia mundial.
Mas a ESN 2017 dá um passo a mais, levando em conta a total
simbiose entre a Casa Brance e Tel Aviv, relação dirigida
pessoalmente e à margem de qualquer relação institucional
estadunidense pelo genro do presidente Trump, o empresário Jared
Kushner. A ESN 2017 diz textualmente: “Hoje as ameaças das
organizações jihadistas e do Irã demonstram que Israel não é a
causa dos problemas da região” (NSS, 2017, p. 49).
Quinta transição: as mudanças no mercado global de energia,
intimamente vinculado ao ponto anterior. O essencial não é o que
diz o documento, que garante que os Estados Unidos estão
chegando à autossuficiência petrolífera; nem a acusação de que a
Rússia utiliza suas reservas energéticas, sobretudo o gás, para
fazer política e coagir a Europa.58 Na nossa visão, o mais importante
é o que se menciona quase de passagem, a saber: que nos
próximos anos o mundo subdesenvolvido vai consumir mais energia
do que os desenvolvidos, alterando os fluxos comerciais de energia
e desestabilizando os arranjos tradicionais.59
Palavras finais
Nosso continente é a prioridade número um para a política exterior
dos Estados Unidos. É a região mais importante do mundo, de
longe. Defendemos isso em todos os detalhes em um trabalho
anterior e não faz sentido insistir nesse tema aqui (Boron, 2014;
Boron e Vlahusic, 2009). Washington pode perder Angola, Namíbia,
Nigéria, Camboja, Vietnã, mas não vai ficar de braços cruzados
diante da perspectiva de perder Granada, Nicarágua, Cuba, Chile,
nem, digamos, Brasil ou Venezuela. Pode se esforçar para “conter o
comunismo”, como o fez nos anos da Guerra Fria e, para isso,
elaborar uma série de alianças regionais. Sendo que o eixo
articulador da revolução comunista mundial (como se dizia naqueles
anos em Washington) estava na Europa, em Moscou; para sermos
mais precisos, foi a Europa a primeira beneficiária da estratégia de
contenção que George Kennan elaborou para o presidente Harry S.
Truman? Não! Foi a América Latina. Em um mundo ameaçado pelo
risco mortal da dominação comunista, a primeira região que os
Estados Unidos trataram de colocar a salvo dessa indesejável
eventualidade foi a América Latina. Em 1947 foi assinado o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) com esse propósito.
E a Europa? Teria que esperar mais dois anos, pois apenas em abril
de 1949 seria criada a Otan. E no apogeu do auge progressista na
região, e em coincidência com os anúncios do presidente Lula da
Silva, informando ao mundo a descoberta das grandes jazidas de
petróleo no litoral paulista, a resposta da Casa Branca foi ordenar a
reativação da Quarta Frota, que havia sido desativada em 1950.
Como diz um conhecido aforismo estadunidense, “first things first”,
ou seja, “primeiro as primeiras coisas”. E a primeira coisa é a
América Latina. Se a África cai nas mãos do comunismo é um
problema; se a Ásia cai é um problema muito maior; se a Europa cai
é uma tragédia; mas se a América Latina cai é uma catástrofe de
projeções incalculáveis. Porque a Ásia, a África e a Europa estão
longe, separadas por grandes oceanos. Mas, desde a América
Latina, os inimigos do império podem chegar caminhando nos EUA,
como no meio da psicose despertada pela revolução sandinista se
escutava dizer nos corredores do governo estadunidense em
Washington. As mudanças na paisagem sociopolítica latino-
americana desde o fim do século XX marcaram um importante
retrocesso da influência estadunidense na região. O rechaço da
Alca foi uma duríssima derrota para o império, e a consolidação de
uma série de governos progressistas, alguns de esquerda, e a
heroica sobrevivência da Revolução Cubana marcaram a fogo todo
o período aberto desde a eleição presidencial de Chávez, em
dezembro de 1998, até hoje em dia. A vitória do líder bolivariano foi
a faísca que incendiou o campo: seu carisma e sua capacidade
fenomenal de se comunicar com as massas do continente mobilizou
e excitou os desejos emancipatórios dos povos e nações da área,
abatidos e humilhados por séculos de opressão colonial e
neocolonial. Chávez derrubou na Venezuela a primeira peça de um
dominó que logo percorreria todo o continente: a segunda cairia no
Brasil com Lula em 2002, para continuar com Kirchner na Argentina,
em 2003; com Evo e Tabaré Vázquez na Bolívia e no Uruguai, em
2005; com Correa no Equador, em 2006 e nesse mesmo ano com
Ortega na Nicarágua e com Zelaya em Honduras; com Cristina em
2007; com Lugo no Paraguai em 2008 e Funes em El Salvador, em
2009, abrindo o caminho para que o ex-comandante do FMLN,
Salvador Sánchez Cerén, assumisse a presidência desse país em
2014. Em 2010, José “Pepe” Mujica ratificaria a hegemonia da
Frente Ampla e conquistaria a presidência do Uruguai, a mesma que
em 2015 voltaria a recair nas mãos de Tabaré Vázquez.
Em suma: basta recordar esta radical modificação do mapa
sociopolítico latino-americano para medir a imperecível espessura
política da herança chavista e a ansiedade da burguesia imperial
para retomar a “normalidade” nas relações hemisféricas. Diante
desse desafio inédito, a contraofensiva estadunidense não se fez
esperar: começou com o frustrado golpe de Estado contra Chávez
em abril de 2002 e continuou, diante de seu fracasso, com a
paralisação petroleira de dezembro de 2002 a fevereiro de 2003 e
com os violentos protestos (“guarimbas”) de 2014 a 2017,
inflamados pelo império e continuados até hoje com diversos ciclos
de protestos, sabotagens, ataques paramilitares recorrentes na
fronteira colombo-venezuelana, tentativas de assassinato do
presidente Nicolás Maduro até chegar, em maio de 2020, à tentativa
de invasão por mar de um pequeno exército mercenário, operação
que cumpria um contrato firmado entre Juan Guaidó e seus
colaboradores e a Silvercorp, empresa destinada a realizar
“operações especiais” para o governo dos EUA. Derrotadas aquelas
iniciativas do começo do século, que tiveram um efeito bumerangue
e liquidaram a Alca em 2005, pouco depois o império voltou a
atacar: frustrada tentativa de golpe e secessão da Bolívia em 2008,
mas retomada, com êxito para o imperialismo, em novembro de
2019, ilustrando o controle decisivo que Washington exerce sobre
as Forças Armadas e policiais treinadas por décadas sob sua tutela;
golpe “jurídico-parlamentar” em Honduras contra Zelaya em 2009;
golpe frustrado, no Equador, contra Correa em 2010, por conta de
que tiveram que esperar a traição de Lenin Moreno em 2017; golpe
exitoso no Paraguai, também “jurídico-parlamentar”, contra Lugo em
2012; “golpe jurídico-parlamentar-midiático” contra Dilma Rousseff,
consumado em agosto de 2016 e consolidado com o triunfo de
Bolsonaro (2018), mediante a proibição de Lula. Some-se a isto o
importantíssimo triunfo diplomático e geopolítico regional ao
conseguir o triunfo de Mauricio Macri na eleição presidencial de
novembro de 2015. Sua presidência, desastrosa para o povo
argentino, foi eficaz em recriar mecanismos de dominação, entre os
quais se destacam a multiplicação da dívida externa e o poder do
capital financeiro internacional, além do alinhamento incondicional à
política exterior estadunidense. Todos estes acontecimentos ilustram
os alcances da ofensiva restauradora do império, configurando um
mapa sociopolítico em permanente movimento porque as respostas
populares, ainda frágeis e carentes de coordenação continental, não
puderam ser neutralizadas. A eleição de Andrés Manuel López
Obrador no México e Alberto Fernandéz na Argentina são indícios
de que o pêndulo começa a se mover em sentido contrário. E não
se pode deixar de reconhecer a enorme importância dos grandes
protestos populares contra o governo Sebastián Piñera, sem dúvida,
o “carro chefe” do neoliberalismo latino-americano. A formidável
mobilização sustentada desde meados de outubro de 2019 no Chile
só foi atingida pela pandemia e pela quarentena, quando Piñera
parecia já ter seus dias contados. Mais ao norte, o Equador
desfalece diante do monumental fracasso do governo corrupto e
traidor de Lenín Moreno, sustentado infelizmente, assim como
Piñera, pela involuntária desmobilização imposta pela pandemia.
Grandes protestos contra o neoliberalismo também sacudiram a
Colômbia, o Peru e o Haiti; e, talvez de modo menos vigoroso,
Honduras. Este 2020 poderia ter sido o ano em que cairiam vários
governos neoliberais. O coronavírus os preservou dessa fatalidade,
mas, como uma vez dissera Hugo Chávez, isso é “por agora”.
Neste contexto há um país que desempenha um papel de
excepcional importância em Nossa América: Colômbia. Nesse
sentido, há que se destacar que a assinatura, em junho de 2013, de
um acordo de cooperação entre a Colômbia e a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan) causou uma previsível
preocupação na Nossa América. A Otan é uma organização sobre a
qual pesam inúmeros crimes de guerra e massiva violação dos
direitos humanos perpetrados na própria Europa (lembremos o
bombardeio à ex-Iugoslávia e os massacres nos Bálcãs), a
destruição do Líbano, do Iraque, da Líbia; sua cumplicidade com o
governo fascista de Israel em seu contínuo genocídio do povo
palestino e agora sua colaboração com os terroristas que tomaram
de assalto a Síria, semeando morte e destruição em todo o Oriente
Médio.64 Até agora, o único país da América Latina “aliado extra
Otan” havia sido a Argentina, que obteve esse desonroso status
durante os nefastos anos de Carlos S. Menem, e mais
especificamente em 1998, após participar da Primeira Guerra do
Golfo (1991-1992) e aceitar todas as imposições de Washington em
muitas áreas da política pública, como por exemplo desmantelar o
projeto do míssil Condor e congelar o programa nuclear que durante
décadas vinha sendo desenvolvido na Argentina. Dois gravíssimos
atentados que contabilizaram mais de uma centena de mortos – na
Embaixada de Israel e na Associação Mutual Israelita Argentina
(Amia) – foi o saldo que deixou na Argentina a represália por ter se
somado às atividades da organização terrorista do Atlântico Norte.
O status de “aliado extra Otan” foi criado em 1989 pelo Congresso
dos Estados Unidos – não pela organização, mas pelo Congresso
estadunidense – como um mecanismo para reforçar os laços
militares com países situados fora da área do Atlântico Norte e que
poderiam ser de ajuda nas inúmeras guerras e processos de
desestabilização política que os Estados Unidos realizam nos mais
diversos cantos do planeta. Austrália, Egito, Israel, Japão e Coreia
do Sul foram os primeiros a ingressar, e pouco depois o fez a
Argentina e agora a Colômbia. O sentido desta iniciativa do
Congresso estadunidense salta aos olhos: robustecer e legitimar
suas incessantes aventuras militares – inevitáveis durante os
próximos 30 anos, se lemos os documentos do Pentágono sobre
futuros cenários internacionais – com uma aura de “multilateralismo”
que na verdade não têm. Esta incorporação dos aliados extra Otan,
que também está sendo promovida nos demais continentes, reflete
a exigência imposta pela transformação das Forças Armadas dos
Estados Unidos em seu trânsito a partir de um exército preparado
para travar guerras em territórios limitados a uma legião imperial
que, com suas bases militares de diversos tipos (mais de mil em
todo o planeta), suas forças regulares, suas unidades de “rápido
deslocamento” e o crescente exército de “terceirizados” (vulgo:
mercenários) quer estar preparada para intervir em poucas horas
para defender os interesses estadunidenses em qualquer ponto
quente do planeta. Com sua incorporação como “aliado extra Otan”,
a Colômbia se põe a serviço desse funesto projeto e, internamente,
reforça a militarização de um país que está há mais de meio século
em guerra civil.
Ainda que a Argentina seja um lamentável precedente (que em 2012
felizmente perdeu o status de “aliada extra Otan”), o caso
colombiano é muito especial, porque há décadas esse país recebe,
sobretudo no marco do Plano Colômbia, um importantíssimo apoio
econômico e militar dos Estados Unidos – de longe, o maior dos
países da área – e só superado pelos desembolsos realizados a
favor de Israel, Egito, Iraque e Coreia do Sul e um ou outro aliado
estratégico de Washington. A pretensão da direita colombiana, no
poder desde sempre, é se transformar, especialmente a partir da
presidência de Álvaro Uribe Vélez, na “Israel da América Latina”:
com o respaldo da Otan, erigir-se como a polícia regional da área
para vigiar, ameaçar e eventualmente agredir vizinhos que tenham a
ousadia de se opor aos desígnios imperiais. Por sua vez, cabe se
perguntar que implicações tem, sobre os diversos projetos de
integração e coordenação de políticas na América Latina, o fato de
que a Colômbia, ao se associar à Otan, adere à postura britânica na
disputa com a Argentina pelas Ilhas Malvinas?
Um projeto há muito tempo acalentado pelos nossos povos é fazer
com que a América Latina seja um continente desnuclearizado. Se
durante décadas pudemos estar seguros disso, hoje não podemos
mais. Há evidências que sugerem que é muito possível que exista
armamento nuclear nas Ilhas Malvinas e ignoramos que tipo de
armamento está nas sete bases de que Washington dispõe no
território colombiano, ou nas 11 existentes no Peru.65 Os acordos
que tornaram possível a instalação dessas bases contêm cláusulas
que conferem aos Estados Unidos o direito de colocar dentro das
bases carregamento militar sem ter que ser submetido a nenhum
controle dos Estados anfitriões. Não é por nada que, em uma das
reuniões da Unasul, quando Chávez solicitou à organização que se
procedesse a uma verificação do que havia em cada uma das bases
estadunidenses na região, o pedido tropeçou na firme negativa de
Álvaro Uribe e Alan García, não por acaso os dois países que
abriram de par em par suas portas para a penetração de tropas e
equipamentos militares estadunidenses em seus territórios. É
impossível que este continente conquiste a paz com mais de 80
bases militares dos EUA existentes em nossos países. Essas bases
são dispositivos para a guerra, não para a paz. E entrarão em pleno
funcionamento à medida que a deterioração da situação
internacional impulsione Washington a consolidar sua segurança no
quintal traseiro e a sufocar qualquer tentativa de autodeterminação
nacional ou de avanço democrático. Deveríamos lançar uma
campanha continental para expulsar todas as bases
estadunidenses, e as poucas que existem do Reino Unido, da
Holanda e da França, da região. Elas só vão trazer violência e morte
e nós, latino-americanos e caribenhos, queremos paz. É uma
proposta razoável, que atravessa a grande maioria das forças
políticas e movimentos sociais da região. E nossos filhos e os filhos
de nossos filhos jamais nos perdoarão o fato de que não tenhamos
feito tudo que está a nosso alcance para acabar definitivamente com
essas ameaças.
Referências
FONTANA, J. Por el bien del imperio: una historia del mundo desde
1945. Barcelona: Pasado & Presente, 2011.
GLOBAL FOOTPRINT NETWORK (s/f). Country Work. Recuperado
de https://www.footprintnetwork.org/our-work/countries/.
KLARE, M. The race for what is left. Nova York: Metropolitan Books,
2012.
SCOTT, P. D. The american deep State: Wall Street, big oil and the
attack on U.S. Democracy. Nova York Rowman & Littlefield, 2014.
Introdução
A atual transição histórico-espacial do sistema mundial se
manifesta, entre outros modos, como uma crise capitalista estrutural
e uma crise da hegemonia estadunidense e da ordem mundial
construída pelo polo de poder anglo-americano. São dois lados da
mesma moeda. A acumulação capitalista está sempre relacionada
com o poder político e militar que a garante (que sanciona as regras
do jogo, constrói monopólios para o aumento do valor, conquista
territórios, disciplina os rivais, concede legitimidade etc.). E o poder
político e militar se alimenta do poder econômico e da acumulação
infinita de valor para obter para si os recursos de sua própria
reprodução ampliada. Esta é a natureza do imperialismo moderno.
A transição histórica, em sua dimensão geopolítica, começa a ser
percebida nitidamente a partir de 1999-2001, quando brota a
situação de multipolaridade relativa que vivemos hoje, como reação
à globalização financeira neoliberal estadunidense-anglo-americana
e sua expansão política e militar. A decadência relativa dos Estados
Unidos e do “Ocidente”, por um lado, e a reemergência da China e
da Ásia-Pacífico, por outro, é uma das características centrais da
mudança de época que vivemos, o que não pode ser interpretado
somente como mais uma transição hegemônica dentro do moderno
sistema mundial. Quer dizer, como parte da sucessão de ciclos de
hegemonia iniciado no século XV: ibérico-genovês, holandês,
britânico, estadunidense e, agora, [...] a reemergência da China, a
ascensão da Ásia-Pacífico, as alianças com a Rússia, o crescente
desenvolvimento de um espaço Euro-Asiático e a insubordinação
anti-hegemônica impulsionada por forças do Sul Global constituem
expressões da crise dos elementos constitutivos do moderno
sistema mundial: seu caráter eurocêntrico ou “ocidentalocêntrico”,
para incluir os Estados Unidos, seu caráter capitalista, seu particular
ordenamento centro-semiperiferia-periferia e a especificidade do
imperialismo moderno associado à acumulação infinita do capital e a
resolução dos obstáculos da acumulação.
Atualmente, estamos no processo inverso do que aconteceu no fim
do século XVIII e início do século XIX, quando o imperialismo
capitalista ocidental liderado pelo Reino Unido conseguiu subordinar
e provocar o declínio das economias mais importantes do mundo,
China e Índia, transformando-as em periferia. Isso foi alcançado
fundamentalmente por seu poderio militar britânico. Esse processo,
conhecido como a Grande Divergência, nos leva a perguntar se hoje
em dia estamos diante de uma nova grande divergência, porém no
sentido inverso.
Uma questão fundamental da transição é que os grupos de poder e
as forças dirigentes dos Estados Unidos não chegam a um acordo
sobre o que fazer ou como enfrentar a ascensão da China, dando
lugar a diferentes estratégias imperiais. Neste sentido, Arrighi (2007,
p. 283) aponta diferentes opções. Em primeiro lugar, destaca a
posição neoconservadora dominante durante o governo de Bush,
segundo a qual as forças estadunidenses devem ser o
suficientemente fortes para dissuadir possíveis adversários de
continuar uma acumulação militar com a esperança de ultrapassar
ou igualar o poder dos Estados Unidos. O foco se centra na
supremacia militar dos Estados Unidos, o intervencionismo unilateral
e o controle da região do Oriente Médio e de seus recursos de
hidrocarbonetos como uma das chaves para a primazia mundial.
Diante disso, e especialmente devido ao fracasso no Iraque,
emergem três estratégias na perspectiva neorrealista: 1) a da
contenção da China mediante uma coalizão de equilíbrio e o
estabelecimento de uma aliança militar na Ásia-Pacífico, similar à
Otan e conhecida como Pacom, formulada por Kaplan, que outros
estendem também ao Índico; 2) a estratégia de cooptação e o
estabelecimento conjunto de um sistema internacional estável, uma
estratégia de contenção centrada nas dimensões políticas e
econômicas, que comprometa a China a sustentar a ordem mundial
vigente em troca de concessões, formulada essencialmente por
Kissinger e também por Brzezinski; e 3) a estratégia de “terceiro
feliz” dos Estados Unidos, apostando na rivalidade da China com
outras potências asiáticas (especialmente Índia e Japão) e uma
política neohamiltoniana de industrialização (fortemente
protecionista) com foco nas indústrias vitais para a defesa,
formulada por Pinkerton.67 Podemos diferenciar esta última e
compreendê-la como duas formulações articuladas. Também
podemos mencionar o internacionalismo liberal, que se centra na
crítica à China pelo não respeito aos direitos humanos e, em geral,
pela recusa do conjunto dos dirigentes políticos da China em aceitar
a comunidade de valores proposta pelo Ocidente. O liberalismo
argumenta que a guerra não é inevitável e que a China pode ser
controlada a partir do estabelecimento de instituições e normativas
regulatórias para os Estados, não apenas externas mas também
internas.
Considerando esses debates, propomos aqui outra perspectiva para
observar as diferenças estratégicas nos Estados Unidos para
enfrentar a ameaça que a ascensão da China significa para sua
posição dominante em nível mundial. Esta outra perspectiva é
formulada com base na identificação das forças em disputa nos
Estados Unidos, focando-nos nas disputas entre os que
denominamos globalistas e americanistas. A partir disso,
articulamos discursos, grupos de poder e interesses para identificar
duas grandes estratégias imperiais, com suas geoestratégias
particulares, e compreender as diferentes maneiras de enfrentar a
China. Partindo dessa análise, neste trabalho busca-se
compreender as reconfigurações imperiais em curso a partir da
presidência de Donald Trump. Além disso, observam-se certos
elementos-chave da ascensão da China, seus aspectos geopolíticos
e as respostas do gigante oriental diante das estratégias de
Washington contra ele. Por último, realiza-se uma análise da guerra
comercial no contexto das fraturas internas dos Estados Unidos e as
disputas geopolíticas.
A fugaz belle époque neoliberal unipolar
As transformações no campo econômico, produto do
desenvolvimento do capital financeiro transnacional, e a mudança
nas relações capitalistas de produção, junto à ofensiva nos campos
político, ideológico e militar do projeto neoliberal encabeçado pelos
Estados Unidos e o Reino Unido, possibilitaram uma reconstrução
da hegemonia estadunidense e, em termos mais exatos, anglo-
americana. Sem sombra de dúvidas, a queda da URSS foi
fundamental nesse sentido. O novo ciclo de crescimento iniciado em
1993-1994, que deixou para trás o ciclo negativo que vinha desde
os anos 1970, consolidou a breve belle époque neoliberal.
O mundo se tornou unipolar, e o globalismo emergiu como descrição
ideológica da nova fase do capitalismo mundial, mas também como
projeto político. À transnacionalização financeira, produtiva e, em
boa medida, cultural devia corresponder uma estrutura de poder
transnacional que administrasse a nova ordem do sistema mundial e
suturasse as contradições do capitalismo global. O projeto dos
Estados Unidos como Estado verdadeiramente global era
impossível, porém, por sua vez, sobre sua base e desenvolvimento
configurou-se o andaime de uma institucionalidade globalista. Em
função disso, se fortaleceram algumas organizações multilaterais
chave do pós-guerra sob o controle dos Estados Unidos e do Norte
Global: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Além disso, criou-se a Organização Mundial do Comércio (OMC) e
começou a se impulsionar um conjunto de normas globais voltadas
para o comércio, o investimento, a propriedade intelectual etc.,
materializadas em acordos e instituições. Inclusive, estabeleceram-
se tribunais internacionais, como o Centro Internacional para a
Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (Ciadi),68 para arbitrar
sobre disputas relativas a investimentos, despojando os Estados
nacionais de ferramentas soberanas. Toda essa institucionalidade
globalista significou um processo de fragilização das soberanias
nacionais, uma desnacionalização progressiva dos Estados.
No entanto, no final do século, no auge da belle époque neoliberal,
começaram a se manifestar os primeiros sintomas da crise.
Enquanto o levante dos camponeses zapatistas no sul do México
em 1994 colocava em evidência o feroz impacto do projeto
financeiro neoliberal sobre os pobres do Sul Global, por volta de
1999 se manifestava uma série de contradições entre os grupos
dominantes do sistema – tanto centrais quanto semiperiféricos e
periféricos – e começavam a ser observados em termos políticos e
estratégicos os primeiros indícios da particular multipolaridade, da
forma geopolítica da transição. A reconstrução da hegemonia
estadunidense dos anos 1980, e em seu esplendor nos 1990,
começou a mostrar seus próprios limites e contradições: se a
chamada globalização, a transnacionalização econômica e os
vínculos com a China foram pilares de dita reconstrução, esses
elementos continham por sua vez o gérmen de uma crise terminal
da hegemonia estadunidense.
Neste sentido, se até o último ano do milênio os BRICS69 apareciam
como os espaços fundamentais da expansão do capital
transnacional do Norte Global, nova solução espacial para a
acumulação do capital, e integrados progressivamente como
semiperiferias nas instituições internacionais de governabilidade
global criadas pelo Ocidente, também se observará o que poucos
anos depois será uma realidade pouco feliz para o establishment
defensor da ordem mundial vigente: o desenvolvimento, em certos
países chamados “emergentes” ou do Sul Global, de capacidades
estruturais e de forças político-sociais desafiantes das hierarquias
estatais estabelecidas, das instituições da ordem mundial e do lugar
designado a elas na divisão internacional do trabalho. Assim o
interpreta o establishment anglo-americano, que podemos ler no
Financial Times:
Não faz muito tempo que os políticos do Ocidente assumiram que China e
Rússia eventualmente decidiriam que iriam querer ser como ‘nós’. A China se
desenvolveria como um ator responsável na ordem internacional existente e a
Rússia, embora com erros, veria seu futuro na integração com a Europa. Xi e
Putin tomaram outra decisão. O mundo está despertando dos sonhos pós-
modernos da governança mundial para outra época de grande competição pelo
poder.70
O ataque militar unilateral da Otan conduzido pelos Estados Unidos
contra a Iugoslávia em 1999 e o bombardeio a Belgrado, em que as
forças estadunidenses destruíram a embaixada chinesa, começou a
mostrar os limites da crença sobre o “fim da história”. Por sua vez,
no mesmo ano, China recupera Macau, posição portuguesa desde o
século XVI transformada em colônia em 1887, sendo que dois anos
antes já havia recuperado a soberania de Hong Kong, colônia do
império britânico desde 1842 e provavelmente o primeiro marco
histórico da Grande Divergência, iniciada com as Guerras do Ópio,
em um caminho de subordinação e periferização da China. Isso,
junto com a consolidação da Organização para Cooperação de
Xangai com a Rússia e com os países da Ásia central, sobre os
quais os Estados Unidos tinham colocado o foco em seus avanços,
são algumas das manifestações geopolíticas de uma mudança de
época que tem a China como protagonista.
Outro indício disso seria a captura, por parte da China, de um avião
espião estadunidense que colidiu com um avião caça chinês em
abril de 2001 no Mar da China, obtendo acesso a material eletrônico
de vigilância de alta tecnologia, extremamente secreto, em um
equipamento considerado uma fortaleza tecnológica aérea. Isso
exacerbou os ânimos do governo de George W. Bush e mostrou a
crescente hostilidade de Beijing aos desafios à sua soberania
territorial.
Este fato ocorreu em meio a uma profunda mudança na definição da
relação bilateral por parte dos Estados Unidos diante do gigante
asiático com a ascensão do governo de Bush, que passou da
“associação estratégica no século XXI” para a “concorrência
estratégica”. As implicações dessa nova definição incluíam a
possibilidade de que os Estados Unidos vendessem armas
modernas para Taiwan, ilha sobre a qual a China reclama soberania,
e construísse um “escudo antimísseis” ao redor da China.
Em contrapartida, com base na definição de “concorrência
estratégica”, passou-se a considerar a China como uma ameaça no
“quintal” estadunidense, por sua crescente influência comercial na
América Latina. No ano de 2005, durante um debate sobre “A
influência da China na América Latina” organizado pelo Subcomitê
do Hemisfério Ocidental do Congresso dos Estados Unidos,
legisladores e funcionários do Departamento de Estado e do
Pentágono coincidiam em que a influência da China crescia todo dia
na Argentina, no Brasil, na Venezuela e no resto da América Latina,
e que isso representava “uma ‘preocupação’ para o
desenvolvimento da democracia e dos direitos humanos no
continente”.71 Nessa ocasião, a referência máxima do Departamento
de Defesa para a América Latina, o subsecretário adjunto Roger
Pardo Maurer, afirmou estar “preocupado com o aumento da
presença da China nos países da região” e destacou que os
Estados Unidos devem “estar alertas” diante de “certas atividades
chinesas”.72
A crescente tensão com a China desde 1999 e a mudança nos
Estados Unidos que, como veremos, é produto de uma modificação
de relação de poder a favor do que chamamos de “americanismo”
naquele país, também coincide com um conjunto de fatos que
marcam o começo do fim da belle époque neoliberal unipolar: 1) o
estabelecimento do euro por parte das forças “continentalistas” da
Europa, conduzidas por Berlim e Paris, em sua busca por se
fortalecer e ganhar maiores margens de manobra diante de seu
aliado e “protetor” fundamental, os Estados Unidos; 2) a ascensão
de Putin na Rússia, que expressará a reemergência das forças
nacionais do gigante Euro-Asiático; 3) a ascensão de Chávez na
Venezuela, que indicará uma quebra-chave da hegemonia
estadunidense e do Consenso de Washington na América Latina,
junto à crise no Brasil que debilitou as forças neoliberais no
“gigante” sul-americano e as fraturas dos grupos de poder e classes
dominantes na Argentina com a aparição do Grupo Produtivo;
também devemos somar aqui a crise do Equador, cuja saída é a
dolarização e, por volta do ano 2000, a Guerra da Água na Bolívia,
ponto-chave do processo nacional popular que leva ao governo,
anos depois, o Movimento ao Socialismo (García Linera, 2008, p. 4)
o lançamento do Jubileu da Dívida 2000 por parte da Igreja Católica,
que propôs perdoar a dívida dos países pobres, acompanhado de
uma crítica ao neoliberalismo e ao capitalismo “selvagem”. Isto é, aí
começam a se observar as primeiras manifestações geopolíticas da
crise da hegemonia estadunidense e da ordem mundial vigente, a
qual se mostrará mais nitidamente a partir do fracasso da guerra no
Iraque e da crise global de 2008.
A guerra comercial
Trump declarou a guerra comercial ao mundo. Com isso, se pôs em
curso um aprofundamento da política protecionista dos Estados
Unidos e um bilateralismo comercial que busca proteger os grupos
de capital e setores atrasados na economia global e fortalecer a
produção industrial dos Estados Unidos perante a China, mas
também perante a aliados como Alemanha, Japão e México. Os
objetivos são reequilibrar o deficit comercial (agravado pelas
políticas de hiper-estímulos da administração Trump e o
keynesianismo militar) e, sobretudo, reforçar a “segurança nacional”,
já que a indústria é a base da defesa, além de garantir os
monopólios tecnológicos estadunidenses contra seus rivais, aspecto
central no poder mundial (Amin, 1998). No último Discurso sobre o
Estado da União, Trump foi particularmente enfático na promessa
sobre importantes investimentos nas próximas indústrias
tecnológicas de importância estratégica.
Depois do primeiro ano do governo de Trump, o deficit comercial
subiu entre 2016 e 2017. Com a China, foi a 375.100 bilhões de
dólares. Diante disso, o governo de Trump pediu para a China uma
redução de 100 bilhões de dólares em suas exportações, tratando
de imitar o governo de Reagan nos anos 1980, quando se “obrigou”
a autolimitar o Japão em suas exportações, a ajustar-se à política
monetária do Federal Reserve e a financiar o Tesouro
estadunidense. O problema é que a China não é um protetorado
político-militar estadunidense como o Japão, sua escala é muito
maior (já superou os Estados Unidos no PIB em termos de paridade
de poder aquisitivo) e a aliança com a Rússia fortalece sua posição
político-estratégica na Eurásia.
A razão central do enfrentamento comercial com a China é deter
sua drástica ascensão global. Para isso, o trumpismo considera que
deve frear o “alarmante” plano de desenvolvimento tecnológico
Made in China 2025, que tem entre seus principais objetivos
solucionar o atraso relativo em alguns setores tecnológicos
fundamentais como robótica, semicondutores e indústria
aeroespacial, e ampliar a liderança em outras, como a inteligência
artificial e carros elétricos. Caso o plano se concretize, ainda que de
forma parcial, acabaria quebrando definitivamente a relação centro-
semiperiferia do gigante asiático com o Norte Global, colocando em
crise a divisão internacional do trabalho e as hierarquias na
economia mundial, ao mesmo tempo que colocaria um desafio
sistêmico: que um país com um quinto da população planetária se
transforme no centro desenvolvido.
O que está em jogo para o trumpismo é a primazia geopolítica dos
Estados Unidos a longo prazo. Assim o expressa o intelectual e
funcionário da administração Trump, Peter Navarro, em seu livro de
2011: Death by China: confronting the dragon – a global call to
action. A primazia estadunidense só pode ser alcançada através de
um equivalente do século XXI do Relatório sobre manufaturas, de
Alexander Hamilton de 1791, em que se decidam que indústrias são
essenciais para a segurança nacional, junto com uma política
tecnológica-industrial planificada para garantir que essas indústrias
vitais permaneçam no país, complementadas por um forte
protecionismo e uma guerra econômica com os rivais. Aqui aparece
o nacionalismo econômico de Pinkerton que mencionamos no início,
combinado com o neoconservadorismo.
A guerra comercial tem como pano de fundo a crescente “guerra”
econômica, na qual se acentuam as lutas entre capitais mediadas
pelos Estados. O contexto de baixo crescimento no Norte Global
desde a crise financeira global de 2007-2008 aprofunda essa
situação e sua perspectiva. Com o baixo crescimento, a acumulação
dos capitais privados se dá em detrimento dos mais atrasados e dos
trabalhadores, colocando em jogo mecanismos de acumulação por
despossessão. Os capitais globais se acumulam nos territórios
emergentes que crescem (particularmente a China), possibilidade
que não existe para os capitais dependentes da economia nacional
estadunidense. Porém, por sua vez, o processo conhecido como
globalização econômica, pelo qual o comércio mundial se expandiu
ao dobro do PIB mundial e o investimento estrangeiro direto ao triplo
durante quase 30 anos, se deteve com a crise que eclodiu em 2008,
deixando evidente seu limite estrutural.
O pouco crescimento que o Norte Global obteve nos últimos anos
ocorreu graças às políticas hiper-expansivas dos Bancos Centrais.
Essa política está encontrando seus limites, criando uma enorme
bolha nos títulos públicos, que possivelmente vai estourar em um ou
dois anos. Observa-se uma crise próxima, que pode se desdobrar
em um ciclo de crise muito mais profundo devido ao esgotamento do
ciclo expansivo (A) de Kondratiev iniciado em 1994 e às tendências
estruturais da economia mundial. Isso prognostica uma agudização
das lutas econômicas que, dependendo de como se desenvolva e
se “resolva”, vai alimentar a fissura nos Estados Unidos, a guerra
econômica em âmbito mundial e a luta entre polos de poder em
todos os âmbitos.
Ascensão da China
A ascensão da China e seu dinamismo econômico não são
reduzíveis, segundo entendemos, à adesão, por parte da China, ao
capitalismo neoliberal e/ou como epifenômeno da globalização e do
deslocamento produtivo do Norte Global, tal como se pensa em boa
parte da academia ocidental. Sua ascensão está estreitamente
relacionada, em primeiro lugar, à obtenção de importantes níveis de
autonomia e força político-militar (soberania) e certo bem-estar
básico em matéria de saúde e educação, produto da Revolução de
1949; em seguida, ocorreu a decolagem com as reformas iniciadas
em 1978 que atraíram os capitais da diáspora chinesa, absorveu
níveis inferiores do processo de terceirização na Ásia-Pacífico
encabeçado pelo Japão, desenvolveu importantes esquemas
econômicos públicos e estatais e, mais tarde, absorveu grandes
volumes de capitais do Ocidente sob suas próprias condições
(necessidades produtivas planificadas, transferências tecnológicas,
restrições à extroversão de lucros), para se tornar, por fim, a grande
plataforma industrial mundial. Isso foi feito com um projeto próprio, a
partir da sua história e características próprias – centrado no
crescimento da produtividade mais do que pelo investimento de
capital (Zhu, 2012) – e com uma singular combinação de modos de
produção, aproveitando a própria necessidade expansiva do capital
do Norte Global.
O modelo de desenvolvimento híbrido da China não se qualifica
dentro do marco capitalista ocidental clássico, já que se mantém a
propriedade coletiva da terra, os núcleos centrais da economia
estão nas mãos de grandes empresas estratégicas estatais e existe
um forte desenvolvimento das empresas de povoados e aldeias de
propriedade coletivas (TVE) que são as principais empregadoras da
economia. Portanto, a presente transição histórico-espacial não se
trataria de uma passagem do poder de um Estado ocidental e
capitalista para outro mais forte e dinâmico, para iniciar um novo
ciclo hegemônico do sistema-mundo moderno. Mais que isso, a
própria ascensão chinesa convida a consolidar a pergunta de se
existe uma tendência definitiva e estrutural sobre o fim da primazia
das forças fundamentais do Ocidente no sistema mundial e,
especialmente, sua supremacia protagonizada pelo mundo anglo-
saxão a partir do que se denomina a Grande Divergência, entre
início e meados do século XIX, com a combinação da Revolução
Industrial, a expansão capitalista, o colonialismo e a supremacia
militar. Isso está articulado com a formulação de Wallerstein (2006)
sobre estarmos diante de uma situação de limite estrutural para a
sobrevivência do sistema mundial moderno como tal, o que abre a
pergunta de se estamos diante de uma crise definitiva da
modernidade capitalista como sistema histórico e em que medida a
ascensão da China e da Ásia-Pacífico é parte desse processo.
Como apontamos no começo deste trabalho, no fim da belle époque
neoliberal unipolar, a China começou a mostrar sinais de seu futuro
como novo polo de poder desafiante da ordem mundial. Um
momento-chave da ascensão chinesa foi a crise de 2008, que
atingiu o Norte Global e expôs todas as suas contradições. A partir
daí, a China deixou de financiar o Tesouro estadunidense e seu
deficit estrutural, por meio da compra da dívida: se a China, entre
2005 e 2008, comprou 49,3% dos títulos públicos do Tesouro, em
2009, diante da queda no crescimento, adquiriu 19,6%, enquanto
que o resto foi destinado a impulsionar a demanda interna e impedir
uma recessão, injetando em sua economia fundos de 500 bilhões de
dólares (Martins, 2011). Isso diferencia profundamente a China do
Japão dos anos 1980 que, como um “protetorado” militar
estadunidense, aceitou as políticas deflacionistas do “dólar forte”,
financiar o deficit estadunidense e inclusive “autolimitar-se” em suas
exportações aos Estados Unidos. Algo parecido ao que hoje
demanda Donald Trump, mas que a China resiste em aceitar.
Entretanto, outra das respostas a partir de 2009 foi a convocatória à
primeira reunião dos Brics, na qual começou a se delinear um
espaço dos principais poderes emergentes – não mais apenas
mercados emergentes. Nessa ocasião se colocou sobre a mesa,
entre outras questões, a necessidade de avançar em uma
alternativa coletiva ao dólar, um desafio ao coração da hegemonia
estadunidense.
Quanto ao avanço econômico da China – cujo PIB medido pela
paridade do poder aquisitivo já superou o dos Estados Unidos em
mais de 20% e, por outro lado, superou a Eurozona como maior
sistema bancário do mundo –, três questões passam a ser
fundamentais a partir da crise de 2008:
1) A aquisição de empresas no estrangeiro e investimentos em
áreas críticas para suas necessidades de desenvolvimento,
vinculadas fundamentalmente à energia, alimentos e
infraestrutura: compra, por parte da comercializadora de grãos
estatal chinesa Cofco, do Noble Group e da cerealista Nidera
(de capitais holandeses e argentinos), com o que a China se
consolidou como um dos principais jogadores no monopólio da
comercialização de grãos. Por outro lado, a Bright Food, do
governo municipal de Xangai, adquiriu a marca britânica
Weetabix e, em 2015, comprou a empresa catalã Miquel
Alimentación. É preciso destacar também, entre outras
aquisições, a compra do gigante biotecnológico de origem suíça
Syngenta por 43 bilhões de dólares, o que lhe permitiu o acesso
à tecnologia de ponta em matéria agroalimentar. Ou a compra
da Volvo por parte da chinesa Geely, que lhe deu acesso à
tecnologia automotora de ponta. A tentativa recente de comprar
empresas de semicondutores dos Estados Unidos, com o fim
de se desenvolver nesse ramo tecnológico do qual a China é
fortemente dependente, foi proibido pelas autoridades
estadunidenses.
2) A internacionalização do yuan (renmimbi): crescente uso do
yuan como moeda de reserva de diversos bancos centrais,
assim como acordos com bancos centrais de empréstimos em
yuan para fortalecer as reservas (swaps cambiais bilaterais). O
Conselho Mundial do Ouro certificou que em 2016 China e
Rússia voltaram a se tornar, pelo sexto ano consecutivo, os
principais compradores de ouro de todo o mundo, aumentando
de forma substancial suas reservas desse metal. Isso está
estreitamente relacionado com a hipótese de sustentar suas
moedas retornando a alguma forma de padrão ouro, em
detrimento do dólar. Também o lançamento de um mercado de
petróleo em yuan reforça essa política de internacionalização
monetária e atinge o tão precioso monopólio do petro-dólar.
Isso se articula com a criação de novos instrumentos
financeiros internacionais, como o Banco Asiático de
Investimento em Infraestrutura e o lançamento do Novo Banco
de Desenvolvimento dos Brics junto a um Fundo (Arranjo
Contingente de Reservas) na Cúpula de Fortaleza, Brasil, em
2014. Essa arquitetura financeira fica em paralelo à do Norte
Global, centrada no FMI e no BM.
3) O avanço na direção da complexidade econômica e do
desenvolvimento de tecnologia, no que a China já diminuiu boa
parte da desvantagem com os centros do Norte Global e
inclusive começa a ser vanguarda em alguns setores. De
acordo com dados do Banco Mundial, a China é o maior
exportador de bens do mundo, dos quais 94,4% são bens
manufaturados, 48% são máquinas, e dos bens manufaturados,
25,6% são de alta tecnologia (em 2015). Entretanto, cerca de
731 milhões de cidadãos chineses estavam on-line em 2016 e
95% deles acessavam a internet com seus telefones celulares.
Isso fornece uma massa de informação digital – big data – que
é muitas vezes maior do que a estadunidense. É com base no
cruzamento com essa gigantesca base que a China desdobra
sua liderança na inteligência artificial (AI), a tecnologia decisiva
na nova revolução industrial em curso. Além disso, Shenzhen
ou Beijing disputam com o Vale do Silício e outros centros do
Norte Global o caráter de nó estratégico de alta tecnologia da
economia mundial. De fato, Shenzhen, Cantão, Hong Kong e
Macau fazem parte da Área da Grande Baía (AGB), no delta do
Rio das Pérolas, uma megalópole com 70 milhões de
habitantes que fabrica 90% dos artefatos eletrônicos que se
consomem em todo o mundo. Neste sentido, também devemos
mencionar o plano de desenvolvimento tecnológico e industrial
Made in China 2025, que busca terminar com a divisão ainda
existente com o Norte Global em alguns setores tecnológicos
mais avançados (semicondutores, robótica, tecnologia
aeroespacial), bem como consolidar a liderança em outras.
Paralelamente ao seu crescimento econômico, a China desenvolve
seu complexo militar e moderniza muito rapidamente suas Forças
Armadas. Isso, junto ao poder da Rússia nesse aspecto, colocam
em xeque o monopólio estadunidense. Nesse sentido, o orçamento
militar da China veio aumentando progressivamente nos últimos
anos, chegando em 2014 a 130 bilhões de dólares e ultrapassando
os 220 bilhões em 2017. A China possui o segundo orçamento
militar em âmbito mundial, embora muito abaixo dos EUA.81 Um dos
aspectos centrais do desenvolvimento militar chinês tem a ver com a
disputa pelo controle do Pacífico. Nesse cenário, a China aprofunda
a construção de porta-aviões, submarinos e mísseis, fortalecendo a
capacidade estratégica de seu complexo industrial-militar. Segundo
o general chinês Sun Sijing,
o aumento em dois dígitos no gasto de defesa pode parecer muito para
algumas pessoas, mas no desenvolvimento do complexo militar ainda estamos
muito atrás [...]. Nossas empresas dominaram o mercado mundial e temos o
que e quem defender.82
A situação na zona do mar da China se agrava pela agudização das
tensões globais e os conflitos geoestratégicos em torno das ilhas
Senkaku/Diaoyu, o arquipélago Spratly e as ilhas Paracel, além do
histórico conflito das Coreias. O Mar do Sul da China é essencial
para a economia da Ásia. Um terço dos navios do mundo navegam
por suas águas e enormes reservas de petróleo e gás jazem em seu
leito.83
Outro aspecto fundamental para analisar a ascensão da China é o
geopolítico, junto de seus imperativos geoestratégicos. Daí
sobressai uma aposta fundamental, a chamada “Nova Rota da
Seda”. O avanço do Tratado Trans-Pacífico (TPP), durante a
presidência de Obama, e a adesão do Japão ao TPP em março de
2013, implicou cercar a China e avançar na estratégia de conter sua
expansão e a influência do gigante asiático na Ásia-Pacífico. Diante
disso, o gigante asiático respondeu, em setembro de 2013, com a
promoção da Iniciativa do Cinturão e Rota – Belt and Road Initiative
(BRI), buscando consolidar, antes de tudo, seu poder no coração do
continente Euro-asiático, diante dos desafios do “Império do Mar”.
Nisso, converge com uma Rússia cada vez mais inclinada para a
construção de um eixo de poder baseado no espaço Eurasiático
contra o avanço dos Estados Unidos e aliados (Otan) em territórios
considerados sensíveis para seus interesses (Leste Europeu, o
Cáucaso, a Ásia Central, a Síria). A BRI, impulsionada por Xi Jinping
em 2013, após suas viagens à Rússia, à Bielorrússia e ao
Cazaquistão (os protagonistas da União Econômica Eurasiática com
sede em Moscou), envolve cerca de 60 países, em sua maioria,
países em desenvolvimento. Aí vivem 4,4 bilhões de habitantes
(63% da população mundial), se encontram 75% das reservas
energéticas conhecidas no mundo e se produz 55% do PIB mundial.
O governo da China prevê investir na BRI a cifra descomunal de 1,4
triilhões de dólares. Já está garantido um orçamento de 890 bilhões
de dólares, procedentes do Fundo da Rota da Seda, do Novo Banco
de Desenvolvimento e do Banco Asiático de Investimento e
Infraestrutura. Por sua vez, os bancos estatais-comerciais chineses
– Bank of China, ICBC e China Construction Bank – ofereceram
mais de 500 bilhões em empréstimos e investimentos de ativos
(Parra Pérez, 2017).
Os seis corredores da BRI parecem ter nítidas intenções
geoestratégicas: evitar os estrangulamentos ao desenvolvimento da
China e a geoestratégia anglo-americana de cercar/conter China,
Rússia e aliados continentais. Esta estratégia deixa a China
encurralada e vulnerável, com suas principais linhas de
abastecimento ameaçadas. Nesse sentido, no mapa onde se traçam
os corredores e a rota marítima, vemos que eles rompem os
estrangulamentos da China: um trem através de Myanmar
proporciona uma rota para o mar que elimina o ponto de
congestionamento do estreito de Malaca em Singapura (centro
financeiro global aliado do Ocidente). Entretanto, um corredor junto
a um novo porto no Paquistão proporciona acesso direto ao Oceano
Índico e ao Golfo Pérsico, de onde saem 40% do petróleo
comercializado no mundo, grande parte do qual vai para a China.84
Da mesma maneira, tanto o corredor China-Mongólia-Rússia quanto
o corredor Nova Ponte Terrestre da Ásia permitem uma conexão
direta com a Europa, uma saída para o Mediterrâneo e uma
integração Eurasiática continental. Isso rompe o eixo-tampão que
separa territorialmente a Ásia-Pacífico e a Europa, que dá
superioridade estratégica ao polo de poder que controla o mar. Além
do mais, o importante protagonismo da Rússia permite diminuir seus
possíveis receios geopolíticos com a ascensão da China. Em
contrapartida, o corredor Indochinês garantiria eliminar qualquer
ameaça no sudeste asiático continental.
O desenvolvimento da rede ferroviária Eurasiática, para comunicar e
integrar toda a massa continental, é um dos elementos centrais que
sobressaem na proposta da BRI: a projeção de uma grande ponte
terrestre eurasiática que desarticula o poder marítimo que os
impérios ocidentais da modernidade ostentaram historicamente. De
fato, um dos pensadores mais brilhantes do “império do mar” anglo-
saxão, Halford Mackinder, já tinha observado as implicações no
balanço de poder das ferrovias transcontinentais na Eurásia, no
início do século XX:
Há uma geração, o vapor e o canal de Suez pareciam ter aumentado a
mobilidade do poder marítimo com relação ao poder terrestre. As ferrovias
funcionaram principalmente como tributários do comércio oceânico. Mas as
ferrovias transcontinentais estão agora modificando as condições do poder
terrestre, e em nenhum lugar podem exercer tanto efeito quanto no fechado
‘coração continental’ da Eurásia [...] Essa extensa zona da Eurásia que é
inacessível aos navios, mas que antigamente estava aberta para os cavaleiros
nômades, e está hoje a ponto de ser coberta por uma rede de ferrovias, não é
a ‘região pivô’ da política mundial? (Mackinder, 2010, p. 315-316)
Em termos geoeconômicos, a BRI é parte de uma mudança global e
significa um avanço na formação de um novo padrão de
desenvolvimento, diferente do da tríade e de seu modelo centro-
periferia, que, por suas características, tende à diversificação dos
fluxos de capital e dos fluxos espaciais dos fatores de produção, que
se expandem progressiva e profundamente dentro das hinterlândias
eurasiáticas (Ning e Chuankai, 2018). A BRI implica dar forma a
uma transformação radical do mundo tal como está configurado
desde o século XIX, com centro no Atlântico e no Ocidente, e a
versão do século XX deste mundo, especialmente a partir do pós-
guerra: com centro nos Estados Unidos, de onde são coordenados
os outros dois centros econômicos do sistema mundial capitalista: a
Europa Ocidental e o Japão/Ásia-Pacífico. Da perspectiva da BRI, o
centro geoeconômico é a China que, integrando a Eurásia e suas
periferias dinâmicas oriental e ocidental, deixa em um papel
subordinado os Estados Unidos e consolida sua máxima estratégica
de construção de poder global: “o reino médio está (deve estar) no
centro de tudo que brilha sob o céu”. Concepção que difere do
imperialismo militarista de tipo ocidental.
Reflexões finais
A mudança de governo nos Estados Unidos, a partir da qual as
forças globalistas se enfraqueceram, permitiu que a China
avançasse em termos geoeconômicos e inclusive incorporar o
Japão na BRI. Esse novo momento político mundial refletiu-se na
cúpula do Fórum do Cinturão e da Rota realizado em maio de 2017,
no qual estiveram presentes mais de 1.200 delegados de 130
países e 29 chefes de Estado, junto com 70 organizações
internacionais. Outra amostra do avanço da China é a posição de Xi
Jinping em Davos, onde defendeu a liberalização do comércio e do
investimento contra o protecionismo estadunidense que veio com
Trump. Como ocorreu historicamente com as grandes potências
industriais assim que alcançam certo nível de desenvolvimento
relativo e de competitividade, tornando-se novos centros da
economia global, trocam suas posições protecionistas por posições
mais próximas ao livre mercado.
No entanto, os efeitos negativos na economia chinesa da guerra
comercial, a agressividade de Washington para impedir o avanço
tecnológico da China (o caso da Huawei é paradigmático nesse
sentido) e o desenvolvimento de uma série de tensões
geoestratégicas em torno dela apresentam grandes desafios para
essa ascensão. Beijing precisa garantir o fornecimento de matérias-
primas e de energia que o atual governo dos Estados Unidos está
disposto a limitar. Por isso, entre outras questões, os Estados
Unidos querem controlar o Oriente Médio ou bloquear o
investimento da China na América Latina. Além disso, a China deve
solucionar problemas de superacumulação de capital e de
supercapacidade de produção (ela tem uma importante
supercapacidade de produção de vários bens, entre eles aço e
cimento), que pode levá-la a realizar uma acumulação por
despossessão que dinamite sua concepção estratégica e a faça
desenvolver um imperialismo capitalista ao estilo ocidental. Também
teve que defender suas linhas comerciais, mas enfrenta o desafio
dos Estados Unidos, que ainda é a “potência militar dominante na
Ásia e cuja marinha tem a capacidade de bloquear os portos e o
tráfego marítimo chinês contando com a vantagem estratégica que
lhe oferecem suas bases em torno da periferia chinesa, no Japão,
na Coreia e em Guam” (Mackinla e Ferreirós, 2011, p. 3).
Diferentemente dos Estados Unidos, a China está cercada por
potências que encaram com receio a sua ascensão e Washington
busca fazer com que se confrontem. Soma-se a isso uma série de
conflitos territoriais cruciais no Mar da China.
Em contrapartida, existem desafios mais profundos para a ascensão
chinesa e da Ásia-Pacífico. Podemos apontar dois dos mais
importantes, estreitamente relacionados: a impossibilidade de
incorporar um sexto da população mundial no centro do sistema,
pelo padrão estrutural de desenvolvimento desigual e combinado
inerente ao moderno sistema mundial (que, além do mais, está em
processo de desmoronamento). E, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de realizar essa incorporação nos atuais parâmetros
de consumo e exploração da natureza, sem avançar para o abismo
ambiental.
A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e os rachas “internos”
diante da ascensão da China são características da mudança de
época que estamos vivendo. Cada uma das forças tenta enfrentar o
declínio dos Estados Unidos dentro de suas perspectivas
estratégicas, moldadas em relação a seus interesses. No governo
Trump observamos a aposta estratégica em um nacionalismo
econômico neohamiltoniano no estilo de Pinkerton combinado, como
vimos anteriormente, com linhas próprias do neoconservadorismo,
que apostam no controle do Oriente Médio, no unilateralismo e na
supremacia militar absoluta – encarnado nas figuras do demitido
John Bolton, no chefe de gabinete Mike Pompeo e no vice-
presidente Mike Pence. Também aparecem tentativas de reforçar as
alianças militares na zona Indo-Pacífica (Índia, Taiwan) e intervir nos
principais conflitos geoestratégicos da região. Entretanto, foi
deslocada a visão neorrealista de contenção, multilateralismo e
equilíbrio de poder, mais próxima dos globalistas, assim como as
concepções liberais.
Paradoxalmente, a atual orientação dos Estados Unidos pode ser a
mais favorável para a ascensão da China – de fato, praticamente
está lhe servindo de bandeja aliados-chave eurasiáticos como a
Rússia, o Irã, a Turquia e a Alemanha – mas ao mesmo tempo a
mais perigosa: não se sabe até onde pode chegar a escalada da
guerra, não apenas no âmbito comercial, mas também no militar.
Referências
Atilio Borón
Sociólogo e politólogo, catedrático e escritor argentino. Doutor em
Ciência Política pela Universidade de Harvard (Cambridge,
Massachusetts). É professor da Universidade de Buenos Aires e
pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas (Conicet). Publicou vários livros sobre imperialismo,
geopolítica e sobre o futuro dos projetos emancipatórios na América
Latina.
Gabriel Merino
Sociólogo, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas (Conicet) e professor da Universidade
Nacional de La Plata. Especialista em temas de geopolítica e
relações internacionais. Tem publicado vários artigos sobre estes
temas
John Smith
Pesquisador independente, radicado em Sheffield, Reino Unido. É
autor de várias obras sobre Economia Política. Seu último livro
sobre o imperialismo – Imperialism in the Twenty-First Century:
Globalization, Super-Exploitation, and Capitalism’s Final Crisis – tem
reconhecimento internacional no debate atual sobre este tema.
Prabhat Patnaik
Economista e analista político marxista da Índia. Professor no centro
de estudos e planejamento econômicos na Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Jawaharlal Nehry em Nova Delhi, de 1974
a 2010. Publicou uma série de artigos e livros sobre o tema do
imperialismo. Seu livro A Theory of Imperialism, escrito junto com
Utsa Patnaik, teve um grande impacto no pensamento crítico
internacional sobre a atualidade da teoria do imperialismo no século
XXI.
Utsa Patnaik
Economista e analista político marxista da Índia. Professora no
centro de estudos e planejamento econômicos na Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade Jawaharlal Nehry em Nova Delhi,
desde 1974. Seu livro A Theory of Imperialism, escrito junto com
Prabhat Patnaik, teve um grande impacto no pensamento crítico
internacional sobre a atualidade da teoria do imperialismo no século
XXI.
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