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EMILIANO LÓPEZ (ORG.

AS VEIAS DO SUL CONTINUAM ABERTAS


Debates sobre o imperialismo do nosso tempo

1a edição
Expressão Popular
São Paulo – 2020
SUMÁRIO
Uma caixa de ferramentas para fechar as nossas veias
Imperialismo na era da globalização
Exploração e superexploração na teoria do imperialismo
Capitalismo moribundo e competitivo
Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova Estratégia de
Segurança Nacional dos Estados Unidos
A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas
diante da ascensão da China
Sobre os autores
UMA CAIXA DE FERRAMENTAS
PARA FECHAR AS NOSSAS VEIAS
EMILIANO LÓPEZ

“Nessas terras, não estamos assistindo à infância selvagem do


capitalismo, mas sua decrepitude”
As veias abertas da América Latina, Eduardo Galeano

“Ali pernoitou a Cerca: de madrugada rastejou para o itararé por onde


afunda a estrada de Huánuco. Dois montes intransponíveis vigiam o
desfiladeiro: o avermelhado Pucamina e o enlutado Yantacaca,
inacessíveis até para os pássaros. No quinto dia a Cerca derrotou os
pássaros”.
Bom dia para os defuntos, Manuel Scorza

O conceito de imperialismo tem má reputação. Sem dúvida, no


mundo intelectual e acadêmico hegemônico, ele é tratado como um
termo démodé, centralmente ideológico e com pouca capacidade
explicativa sobre nossa realidade atual. Nesta “Era da
Globalização”, não precisamos reeditar categorias de outros
momentos históricos que nos levariam a velhas receitas para
melhorar a vida de nossos povos, mas sim reconhecer o tempo em
que vivemos e fazer prevalecer o realismo.
Esta visão, mesmo quando motivada por nobres intenções, nos
imobiliza e nos conduz a deixar-nos convencer de que este mundo
desigual só pode ser transformado em sua dimensão molecular. No
entanto, o fato de que boa parte do pensamento crítico tenha
abandonado certas categorias a favor de explicações mais
amigáveis em relação ao establishment acadêmico e político de
nosso tempo faz parte do triunfo do modelo civilizatório ocidental e
capitalista após a queda do Muro de Berlim.
Para onde quer que olhemos no Sul Global, encontramos situações
que requerem explicações globais. A apropriação de bens comuns
na África e na América Latina, a expansão das fábricas têxteis em
condições sub-humanas de trabalho na Ásia, o domínio da produção
dos países do Sul da Europa e Norte da África por empresas
radicadas na Alemanha e na França; a dominação do Estado de
Israel sobre a Palestina; a imposição da propriedade privada sobre
espaços comunais, transformando-os em espaços para a
acumulação de capital; as incontáveis intervenções militares no
Oriente Médio; a imposição do American Way of Life através da
indústria cultural estadunidense; isso não passa de expressões de
que o capitalismo global é, como diz Samir Amin, um “sistema
gerador de desigualdade entre países e regiões”. Essa
desigualdade não é uma abstração, não é pura elucubração teórica:
ela é vivida nos corpos dos oprimidos e oprimidas do Sul.
É por isso que consideramos que a categoria mais adequada para
entender essa desigualdade global é o imperialismo. Consideramos
urgente voltar a dar conteúdo, atualizado para o nosso tempo e para
as nossas lutas, a um conceito potente em termos explicativos e
historicamente associado às lutas dos povos pela liberação.
Imperialismo é tanto um conceito quanto uma categoria nativa dos
nossos projetos de emancipação do Sul.
A trajetória desse conceito teórico-político é amplamente difundida.
Até o fim do século XIX, a Grã-Bretanha viveu seu período de
expansão capitalista mais intenso. Após sofrer uma crise econômica
de peso, o reimpulso de seu próprio capitalismo implicou uma nova
onda de expansão global da civilização capitalista ocidental. Nesse
caso, a novidade mais significativa em relação às práticas coloniais
prévias foi que a expansão respondeu, sobretudo, às necessidades
da acumulação de capital dos centros industriais da Europa. Como
apontou Hobson, um liberal crítico das imposições do governo inglês
ao resto do mundo,
Todos os homens de negócios admitem que o crescimento dos poderes
produtivos em seus países excede o crescimento do consumo, que se podem
produzir mais bens do que os que podem ser vendidos com lucros, e que
existe mais capital do que o que pode ser investido rentavelmente. Esta
situação econômica é a que forma a raiz do Imperialismo.
Esta leitura motivou os pensadores marxistas como Lenin, Rosa
Luxemburgo, Kautsky, entre outros, a prestar atenção a essa nova
etapa que se abria no mundo. O trabalho de Lenin, Imperialismo,
estágio superior do capitalismo, marcou sem dúvidas um antes e um
depois na discussão sobre o imperialismo. Esse conceito não
apenas explicava a concentração de poder e de renda nos países
do Norte, mas também o mecanismo de concentração e
monopolização do capital, baseado na exportação de capital dos
países imperialistas para as periferias do mundo, favorecida pelo
desenvolvimento do capital financeiro e, ao mesmo tempo, se
apropriando dos recursos provenientes do Sul para garantir as
condições de produção do Norte.
Em grande medida, podemos ver esses anos de expansão global do
capital do Norte, em particular do inglês, como um emaranhado de
capitalismo e colonialismo. De fato, boa parte da operação deste
suposto processo civilizatório do Norte se baseou na liberalização
econômica e na dependência política de um quarto do mundo. A
Ásia, a África e o Oriente Médio foram divididos como propriedade
de diferentes países imperialistas da Europa. Assim, um quarto do
mundo foi distribuído em colônias às quais as corporações
capitalistas transnacionais impuseram o novo dever ser. No caso da
América Latina, o imperialismo tomou a forma de dependência
econômica em um contexto de suposta independência política
nacional. Como o apresentava Manuel Scorza em sua magnífica e
angustiante história, o capital estrangeiro se instalou em nossas
terras se apropriando da água, das montanhas e até mesmo da
própria vida.
Para além dessa expansão, o capital global entrou em uma nova e
terrível fase de crise. Uma guerra sem precedentes até aquele
momento, que destroçou os centros do imperialismo clássico, foi a
expressão mais desumanizante desta nova fase de
desenvolvimento da ordem mundial geradora de desigualdade. É
nesse contexto que surge uma nova hegemonia global que termina
de se consolidar após a Segunda Guerra Mundial: os Estados
Unidos. Longe de tentar atiçar o conflito entre potências, os Estados
Unidos conseguiram ser o melhor representante do capital
estadunidense e do capital global por pelo menos 50 anos.
Apostaram na reconstrução da Europa para alcançar mercados
rentáveis para sua expansão industrial doméstica, viabilizaram
negociações para impulsionar fluxos de investimentos produtivos
nos países do Sul, exportaram seus padrões culturais de consumo
pelo mundo, participaram abertamente nas operações militares
contra os projetos de esquerda de vários países e impuseram
regimes ditatoriais em uma série de países do Sul. Como disse
oportunamente o historiador Perry Anderson, os Estados Unidos
basearam sua nova lógica imperial em uma combinação da força
produtiva de sua economia, da sua capacidade de domínio militar e
da sua capacidade hegemônica através da legitimidade que sua
democracia e seu modelo cultural alcançaram. É, em boa medida,
“uma luva de veludo que tem dentro uma mão de ferro”.
Para além desse sucesso do imperialismo estadunidense, as
resistências populares em todo o Sul global nos anos 1960, a
Revolução Cubana e a derrota do império no Vietnã marcaram uma
nova crise política dessa ordem desigualitária; ao mesmo tempo, se
desenvolvia uma nova crise econômica global, talvez uma das mais
significativas para explicar o mundo em que hoje vivemos.
A crise da década de 1970 encontrou, novamente, uma saída no
imperialismo revigorado. Neoliberalismo e imperialismo se
associaram para dar lugar a um novo ciclo de imposições
financeiras, produtivas e militares do Norte para o Sul. A nova
(des)ordem global nascida dessa crise capitalista dos anos 1970
multiplicou as desigualdades previamente existentes e gerou uma
tendência à financeirização e ao saqueio sem precedentes. Depois
de declarar a “morte das ideologias” e o “fim da história” a favor de
um novo mundo global livre, democrático e capitalista, o suposto
novo século estadunidense está, novamente, em uma crise
inegável. Mas essa crise não tem como contrapartida necessária as
condições de maior dignidade para os povos do Sul. Ao contrário, a
crise do imperialismo estadunidense acentua a barbárie: intervém
militarmente de maneira direta no Oriente Médio, multiplica suas
imposições financeiras, absorve as massas de capital do mundo e
as converte em capital financeiro, desenvolve novos formatos de
guerra híbrida contra os países que não querem ceder sua
soberania, da Síria até a Venezuela.
Este livro tenta, com diálogo e debate coletivo, construir uma nova
leitura acerca do imperialismo de nosso tempo. É uma caixa de
ferramentas para entender o tempo que nos cabe viver e renovar o
nosso compromisso militante contra todas as formas de opressão.
Compreender como opera hoje o imperialismo, através de que
mecanismo, delimitar a profundidade de sua crise e as
possibilidades de hegemonias alternativas permite reeditar o
compromisso com a liberação de nossos povos a partir do Sul
Global. Permite pensar que, em boa medida, devemos estancar o
sangramento causado pela espoliação dos nossos corpos, da nossa
cultura, dos nossos bens comuns e do nosso trabalho. Permite
reconstruir uma base histórica sobre a qual possamos ficar de pé, o
que Che sintetizava dizendo que, para além dos desacordos táticos,
“quanto ao grande objetivo estratégico, a destruição total do
imperialismo por meio da luta, temos que ser intransigentes”.
Incluímos aqui cinco capítulos que atravessam uma série de pontos
de debate contra as leituras comemorativas da globalização
neoliberal, contra o “não existe alternativa”. Colocam em dúvida o
papel que os países imperialistas concedem às nossas economias
do Sul como garantidoras de alimentos baratos, as novas (velhas)
formas da exploração trabalhista, as características da competição
entre capitais em escala global, a nova estratégia militar dos
Estados Unidos no contexto de crise de seu projeto hegemônico e
os pontos nodais para interpretar a sucessão hegemônica que
vivemos como uma oportunidade, ao mesmo tempo que como um
grande risco.
Esperamos que estas linhas sejam uma contribuição para
compreender a monstruosidade do inimigo, mas, ao mesmo tempo,
que nos levem a aprimorar nossas ferramentas e fortalecer nossas
trincheiras. Porque, definitivamente, por mais terrível que seja a
forma de operar do inimigo, sempre lutaremos por nossos sonhos
de justiça. Como nos dizia o poeta palestino Samih Al-Qassem em
seu “Informe de uma bancarrota”,
ainda que apagues teus fogos em meus olhos,
ainda que me enchas de angústia,
ainda que falsifiques minhas moedas,
ou cortes pela raiz o sorriso dos meus filhos,
ainda que levantes mil paredes,
e enfie pregos em meus olhos humilhados,
inimigo do homem,
não haverá trégua
e hei de lutar até o fim.
IMPERIALISMO NA ERA DA
GLOBALIZAÇÃO1
UTSA PATNAIK E PRABHAT PATNAIK

Introdução
O capitalismo é, acima de tudo, um sistema baseado no uso do
dinheiro no qual uma grande porção da riqueza é acumulada tanto
na forma de dinheiro quanto na forma de ativos, especialmente os
chamados ativos financeiros. Para que o sistema funcione, é
essencial que o valor do dinheiro não se desvalorize continuamente
frente às mercadorias; caso contrário, as pessoas evitariam o
acúmulo de dinheiro, que deixaria de ser uma forma de riqueza e
também um meio de circulação.
O capitalismo garante a estabilidade do valor do dinheiro de
diversas formas. Uma delas é a manutenção de um vasto exército
industrial de reserva, não apenas nas metrópoles mas também no
terceiro mundo. Esse exército de reserva “distante” também mantém
baixos os salários locais e, consequentemente, os preços das
matérias-primas lá produzidas, bem como mantém baixos os
salários dos trabalhadores na metrópole que são ameaçados pelo
desemprego devido à saída de capital para o terceiro mundo, caso
insistam em salários mais elevados.
No entanto, esses exércitos de reserva não são suficientes. Mesmo
que não haja aumento autônomo nos preços das matérias-primas e
dos salários em dinheiro devido à sua existência, os preços de
algumas commodities escassas ainda passariam por um aumento
de preços na medida em que a acumulação aumentaria a demanda
por elas. A ameaça que isso representa para o valor do dinheiro
também deve ser evitada, e isso é feito através da restrição da
demanda por tais commodities fora do setor capitalista, através do
estrangulamento do poder de compra em massa nessas localidades
(por exemplo, através da imposição de uma “deflação de renda”).
Historicamente, dois instrumentos típicos dessa “deflação de renda”
foram a pilhagem, sem qualquer quid pro quo, dos lucros produzidos
no terceiro mundo (economistas indianos anticolonialistas
chamaram isso de “drenagem de riqueza”), bem como a destruição
da produção de menor escala através das importações de produtos
da metrópole capitalista (o que os mesmos escritores chamaram de
“desindustrialização”) que criou, originalmente, o exército de reserva
“distante”. Todo esse arranjo abrangendo o mundo fora do
capitalismo propriamente dito é o que constitui o “imperialismo”. Ele
não termina com o colonialismo; ao contrário, sua importância
aumenta com a “financeirização”, quando a estabilidade do valor do
dinheiro se torna uma questão cada vez mais essencial (daí a
obsessão atual com “metas de inflação”).
Entretanto, o imperialismo como um arranjo se manteve
amplamente invisível à disciplina da Economia, mesmo aos seus
melhores praticantes, mesmo no período colonial. O próprio John
Maynard Keynes, em seu clássico trabalho As consequências
econômicas da paz, em que ele elabora sobre o “Eldorado
econômico” que a Europa pré-guerra representava, não menciona
que esse Eldorado repousava sobre uma elaborada estrutura do
imperialismo. O acesso da Europa aos alimentos do “novo mundo”,
um importante aspecto desse Eldorado, não teria sido possível se
esses alimentos não tivessem sido pagos, por meio de um arranjo
complexo, pela apropriação gratuita, por parte da Grã-Bretanha, de
uma parte do excedente de suas colônias e semicolônias
(“drenagem da riqueza”) e pela exportação de bens manufaturados
para suas colônias e semicolônias às custas de seus produtores
locais (“desindustrialização”).2
Imperialismo, no entanto, não é apenas um fenômeno limitado à
história. É necessariamente subjacente, como já mencionado, ao
capitalismo em todas as suas épocas, incluindo a atual era da
globalização. Vamos examinar essa questão em detalhe.

I
O espectro dos “rendimentos decrescentes” sempre assombrou os
economistas. Ricardo tinha celebremente visto “rendimentos
decrescentes” na agricultura levando a uma queda progressiva na
taxa de lucro, uma mudança progressiva dos termos de troca entre
manufatura e agricultura em favor desta última e o desenlace final
de um estado estacionário no qual mais crescimento se tornaria
impossível. Mesmo Keynes, na obra mencionada, viu “rendimentos
decrescentes” na produção de alimentos como prejudicial ao
Eldorado, ainda que a guerra não o tivesse feito. E, no entanto,
nenhum desses temores se tornou realidade. Os termos de troca
entre manufatura e agricultura mostraram uma tendência secular a
mudar contra, e não a favor, do último;3 e embora a taxa de
crescimento tenha diminuído sob o capitalismo nos últimos tempos,
isso não tem nada a ver com qualquer queda na taxa de lucro
causada por “rendimentos decrescentes”. Da mesma forma, o
mundo capitalista avançado não tem dificuldade até hoje em
satisfazer suas necessidades alimentares, desmentindo os temores
de Keynes. Como então explicamos esse contraste entre temores e
realidade?
Não podemos simplesmente afirmar que os “rendimentos
decrescentes” são um mito. A limitação do tamanho da terra é sem
dúvida uma realidade material a ser enfrentada. É claro que o
tamanho da terra pode ser aumentado, não em unidades naturais
mas em unidades efetivas, através do progresso tecnológico de
aumento de produtividade ou por meio de certos tipos de
investimento, como irrigação, que possibilita a implantação de
múltiplos cultivos. Em outras palavras, medidas de “aumento de
terreno” são certamente possíveis. Mas, na ausência destas, as
limitações do tamanho da terra aumentariam com o passar do
tempo; com o aumento da demanda, o “custo real” da produção
agrícola (para usar o conceito de Keynes), que significa que, para
um determinado salário em dinheiro e preços em dinheiro de outros
insumos, o preço de oferta desse produto aumentará ao longo do
tempo tanto mais ele tenha sido produzido.
Tal aumento no preço de oferta, no entanto, cria sérios problemas
para o capitalismo. Estes problemas surgem não por causa da
diminuição da taxa de lucro ou da queda em direção a um estado
estacionário, como temia Ricardo. Tais temores estão relacionados,
em todo caso, com as projeções de longo prazo. O aumento do
preço de oferta, na medida em que se traduz em um aumento do
preço, prejudica o valor do dinheiro, e essa é uma questão muito
séria e imediata para o capitalismo. Se os detentores de riqueza
acreditarem que o valor do dinheiro, em termos de mercadorias,
declinará com o tempo, ninguém irá reter riqueza em sua forma
dinheiro.
Pode-se pensar que, uma vez que todas as outras mercadorias têm
custos logísticos positivos, enquanto o dinheiro não tem nenhum,
uma mudança do dinheiro para alguma mercadoria como a forma de
manter a riqueza somente ocorrerá se alguma taxa mínima de
inflação no preço daquela mercadoria for esperada (para o qual
deve ocorrer primeiro e, portanto, ser esperado) que supere o seu
custo logístico; e se essa taxa de inflação limite não for atingida,
então não haverá nenhuma mudança do dinheiro para essa
mercadoria.
Mas dois pontos devem ser observados aqui. Primeiro, se algumas
pessoas esperam que a taxa de inflação exceda a taxa de custo
logístico de uma mercadoria, mesmo que a maioria não o faça,
então elas mudariam do dinheiro para aquela mercadoria; isso, no
entanto, forçaria o preço dessa mercadoria para cima e faria com
que mais algumas pessoas também passassem do dinheiro para
daquela mercadoria, devido às expectativas revisadas em relação
ao seu preço, e assim por diante. E se, devido ao aumento do preço
de oferta, ninguém espera que o preço da mercadoria diminua,
então um processo inflacionário assim iniciado eliminará o dinheiro
de seu papel de uma forma de riqueza.
Em segundo lugar, e mais importante, dentre terras agrícolas, a
massa de terras tropicais ocupa uma posição especial. Seu
tamanho é absolutamente fixo (na ausência de medidas de
“aumento de terreno”), mas produz uma gama de produtos para o
capitalismo que simplesmente não poderiam ser produzidos em
outros lugares, embora sejam de importância vital para ele. De fato,
a matéria-prima central da Revolução Industrial original que
impulsionou o capitalismo, o algodão cru, não poderia ser produzida
na metrópole, mas apenas nas regiões tropicais e subtropicais.
Consequentemente, à medida que a acumulação prossegue na
metrópole, o preço de oferta para uma gama de produtos passíveis
de produção na massa territorial tropical fixa aumentaria. A
consequente taxa de inflação excederia em muito qualquer taxa
limiar para uma mudança do dinheiro para mercadorias.
Qualquer aumento no preço de oferta é, portanto,
fundamentalmente incompatível com o papel do dinheiro como
forma de deter a riqueza. E, mesmo que guardar dinheiro para fins
de transação acarrete em possuir riqueza na forma dinheiro,
independentemente se mesmo por um momento fugaz, qualquer
coisa que elimine o dinheiro como forma de riqueza, ipso facto,
também elimina o dinheiro como meio de circulação e, assim, torna
uma economia monetária impossível. Portanto, esse aumento no
preço de oferta é fundamentalmente incompatível com uma
economia monetária.
É essencial para a viabilidade do sistema capitalista que esse
fenômeno do aumento do preço de oferta não possa se manifestar.
E é exatamente isso o que aconteceu ao longo da história do
capitalismo, razão pela qual os prognósticos ricardianos ou mesmo
as antecipações keynesianas nunca se materializaram de fato. Não
se materializaram não porque os rendimentos decrescentes são um
mito, mas porque o capitalismo recorreu a outros meios para
garantir que eles não se materializassem.
O imperialismo é um desses dispositivos que garante que o
fenômeno do aumento do preço de oferta não se manifeste. Com
efeito, como veremos, não é apenas um dispositivo possível, mas o
dispositivo tipicamente usado pelo capitalismo para esse propósito;
daí resulta que o imperialismo é imanente na própria forma dinheiro.
Vamos ver a razão e o modo pelos quais o imperialismo se torna
pertinente a toda essa questão.

II
Vamos discutir a agricultura antes de chegar às indústrias
extrativistas, cujo caso é similar. O tamanho fixo da massa de terra
tropical não seria um problema se o investimento no “aumento de
terreno” ou o progresso técnico de aumento da terra pudessem
ocorrer em grau suficiente para compensar o aumento do preço da
oferta. Mas isso normalmente precisa de investimento público. A
irrigação para o cultivo múltiplo nas regiões tropicais, como Marx
observou há muito tempo,4 requer o Estado, uma vez que a escala
de investimento excede, em muito, o que é possível ou mesmo
lucrativo para um produtor individual, que normalmente é um
pequeno produtor. Mesmo o progresso técnico de “aumento de
terreno” sob a forma de novas práticas, requer pesquisas que
somente o Estado pode levar a cabo e disseminar amplamente para
reduzir os riscos para os pequenos produtores. (Mesmo quando as
corporações multinacionais desenvolvem e disseminam novas
variedades de sementes e outros insumos que podem aumentar os
rendimentos, o grau em que essas inovações são adotadas
depende da disponibilidade de crédito subsidiado e de outros
insumos fornecidos pelo Estado).
Mas onde o Estado é obrigado a seguir o princípio de “solidez
financeira”, como era o caso dos países tropicais antes da
descolonização, quando o Estado tentava equilibrar seu orçamento,
e como novamente é o caso sob a globalização, quando a
“responsabilidade fiscal”, no sentido de uma proporção de deficit
fiscal/PIB de 3% ou menos, se tornou a “norma”, tais iniciativas por
parte do Estado se tornaram ainda mais evidentes por sua ausência.
A tendência espontânea sob o capitalismo (isto é, com exceção de
sua fase transitória de dirigismo pós-colonial) é evitar o “aumento de
terreno”.
Prevenir, portanto, que o aumento do preço de oferta se manifesta
assume, tipicamente, a forma da supressão da demanda ex post de
tais mercadorias, mesmo quando a demanda ex ante aumenta. O
não aumento da demanda ex post significa efetivamente que o
fenômeno do aumento do preço da oferta não se manifeste.
A supressão da demanda ex post pode em si ser feita de duas
maneiras: uma é por meio do que Keynes chamou de “inflação dos
lucros”, isto é, um aumento dos preços em relação à folha salarial
em dinheiro e à folha de rendimentos em dinheiro dos
trabalhadores; a outra é por meio do que se pode chamar de
“deflação da renda”, isto é, uma queda na folha salarial em dinheiro
e na folha de rendimentos em dinheiro dos trabalhadores para
determinados preços. O primeiro deles implica, mais uma vez, uma
ameaça ao valor do dinheiro e, portanto, à estabilidade do sistema
monetário.
É verdade que se pode imaginar uma situação em que a inflação
dos lucros é localizada, sem ameaçar as moedas metropolitanas,
isto é, na qual o aumento dos preços em relação aos salários em
dinheiro ocorre particularmente em um país ou conjunto de países
não metropolitanos, cuja taxa de câmbio se deprecia diante de
moedas metropolitanas. Mas mesmo essa localização da inflação
dos lucros minaria, necessariamente, o valor do dinheiro local e,
consequentemente, destruiria o sistema monetário local; e, além
disso, uma fuga de dinheiro para mercadorias dentro desse conjunto
de países poderia aumentar os preços de algumas mercadorias,
mesmo em termos de moedas metropolitanas e, portanto, causar
problemas para o valor do dinheiro na metrópole. Assim, mesmo
que ocorra tal inflação dos lucros, o meio mais favorável de suprimir
a demanda ex post no capitalismo, para impedir a manifestação do
aumento do preço da oferta, é a deflação da renda. Toda uma gama
de instrumentos é usada para garantir que a demanda ex post das
mercadorias com o aumento do preço da oferta seja suprimida, por
meio de uma diminuição na renda em dinheiro dos trabalhadores.5
Surge a questão: trabalhadores de onde? A preservação do valor do
dinheiro na metrópole, ao impedir qualquer manifestação do
aumento do preço da oferta, pode ser garantida pela imposição da
deflação de renda sobre qualquer segmento da população
trabalhadora que demande uma mercadoria em particular. Em
outras palavras, a deflação de renda pode ser imposta aos
trabalhadores tanto na metrópole quanto na periferia (ou em
ambos); nos dois casos, serviria a seu propósito. Mas parece irreal
imaginar que os trabalhadores da periferia seriam poupados
enquanto os da metrópole fossem pressionados. Sobretudo, a
estabilidade social do capitalismo metropolitano exigiria exatamente
o oposto disso, a saber, transferir o peso da deflação de renda o
máximo possível para a periferia. Daí surge a conclusão: o
capitalismo metropolitano impõe necessariamente a deflação de
renda sobre os trabalhadores da periferia, até mesmo sobre os
pequenos produtores cujos produtos estão sujeitos ao aumento do
preço da oferta ex ante (ou seja, a taxas inalteradas de ganhos em
dinheiro para eles).
O fato de que o capitalismo metropolitano necessariamente impõe a
deflação de renda aos trabalhadores da periferia permanece
inalterado, não importa de qual fase do capitalismo estamos falando
e não importa o que mais aconteça nessa fase. É uma característica
determinante do imperialismo. Em um mundo exclusivamente
capitalista, onde até mesmo as atividades de “rendimentos
decrescentes” estão dentro do setor capitalista, como a situação que
Ricardo havia visualizado, o termo “imperialismo” não terá
significado; a deflação salarial dentro do capitalismo será então a
única forma de deflação de renda. Mas quando existem outros
modos de produção e classes com uma existência espacialmente
distinta (como na massa territorial tropical ou na periferia em geral,
distinta do capitalismo metropolitano que se localiza principalmente
nas regiões temperadas), então a imposição da deflação de renda
também tem uma dimensão espacial; e essa espacialidade tem sido
tradicionalmente referida e capturada pelo termo imperialismo.
No período atual, em que o peso das finanças aumentou, a urgência
em preservar o valor do dinheiro tornou-se ainda maior. Portanto, a
necessidade de impor a deflação de renda em geral, e
principalmente sobre os trabalhadores da periferia, tornou-se ainda
mais urgente. O imperialismo, longe de desaparecer, tornou-se
ainda mais significativo. Que um segmento da burguesia da periferia
tenha se integrado ao capital metropolitano, que alguns países da
periferia tenham experimentado um alto “crescimento”, que os
trabalhadores da metrópole agora estejam sofrendo uma deflação
de renda de forma muito mais acentuada do que antes, são
diferenças que devem ser registradas com relação ao mundo
capitalista contemporâneo em contraste com seu passado. Mas,
depois de registrá-las, devemos também deixar claro que elas não
fazem um pingo de diferença para a realidade do imperialismo, isto
é, para o fato de que o capital metropolitano impõe a deflação de
renda aos trabalhadores da periferia.
Para alguns, pode até parecer que essa realidade do imperialismo
está em foco apenas quando estamos olhando para a esfera
limitada da agricultura, como temos feito até agora. Além do fato de
que, no cenário global, essa esfera está longe de ser limitada, tudo
o que foi dito até agora sobre a agricultura, especialmente sobre os
produtos da massa territorial tropical, vale igualmente para as
indústrias extrativistas. A imposição da deflação de renda sobre os
trabalhadores da periferia é também um meio de garantir que o
problema do aumento do preço da oferta não se manifeste em
relação aos produtos das indústrias extrativistas.
As indústrias extrativistas, no entanto, têm uma especificidade
adicional, a saber, ao contrário de uma massa territorial cultivada
por um grande número de camponeses, os minerais são
encontrados em locais específicos, cuja propriedade pode ser
facilmente monopolizada. Portanto, o capital metropolitano sempre
tenta monopolizar essa propriedade. Em um período de rivalidade
interimperialista, há rivalidade entre os diferentes segmentos do
capital metropolitano para adquirir a propriedade não apenas das
fontes minerais comprovadas, mas até mesmo de fontes em
potencial, como havia argumentado Lenin. Mas em períodos como o
presente, a globalização, levando à formação de um capital
financeiro internacional (distinto de um mero acordo internacional
entre capitais financeiros nacionais, como Karl Kautsky havia
visualizado), silencia as rivalidades interimperialistas em geral,
incluindo a rivalidade pela propriedade e controle sobre fontes reais
e potenciais de riqueza mineral. É no fato de estar sob o regime
neoliberal, em vez de sob o controle do Estado da periferia que
geralmente se colocam todos os matizes do capital metropolitano.

III
O antigo imperialismo, ou seja, o imperialismo com colônias, usou o
Estado colonial para impor a deflação de renda aos trabalhadores
da periferia, de modo que sua absorção do que a própria periferia
produzia pudesse ser reduzida e as mercadorias, assim liberadas,
pudessem ou ser levadas diretamente à metrópole, ou abrir caminho
para a produção de outras mercadorias demandadas pela
metrópole, de forma que as terras até então utilizadas para sua
produção pudessem ser transferidas. As duas principais formas de
deflação da renda foram: o sistema de tributação colonial, com
grande parte da receita sendo usada para comprar essas
mercadorias as quais acumuladas gratuitamente pelo poder colonial
como a “drenagem de excedente” mencionada anteriormente; e a
criação de desemprego, através da destruição da produção local
pelas importações da metrópole, isto é, o processo de
“desindustrialização” mencionado anteriormente. A
“desindustrialização” também liberou diretamente as mercadorias
até então absorvidas localmente, como as matérias-primas usadas
na produção têxtil e alimentícia, que haviam entrado na subsistência
dos pequenos produtores, agora deslocados.
O antigo imperialismo tinha a “vantagem” de que a principal potência
metropolitana da época, a Grã-Bretanha, podia manter sua
economia aberta aos bens dos países então recém-industrializados
sem se endividar (ao contrário, tornou-se o maior exportador de
capitais nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial). Por pelo
menos quatro décadas, até 1928, a Índia teve o segundo maior
excedente de exportação do mundo (atrás apenas dos Estados
Unidos); e isso apesar das importações de bens que causaram
desindustrialização doméstica. Mas esse excedente de exportação
foi totalmente apropriado pela Grã-Bretanha, não apenas para pagar
suas dívidas com a Europa continental, América do Norte e regiões
de recente povoamento europeu, mas também para permitir-lhe a
exportação de capital para essas regiões.6 Isso contrasta com a
posição da principal potência metropolitana de hoje, os Estados
Unidos, que também é o país mais endividado do mundo, com uma
dívida que cresce rapidamente. A diferença entre as duas situações
emerge porque os mercados e “drenagens” coloniais não podem
mais desempenhar o mesmo papel de antes, embora, sem dúvida,
os fenômenos de usurpação do mercado e drenagem de excedente
continuem, este último na forma, inter alia, de superlucros do
monopólio tecnológico, agora institucionalizado pelo Acordo Trips
(Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados ao Comércio, na sigla em inglês).
A importância reduzida da drenagem de excedente e dos mercados
da periferia surge não apenas pela descolonização política, mas
também porque a possibilidade de maior usurpação desses
mercados que já foram penetrados é limitada, enquanto as atuais
necessidades do capitalismo metropolitano são enormes.
No capitalismo contemporâneo, em contraste com o período
colonial, a aplicação de políticas neoliberais é o principal meio para
impor a deflação de renda aos trabalhadores da periferia. Existem
pelo menos cinco maneiras óbvias pelas quais essas políticas
provocam deflação de renda para os trabalhadores da periferia. A
mais óbvia é por meio do aumento massivo das desigualdades de
renda. As grandes reservas de força de trabalho que existem na
periferia, em países como Índia, China, Indonésia e Bangladesh,
longe de estarem esgotadas, aumentam em tamanho relativo, o que
mantém baixo não apenas os salários reais dos trabalhadores da
periferia, mas também dos trabalhadores da metrópole. Isso ocorre
porque os trabalhadores da metrópole agora têm que concorrer com
os da periferia, devido à disposição do capital metropolitano, uma
disposição que não existia anteriormente, em se mover rumo à
periferia, estabelecendo unidades de produção para atender não às
necessidades locais, mas sim às necessidades metropolitanas. O
vetor dos salários reais mundiais, portanto, não mostra nenhum
aumento; até diminui.7 Mas a produtividade do trabalho aumenta em
todos os lugares, resultando em um aumento de uma parte do
excedente. Isso impõe a deflação de renda ao povo trabalhador, ao
mesmo tempo em que cria uma tendência à “superprodução” global.
A segunda maneira pela qual a deflação de renda lhes é imposta
sob o neoliberalismo é por meio das medidas fiscais do governo.
Dado o fato de as economias serem abertas aos fluxos globais de
capital, incluindo os fluxos financeiros globais, os governos
concorrem entre si para oferecer concessões fiscais ao capital
globalizado, a fim de seduzi-lo para a instalação de plantas em seus
solos para promover o “desenvolvimento”. Ao mesmo tempo, uma
vez que a “responsabilidade fiscal” impõe um limite ao tamanho
relativo do deficit fiscal, as concessões fiscais ao capital são
necessariamente equiparadas aos cortes nas despesas sociais, nas
transferências para os pobres, nos subsídios alimentares e no
fornecimento público de serviços essenciais, tais como saúde e
educação, todos elementos que prejudicam os trabalhadores, e
todos elementos que reduzem, em termos reais, o poder de compra
em suas mãos. A deflação de renda, assim efetuada, restringe o
consumo de bens essenciais como os alimentos, de modo que o
uso da massa territorial limitada para atender às demandas dos
ricos se torna possível sem colocar em risco o valor do dinheiro; o
que acompanha esse processo, no entanto, é o aumento da fome
entre as pessoas.
Os dados a seguir ilustram o ponto. Considerando o mundo como
um todo, entre o triênio 1979-1981 e o triênio 1999-2001, a
produção per capita de cereais (produção média anual dividida pela
população no meio do ano) caiu de 355 kg para 343 kg. (Os cálculos
para o triênio 2015-2017 também indicam 345 kg).8 Com a renda per
capita mundial em alta, uma vez que a elasticidade da renda da
demanda por cereais é positiva e como não houve uma significativa
redução de estoques entre 1999-2001 em comparação com 1979-
1981, seria de esperar um aumento significativo nos preços dos
cereais durante essas duas décadas e, portanto, também uma
mudança nos termos de troca em favor dos cereais com relação à
manufatura. Na verdade, porém, esses termos de troca para cereais
diminuíram em 46% entre 1979-1981 e 1999-2001!9 A virulência da
deflação de renda imposta aos trabalhadores, especialmente na
periferia, pode ser medida a partir disso.
A terceira maneira é por meio da redução da participação dos
pequenos produtores no valor agregado adicionado ao longo de
toda a cadeia produtiva, desde a colheita até o mercado de varejo.
Isso ocorre porque os pequenos comerciantes com pouco poder de
negociação, e as agências governamentais de compra e venda, que
antes existiam para dar uma participação “justa” aos produtores,
estão sendo cada vez mais substituídas por monopólios capitalistas,
incluindo corporações multinacionais.
A quarta maneira é por meio da continuação do processo colonial de
deslocamento forçado de pequenos produtores e comerciantes
locais por grandes empresas, incluindo corporações multinacionais.
O fenômeno da “desindustrialização” agora se espalha também para
o setor terciário, em que o Walmart e outras corporações desse tipo
precipitam uma nova rodada de deslocamento forçado combinado
com desemprego. Tal destino também aguarda artesãos,
pescadores e uma série de pequenos produtores.
A quinta e a última maneira é, sob muitos aspectos, a mais
significativa, a saber, o desencadeamento de um processo de
acumulação primitiva de capital em relação ao campesinato, no qual
o grande capital, em nome de “desenvolvimento” e “infraestrutura”,
toma para si não apenas as terras comuns ou terras do governo,
mas também as terras dos camponeses a preços “de liquidação”. A
imposição da deflação de renda ao campesinato afeta não apenas o
lado da demanda, mas também o lado da oferta de produtos
agrícolas; no entanto, isso significa apenas que, para a preservação
do valor do dinheiro, a pressão sobre a demanda deve ser ainda
maior.
A “globalização”, portanto, acelera acentuadamente o processo de
separação dos pequenos produtores de seus meios de produção.
Ao mesmo tempo, também aumenta o tamanho do exército
industrial de reserva global e ajuda a garantir que ele não se
esgote.10

IV
A própria existência de um conjunto de força de trabalho
desempregada e subempregada atua como uma medida da
deflação de renda; mas também impede qualquer possibilidade de
aumento salarial em dinheiro, um obstáculo que é vital para a
preservação do valor do dinheiro.11
A discussão mais comum sobre o papel do exército de reserva na
tradição marxista tende a enfatizar a restrição que este exerce sobre
os salários reais e, portanto, o fato de manter o processo de
exploração. Foi assim que o próprio Marx discutiu o assunto. Mas
enquanto na teoria de Marx as mudanças nos salários reais e em
dinheiro caminhavam juntas, uma vez que ele focava em um
universo com “dinheiro-mercadoria”, em um mundo com dinheiro-
crédito, essas duas mudanças não precisam caminhar juntas. Não é
suficiente, em tal mundo, que exista um fator restritivo, do ponto de
vista do capital, sobre o nível dos salários reais; também deve haver
um fator restritivo ao nível dos salários em dinheiro.
O exército de reserva em tal mundo, portanto, desempenha o papel
de estabilizar o sistema monetário, mantendo o nível dos salários
em dinheiro baixo. Não apenas preserva o processo de apropriação
da mais-valia; também mantém o sistema monetário em
funcionamento, para tanto, é claro, o tamanho do exército de
reserva deve ser grande o suficiente. Na era da globalização,
quando a mobilidade internacional do capital vincula os salários dos
trabalhadores da metrópole aos dos trabalhadores da periferia, o
próprio exército de reserva desempenha um papel global. Mesmo
que não esteja localizado na própria metrópole, ele desempenha um
papel global de manter baixo o vetor dos salários em dinheiro em
todos os países, inclusive na metrópole, transmitindo estabilidade ao
sistema monetário metropolitano. A manutenção de um exército de
reserva global complementa o processo de deflação de renda e é
parte integral da operação do imperialismo.
O exército de reserva global é, geralmente reproduzido de maneira
espontânea e até aumentado em tamanho relativo na era da
globalização. As crescentes desigualdades de renda global elevam,
ceteris paribus, a taxa de crescimento da produtividade do trabalho.
Isso ocorre porque os ricos, em média, não apenas demandam
menos produtos intensivos em trabalho do que os pobres, mas
também passam a consumir produtos cada vez mais novos com
mais rapidez, os quais são geralmente cada vez menos intensivos
em termos de trabalho. Portanto, sob a globalização, para qualquer
taxa de crescimento de produção, a taxa de crescimento do
emprego sofre uma desaceleração.
É verdade que a taxa de crescimento da produção em si foi maior
em algumas economias periféricas na era da globalização, mas
mesmo isso não tem sido suficiente para impedir um aumento
relativo nas reservas de trabalho, como sugere o termo “crescimento
sem emprego” usado no contexto de economias como a Índia.12
Uma fonte ainda mais importante para reabastecer e ampliar o
exército de reserva é, como vimos, o processo de acumulação
primitiva de capital, que se intensifica na era da globalização e lança
um vasto número de pequenos produtores deslocados forçosamente
em um mercado de trabalho no qual o aumento da demanda por
trabalho não é rápido o suficiente.
Uma implicação do processo acima referido deve ser observada. O
não esgotamento do exército de reserva nas economias periféricas
é importante não apenas para as burguesias dessas economias,
mas também para o capital metropolitano. Conclui-se que é ingênua
a crença de que, com o crescimento das economias periféricas, um
estado de escassez de força de trabalho surgirá mais cedo ou mais
tarde, colocando uma pressão ascendente sobre os salários e,
portanto, eliminando a pobreza: qualquer desfecho desse tipo estará
associado a um colapso do sistema monetário na metrópole, ao qual
ela resistirá ferozmente, juntamente com a grande burguesia local
que agora está integrada à metrópole.

V
O imperialismo atende a toda uma gama de exigências do
capitalismo, tal como adquirir mercados externos e garantir o
suprimento de matérias-primas, sem as quais, como apontou Harry
Magdoff,13 não haveria nenhum tipo de manufatura, por menor que
fosse sua participação no valor bruto da produção manufatureira.
Todos esses requisitos persistem na era da globalização, mas um
em particular toma a linha de frente, precisamente por causa da
presença abrangente das finanças, e que diz respeito à preservação
do valor do dinheiro. Um conjunto de processos associados ao
capitalismo na era da globalização, que não estão confinados à
metrópole, mas afetam profundamente a periferia, trabalham
espontaneamente para esse fim. O processo intensificado de
acumulação primitiva de capital (que, como Rosa Luxemburgo
observou, não se limita apenas à pré-história do capitalismo, mas o
acompanha ao longo de sua história); o reabastecimento e a
ampliação das reservas de trabalho na periferia devido a essa
acumulação primitiva e também devido às altas taxas de
crescimento da produtividade do trabalho no segmento capitalista; a
busca de políticas neoliberais que desencadeiam um processo de
deflação de renda muito diferente do que se segue por causa do
aumento no tamanho relativo do exército de reserva global; tudo
isso faz parte desse fenômeno. Todos esses processos que
envolvem a periferia em sua rede constituem elementos-chave do
imperialismo contemporâneo. Todos eles constituem imposições
sobre os trabalhadores da periferia contra os quais são impotentes
para agir, apesar da descolonização política, a menos que
desvinculem suas economias de um regime de capital liberalizado e
fluxos comerciais.
Argumenta-se frequentemente que, durante os anos 1950, 1960 e
1970, quando os Estados Unidos, como principal potência
capitalista, de fato projetaram a derrubada de governos que
tentavam adquirir maior controle sobre seus recursos nacionais às
custas das corporações multinacionais, de Mossadegh a Arbenz e
Allende, o imperialismo era um fenômeno real; mas agora não seria
mais. Em outras palavras, embora o imperialismo fosse um termo
significativo anteriormente, não apenas na era colonial, mas mesmo
nas décadas do pós-guerra, não seria mais agora.
Nosso argumento é precisamente o oposto disso. O imperialismo
tornou-se visível porque os regimes dirigistas que surgiram nas
antigas colônias após a descolonização procuraram, de diversas
maneiras, livrar-se de seu jugo. Procuraram adquirir maior controle
sobre os recursos nacionais; abandonaram o princípio de “solidez
financeira”, mesmo quando aumentaram os impostos sobre
capitalistas nacionais e estrangeiros, usando o setor público como
uma alternativa no caso de resistência capitalista e de não
cooperação; realizaram investimentos em “aumento de terras” e
progresso técnico sob a égide do setor público, o que evitou a
necessidade de qualquer deflação de renda; e comprometeram o
Estado com a tarefa de fornecer serviços essenciais. Tudo isso
significou um afrouxamento do estrangulamento imperial, razão pela
qual o imperialismo era tão visível na oposição a esses regimes.
Porém, com a imposição de políticas neoliberais na era da
globalização, o escopo para qualquer ação independente por parte
do Estado-nação contra as finanças globalizadas que poderiam
deixar seus territórios quando bem entendessem, ficaram
significativamente reduzidas. Em outras palavras, o Estado do
terceiro mundo passa por uma mudança da era dirigista para a era
neoliberal: de ser um Estado (mesmo que um Estado burguês) que
aparentemente está acima de todas as classes, intervindo para o
“bem social” e, portanto, em algumas ocasiões, agindo até mesmo
em nome dos oprimidos, a um Estado que promove quase
exclusivamente os interesses da oligarquia corporativo-financeira,
integrada ao capital globalizado, com o argumento de que seus
interesses são concomitantes com o “interesse social”. Com essa
mudança na natureza do Estado, de dirigista para neoliberal,
colocada em prática em toda parte por meio do processo de
globalização, a necessidade de qualquer intervenção imperialista
explícita desaparece (exceto para a aquisição de controle direto
sobre o petróleo, como no Iraque). Em suma, a invisibilidade do
imperialismo hoje significa que ele se tornou ainda mais poderoso,
não que desapareceu.

VI
O poder do imperialismo não se limita à mera possibilidade de fuga
de capitais. A globalização tende a minar, sistematicamente, todas
as possibilidades de resistência na periferia contra a hegemonia do
capital financeiro internacional. O crescimento do tamanho relativo
do exército de reserva dificulta a ação sindical; e os direitos
trabalhistas são prejudicados em nome da introdução da
“flexibilidade do mercado de trabalho” para atrair capital para
impulsionar o “desenvolvimento”. Também gera privatização de
unidades do setor público, “terceirização” de trabalho para o setor
não organizado, substituição de trabalho ocasional por
trabalhadores em tempo integral, mudança para “produção
doméstica” com salários extraordinariamente baixos, os quais fazem
com que a resistência dos trabalhadores organizados seja
dificultada. Simultaneamente, a expropriação do campesinato e a
deflação de renda imposta a ele também tendem a tornar a ação
camponesa muito mais difícil. As duas “classes básicas”, portanto,
ficam enfraquecidas.
Mas isso significa apenas que as formas tradicionais de resistência
de classe se tornam mais difíceis de replicar, e novas formas de
resistência devem ser desenvolvidas. Para distrair-se das
dificuldades econômicas que impõem ao povo sob a globalização,
os regimes neoliberais procuram encontrar adereços políticos para
sua sobrevivência, promovendo distintas formas de conflitos
sectários na sociedade, sejam eles étnicos, religiosos, culturais ou
de outra natureza. Ao fazê-lo, contribuem para a desintegração da
vida social. Tal tendência, no entanto, também cria as condições
para a derrubada do neoliberalismo, e um movimento através de
estágios em direção à transcendência do capitalismo, à medida que
deixa cada vez mais claro para o povo que a escolha, como disse
Rosa Luxemburgo, é entre o socialismo e a barbárie.
1
Este artigo foi autorizado a ser incluído neste livro pelos editores
da revista Monthly Review. Nós somos profundamente gratos aos
autores e editores da revista. A versão original do texto pode ser
encontrada em Patnaik, U. and Patnaik, P. “Imperialism in the era of
globalization”, Monthly Review, 67(3), julho-agosto de 2015.
2
Sobre o papel de tal “drenagem” e “desindustrialização”, ver
Bagchi, A. K. Perilous passage: the global ascendancy of capital,
Oxford University Press, Delhi, 2006; e Patnaik, U. “The free lunch:
Transfers from the tropical colonies and their role in capital formation
in Britain during the Industrial Revolution”, in: K. S. Jomo (ed.)
Globalization under hegemony: the long twentieth century, Oxford
University Press, Delhi, 2006, p. 30-70.
3
Para uma estimativa recente do movimento secular em termos de
comércio, ver Chakraborty, S., “Movements in the terms of trade of
primary commodities vis-à-vis manufactured goods: a theoretical and
empirical study”, Ph. D. Thesis, Center for Economic Studies and
Planning, Jawaharlal Nehru University, Nova Delhi, 2011.
4
Karl Marx, “The british rule in India” [A dominação inglesa na Índia],
The New York Daily Tribune, 25 de junho, 1853; reimpresso em
Iqbal Husain (ed.), Marx on India, Tulika Books, Nova Delhi, 2006.
5
Para uma discussão no contexto da Índia, ver Patnaik, U.,
“Deflationary neo-liberalism: an Indian perspective” in: P. Bowles, H.
Veltmeyer et al. (eds.), National perspectives on globalization: a
critical reader. Londres, Palgrave, 2007.
6
Ver Patnaik, U., “India in the world economy 1900 to 1935: the
Inter-war depression and Britain’s demise as world capitalist leader”,
Social Scientist, Volume 42, n. 1-2, Janeiro-Fevereiro, 1914.
7
Para os Estados Unidos, por exemplo, Joseph Stiglitz diz que:
“ajustado pela inflação, os salários reais estagnaram ou caíram; a
renda de um típico trabalhador homem em 2011 (32.986 dólares)
era menor do que em 1968 (33.880 dólares)”, New York Times, 13
de janeiro de 2013.
8
Os dados de cereais foram obtidos da FAO.
9
Agradecemos ao dr. Shouvik Chakraborty por este exemplo.
10
A discussão que segue se beneficiou muito do artigo de Foster, J.
B., McChesney, R.W., e Jonna, R. J., intitulado “The global reserve
army of labour and the new imperialism”, Monthly Review, vol. 63,
edição 6, novembro, 2011.
11
A discussão que segue se baseia em Patnaik, P., The value of
money, Columbia University Press, Nova York, 2009.
12
Entre 2004-2005 e 2009-2010, por exemplo, quando o PIB da
Índia estava aparentemente crescendo a uma taxa superior a 7% ao
ano, o número de trabalhadores cujo “status corrente” era estar
empregado cresceu a uma taxa de 0,8%, de acordo com a Pesquisa
Nacional por Amostra, o que é muito inferior à taxa de crescimento
da oferta de força de trabalho.
13
Harry Magdoff, The age of imperialism, Monthly Review Press,
Nova York, 1969.
EXPLORAÇÃO E
SUPEREXPLORAÇÃO NA TEORIA
DO IMPERIALISMO
JOHN SMITH

Imperialismo e seus negadores


“O comunismo não é uma doutrina, mas um movimento; procede
não de princípios, mas de fatos” (Engels, 1977, p. 291). As grandes
diferenças internacionais na taxa de exploração, a enorme mudança
global da produção e do centro de gravidade da classe trabalhadora
industrial para países e regiões onde a exploração é mais intensa, a
dependência dramaticamente aumentada de empresas com sede
em países imperialistas (e, da mesma forma, de prosperidade e paz
social nesses países) sobre os rendimentos dessa exploração –
esses são os fatos mais importantes sobre o chamado capitalismo
neoliberal a partir dos quais devemos avançar.
Taxas extremas de exploração nas fábricas de roupas de
Bangladesh, nas linhas de produção chinesas, nas plantações de
chá e café e em outros lugares – muito mais altas do que as
suportadas pela maior parte dos trabalhadores nos países
imperialistas – são um fato palpável e diretamente observável,
experimentado todos os dias em carne e osso por centenas de
milhões de trabalhadores em países com baixos salários. Não
precisamos de uma teoria para saber disso, precisamos apenas
remover nossas vendas e abrir os olhos. Mas nós precisamos sim
de uma teoria para entender o que podemos ver, e descobrir as
consequências que decorrem disso.
Não contradiz o postulado fundamental da lei do valor de Marx para
a qual a forma salarial oculta a relação intrinsecamente exploradora
entre capitalista e trabalhador, ou o princípio da dialética materialista
de que a oposição entre essência e aparência é uma lei de todos os
sistemas dinâmicos que contêm contradições.14 O que torna o
imperialismo e a superexploração imediatamente visíveis – mesmo
que o visível seja apenas a ponta de um iceberg – é precisamente a
violação sistemática da igualdade entre os proletários e,
consequentemente, uma violação sistemática da lei do valor.
Na era da produção globalizada, ainda mais do que nos estágios
anteriores da evolução imperialista do capitalismo, os trabalhadores
não são igualmente móveis e livres para vender sua força de
trabalho pelo maior lance. A remoção de impedimentos aos fluxos
transfronteiriços de produtos básicos e capital estimulou a migração
da produção para países de baixos salários, mas as fronteiras
militarizadas e a crescente xenofobia tiveram o efeito oposto na
migração de trabalhadores desses países – não a impedindo por
completo, mas inibindo seu fluxo e reforçando o status vulnerável e
de cidadãos de segunda classe dos migrantes. E, assim, as fábricas
atravessam livremente a fronteira EUA-México e passam com
facilidade pelos muros da “Fortaleza Europa”, assim como as
mercadorias produzidas nelas e os capitalistas que as possuem,
mas os seres humanos que trabalham nelas não têm direito de
passagem. Isso é um paradoxo da globalização – um mundo sem
fronteiras para tudo e todos, exceto para os trabalhadores.
As disparidades salariais globais entre países imperialistas e países
em desenvolvimento, geralmente maiores que 10 para 1 e nunca
menores que 3 para 1, em grande parte resultantes da supressão da
livre circulação de trabalhadores, fornecem um reflexo distorcido das
diferenças globais na taxa de exploração (simplesmente, a relação
entre o valor gerado pelos trabalhadores e o que eles recebem em
salários). A mudança em grande escala da produção para países de
baixos salários no quarto de século que levou à crise financeira
mundial, impulsionada pela arbitragem laboral global – isto é a
redução dos custos de produção e o aumento das taxas de lucro ao
substituir os trabalhadores relativamente bem remunerados no país
sede por trabalhadores de baixos salários no estrangeiro –, significa
que os lucros das empresas sediadas na Europa, América do Norte
e Japão, o valor de todos os tipos de ativos financeiros derivados
das quais se derivam esses lucros e os padrões de vida dos
cidadãos dessas nações tornaram-se altamente dependentes das
taxas mais altas de exploração dos trabalhadores das nações de
baixos salários. Portanto, a globalização neoliberal deve ser
reconhecida como um novo estágio imperialista do desenvolvimento
capitalista, no qual o imperialismo é definido por sua essência
econômica: a exploração do trabalho vivo do Sul pelos capitalistas
do Norte. Enquanto isso, os capitalistas do Sul dirigem as
maquiladoras da mesma forma que o sádico traficante de escravos
que bate com o látego nas costas daqueles. Mas ele não é o
capitão, para encontrá-lo, temos que ir até o topo da cadeia de valor
que está localizada na Europa, América do Norte e Japão.
Em vez da superação do imperialismo e da convergência entre
países “desenvolvidos” e países eternamente “em
desenvolvimento”, o imperialismo hoje se manifesta em um sistema
global de racismo, opressão nacional, humilhação cultural,
militarismo e violência estatal semelhante ao apartheid, que nega
seu status formal de cidadãos livres de sua nação e do mundo e
transformou seus países em reserva de força de trabalho
superexplorável para alimentar as corporações transnacionais e
seus agentes locais.
Nada disso está oculto. O caráter abertamente explorador do
capitalismo do apartheid na África do Sul foi exatamente isso,
aberto, explícito, evidente para todos que tivessem olhos para ver; e
isso não é menos verdade no capitalismo imperialista do século XXI.
A violação sistemática da igualdade entre os proletários afeta
profundamente a operação global da lei do valor. Como poderia ser
de outro modo, dado que as relações de valor são relações sociais?
A violação sistemática da igualdade entre proletários é
incontestável, assim como também o são as taxas divergentes de
exploração que necessariamente decorrem disso. Ainda assim,
muitos marxistas insistem dogmaticamente que as relações de valor
da economia global contemporânea são idênticas às do mercado
idealizado analisado por Marx em sua busca por uma “teoria geral”
do capital, e que nenhuma das hipóteses simplificadoras que ele fez
para esse fim precisam ser ajustadas.15
A teoria de Marx fornece as chaves essenciais necessárias para
revelar a relação exploradora e antagônica que está oculta na
aparência superficial de liberdade e igualdade entre comprador e
vendedor. Mas o que temos aqui é uma inversão perversa disso: o
uso da teoria de Marx não para revelar o que está oculto, mas para
ocultar o que é bastante visível para qualquer observador não
instruído, mas sem preconceitos.
A negação do imperialismo marxista vem em diferentes tonalidades.
William Robinson e David Harvey declaram abertamente que a era
do imperialismo acabou e que o termo é obsoleto. Muitos outros
evitam o assunto o máximo que podem e, quando não o
conseguem, evitam se referir ao imperialismo pelo nome, preferindo
eufemismos anódinos como “centro e periferia” ou “desenvolvidos e
em desenvolvimento”. Por exemplo, Robert Brenner, para quem a
mudança global de produção para países de baixos salários
significou “enormes, mas frequentemente, redundantes aumentos
de capacidade de fabricação ao mercado mundial, que tendem a
reduzir os preços e ganhos globais” (Brenner, 2009, p. 9) – mas não
é uma nova fonte de superlucros para as empresas transnacionais
estadunidenses e europeias.
E há aqueles que continuam a descrever a economia capitalista
global e suas principais empresas e nações como imperialistas, mas
negam a relevância ou inclusive a existência das diferenças
internacionais na taxa de exploração. The Global Class War [A
guerra de classes global], um artigo da revista Catalyst, é um
exemplo recente da última dessas tendências. Nele, Ramaa
Vasudevan critica dois livros recentes, incluindo um escrito por mim
(Smith, 2016), nos quais se propõe o reconhecimento da realidade
da superexploração e a procura de um conceito teórico para ela.16
Nas palavras dela,
Um argumento que foi apresentado recentemente [...] é o de que os países
capitalistas avançados extraem superlucros imperialistas através da submissão
dos trabalhadores da periferia à superexploração. O imperialismo
estadunidense, nessas formulações, sujeita sistematicamente trabalhadores
nos EUA e trabalhadores em Bangladesh, China e México a diferentes taxas
de exploração. Os trabalhadores dos EUA enfrentam uma taxa mais baixa e
essa taxa mais baixa depende da superexploração dos trabalhadores nos
outros países. Em vez dos trabalhadores de todo o mundo encontrarem uma
causa comum contra as investidas do capital, esses argumentos colocam
trabalhadores nos EUA e trabalhadores na periferia em posições
estruturalmente separadas, e também implicam os trabalhadores dos EUA nos
mecanismos de renda imperialistas. (Vasudevan, 2019, p. 112)
Apesar de sua imprecisão com relação: às expressões “depende”,
“estruturalmente separadas” e “mecanismos de renda imperialista”
que ficam abertos a diferentes interpretações; a considerar os “EUA”
como “EUA e outros países imperialistas”; à condição de que
“trabalhadores em Bangladesh, China” etc. se refiram
especificamente aos cerca de meio bilhão dos que trabalham nos
níveis de baixos salários das cadeias de valor globais; e com o
acréscimo de que essa iteração global de dividir e conquistar tem
dinâmica muito diferente em tempos de crise, como agora; isso
resume adequadamente minha visão. O que ela contrapõe a isso:
À medida que o capital corporativo liderado pelos EUA se expande e estreita
sua rede de controle através das fronteiras para explorar direta ou
indiretamente trabalhadores com salários mais baixos na América Latina, Ásia
e África, ele tem à sua disposição uma reserva de trabalho maior, da qual a
mais-valia pode ser extraída e reivindicada. O acesso a esse vasto e crescente
conjunto global de mão de obra e a crescente concorrência entre os
trabalhadores deste grupo permitem que o capital corporativo dos EUA
aumente a taxa geral de exploração. Esse é o verdadeiro significado da
expansão global do capital corporativo dos EUA e da arbitragem global do
trabalho. (Vasudevan, 2019, p. 130)
O que é “a taxa geral de exploração”? Ela se refere à média global?
Se sim, isso implica que a taxa de exploração difere em todo o
mundo. Ou ela quer dizer que existe apenas uma “taxa geral de
exploração” e quaisquer variações são minúsculas e insignificantes?
Vasudevan evita essas perguntas óbvias, embora a passagem a
seguir sugira que ela acredita na segunda opção:
Os defensores da tese da superexploração têm razão em apontar para a
degradação absoluta das vidas e dos meios de subsistência dos trabalhadores
na periferia. Eles também têm razão em chamar a atenção para o impacto da
expansão do exército de reserva global do trabalho a serviço do capital
corporativo. Mas o verdadeiro significado da globalização do capital é que ele
reforçou um aumento na taxa global de exploração. (Vasudevan, 2019, p. 135)
Em outras palavras, se os trabalhadores nas fábricas de roupas de
Bangladesh ou nas linhas de produção chinesas estão sujeitos a
uma taxa de exploração mais alta do que os trabalhadores nos
países imperialistas, isso não tem importância, não se deve ser
tomado em consideração. De fato, até mesmo fazer perguntas sobre
isso é “colocar os interesses dos trabalhadores de baixa renda na
periferia contra os trabalhadores dos Estados Unidos” (Vasudevan,
2019, p. 110).17
Este é um argumento curioso. Pela mesma lógica, não devemos
investigar a desigualdade de gênero, por medo de colocar os
interesses das mulheres contra os dos homens; nem deveríamos
reconhecer a discriminação racial, por medo de jogar negros contra
brancos – embora a violação da igualdade entre os trabalhadores
resultante da divisão e conquista imperialista, refletida nas
diferenças no preço da força de trabalho, seja muito mais grave
daquela que resulta do racismo e da opressão das mulheres nos
países (e o racismo, é claro, é fundamentalmente uma expressão do
imperialismo).18 Então, por que Vasudevan ignora a estrutura de
apartheid do mercado global de trabalho, suas conexões óbvias com
o imperialismo e suas grandes implicações para o funcionamento da
lei do valor? Porque, suspeitamos, ela teme as implicações de
reconhecer que os dois grupos de trabalhadores estão, de fato, em
“posições estruturalmente separadas” e que os trabalhadores nos
países imperialistas estão de alguma maneira “implicados nos
mecanismos da renda imperialista”.
Apesar de seus temores, reconhecer esses fatos não significa que a
revolução socialista seja impossível nos EUA, no Reino Unido e em
outros países imperialistas, e tampouco contradizem a visão de que
trabalhadores de todas as partes do mundo estão presos em uma
“corrida global para o fundo do poço”. Tais conclusões, que de fato
foram extraídas por alguns autores que os reconhecem (por
exemplo, Cope, 2019; Amin, 2018), são demasiado pessimistas por
três razões: não reconhecem a profundidade da crise atual do
capitalismo, ainda em seu estágio inicial, como a crise mais
profunda de sua história e as possíveis consequências e
implicações derivadas disso; não reconhecem como nas últimas
décadas a classe trabalhadora dentro dos países imperialistas foi
transformada pela migração e pela afluência massiva de mulheres
em suas fileiras; e subestimam o potencial dos avanços
revolucionários nas nações do Sul para catalizar o surgimento do
internacionalismo revolucionário dentro dos países imperialistas.
Mas reconhecer esses fatos nos ajuda a entender por que o
caminho revolucionário é tão difícil e por que a luta econômica
espontânea – a tentativa dos trabalhadores de defender ou melhorar
sua posição no capitalismo no lugar de travar uma luta política para
derrocá-lo – conduz precisamente à sua subordinação à ideologia
burguesa, como Lenin argumentou em Que fazer?19
Concepções burguesas versus marxistas sobre produtividade
A negação do imperialismo de Vasudevan difere da de seus
copensadores em um aspecto importante. Enquanto ela evita
expressar uma opinião sobre se as taxas de exploração mais altas
são frequentes em países de salários inferiores, outros não são tão
tímidos.
Nigel Harris expressou a opinião de consenso dos oponentes
marxistas da teoria da dependência20 da seguinte maneira:
Em igualdade de condições, quanto maior for a produtividade do trabalho,
maior será a renda paga ao trabalhador (já que seus custos de reprodução são
mais altos), e quanto mais explorado seja, maior será a proporção da produção
do trabalhador [de que] o empregador se apropria. (Harris, 1986, p. 119-120)
Ampliando isso, Alex Callinicos argumentou que
Um trabalhador altamente remunerado pode muito bem ser mais explorado do
que um trabalhador com remuneração inferior, uma vez que o primeiro produz,
em relação a seu salário, uma quantidade maior de mais-valia do que o último.
De fato, há razões para acreditar que os salários geralmente mais altos pagos
aos trabalhadores ocidentais refletem os custos maiores de sua reprodução;
mas os gastos, em particular, com educação e treinamento que fazem parte
desses custos, criam uma força de trabalho mais altamente qualificada que,
portanto, é mais produtiva e mais explorada do que seus colegas do Terceiro
Mundo. (Callinicos, 1992, ênfase minha)21
Considerando que todos, exceto os trabalhadores mais bem pagos,
gastam todo o seu salário em bens de consumo, “salário” e “custo
de reprodução” são sinônimos; não se pode utilizar um para explicar
o outro. Essa parte do argumento de Callinicos é uma tautologia que
não explica nada. Ele atribui particular importância ao custo da
educação e do treinamento dentro dos custos gerais de reprodução
dos trabalhadores nos países imperialistas.22 O impacto destes
conceitos na capacidade destes trabalhadores para gerar mais-valia
é tão grande, argumenta, que necessitam menos tempo para
substituir um valor muito maior de sua força de trabalho que os
trabalhadores menos produtivos e menos remunerados em países
de salários inferiores. Portanto, são mais explorados. Contudo, é
difícil entender por que os trabalhadores da linha de montagem dos
Estados Unidos e do Reino Unido, enfermeiras, caminhoneiros etc.
deveriam ser muito mais habilidosos que seus homólogos
mexicanos e chineses. Callinicos e seus seguidores deveriam refletir
sobre a sabedoria de Marx:
A diferença entre trabalho superior e trabalho simples, skilled e unskille labour,
baseia-se, em parte, em meras ilusões, ou pelo menos diferenças que há muito
tempo cessaram de ser reais e só perduram em convenções tradicionais; em
parte, baseia-se na situação desamparada de certas camadas da classe
trabalhadora, situação que lhes permite menos que as outras exercer pressão
para obterem o valor de sua força de trabalho. (Marx, [1894] 1991, p. 242)
Como veremos, o argumento de Callinicos baseia-se em uma
confusão subjacente entre as definições de produtividade de valor
de uso e valor de troca e a conseguinte reprodução, no jargão
marxista, de uma concepção burguesa da produtividade – que serve
como pedra angular para tentar, em nome da teoria do valor
marxista, negar não só a importância da superexploração nos elos
de salários baixos das cadeias de valor mundiais, mas também sua
existência. O efeito é normalizar as grotescas diferenças salariais,
que se convertem em uma consequência natural do
desenvolvimento desigual, não em um local de superexploração em
expansão, não em algo importante para a luta pela unidade de
classe; e excluir, assim, a possibilidade de que os salários, pensões
e assistência médica gratuita posteriores à Segunda Guerra Mundial
possam, ao menos em parte, ser resultado da luta de classes dentro
e fora, obrigando os capitalistas nos países imperialistas a fazer
concessões, mas isso implicaria uma taxa mais baixa de exploração
que naqueles países onde as lutas econômicas dos trabalhadores
enfrentam metralhadoras e ditaduras militares.
A ênfase que Callinicos coloca no trabalho qualificado tem suas
raízes intelectuais no trabalho de Michael Kidron, um dos
fundadores da “Tendência Socialista Internacional” à qual Callinicos
e Harris pertencem. Kidron (1974, p. 100) argumentou que:
Se há uma diferença notável [entre trabalhadores britânicos e indianos], ela
reside nos diferentes graus em que eles são culturalmente enriquecidos.
Espera-se que o trabalhador britânico médio possa ler e dirigir; normalmente,
será capaz de lidar com uma ampla gama de ferramentas e conceitos e
responder a uma ampla gama de estímulos, com base no conhecimento e não
na experiência pessoal. O trabalhador indiano não o será [...].
O custo de mantê-los de maneira efetiva, seu valor, certamente deverá refletir
essa diferença. Por exemplo, um motorista de caminhão não se atreve a dormir
ao volante e, portanto, deve ser capaz de garantir seu descanso em um lar; um
motorista de carro de boi ousa e frequentemente costuma cochilar, então sua
moradia é menos importante para o empregador [...] e seu salário não
precisará conter um componente de moradia tão grande. Os novos
participantes em uma fábrica na Grã-Bretanha precisam ser capazes de ler, e o
salário de seus pais precisa conter, portanto, um componente de manutenção
infantil e educação. Os novos trabalhadores das fábricas da Índia não precisam
ler, e geralmente não leem, então a pressão sobre o salário de seus pais é
menor. E assim por diante.
O argumento de Kidron não é apenas um chauvinismo repugnante
(especialmente sua afirmação ultrajante de que os trabalhadores
indianos, diferentemente dos britânicos, são incapazes de pensar
em conceitos), também é sem sentido. Sem dúvida, os
caminhoneiros indianos precisam estar mais alertas e serem mais
hábeis do que seus colegas britânicos – uma vez que são mais
propensos a ter que se esquivar de bois e buracos enquanto
transportam suas cargas. É provável que “os trabalhadores das
fábricas” indianas tenham mais filhos e um grupo familiar estendido
para sustentar, e seu salário terá que cobrir seus cuidados com
saúde e educação, ao contrário da Grã-Bretanha, onde esses
serviços são fornecidos gratuitamente pelo Estado.23
A maioria das tentativas de negar a superexploração imperialista,
apontando para a maior produtividade dos trabalhadores nos países
imperialistas, insiste não na qualificação do trabalho, mas sim nos
meios de produção mais avançados e mais intensivos em capital
(que geralmente são acompanhados de destreza), por exemplo, em
Charles Bettelheim que, em sua crítica da troca desigual, de Arghiri
Emmanuel (Bettelheim, 1972, p. 302), argumentou que “quanto mais
as forças produtivas são desenvolvidas, mais os proletários são
explorados”. Essa visão foi repetida inúmeras vezes por marxistas
reconhecidos, por exemplo, Claudio Katz, que escreveu que
a taxa de mais-valia é superior no centro. É ali que se concentram os
investimentos mais significativos e se obtêm o maior volume de trabalho
excedente [...]; a magnitude do trabalho confiscado é claramente superior nas
economias mais produtivas do centro. (Katz, 2017, p. 10)24
Em primeiro lugar, essa visão amplamente difundida parece confusa
por um fato simples: os bens consumidos pelos trabalhadores no
Norte não são mais produzidos exclusiva ou principalmente no
Norte; em uma extensão cada vez maior, eles são produzidos por
força de trabalho com baixos salários no Sul Global. Sua
produtividade, seus salários determinam significativamente o valor
da cesta de bens de consumo que reproduz a força de trabalho nos
países imperialistas e, portanto, o valor dessa força de trabalho.
Mas isso diz respeito apenas ao valor da força de trabalho, “v”, o
denominador em s/v da fórmula enganadoramente simples de Marx
para a taxa de exploração. O valor gerado por essa força de
trabalho, uma vez que “v” foi subtraído, fornece “s”, trabalho
excedente, o numerador. Quando examinamos este elemento da
equação, descobrimos que a visão de Callinicos, Bettelheim, Katz
entre outros tem um problema muito mais profundo: se baseia em
um conceito burguês de produtividade, que é antitético à teoria do
valor de Marx.
Marx considerava como uma de suas maiores descobertas “o
caráter duplo do trabalho, conforme se expressa em valor de uso ou
valor de troca” (Marx, [1867] 1987, p. 407).25 Ao caráter duplo do
trabalho corresponde o caráter duplo da produtividade do trabalho: a
definição universal de produtividade do trabalho, verdadeira para a
sociedade humana em todas as suas etapas de desenvolvimento, é
a quantidade de valores de uso que podem ser produzidos em um
dia ou em uma semana de trabalho. Mas para os capitalistas, a
produção de valores de uso é apenas um meio para um fim muito
diferente, a produção de valores de troca. Disso deriva um conceito
e uma medida de produtividade totalmente diferente e
essencialmente burguesa: quanto o “valor agregado” de uma
empresa é aumentado em uma hora, um dia ou uma semana de
mão de obra.
O valor agregado é a base das estatísticas padrão sobre o PIB, a
produtividade e muito mais. O conceito de valor agregado – o valor
de uma mercadoria é igual ao custo total dos insumos mais o “valor
agregado” da empresa, isto é, um aumento em seus custos de
produção, se parece muito com o conceito de preço de produção de
Marx, sobre o qual ele diz:
os mesmos economistas que se voltam contra a determinação do valor das
mercadorias pelo tempo de trabalho, pela quantidade de trabalho nelas
contido, falam sempre dos preços de produção como centros em torno dos
quais flutuam os preços de mercado. Eles se permitem fazê-lo porque o preço
de produção é uma forma já totalmente exteriorizada e, prima facie, absurda do
valor-mercadoria; uma forma que se apresenta na concorrência, portanto, na
consciência do capitalista vulgar e, logo, também na do economista vulgar.
(Marx. [1894] 2007, p. 250)
Os preços das mercadorias produzidas em relações capitalistas são
“prima facie irracionais” porque a concorrência entre capitais por
lucros faz com que os preços de produção se separem do tempo de
trabalho socialmente necessário, por outro lado ocultam que este é
o conteúdo do valor da mercadoria. As estatísticas baseadas no
valor agregado ou nos preços de produção não revelam o valor e a
mais-valia gerados em nenhuma empresa, setor (se há algum,
recordando que algumas empresas e setores se dedicam a
atividades não produtivas) ou nação; contudo, o que se revela na
concorrência e se mede nas estatísticas do PIB e da produtividade
são valores transformados, valores irracionais.

Existe uma ampla e rica literatura de tentativas de derivar a massa e
a taxa de mais-valia utilizando dados constituídos a partir do valor
agregado, ou utilizar a última como um proxy para a primeira, a fim
de calcular a taxa de lucro e a taxa de mais-valia, mas todas elas
esbarram neste problema. Seu êxito ou não está além do alcance
deste texto, mas, a partir da discussão que vimos até agora,
podemos concluir que tal movimento a partir de um alto nível de
abstração da realidade concreta, da produção globalizada
contemporânea requer, entre outras coisas uma crítica rigorosa do
valor e do fetichismo dos preços de produção que este conceito
implica, para descobrir o que – na era do imperialismo – está
escondido pelos dados sobre o PIB e sobre a produtividade e o
comércio (ver Smith, 2012).
A produtividade, isto é, a produtividade do trabalho vivo, é definida
pela economia vulgar como valor agregado por trabalhador. O
conceito marxista de produtividade se opõe radicalmente a essa
visão. De forma introdutória, ajuda a refletir sobre o fato de que,
medido em termos de valores de uso, os trabalhadores são, hoje,
muito mais produtivos que, digamos, há 100 anos. Mas em termos
de valor de troca, nenhum tipo de comparação pode ser feito entre
hoje e 100 anos atrás, uma vez que os produtos do trabalho vivo de
hoje são apenas comparados na realidade com outros produtos do
trabalho vivo de hoje.
Uma composição de capital mais alta aumenta a produtividade do
trabalho dos valores de uso, mas não faz nenhuma diferença na
geração de valor de troca (deixo de lado o caso especial de um
capital individual que possui um monopólio temporário sobre uma
técnica de produção mais avançada). Isso é o que Callinicos e Katz
acreditam: que os trabalhadores dos ramos industriais de alta
tecnologia (ou seja, intensivos em capital) produzem mais valor e
são, portanto, mais explorados do que os trabalhadores das
indústrias de baixa tecnologia. Marx, por outro lado:
assumindo que o grau de exploração do trabalho, ou a taxa de mais-valia, é o
mesmo [...] nos capitais que põe em marcha quantidades desiguais de trabalho
social [isto é, sejam eles intensivos em capital ou trabalho].
E essa suposição, por sua vez, repousa na “concorrência entre
trabalhadores, e uma equalização que ocorre pela constante
migração entre uma esfera de produção e outra” (Marx, [1894] 1991,
p. 275).
A produtividade aparentemente maior dos trabalhadores nos ramos
de produção intensiva em capital é uma ilusão criada pelas
transferências de valor dos ramos de produção intensivos em mão
de obra. O que o capitalista considera lucros obtidos magicamente
do trabalho morto, isto é, de sua maquinaria e outros insumos, é de
fato um valor criado pelo trabalho vivo empregado por capitalistas
rivais com composições orgânicas mais baixas. Quando os
marxistas argumentam o contrário, que os trabalhadores das
indústrias intensivas em capital produzem mais valor que os das
indústrias intensivas em mão de obra, assim como opositores da
teoria da dependência aqui considerados, estão pensando em
conceitos burgueses, sem importar o quanto estejam vestidos com
palavrório marxista.
Assumindo uma força de trabalho de intensidade média, e
assumindo que ela é trocada pelo mesmo salário e deixando de lado
a questão da força de trabalho qualificada ou complexa, o novo
valor gerado por uma dada quantidade de trabalho é totalmente
independente da composição orgânica do capital que o põe em
movimento. Isso significa que, supondo novamente que os dois
trabalhos sejam de intensidade média e supondo que recebam o
mesmo salário, a quantidade de valor produzido em um dia de
trabalho padrão pelo chapeiro de um carrinho de lanche que fica no
estacionamento de uma fábrica de aço é a mesma que aquela
produzida durante o mesmo tempo pelo metalúrgico dentro dessa
fábrica.
Para concluir esta discussão das concepções de produtividade
burguesas versus marxistas, imaginemos agora que, devido à
organização sindical superior, o metalúrgico recebe um salário maior
do que o trabalhador que produz seu almoço. Com todas as outras
premissas ainda em vigor, o trabalhador de fast-food agora suporta
uma taxa mais alta de exploração. Tudo isso deveria ser elementar
para quem é versado nos princípios básicos da lei do valor de Marx.
Então por que tantos marxistas têm tanta dificuldade de entender o
que acontece quando os trabalhadores que produzem os bens de
consumo de nossos metalúrgicos não estão localizados no
estacionamento das siderúrgicas, mas em outro país? Já discutimos
um fator que contribui para isso: o fetichismo do valor agregado e as
concessões às concepções burguesas do valor que implica. Outro, a
que agora nos referimos, são os erros e omissões na grande obra
de Marx.

O imperialismo e O capital de Marx


Em continuação à última passagem citada, Marx afirma:
Teoricamente parte-se do pressuposto de que as leis do modo de produção
capitalista se desenvolvam em estado de pureza. Na realidade, as coisas se
dão sempre de modo aproximado; mas a aproximação é tanto maior quanto
mais desenvolvido se encontrar o modo de produção capitalista e quanto mais
se elimina sua mescla e seu entrelaçamento com os vestígios dos sistemas
econômicos anteriores.
Em particular, Marx tratou a divergência dos salários como resultado
de fatores temporais ou contingentes que o capital e o trabalho
incessantemente móveis erodiriam com o tempo, e que poderiam
excluir-se da análise, com segurança, como deixou claro no livro III
d’O capital:
Por mais importante que seja o estudo deste tipo de conflitos salariais [os
obstáculos locais que obstruem a equalização dos salários] para cada trabalho
específico, pode-se desconsiderá-los, contudo, no que se relaciona com a
investigação geral da produção capitalista, por serem casuais e irrelevantes.
(Marx, [1894], 2007, p. 656)
Sabemos agora que Marx estava errado sobre isso. Estes conflitos
temporais resultaram exatamente no contrário. No mundo
imperialista atual, a condição de igualdade entre os trabalhadores é
violada profunda e impactantemente; e a concorrência global não
produziu nenhum progresso mensurável com relação à equilização
internacional dos salários reais.26 Ele escreveu eloquentemente
sobre por que o imperialismo era uma condição necessária para o
surgimento do capitalismo, mas não conseguiu prever como a
evolução imperialista do capitalismo resultaria na opressão das
nações tornando-se uma propriedade intrínseca da própria relação
capital-trabalho. Como Andy Higginbottom apontou,
A relação de trabalho assalariado não é apenas entre capital e trabalho, mas
entre capital do Norte e trabalho do Sul. Nesse sentido, a exploração de
classes e a opressão racial ou nacional são fundidas [...]. A classe trabalhadora
das nações oprimidas/Terceiro Mundo/Sul Global é sistematicamente paga
abaixo do valor da força de trabalho da classe trabalhadora das nações
opressoras/Primeiro Mundo/Norte Global. Isso não ocorre porque a classe
trabalhadora do Sul produz menos valor, mas porque é mais oprimida e mais
explorada. (Higginbottom, 2011, p. 284)
Essa é a razão fundamental pela qual O capital de Marx não contém
uma teoria da superexploração, ou (o que é a mesma coisa) uma
teoria do imperialismo; uma lacuna que não pode ser explicada
exclusiva ou principalmente por uma decisão de deixar esses
assuntos para um volume d’O capital que nunca chegou a ser
escrito. Se Marx poderia ou não ter antecipado esse estágio
qualitativamente novo na evolução da relação capital-trabalho, é
uma questão que está aberta ao debate. A importância excepcional
da contribuição de Ruy Mauro Marini para a teoria marxista do
imperialismo reside, em parte, em sua observação de que, durante a
vida de Karl Marx, as importações de alimentos mais baratos e
outros bens de consumo produzidos por mão de obra
superexplorada provinham das colônias e neocolônias britânicas
que ajudaram a aumentar a mais-valia relativa na própria Grã-
Bretanha, reduzindo o tempo de trabalho necessário sem diminuir
os níveis de consumo. Higginbottom ressalta que:
Marini coloca a necessidade da superexploração do trabalho da mão de obra
em meados do século XIX, isto é, antes do surgimento do imperialismo
moderno como um sistema mundial, tal como retratado por Lenin. A transição
na Inglaterra, de uma produção dominada por métodos de mais-valia absoluta
para mais-valia relativa, dependia de importações baratas e de maior
produtividade [...]. O trabalho de Marini mostra que Marx não estava correto em
todos os aspectos, mesmo em seu próprio tempo. (Higginbottom, 2014, p. 31-
32)27
Não se encontra um conceito concreto de superexploração na
grande obra de Marx, isso foi deixado para gerações futuras.
Algumas geraçoes depois, a brecha permanece e se tornou terrível.
Tanto a necessidade imperiosa de tal conceito quanto a
possibilidade de sua existência é colocada pela própria evolução do
imperialismo, em particular pela proliferação de cadeias de valor
global. Seu lugar no centro de uma teoria marxista daquilo que John
Bellamy Foster chamou de imperialismo tardio (Foster, 2019)
determinará criticamente se o renascimento do marxismo, no qual
repousa o futuro da humanidade, está natimorto. Sim! É realmente
tão importante!
É claro, nós temos a grande vantagem da perspectiva a posteriori.
Para mitigar Marx, se não para eximi-lo completamente, devemos
recordar uma premissa fundamental da dialética materialista: não
pode haver um conceito concreto de um sistema de interação que
não seja totalmente concreto e desenvolvido. Assim como Karl Marx
não poderia ter escrito O capital antes da forma madura e
totalmente desenvolvida do capitalismo, que surgiu com o
capitalismo industrial na Inglaterra, tampouco é razoável esperar
encontrar em seus escritos – ou nos de Lenin e de outros que
escreveram no tempo do nascimento do estágio imperialista do
capitalismo – uma teoria do imperialismo capaz de explicar sua
forma moderna completamente evoluída. E Marx não apenas
forneceu fundamentos teóricos para uma teoria da forma
imperialista da lei do valor, mas também forneceu pistas e ideias
copiosas que apontam nessa direção – embora os “marxistas” que
negam o imperialismo prestem tanta atenção a elas quanto os
“cristãos” de hoje o fazem sobre as palavras de Jesus com relação
aos obstáculos no caminho dos homens ricos que entram no reino
dos céus. Essa analogia é adequada – nossos marxistas negadores
do imperialismo tratam O capital como um texto sagrado, enquanto
ignoram o que lhes parece incomôdo.
No livro I d’O capital, Marx analisou em profundidade e detalhe duas
maneiras pelas quais os capitalistas se esforçam para aumentar a
taxa de exploração. Uma é prolongar a jornada de trabalho,
aumentando assim a mais-valia absoluta; e a outra é aumentar a
mais-valia relativa, por meio do aumento da produtividade dos
trabalhadores que produzem bens de consumo, reduzindo assim o
tempo de trabalho necessário. Em vários lugares, ele descreve
brevemente uma terceira maneira, como no capítulo intitulado “O
conceito de mais-valia relativa”, no qual escreve:
O mais trabalho [...] somente seria obtido mediante a compressão do salário do
trabalhador abaixo do valor de sua força de trabalho. [...] Apesar do papel
importante que esse método desempenha no movimento real do salário, ele é
aqui excluído pelo pressupostos de que as mercadorias, inclusive portanto a
força de trabalho, sejam compradas e vendidas por seu pleno valor. (Marx,
[1867] 2001, p. 380-381)
Empurrar o salário do trabalhador para abaixo do valor de sua força
de trabalho, ou seja, a superexploração, de acordo com uma
definição estrita, já que pressupõe uma economia unitária e
idealizada em que a força de trabalho tem um valor único, é algo
mencionado novamente dois capítulos depois, durante uma
discussão sobre as consequências para os trabalhadores quando
a maquinaria [...] gradualmente se apodera de todo o campo da produção [com
o resultado de que] uma parte da classe trabalhadora que a maquinaria
transforma deste modo em população supérflua [...] inunda todos os ramos
industriais mais facilmente acessíveis, enche o mercado de trabalho e,
portanto, derruba o preço da força de trabalho para abaixo de seu valor. (Marx,
[1867] 2001, p. 524)
Aqui Marx está falando sobre o desemprego setorial esporádico
decorrente da mecanização de um novo ramo da indústria, mas sua
relevância para a era moderna precisa apenas ser esclarecida. Uma
grande parte da classe trabalhadora no Sul Global se tornou
supérflua pela incapacidade dos métodos de produção modernos
absorverem força de trabalho suficiente para evitar o aumento do
desemprego, e isso por si só – mesmo antes de levarmos em conta
a violenta repressão à livre circulação de trabalhadores, bem como
os regimes trabalhistas mais severos e a repressão política que
prevalecem nos países de baixos salários – exerce uma força
poderosa, fazendo com que o preço de sua força de trabalho caia
abaixo de seu valor. Mesmo antes de estabelecer a conexão precisa
entre o salário, o valor da força de trabalho e a taxa de exploração,
isso já constitui evidência prima facie de que o valor da força de
trabalho foi reduzido muito mais cruelmente nas nações do Sul do
que nas do Norte, a ponto de forçar um valor permanentemente
mais baixo da força de trabalho sobre esses trabalhadores. Também
é uma evidência poderosa de que as diferenças salariais são
determinadas, em grande parte, por fatores que são bastante
independentes da produtividade dos trabalhadores no ato do
trabalho, tais como a ausência de seguridade social, o desemprego
estrutural e os regimes repressivos de trabalho.
Marx não apenas deixou de lado a redução dos salários abaixo de
seu valor, mas fez uma abstração adicional que, embora necessária
para sua análise geral do capital, também deve ser relativizada se
quisermos analisar o estágio atual de desenvolvimento do
capitalismo: “A diferença entre as taxas de mais-valia em diferentes
países e, portanto, entre os graus nacionais de exploração do
trabalho, é totalmente irrelevante para a presente investigação”
(Marx, K. [1894] (2007), p. 180). Assim, dois elementos cruciais para
uma teoria do imperialismo contemporâneo – as variações
internacionais no valor da força de trabalho e na taxa de exploração
– foram explicitamente excluídos por Marx de sua teoria geral,
conforme elaborada n’O capital. Anwar Shaikh estava, portanto,
errado ao afirmar que “o desenvolvimento da lei do valor n’O capital
contém todos os elementos necessários para sua extensão ao
comércio internacional” (Shaikh, 1980, p. 208).

Taxa de exploração e taxa de mais-valia


Ao longo deste ensaio, “taxa de mais-valia” tem sido utilizado como
sinônimo e termo intercambiável de “taxa de exploração”. Mas essa
identidade só se mantém em um alto nível de abstração, em outra
palavras, só se fizermos várias simplificações significativas.
Primeiro, é necessário excluir a distinção entre trabalho produtivo e
improdutivo. Todos os produtos consumidos empregados em tarefas
relacionadas com a circulção de títulos de propriedade e a proteção
dos direitos de propriedade, inclusive o trabalho vivo, são custos de
produção, gastos gerais; seus custos são assumidos pelos
capitalistas na esfera da produção, que consomem parte de sua
mais-valia e reduzem seus lucros. Estas funções, embora
necessárias para a sociedade capitalista, são formas sociais de
consumo que se subtraem da massa total de riqueza (isto é, o
capital social total, a massa total dos valores de uso
mercantilizados), em contraste com os capitais na esfera da
produção que são aqueles que agregam valor.
Considerando que seguranças, funcionários de bancos, advogados
e outros trabalhadores improdutivos não produzem valor nem mais-
valia, é inapropriado falar da taxa de mais-valia nesses casos. Ainda
assim, sua jornada de trabalho ainda é dividida entre o trabalho
necessário (o tempo necessário para substituir o tempo de trabalho
socialmente necessário incorporado em sua cesta de bens de
consumo, ou seja, o valor de sua força de trabalho, “v”) – e o
trabalho excedente (a quantidade pela qual sua jornada de trabalho
excede “v”). Em outras palavras, estes trabalhadores, exceto
aqueles que recebem supersalários, são explorados. Esta condição
não depende de sua força de trabalho excedente ser utilizada para
tarefas de produção ou tarefas que não são de produção, ou mesmo
se o trabalho é desperdiçado. Tarefas que não são de produção,
tarefas relacionadas à circulação de títulos de propriedade desde
publicidade até finanças e seguridade constituem uma grande parte
da economia imperialista contemporânea, reduzindo a massa de
mais-valia disponível para a redistribuição como lucro em todas as
suas formas.
Segundo, a “taxa de mais-valia” se aplica apenas ao trabalho vivo
empregado por um capitalista para produzir mercadorias, seja
porque ele comprou esse trabalho vivo por um salário seja porque é
proprietário do trabalhador, como no emprego capitalista de
escravos (Higginbottom, 2018). Trabalhadores autônomos não
produzem mais-valia; se eles recebem menos do que o valor de seu
produto, então estão sujeitos a uma troca desigual. Os
trabalhadores empregados capitalisticamente constituem a
esmagadora maioria da população economicamente ativa nos
países imperialistas, mas isso não acontece na maioria dos países
da África, Ásia e América Latina. Como Paul Sweezy apontou,
a taxa de exploração é e sempre foi muito maior na periferia do que no centro.
No centro, a taxa de exploração é, para todos os efeitos práticos, igual à taxa
de mais-valia.28 Isso não é válido para a periferia, onde apenas uma pequena
parte da força de trabalho é empregada como assalariada na indústria
capitalista, com uma proporção muito maior sendo explorada direta e
indiretamente por proprietários, comerciantes e usurários, principalmente no
campo, mas também nas cidades e nos povoados. Aqui, todo ou quase todo o
excedente extorquido dos trabalhadores não empregados na indústria
capitalista é comercializado e torna-se indistinguivelmente misturado com a
mais-valia produzida capitalisticamente. Nessas circunstâncias, podemos falar
de uma taxa social de exploração, mas não devemos confundir o conceito com
a taxa de mais-valia no sentido usual. (Sweezy, 1981, p. 76)
Em continuação, ele diz (em um argumento que tem muito em
comum com a tese de Marini) que a maior taxa de exploração nas
nações subordinadas permite que
as classes dominantes locais e as elites aliadas vivam em um nível compatível
com o das burguesias do centro, ao mesmo tempo que possibilita um fluxo
massivo de produto excedente monetizado (na forma de lucros, juros, aluguéis,
royalties etc.) da periferia para o centro.
Ele acrescenta, resumindo bastante em um pequeno trecho:
a contrapartida da taxa de exploração muito alta (e frequentemente crescente)
na periferia é uma taxa mais baixa (e relativamente estável no tempo) de mais-
valia no centro. Existem duas razões básicas e inter-relacionadas para isso.
Por um lado, a classe trabalhadora do centro é mais altamente desenvolvida e
está em uma melhor posição para organizar e lutar por seus próprios
interesses. Por outro lado, as burguesias do centro aprenderam, através da
experiência histórica, que uma situação que permite que o padrão de vida do
proletariado aumente ao longo do tempo (uma taxa estável de mais-valia
combinada com o aumento da produtividade) não é apenas funcional, mas
também indispensável para a operação do sistema como um todo.
Escrito há quase quatro décadas, estas palavras resistiram ao
tempo, com a adição necessária de que esta estratégia de
estabilização contém em seu interior as sementes da instabilidade,
isto é, novas contradições inerentes.

Monopólio e superexploração
Antes de nos aprofundarmos na natureza da exploração capitalista e
da superexploração imperialista, é válido considerar como essas
duas categorias estreitamente relacionadas se colocam em relação
a outro elemento constitutivo essencial do capitalismo: o monopólio.
O monopólio está inscrito no DNA do capitalismo, os capitalistas
individuais não se empenham tanto para concorrer quanto para
encontrar uma maneira de evitar a concorrência, obter uma
vantagem sobre os rivais, exercitar alguma forma de monopólio que
lhes dará lucros acima da média. A lei do valor, que em sua forma
mais simples explica que as mercadorias compradas e vendidas
livremente são vendidas pelo seu valor, resulta dos esforços
incessantes dos capitalistas individuais para violar essa lei. Sua
compulsão selvagem só pode ser contida por uma força externa, daí
a necessidade de um Estado e de um sistema de leis independentes
dos capitalistas individuais e, portanto, também as tentativas
incessantes de capitalistas individuais e grupos de capitalistas de
fugir destas leis ou de aparelhar o Estado para obter uma vantagem
sobre seus rivais.
O monopólio se apresenta de várias formas. Alguns dizem respeito
à produção, inovações tecnológicas que permitem que um
capitalista individual produza uma determinada mercadoria de forma
mais eficiente que outros; outras à distribuição, marca ou outras
formas de monopólio no mercado, como barreiras a novos
participantes no mercado, captura do Estado, acesso privilegiado a
insumos baratos etc.); tudo isso pode ter vida curta ou duradoura.
Para cada instância de monopólio corresponde uma renda, um
rendimento não derivado do trabalho, um lucro extra pelo monopólio
à custa de lucros mais baixos para o restante. O monopólio,
portanto, redistribui a mais-valia entre os capitais, mas não agrega
nada a ela.
Isso vale mesmo para inovações tecnológicas que reduzem a
quantidade de trabalho necessária para produzir bens de consumo
para os trabalhadores, somente quando essa inovação se
generaliza, ou seja, quando deixa de ser monopolizada por um
capitalista individual – em outras palavras, quando deixa de ser uma
inovação – se traduz em uma redução do valor da força de trabalho
e em um aumento correspondente na taxa de mais-valia. Somente
então, e se os trabalhadores não obtiverem nenhuma porção destes
lucros por meio de salários reais mais altos, a taxa de mais-valia
aumenta.
Embora o monopólio esteja relacionado à distribuição da mais-valia,
a exploração está relacionada com sua extração. E assim como
todo capitalista sonha em se tornar um monopolista, também está
no DNA de todo capitalista procurar maneiras de maximizar a
extração da mais-valia. Como acabamos de ver, n’O capital, Marx
analisa detalhadamente duas maneiras pelas quais os capitalistas
fazem isso – estendendo a jornada de trabalho para além do “tempo
de trabalho necessário”, isto é, o tempo necessário para substituir
os valores consumidos pelo trabalhador e sua família, que Marx
chamou mais-valia absoluta; e alterando a proporção entre o tempo
de trabalho necessário e o tempo excedente de trabalho em um dia
de trabalho inalterado por meio de avanços na produtividade que
barateiam os bens de consumo dos trabalhadores, que ele chamou
de mais-valia relativa. Ambas são totalmente distintas da redução do
tempo de trabalho necessário ao “empurrar salário do trabalhador
abaixo do valor de sua força de trabalho” a definição padrão de
superexploração, criticada mais adiante neste ensaio.
Resulta do exposto que a renda e a superexploração imperialistas
são conceitualmente distintas, mesmo que na realidade elas
estejam intimamente relacionadas. Samir Amin estava, portanto,
errado ao confundir os dois: “a parte visível da renda imperialista [...]
surge do grau dos preços da força de trabalho [...]. A parte
submersa da renda [surge do] acesso aos recursos do planeta”
(Samir Amin, 2018, p. 110).
Agora podemos juntar os dois elementos constitutivos do
capitalismo – monopólio / concorrência e exploração /
superexploração. Todo capitalista sonha em se tornar um
monopolista, mas para os capitalistas do Vietnã, Camboja, México e
outras nações do Sul, seus sonhos permanecem somente isso,
sonhos; eles não têm escolha senão depender exclusivamente da
extração da mais-valia de seus próprios trabalhadores, ao explorá-
los além dos limites, ou mais precisamente, retirar deles o que resta
depois que os monopolistas e imperialistas tenham tomado sua
parte.29 Em contraste, o capital monopolista imperialista tem a opção
de compartilhar parte de suas rendas monopolistas e rendas
imperiais com seus próprios trabalhadores, comprar a paz social e
expandir o mercado de seus bens , junto com recursos para
financiar o gasto estatal com poder duro e brando, a fim de reforçar
sua dominação imperialista sobre as nações subordinadas.
Se os conceitos de mais-valia absoluta e relativa de Marx são
insuficientes para explicar as realidades da exploração nas redes de
produção globais contemporâneas, de que mais precisamos? Em
poucas palavras, de um conceito teórico de superexploração. Mas
antes que possamos conceitualizar a superexploração, precisamos
de um conceito mais profundo e rico de exploração.

A teoria marxista da exploração (I): o valor da força de trabalho


A fórmula aparentemente simples para a taxa de exploração, s/v, é –
em uma análise mais minuciosa – qualquer coisa, menos simples. O
valor da força de trabalho e o valor gerado por ela são muito mais
diferentes entre si do que normalmente se supõe. O fato de que
tanto o numerador quanto o denominador de s/v poderem ser
expressos como simples números, cada um expressando duas
partes do mesmo dia de trabalho, com a taxa de exploração dada
pela simples proporção entre eles, leva muitos a esquecer o quão
extremamente diferentes são, de fato, entre si. Isso fica claro
quando fazemos duas perguntas elementares. O que determina o
valor da força de trabalho? O que determina a quantidade de valor
gerado pela força de trabalho?
Levando essas perguntas em consideração, os determinantes do
valor da força de trabalho podem ser divididos em sete elementos:
1) a fecundidade da natureza, isto é, a disponibilidade imediata
de alimentos, materiais de construção; e sua hospitalidade – a
necessidade de proteção contra os elementos etc. Por exemplo,
se o tempo para pescar um peixe aumentar, o valor da força de
trabalho que depende deles para o sustento deve aumentar se
os níveis de consumo permanecerem os mesmos;
2) a proporção de valores de uso exigidos para a reprodução da
força de trabalho que são fornecidos gratuitamente pelo
trabalho doméstico, a economia não capitalista etc.;
3) a produtividade do trabalho nos ramos da economia
capitalista que produzem os bens de consumo para os
trabalhadores;
4) a incidência de superexploração nesses ramos;
5) o tamanho do chamado componente “moral e histórico” do
valor da força de trabalho, isto é, até que ponto a luta de
classes e a evolução social geral (diferentes maneiras de dizer
a mesma coisa) resultaram na incorporação de novas
necessidades à reprodução da força de trabalho;
6) o grau médio de complexidade/qualificação do trabalho em
uma economia nacional, que está intimamente relacionado à
sua estrutura produtiva, mas que também está relacionado ao
elemento “moral e histórico” mencionado anteriormente;
7) a intensidade da opressão e subjugação dos trabalhadores
em uma dada economia nacional, incluindo a ferocidade da
repressão patronal/estatal, o grau de unidade/desunião da
classe trabalhadora, a escassez estrutural ou superabundância
da força de trabalho, controles de fronteira suprimindo a livre
mobilidade do trabalho.
Cada um dos determinantes do valor da força de trabalho requer um
capítulo para si próprio, e cada um se presta à pesquisa empírica,
bem como à reflexão teórica. Aqui só temos espaço para uma breve
discussão.
Nenhum desses fatores, nem mesmo o primeiro, são puramente
endógenos. Considere, por exemplo, as consequências para as
centenas de milhões de trabalhadores em todo o Sul global da
pesca excessiva pelas frotas pesqueiras imperialistas ou o impacto
das mudanças climáticas provocadas pelo imperialismo sobre a
fecundidade e a hospitalidade da natureza.
O segundo fator listado, ou seja, a força do patriarcado, o tamanho
da economia não capitalista etc. é fundamentalmente uma
consequência do imperialismo. De seu “desenvolvimento do
subdesenvolvimento” destaca-se a necessidade de que a teoria do
valor adote a teoria da reprodução social, cuja negligência por parte
da Economia Política marxista tem muito a ver com a reticência
desta abandonar as simplificações que Marx fez para alcançar sua
“teoria geral” do capital.
O terceiro fator passou por uma enorme transformação durante a
era neoliberal, com a realocação massiva de indústrias que
produzem bens de consumo para os trabalhadores de países de
baixos salários.
O quarto fator deve ser considerado em conjunto com o terceiro, o
valor da força de trabalho é determinado não apenas pela
produtividade dos trabalhadores empregados na produção de bens
de consumo, mas também pelo grau em que são superexplorados.
A produção em oficinas clandestinas barateia estes produtos e
reduz o valor da força de trabalho que depende deles.
O quinto fator, o elemento “moral e histórico”, é determinado pela
luta de classes, e isso ocorre nos níveis nacional e internacional. O
que os trabalhadores conseguem incorporar no valor de sua força
de trabalho em qualquer país é o resultado da luta de classes
global, não apenas da luta dentro desse país em particular. Por
exemplo, foi o aumento das lutas de libertação nacional nas colônias
e neocolônias britânicas, não apenas o movimento de reforma social
na própria Grã-Bretanha, que convenceu seus governantes
imperialistas a conceder assistência médica e educação gratuitas
aos trabalhadores britânicos após a Segunda Guerra Mundial. Seu
objetivo não era apenas pacificar os trabalhadores dando-lhes o que
eles queriam, mas forjar um “contrato social” com líderes dos
sindicatos e do Partido Trabalhista, e assim garantir seu apoio ativo
às guerras contra os povos insurgentes em suas colônias e
neocolônias. Por outro lado, mesmo que os trabalhadores de fora
dos países imperialistas tenham sido impedidos de usufruir desses
ganhos, eles foram progressivamente incorporados ao que todos os
trabalhadores consideravam ser seus direitos, suas prerrogativas.
O sexto fator também é uma função do desenvolvimento
imperialista: nas nações imperialistas uma proporção muito maior
(embora ainda minoritária) da classe operária funciona como mão
de obra complexa/qualificada, em comparação com o capitalismo
dependente. Mas também devemos lembrar o aviso de Marx de que
em grande parte da classe trabalhadora a distinção entre mão de
obra qualificada e não qualificada se baseia na “pura ilusão”, como
descobriram, por exemplo, as mulheres que lutam por salários
iguais.
O sétimo fator, por fim, expressa o grau de opressão nacional
suportado pelos trabalhadores em uma determinada nação, ou seja,
o grau em que sua igualdade com os trabalhadores em outras
partes do mundo é violada. Argumenta-se aqui que, na era
neoliberal, isso se tornou o fator mais importante de todos e é um
determinante-chave do quarto fator, cuja importância também
aumentou enormemente.
É interessante comparar esta lista de fatores que determinam o
valor da força de trabalho com uma lista fornecida por Marx:
O valor da força de trabalho é determinado pelo valor dos meios de
subsistência habitualmente exigidos pelo operário médio. A massa destes
meios de subsistência, ainda que possa mudar sua forma, em uma época
determinada e em uma sociedade determinada, é dada, e, portanto, pode ser
tratada como uma magnitude constante. O que muda é o valor dessa massa.
Outros dois fatores entram na determinação do valor alcançado pela força de
trabalho. Por um lado, seus custos de desenvolvimento, que variam de acordo
com o modo de produção; por outro, sua diferença de natureza, segundo se
trate da força de trabalho masculina ou feminina, madura ou imatura. (Marx,
[1867] 2001, p. 629)
Disto podemos extrair quatro fatores; sua correspondência com os
sete fatores do valor da força de trabalho em minha lista é anotada
entre parênteses no final de cada um deles:
1) a quantidade de meios de subsistência exigida pelo
trabalhador médio (1, 5, 6);
2) o valor dessa quantidade (ou seja, a quantidade de trabalho
socialmente necessário para produzi-la) (3, 4, 7);
3) o custo do desenvolvimento da força de trabalho (ou seja,
seus custos de reprodução, incluindo os custos dos
dependentes do trabalhador) (2, 6);
4) a diversidade natural da força de trabalho (isto é, de homens
e mulheres, crianças e adultos): isso não é aplicável. Deixo de
lado a força de trabalho das crianças e contesto que haja
qualquer coisa de “natural” no valor da força de trabalho
masculina e feminina.
As diferenças entre as duas listas refletem a diferença nos níveis de
abstração empregados por Marx em sua busca por uma “teoria
geral” do capital e o objetivo deste trabalho – uma teoria de valor do
imperialismo; e também refletem a evolução do capitalismo nos 150
anos desde que Marx publicou o livro I d’O capital. É claro que
muitos fatores determinam o valor da força de trabalho e que seu
peso relativo muda muito de um período histórico para outro e de
um país para outro; tudo isso sublinha por que nosso conceito de
exploração deve ser concreto, atualizado e baseado em análises
empíricas, não apenas simplesmente retirado d’O capital de Marx e
aplicado mecanicamente à realidade imperialista contemporânea,
como se as transformações do último século e meio nunca tivessem
acontecido.

A teoria marxista da exploração (II): o valor gerado pela força


de trabalho
Agora, passemos a considerar o outro elemento da fórmula da taxa
de exploração, “s”. A lei do valor baseia-se em um princípio
fundamental: “o valor que a força de trabalho produz [...] não
depende do próprio valor da força de trabalho, mas da duração de
seu funcionamento” (Marx, [1867] 2001, p. 656). Além disso, como
vimos anteriormente, o valor que a força de trabalho produz em um
determinado período de tempo também é completamente
independente de seu valor, de sua produtividade e da composição
orgânica do capital do qual é parte. Marx enfatizou repetidamente o
princípio fundamental em muitos lugares ao longo de sua grande
obra, por exemplo:
A jornada de trabalho de dada magnitude se representa sempre no mesmo
produto de valor, por mais que varie a produtividade do trabalho e, com ela, a
massa de produtos e portanto o preço da mercadoria singular. Se o produto de
valor de uma jornada de trabalho de 12 horas é, por exemplo, 6 xelins, ainda
que a massa de valores de uso produzidos varie com a força produtiva do
trabalho e, portanto, o valor de 6 xelins se distribua entre um número maior ou
menor de mercadorias. (Marx, [1867] 2001, p. 630-631)
Que outros fatores, além da duração, entram em jogo? A
intensidade do trabalho é um deles: um trabalhador que trabalha
duas vezes mais rápido que outro produzirá o dobro do valor no
mesmo tempo. Entretanto, está longe de ser comprovado que os
trabalhadores dos países imperialistas trabalham com maior
intensidade do que os dos países de baixos salários, e inclusive a
jornada de trabalho e a semana de trabalho tendem a ser muito
mais extensas em países de baixos salários. Podemos, portanto,
deixar isso de fora da nossa análise e assumir, como o próprio Marx
fez na citação, que todo trabalho vivo é gasto com a mesma
intensidade.
Outro é o grau de qualificação ou habilidade, discutido
anteriormente ao refutar o argumento de Callinicos e Kidron, de que
as diferenças no grau de qualificação da força de trabalho entre os
países explicam tanto as diferenças nos salários entre eles quanto
as diferenças na quantidade de valor que geram em um
determinado período de tempo. Pelas razões expostas, isso também
pode ser excluído do nosso “conceito universal concreto” (Ilyenkov,
1960, pp. 84-88) de exploração capitalista.
Também deve-se considerar que o valor gerado pelo trabalho vivo é
determinado ex post, quando o valor dos produtos produzidos por
esse trabalho é realizado através de sua venda:
O valor de uma mercadoria não se determina pela quantidade de trabalho
realmente objetivado nela, mas pela quantidade de trabalho vivo necessário
para sua produção. Suponhamos que uma mercadoria representa seis horas
de trabalho. Se se realizam invenções graças às quais se pode produzir em
três horas, o valor da mercadoria já produzida também cai pela metade. (Marx,
[1867] 2001, 653)
Esse é um assunto importante e complexo, mas pode ser excluído
com segurança da discussão atual por dois motivos. Primeiro,
embora a determinação ex post do valor afete a taxa de mais-valia e
a taxa de lucro, ela não tem nenhum efeito sobre a taxa de
exploração, uma vez que a divisão da jornada de trabalho em força
de trabalho necessária e força de trabalho excedente não se vê
afetada pelo fato de a força de trabalho estar sendo empregada
produtivamente ou não, ou se é desperdiçada ou se os produtos
produzidos por seus produtos são vendidos). Segundo, isso só entra
em jogo quando a produtividade do trabalho avança. Isso ocorrerá
mais ou menos rapidamente em diferentes ramos da produção e em
diferentes países, e está longe de ficar claro que a produtividade
esteja avançando nos países imperialistas mais rapidamente que
em outras regiões. A subcontratação da produção em países com
baixos salários tem sido uma alternativa cada vez mais difundida
diante dos lucros obtidos que o investimento doméstico em
tecnologias novas e mais produtivas.
Finalmente, devemos considerar o caso especial dos trabalhadores
empregados por um capitalista individual que possui uma inovação
técnica ou tecnológica que lhe permite produzir uma mercadoria de
maneira mais eficiente, ou seja, mais barata do que o normal para
esse ramo de produção específico. Marx diz: “O trabalho cuja força
produtiva é excepcional opera como trabalho potenciado
intensificado; isto é, em períodos iguais de tempo gera valores
superiores aos produzidos pela média do trabalho social do mesmo
tipo.” (Marx, 2001, p. 386). À primeira vista, isso parece contradizer
a afirmação de Marx de que o mesmo trabalho produz o mesmo
valor total, independentemente da variação da produtividade.
A contradição entre as duas afirmações de Marx é apenas aparente
porque, na primeira dessas citações, Marx se concentra nos níveis
de produtividade específicos da empresa, enquanto na segunda ele
abstrai isso. As diferentes taxas de mais-valia que Marx menciona
na primeira citação tratam exclusivamente das diferenças de
produtividade entre empresas individuais dentro de um ramo da
produção de produtos idênticos, mas em diferente de tempo de
trabalho. Transpor essas diferenças de produtividade específicas da
empresa para diferenças entre setores inteiros com diferentes
composições orgânicas é um erro grave, uma leitura
fundamentalmente equivocada da teoria do valor de Marx. Contudo,
é exatamente isso que os marxistas negadores do imperialismo
argumentam, pois estão muito interessados em “provar” que
trabalhadores nas indústrias mais avançadas e intensivas em capital
produzem mais valor por hora de trabalho vivo, e que, por extensão,
os trabalhadores em nações mais avançadas produzem mais valor
do que aqueles em nações subdesenvolvidas e, portanto, são
igualmente explorados.
A distribuição desigual da mais-valia é entre capitalistas “no mesmo
negócio”, isto é, que produzem os mesmos produtos. O capitalista
mais produtivo capturará uma parcela extra da mais-valia às custas
dos concorrentes cuja produtividade é menor que a média nesse
ramo de produção específico.30 Deve ficar claro que isso se aplica
apenas aos capitais individuais em concorrência direta entre si, e
não implica de forma alguma que os ramos de produção com
composições orgânicas mais altas tenham uma taxa de mais-valia
mais alta do que aqueles em ramos de produção com menores
composições orgânicas. Discuto esse assunto fascinante e
importante com mais profundidade em Imperialism in the Twenty-
First Century [O imperialismo no século XXI ](Smith, 2016, p. 241-
244), concluindo da seguinte forma:
[...] supondo uma mão de obra de intensidade e complexidade médias [...] toda
a força de trabalho gasta pelos trabalhadores empregados em capitais menos
produtivos conta igualmente para o valor total, mesmo que uma parte
desproporcional dela seja capturada pelos capitalistas mais produtivos. Os
lucros extras dos capitalistas mais produtivos não derivam de seus próprios
trabalhadores mais produtivos, mas do trabalho excedente extraído de
trabalhadores empregados por capitais tecnologicamente deficientes [...].
Assim, o valor gerado pelos trabalhadores produtivos em um determinado
período de tempo é independente de sua produtividade, mesmo se o valor
agregado capturado por seus empregadores permanecer altamente
dependente disso. Isso é tão fundamental que é preciso repetir: um metalúrgico
operando maquinaria mais sofisticada tecnologicamente não produz mais valor
de troca, simplesmente permite que seu empregador capitalista capture uma
parcela maior dele. Segue-se que a taxa de exploração, supondo salários
iguais, igual intensidade de trabalho etc., não é maior em capitais mais
produtivos do que em capitais menos produtivos, como argumentam os críticos
marxistas da teoria da dependência.
Com base nas simplificações e esclarecimentos acima, fica claro
que nenhum dos sete fatores que determinam o valor da força de
trabalho discutido anteriormente têm alguma influência no valor
gerado por ela. Mesmo se relativizarmos as simplificações e
incluirmos a intensidade, qualificação e determinação ex post do
valor, fica claro que os determinantes do numerador e do
denominador na fórmula da taxa de exploração têm muito pouco em
comum entre si; que nossa pequena e simples fórmula, s/v, é muito
mais complexa do que geralmente se supõe; e que as referências à
taxa de exploração que não levam isso em consideração de maneira
apropriada se configuram como uma ciência pobre.

A teoria marxista da superexploração


No decorrer deste ensaio, vimos muitos exemplos do “constante
entrelaçamento do pagamento da força de trabalho por seu valor e
abaixo de seu valor ao longo d’O capital” (Osorio, 2018, p. 166). A
maneira como Marx colocou a questão, a “redução dos salários
abaixo de seu valor”, se ajustou à sua “análise geral do capital”, na
qual assumiu uma economia unitária única e uma concorrência
perfeita entre os capitalistas e trabalhadores, condição para que
todas as mercadorias fossem vendidas pelo seu valor,31 e para que
a força de trabalho tenha um único valor. Conceituar a
superexploração no nível não do “capital em geral”, mas da
economia capitalista global contemporânea, exige uma modificação
significativa da formulação de Marx: em âmbito global, não se trata
tanto de os salários estarem acima ou abaixo do comum, de um
valor único, mas sim de que o valor da força de trabalho, e não
apenas o salário, seja rebaixado em alguns países, mas não em
outros.
Em outras palavras, o crucial não é tanto se o valor da força de
trabalho é violado por sub-remuneração, mas, como enfatizado no
início deste ensaio, a vulnerabilidade da igualdade entre
trabalhadores, uma violação que se reflete em sua força de trabalho
com valores diferentes. A tentativa de Katz de “corrigir” o conceito
de Marini, afirmando que a força de trabalho tem valores diferentes
dependendo de onde reside e que, por causa disso, “o conceito de
pagamento de força de trabalho abaixo de seu valor deve ser
substituído por uma remuneração menor desse recurso” (Katz,
2017, p. 10) não nos leva a lugar algum, por duas razões. Primeiro,
se aceitarmos (como deveríamos) que o valor da força de trabalho
varia amplamente entre os diferentes países, a pergunta que deve
ser respondida é por que varia tão amplamente? Segundo, Katz
argumenta que essa correção transforma a superexploração em um
fenômeno menor, não sistêmico, que é tão provável de ser
encontrado nos países “centrais” quanto na “periferia”.32 Mas isso só
pode ser verdade se concordarmos com sua afirmação de que “a
magnitude do trabalho excedente [...] é claramente maior nas
economias mais produtivas do centro” (Katz, 2017, p. 10). Isso é
idêntico ao argumento desenvolvido pelos marxistas negadores do
imperialismo, discutidos anteriormente neste ensaio, um argumento
enraizado na fusão das definições de produtividade de valor de uso
e valor de troca. Em outras palavras, nada mais do que a economia
burguesa disfarçada de economia marxista.
Como vimos, Marx excluiu repetida e explicitamente a supressão de
salários abaixo do valor da força de trabalho de sua “teoria geral” do
capital, enfatizando repetidamente a importância disso na vida real.
A redução no valor da força de trabalho ao suprimir os níveis de
consumo (ou o que equivale à mesma coisa, transferindo a
produção para países onde os níveis de consumo e, com eles, o
valor da força de trabalho, são muito menores) é uma terceira
maneira distinta de aumentar a mais-valia,33 e isso adquiriu uma
enorme importância durante a era neoliberal, tornando-se a força
motriz de sua maior transformação, o meio mais importante de
aumentar a taxa de mais-valia e contrapor a tendência de queda da
taxa de lucro.
A redescoberta dessa terceira forma de mais-valia é o avanço que
torna possível aplicar os conceitos dinâmicos e científicos contidos
n’O capital à realidade imperialista concreta e foi feito por Andy
Higginbottom em um artigo de 2009 intitulado “The Third Form of
Surplus Value Increase” [“A terceira forma de aumento da mais-
valia”], no qual ele se baseia no trabalho de Marini, e o desenvolve
ainda mais em uma série de artigos inovadores, alguns deles
citados neste ensaio. Em seu artigo de 2009, ele diz:
Marx analisa três formas distintas pelas quais o capital pode aumentar a mais-
valia, mas ele menciona apenas duas delas, mais-valia absoluta e mais-valia
relativa. O terceiro mecanismo, a redução dos salários abaixo do valor da força
de trabalho, Marx remete à esfera da concorrência e à parte de sua análise.
Ele desenvolve essa ideia em artigos posteriores, em que, por
exemplo, criticando a leitura ortodoxa padrão d’O capital, afirma:
Não está claro [...] por que prolongar a jornada de trabalho [mais-valia
absoluta]; e o efeito indireto, não intencional e mediado, do aumento da
produtividade do trabalho na diminuição do valor da força de trabalho [mais-
valia relativa] pertence à natureza intrínseca do capital, enquanto que o capital
que diminui diretamente os salários não. Os três mecanismos aumentam a taxa
de mais-valia [...]. A redução direta dos salários [é] crucial para a análise do
capitalismo como imperialismo e como um sistema mundial. (Higginbottom,
2011, p. 284)
O impulso de monopólio dos capitalistas, ou seja, o desejo de
capturar mais-valia às custas de outros capitalistas, junto ao seu
desejo insaciável por mão de obra superexplorável, se combinam
para ditar a trajetória imperialista inata e inexorável do capitalismo, o
único caminho possível que o capitalismo poderia ter tomado.
Ambos os elementos, o monopólio e a superexploração, são
absolutamente essenciais ao conceito de imperialismo; definir
imperialismo unicamente em termos de monopólio é uma análise
unilateral e, portanto, falsa, e esquece a outra definição, muitas
vezes repetida, de Lenin: “a divisão das nações em opressoras e
oprimidas [é] a essência do imperialismo” (Lenin, [1915] 1964, p.
409), que hoje se expressa na estrutura de apartheid da força de
trabalho global e da superexploração engendrada por ela.
Se é assim, por que a superexploração não está no centro do
conceito de imperialismo de Lenin, como exposto em Imperialismo,
estágio superior do capitalismo (Lenin, [1916] 1964), ao lado do
monopólio?
A resposta curta é que ela está no centro, e o leitor pode encontrá-la
se procurar, mas está encoberta e por boas razões. Como
argumentado anteriormente, não é razoável que esperemos
encontrar, nos escritos de Lenin e em outros escritos no momento
do nascimento do estágio imperialista do capitalismo, uma teoria do
imperialismo capaz de explicar sua forma moderna completamente
desenvolvida. Há um século, a relação entre nações imperialistas e
oprimidas era, em grande medida, uma relação entre formações
sociais capitalistas e pré-capitalistas, em flagrante contraste com o
mundo de hoje, em que as relações sociais capitalistas
estabeleceram um domínio quase total, e as relações entre nações
imperialistas e oprimidas ocorrem quase inteiramente na órbita da
relação capital-trabalho. Lenin não poderia ter incluído uma
concepção de como o valor é produzido nos processos de produção
globalizados porque a ocorrência em larga escala desse fenômeno
pertence a uma fase posterior do desenvolvimento capitalista do que
aquela em que vivia. Essas circunstâncias resultaram em uma
inevitável desconexão, persistindo até os dias de hoje, entre a teoria
do imperialismo de Lenin e a teoria marxista do valor, embora não
fosse inevitável que essa desconexão persistisse até hoje; por isso
não temos que culpá-lo.
Como Lenin disse no prefácio da edição francesa e alemã de sua
famosa brochura sobre o imperialismo, “superlucros enormes” se
acumulam em “um punhado de países excepcionalmente ricos e
poderosos que saqueiam o mundo inteiro” (Lenin, [1921] 1964, p.
193). Esses superlucros surgem do privilégio imperial, da violação
monopolista da troca equitativa. Os superlucros imperialistas podem
assumir várias formas: da escravidão e todas as outras formas vis
de extorsão, roubo e ilegalidade; ou da superexploração, na qual a
troca violada é aquela que ocorre entre capital e trabalho (mediada
por empregadores diretos, burguesias nacionais etc.). Nesse caso, a
igualdade violada é a igualdade entre proletários, cuja importância
central foi enfatizada no início deste ensaio.
O desejo insaciável dos capitalistas por mão de obra
superexplorável, junto com seu desejo permanente de colher onde
não semearam, de violar a igualdade de trocas entre agentes livres,
fornece o impulso para o imperialismo, razão pela qual o
imperialismo não pode ser reduzido ao monopólio ou à
maturidade/hipertrofia do capital ou a qualquer outro de seus efeitos.
A arbitragem global do trabalho, a substituição de trabalhadores
relativamente bem pagos por trabalhadores de baixos salários nos
países subordinados, a força motriz da globalização e da mudança
global de produção que caracterizou a era neoliberal, é a expressão
mais pura desse impulso.
A superexploração do trabalho assalariado desempenhou um papel
menor nos estágios iniciais do imperialismo capitalista, quando a
pilhagem imperial se manifestou na extração voraz de recursos
minerais, frequentemente com o uso de trabalho forçado, junto a
diversas formas de usura e extorsão financeiras. A troca desigual,
ou seja, os termos de troca desvantajosos e deteriorados das
exportações de mercadorias primárias do Sul (já presentes, como
Marini apontou, em meados do século XIX), alcançaram uma
importância proeminente no longo período que levou à era
neoliberal; contribuiu largamente para o aumento exponencial da
dívida, que se tornou uma fonte importante e contínua de pilhagem
por si só; finalmente, a globalização da produção característica da
era neoliberal transformou o trabalho vivo na lavoura a ser cultivada
e o recurso a ser extraído. E isso, durante a era neoliberal, tornou-
se a forma predominante de pilhagem imperial.
Isso traz à mente uma ideia luminosa de Evald Ilyenkov, que está
anos-luz além das banalidades da “teoria do desenvolvimento
desigual e combinado” (que, para muitos marxistas que negam o
imperialismo, serve como um substituto insípido de uma teoria do
imperialismo): “Muitas vezes [...], a causa objetiva genuína de um
fenômeno aparece na superfície do processo histórico depois de
sua própria consequência” (Ilyenkov, 1960, p. 217).

Conclusão
O impulso dos capitalistas ao monopólio, ou seja, seu desejo de
capturar mais-valia às custas de outros capitalistas, junto ao seu
desejo insaciável por trabalho superexplorável, se combinam para
definir a trajetória imperialista inata e inexorável no capitalismo. O
imperialismo e a superexploração estão, portanto, inseperavelmente
ligados. Uma teoria do imperialismo do século XXI deve explicar
como a superexploração modifica a relação de valores. Uma teoria
do imperialismo que não o faça é inútil, nula e, necessariamente,
uma negação do imperialismo, mesmo se aqueles que o negam
continuem a usar “imperialismo” como um termo descritivo.
Referências

AMIN, S. Modern imperialism, monopoly finance capital, and Marx’s


law of value. Monthly Review Press, Nova York, 2018.

BETTELHEIM, C. Some theoretical comments by Charles


Bettelheim. In: Emmanuel, A. Unequal exchange, a study in the
imperialism of trade. Londres: NLB, 1972.

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14
“Vemos, cotidianamente, ‘sair’ o Sol, dar uma volta à Terra, para
depois se esconder. Sabemos, não porque o vemos, mas por
conhecimentos, que não é o Sol que gira em torno da Terra, mas o
contrário” (Osorio, 2019, p. 2).
15
“O que é uma hipótese para a ‘análise geral do capital’, isto é, ao
nível do modo de produção, é assumido por algumas correntes
marxistas como uma lei de ferro. Se assume com isso que hipótese
deve prevalecer no capitalismo em todos os níveis de análise, em
todos os lugares e espaços e o tempo todo” (Osorio, 2018, p. 157).
16
O outro livro criticado por Vasudevan é Amin, 2018.
17
Esta citação é da epígrafe que antecede o artigo de Vasudevan.
Não está claro se as palavras são dos editores do Catalyst ou de
Vasudevan.
18
Não é minha intenção fazer uma comparação loquaz entre a
opressão imperialista e a opressão das mulheres, que em qualquer
caso não pode ser medida pelo acesso relativo a bens materiais. É
verdade que as mulheres contribuem com uma vasta quantidade de
trabalho doméstico não remunerado – mas o ponto relevante aqui é
que os níveis de consumo, acesso à saúde e educação etc.
dependem muito mais da nacionalidade do que do gênero.
19
Diz Lenin: “O movimento espontâneo da classe trabalhadora é o
sindicalismo [...], e o sindicalismo significa a escravização ideológica
dos trabalhadores pela burguesia. Portanto, nossa tarefa [...] é
combater o espontaneísmo e desviar o movimento da classe
trabalhadora do sindicalismo espontaneísta que se esforça para
ficar sob o controle da burguesia, e colocá-lo sob o controle da
social-democracia revolucionária” (Lenin, [1902] 1978, p. 50).
20
“Dependência” é um eufemismo para o imperialismo, uma
concessão feita ao desejo da burguesia nacional e “elites
modernizadoras” das nações sujeitas para o desenvolvimento
capitalista independente, e para as partes falsamente chamadas de
“comunistas”, que procuravam formar um bloco com aqueles nessa
base. O termo agora passou para a história e não pode ser
reescrito, mas pode ser e está sendo preenchido com novo
conteúdo revolucionário, especialmente no renascimento vívido e
em rápida expansão do marxismo e da teoria da dependência na
América Latina.
21
Callinicos voltou brevemente neste tema em seu livro: “Da
perspectiva da teoria do valor de Marx, o erro crítico [dos teóricos da
dependência] é não levar em conta a importância dos altos níveis de
trabalho produtividade nas economias avançadas” (Callinicos, 2009,
p. 179-180).
22
A participação do trabalho no PIB nos países imperialistas caiu
aproximadamente 60%, enquanto o gasto em educação no Reino
Unido, em 2019, consumiu 4% do PIB, ou aproximadamente 7% da
receita bruta do trabalho. Esta aproximação indica a magnitude
relativa dos custos de educação diante dos custos totais de
reprodução da força de trabalho. A “participação do trabalho” fica
distorcida pelos supersalários dos CEOs das principais empresas.
Por outro lado, o gasto com educação dos trabalhadores compõe
apenas uma parte do gasto total em educação, pois a proporção
real entre eles não se distanciará de 7%. Com relação aos custos de
treinamento... a maioria dos trabalhadores não recebe treinamento.
23
Estas conquistas estão agora sob grave ameaça já que o
imperialismo do Reino Unido se afunda cada vez mais na crise e
seus governantes procuram acelerar a destruição do contrato social
posterior à Segunda Guerra Mundial.
24
Ele afirma que Marini “sempre” concordou com isso e também
afirma que “este diagnóstico é aceito também pelos defensores
contemporâneos do conceito de superexploração”. Infelizmente, ele
não apoia essas afirmações com uma única citação de qualquer
uma das fontes por ele mencionadas.
25
A sentença da qual isso se derivou: “os melhores pontos em meu
livro são: 1) o caráter duplo do trabalho, segundo o modo com que é
expresso em valor de uso ou valor de troca (toda a compreensão
dos fatos depende disso) [...] 2) o tratamento da mais-valia,
independentemente de suas formas particulares, como lucro, juros,
aluguel de terreno etc.”.
26
Ao contrário, a dispersão salarial internacional e intranacional
aumentou durante a era neoliberal. Se a China ficar fora da cena, há
pouco evidência de convergência salarial ou de entradas, e a
hipótese de convergência fica ainda mais débil. Durante a crise
financeira mundial, quando as taxas de crescimento nos países
imperialistas ruíram, ao mesmo tempo, se produziu um “superciclo
de matérias-primas” alimentado pela especulação que melhorou
temporalmente os termos de troca e o crescimento econômico em
uma franja de nações do Sul.
27
Como apontou Amanda Latimer (2016, p. 1.142), “o trabalho de
Marini mina o mito de que a mudança para a mais-valia relativa na
Inglaterra foi inteiramente o produto da luta de classes nacional”.
28
Como em seus outros escritos, Sweezy desconsidera a distinção
entre trabalho produtivo e improdutivo, uma distinção que é sem
dúvida muito mais importante nos países imperialistas
desenvolvidos do que em suas colônias e neocolônias.
29
A China é uma exceção extremamente importante, mas ainda
parcial, e é por isso que está em rota de colisão com as potências
imperialistas em exercício, principalmente o Japão e os Estados
Unidos
30
“Quando Marx afirma que as empresas que operam com uma
produtividade abaixo da média obtêm menos do lucro médio [...]
tudo isso [...] significa que o valor ou mais-valia realmente produzido
por seus trabalhadores é apropriado no mercado pelas empresas
que funcionam melhor. Isso não significa, em absoluto, que eles
tenham criado menos valor ou mais-valia do que o indicado pela
quantidade de horas trabalhadas nelas” (Mandel, 1975, p. 101).
31
Ou melhor, vender a preços que correspondam à forma
modificada de seu valor, que Marx chamou de “preços de produção”,
preços consistentes com a equalização da taxa de lucro entre
diferentes capitais.
32
Com base nisso, Claudio Katz argumentou que “a teoria da
dependência não precisa de um conceito de superexploração
omitido por Marx” (Katz, 2017, p. 15); Jaime Osorio respondeu que a
proposta de Katz de “reformulação da teoria marxista da
dependência nada mais é do que um chamado ao seu repúdio”
(Osorio, 2018, p. 179).
33
Em A dialética da dependência, Marini argumenta: “o conceito de
superexploração não é idêntico ao de mais-valia absoluta, já que
inclui também uma modalidade de produção de mais-valia relativa –
a que corresponde ao aumento da intensidade do trabalho. Por
outra parte, a conversão do fundo de salário em fundo de
acumulação de capital não representa rigorosamente uma forma de
produção de mais-valia absoluta, posto que afeta simultaneamente
os dois tempos de trabalho no interior da jornada de trabalho, e não
somente o tempo de trabalho excedente, como ocorre com a mais-
valia absoluta. Por tudo isso, a superexploração é melhor definida
pela maior exploração da força física do trabalhador, em
contraposição à exploração resultante do aumento de sua
produtividade, e tende normalmente a se expressar no fato de que a
força de trabalho se remunera abaixo de seu valor real (Marini,
1973, p. 93). Citado conforme a edição brasileira “Sobre a dialética
da dependência”. In: Stedile, J. P; Traspadini, R. Ruy Mauro Marini:
vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2011.
CAPITALISMO MORIBUNDO E
COMPETITIVO
E. AHMET TONAK34

Um dia, na década de 1980, meu avô materno estava sentado em um


parque no subúrbio de Londres. Um britânico idoso aproximou-se dele e
apontou-lhe um dedo na cara. “Por que você está aqui?”, o homem exigiu
saber. “Por que você está no meu país?”
“Porque somos os credores”, respondeu meu avô, que nasceu na Índia,
trabalhou toda a sua vida no Quênia colonial e agora estava aposentado
em Londres. “Vocês levaram toda a nossa riqueza, nossos diamantes.
Agora nós viemos para cobrar”. “Estamos aqui”, disse meu avô, “porque
vocês estiveram lá”.
Suketu Mehta. This land is our land

Introdução
Nessa era da globalização, o conceito de imperialismo perdeu parte
de seu prestígio teórico; até mesmo uma referência passageira pode
agora ser considerada banal e pouco sofisticada. Curiosamente, a
popularidade relativamente recente do conceito e a formulação de
novas teorias concorrentes do imperialismo se concentram
principalmente em suas manifestações políticas (como guerras e
invasões militares) ou nas consequências econômicas das relações
capitalisticamente imperialistas35 (como desigualdade e pobreza).
Sem negar o significado político e a urgência de desenvolver
análises do domínio político dos países capitalistas avançados (o
Norte Global) sobre os menos avançados (o Sul Global), concentro-
me aqui no papel desempenhado pelas relações econômicas
desiguais entre o Norte e o Sul em constituir a base da dominação
política. Ao mesmo tempo, vejo as fontes de desigualdade
doméstica e internacional como características embutidas no
desenvolvimento capitalista, para as quais a motivação do lucro é
fundamental. É dentro desse marco que os mecanismos de
transferência de valor devem ser vistos como os meios de
reproduzir desigualdades entre as economias capitalistas
sustentadas pelos processos globais de acumulação de capital.
Certos participantes ativos nos debates atuais sobre o novo
imperialismo, notadamente David Harvey, argumentam que a
interpretação clássica do imperialismo não tem mais muito poder
explicativo e que a direção da transferência de valor foi revertida nos
últimos anos.36 Embora as interpretações clássicas do imperialismo
– por exemplo, as de Bukharin, Luxemburgo e Lenin – não sejam
livres de falhas, não posso concordar com a rejeição de Harvey às
contribuições anteriores. E mais: acredito que a especulação de
Harvey quanto à reversão da direção da transferência de valor seja
infundada, tanto teórica quanto empiricamente. Contra tais opiniões,
eu argumentaria que o imperialismo está vivo e bem e, mais
importante, que limita as tentativas de desenvolvimento econômico
autônomo no Sul. Sem negar a dificuldade empírica de estimar seu
valor total e líquido, não há dúvida de que os países imperialistas
continuam a extrair riqueza do Sul Global.
Também é digno de nota que a maioria das novas conceituações do
imperialismo desde Lenin (e até mesmo desde Hilferding e Hobson)
se basearam na ideia de poder, especificamente do poder de
grandes empresas monopolistas. A afirmação de Lenin era bastante
direta: o capitalismo finalmente chegara ao seu estágio final –
capitalismo de monopólio – que era o imperialismo. Devo
acrescentar que várias modificações conceituais ao conceito de
capitalismo monopolista foram propostas desde a formulação
superficial de Lenin sobre o último estágio do capitalismo. Em
particular, a reconceitualização devida a Paul Baran e Paul Sweezy,
que consideraram o monopólio como a ausência de concorrência e
argumentaram pela inaplicabilidade da teoria do valor de Marx,
dominou a maioria das análises do capitalismo moderno na
esquerda.
Mas realmente é assim? E como exatamente a concorrência
desapareceu durante o final do século XIX? Eu argumentaria, ao
contrário, que a concorrência se intensificou em vez de desaparecer,
à medida que o capitalismo se desenvolveu e passou pelo processo
de centralização e concentração do capital. Aqueles que alegaram
que o estágio atual do capitalismo deveria ser entendido como
monopolista se basearam principalmente na noção implícita de livre
concorrência (ou concorrência pura ou perfeita) em relação à fase
anterior do capitalismo,37 uma noção que não tem relação com a
concepção de Marx de concorrência real como guerra entre
unidades de capital (e entre os próprios trabalhadores).38 Marx
supôs que essa concorrência bélica opera dentro e através das
nações, em outras palavras, que é um processo regulador central
que funciona tanto doméstica quanto internacionalmente.39
Obviamente, a própria base dessa concorrência é o fato de que o
capital é principalmente – e de fato exclusivamente – impulsionado
pelo lucro, e que essa preocupação não apenas produz ciclos e
crises, mas também aumenta o exército de reserva de força de
trabalho em escala global.
Embora geralmentese considere exatamente o oposto, eu
argumentaria que o papel do Estado se tornou mais, e não menos,
significativo à medida que o capitalismo se expandiu globalmente. A
principal função do Estado capitalista sempre foi criar um terreno
fértil para a obtenção de lucro, tanto em âmbito nacional como
internacional. O cumprimento dessa função anda de mãos dadas
com um arcabouço ideológico no qual os conceitos de liberdade
(leia-se: mobilidade do capital) e concorrência são não apenas
centrais, mas usados de forma fetichizada. Como David Gordon
disse,
o fio da navalha da concorrência capitalista se tornou mais afiado: empresas
locais são cada vez mais obrigadas a se igualar aos produtores de menor custo
nos mercados concorrentes globais ou correm o risco de terem seus pulsos
cortados. Gordon (1998, p. 28)
Hoje em dia, costuma-se dizer que todos os países devem se
submeter aos ditames da concorrência mundial. Sem produtos de
“classe mundial”, diz a tese, é provável que o padrão de vida de um
país se estagne, se não declinar catastroficamente.
A seguir, revejo brevemente as principais formas de transferência de
valor a partir do Sul, observando que sua importância relativa
mudou nas últimas décadas. Depois, foco no conceito de Marx de
“taxa de mais-valia”, e mostro como pode ser usado empiricamente.
Nesse contexto, aproveitarei a oportunidade para comentar sobre o
uso e abuso do termo superexploração. Por fim, sugiro algumas das
áreas de pesquisa menos exploradas e necessárias para melhorar
nossa compreensão da natureza das relações imperialistas na
economia mundial extremamente integrada de hoje.

Formas de transferência de valor


Antes de listar algumas das formas mais importantes de
transferência de valor – ou seja, da apropriação da riqueza gerada
pela classe trabalhadora do Sul pelos capitalistas do Norte –, deve-
se salientar que a própria existência da transferência de valor não
deve ser interpretada como a causa da desigualdade entre as
regiões do mundo. A acumulação de capital e a expansão global do
capitalismo têm sido desiguais e integradas desde o início. Os
processos históricos correspondentes são, por sua natureza,
amplamente determinados por vários fatores econômicos e políticos.
A direção e a quantidade de transferência de valor líquido entre as
regiões são bastante complicadas; enquanto fluem do Sul para o
Norte, obviamente contribuem para a perpetuação das relações
imperialistas, quando para a sua criação.40
Uma das formulações marxistas mais proeminentes sobre a
transferência de valor do Sul para o Norte é a teoria da troca
desigual de Arghiri Emmanuel. Ao desafiar a visão de Sweezy de
que a equalização da taxa de lucro em escala mundial não é
possível devido à imobilidade do capital, Emmanuel apontou que,
embora se possa falar da relativa imobilidade do trabalho, que
produz diferenças salariais internacionais persistentes, o capital é
móvel e tende a igualar as taxas de lucro em todo o mundo. Esse
processo de equalização implica que a taxa de lucro nos países do
Sul seja geralmente menor do que a do Norte, devido à
transferência de lucros (mais-valia) em virtude da menor
composição orgânica do capital no Sul (Shaikh, 1980, p. 298).41
Uma apresentação crítica da aplicação altamente criativa que
Emmanuel fez da teoria do valor de Marx para a economia mundial
estaria além do escopo do presente ensaio. Devo observar, no
entanto, que a teoria da troca desigual de Emmanuel foi criticada e
aprofundada por outros marxistas, incluindo Javier Iguiñiz, Charles
Bettelheim, Samir Amin, Ernest Mandel, Anwar Shaikh e Nail
Satlıgan.
Outra forma de transferência de valor é baseada nos investimentos
em carteira e no endividamento internacional do Sul. O primeiro tem
a ver com a repatriação dos lucros obtidos com o investimento
especulativo de capital monetário em ações, títulos, câmbio e uma
variedade de outros instrumentos financeiros; o último baseia-se nos
ganhos de pagamentos de juros exorbitantes impostos aos países
devedores do Sul.
Historicamente, uma das principais formas de transferência de valor
tem sido o repatriamento de lucros com base no investimento direto
dos capitalistas do Norte nos países do Sul. Desde a brochura de
Lenin sobre o imperialismo, o investimento estrangeiro direto (IED)
tem sido considerado uma característica principal do imperialismo
capitalista moderno. À medida que o capitalismo se desenvolveu, a
primazia do capital mercantil (tanto na apropriação de recursos
naturais e matérias-primas do Sul quanto na venda de mercadorias
acabadas para o Sul) foi substituída pelo capital produtivo
(investimento estrangeiro direto).42 Dada sua importância histórica, a
centralidade desta forma de transferência de valor e a ênfase
exagerada (pelos primeiros teóricos do imperialismo) no IED são
compreensíveis. No entanto, algumas observações devem ser
feitas, considerando padrões recentes de fluxos de IED. O primeiro
ponto tem a ver com o fato de que os ingressos de IED para as
economias desenvolvidas têm sido, ultimamente, maiores do que os
das economias em desenvolvimento (44% em 2018, excluindo a
China). Na era atual da globalização, os ingressos de IED para as
economias em desenvolvimento excederam os das economias
desenvolvidas pela primeira vez em 2018 – 54%, incluindo a China
(UNCTAD, 2019). No entanto, este primeiro fenômeno é uma
anomalia, de acordo com a Conferência das Nações Unidas sobre
Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD):
Os fluxos de IED para as economias desenvolvidas atingiram o ponto mais
baixo desde 2004, diminuindo 27%. Os ingressos para a Europa caíram para
menos de 200 bilhões de dólares, devido aos ingressos negativos em uma
grande parcela de países, como resultado de repatriações de fundos e a uma
queda considerável no Reino Unido. Os ingressos nos Estados Unidos também
caíram 9%, para 252 bilhões de dólares. Os fluxos para os países em
desenvolvimento permaneceram estáveis, aumentando 2%. Como resultado do
aumento e da queda anômala do IED nos países desenvolvidos, a participação
dos países em desenvolvimento no IED global aumentou para 54%, um índice
recorde. (UNCTAD, 2019)
Participação do IED das Economias em Desenvolvimento, com e
sem China

Fontes: Baseado nos dados da UNCTAD (2019).


Em segundo lugar, e ao contrário do pressuposto geral da esquerda,
o capital estrangeiro não flui para o Sul porque os salários são em
sua maioria baixos. Isso foi convincentemente argumentado por
David Gordon, que descobriu que a importância de fatores como
baixos salários e trabalho excedente foi muito exageradas no
exterior, e que existem outros fatores que influenciam a decisão do
capital de investir em outros países. Gordon identificou três fatores
como os mais importantes: proximidade com grandes mercados
domésticos; horizontes de preço e comércio relativamente estáveis;
e o clima institucional geral e seu prospecto de evolução ao longo
de uma década (Gordon, 1988, p. 59).
Ainda neste ano, quando 754 executivos de grandes corporações
multinacionais foram questionados sobre os fatores relevantes para
suas decisões de investir em países estrangeiros, o fator de baixos
salários não foi citado entre os mais importantes (Banco Mundial,
2018). De fato, dentre os fatores considerados “criticamente
importantes” ou “importantes” para as decisões de investimento
estavam a estabilidade e segurança política, o ambiente jurídico e
regulatório, a amplitude do mercado interno, a estabilidade
macroeconômica e a taxa de câmbio favorável, o talento e a
habilidade disponíveis da força de trabalho, boa infraestrutura física
e taxas de imposto baixas, com respectivamente 87%, 86%, 80%,
78%, 73%, 71% e 58% de afirmações positivas na pesquisa. Por
outro lado, o fator de baixo custo da força de trabalho e insumos foi
considerado como importante em 53% das respostas (Banco
Mundial, 2018). É notável que o que Gordon identificou há 32 anos
atrás como razões mais importantes do que os baixos salários nas
decisões sobre investimento estrangeiro permaneçam vigentes
dentre aquelas consideradas pelos tomadores de decisão das
corporações multinacionais!
Fatores Principais do Investimento Estrangeiro Direto

Fontes: Baseado em dados do Banco Mundial. 2018


Um ponto final a respeito da importância dos lucros estrangeiros do
ponto de vista do capital dos EUA (e dos trabalhadores) é ilustrado
no gráfico a seguir. Os lucros repatriados das multinacionais
estadunidenses como uma porcentagem do lucro total dos EUA
flutuaram entre 20% e 50% (se excluirmos o período da crise de
2007-2009) desde 1998.
Lucros estrangeiros como porcentagem do total de lucros dos EUA e salários
domésticos nos EUA, 1998-2018

Fontes: Lucros corporativos do NIPA. Tabelas 6-16 B-D: linha 2,


Indústrias domésticas; linha 6, Receitas do resto do mundo;
Remuneração dos funcionários da NIA; Tabela 1.13, linha 6,
Remuneração dos empregados (Post, 2010, p. 21).
Considerando o fato de que apenas cerca de 50% desses “lucros
estrangeiros” são originários dos países do Sul, não se deve
exagerar sua contribuição, que variou entre 10% e 25% do total dos
lucros nos EUA. Da mesma forma, com relação à questão de se a
“aristocracia trabalhadora” nos EUA é sustentada por lucros
transferidos, eu destacaria o fato de que a parcela dos lucros
repatriados do Sul corresponde aproximadamente a apenas 6-7%
do salário total. Este último número baseia-se na suposição
extremamente irrealista de que todos os lucros estrangeiros
transferidos são totalmente alocados aos trabalhadores dos EUA,
enquanto as multinacionais dos EUA não retêm lucro algum (Post,
2002).

A taxa de mais-valia e imperialismo


A taxa de exploração é um dos conceitos mais importantes na teoria
do valor de Marx. É a base da distribuição de renda –
consequentemente, da taxa de lucro –, bem como é central para
nossa compreensão da natureza específica da sociedade capitalista
(Amsden, 1981, p. 229). Ademais, é essa medida, ou seja, a
proporção de um componente do valor agregado (mais-valia) para o
outro (capital variável, isto é, os salários dos trabalhadores
produtivos), que nos permite mostrar quanto o trabalhador contribui
para o aumento de valor no processo de produção e como esse
valor agregado é dividido entre capitalistas e trabalhadores. Deve
ser notado que, mesmo que o trabalhador receba mais, a taxa de
exploração ainda aumenta em virtude da mecanização
(barateamento dos bens de consumo) e do gerenciamento eficiente
do processo de produção (aumentando a intensidade do trabalho).
Como a taxa expressa quantitativamente os interesses
contraditórios dos capitalistas e dos trabalhadores, há uma política
radical implícita na análise da taxa de exploração. Isso permite que
os trabalhadores vejam quanto da parcela do valor produzido lhes é
expropriada pelos capitalistas e, portanto, defendam uma maneira
diferente de organizar a produção e colocar fim à exploração
(Tricontinental, 2019).
Os trabalhadores vendem sua força de trabalho por uma dada
quantia de dinheiro, conhecida como capital variável. Quando eles
começam a trabalhar na produção de mercadorias, apenas uma
fração de sua jornada de trabalho é usada para produzir
mercadorias suficientes para cobrir seus próprios salários. Marx
chamou isso de tempo de trabalho necessário. Era necessário
porque os trabalhadores deveriam reproduzir continuamente sua
força de trabalho empobrecida. No entanto, a quantidade de tempo
de trabalho necessário (ou a quantidade correspondente de
salários) varia em diferentes épocas e países, devido ao fato de que
as cestas de consumo dos trabalhadores consistem em diferentes
quantidades de bens e serviços. Em alguns países, o padrão de
vida é mais baixo que em outros, o que significa que o tempo de
trabalho necessário também é menor, mantendo os salários baixos.
O restante da jornada de trabalho, passado o tempo de trabalho
necessário, é o tempo de trabalho excedente. É o tempo que o
trabalhador gasta produzindo mercadorias que estão acima e além
da quantidade que precisam produzir para pagar seus próprios
salários. Portanto, a taxa de mais-valia também pode ser expressa
como uma razão entre o tempo de trabalho excedente e o tempo de
trabalho necessário. Seja na forma da razão entre a mais-valia (S) e
o capital variável (V) ou entre o tempo de trabalho excedente e o
tempo de trabalho necessário, a taxa de mais-valia é considerada
uma expressão quantitativa da exploração do trabalhador.
O que apresentei brevemente acima é bem conhecido de qualquer
pessoa familiarizada com o básico da economia marxista. O terreno
menos familiar é a maneira pela qual a taxa de mais-valia se
expressa concretamente na realidade das economias capitalistas e
em sua estimativa empírica. Meu trabalho com Anwar Shaikh
apresentou um método, passo a passo, para estimar a taxa de mais-
valia para a economia dos EUA no período de 1948 a 1989 (Shaikh
e Tonak, 1994).43 Como este trabalho está disponível para os
leitores que se interessarem, simplesmente reiterarei uma de suas
principais conclusões: a taxa de mais-valia (S/V; a taxa de
exploração de trabalhadores produtivos) aumentou em mais de 40%
no pós-guerra, de 170% em 1948, para 244% em 1989 (e, de
acordo com as estimativas atualizadas de Mohun, para quase 300%
em 2001).
Tanto o nível da taxa de mais-valia nos EUA quanto seu aumento
impressionante nos permitem fazer alguns comentários adicionais
sobre a extraordinária visão de Marx sobre o ritmo e a finalidade da
taxa. Marx previu que, à medida que o capitalismo se
desenvolvesse, a taxa de mais-valia necessariamente aumentaria –
e assim o foi, quase duas vezes em 50 anos no caso dos EUA.
Novamente, como apontado por Marx, os capitalistas recorrem a
uma variedade de meios para aumentar a taxa de mais-valia,
especialmente durante períodos de queda nas taxas de lucro, a fim
de neutralizar a tendência de queda da lucratividade. Agora é um
fato já bem estabelecido que “a repressão direta contra os
trabalhadores iniciada na era Reagan teve o claro efeito de reverter
o padrão de lucratividade do pós-guerra” (Shaikh, 2016, p. 731),
como manifestado no aumento da taxa de mais-valia em 200%, na
década de 1980, para 300%, na década de 2000 (Mohun, 2005).
Como a diferença entre as taxas de mais-valia nos países do Norte
e do Sul tem sido uma questão central no desenvolvimento da
noção de “superexploração” (e, nessa base, até mesmo de uma
teoria do imperialismo), vale a pena citar algumas das estimativas
para o Sul. Vamos examinar primeiro as estimativas da taxa de
mais-valia na Turquia e na Grécia, e depois citar brevemente
algumas outras estimativas para estabelecer uma base comparativa.
Com relação às estimativas para a Turquia, inquestionavelmente, a
análise mais abrangente e sofisticada foi feita por Karahanoğulları
em seu livro O valor de Marx é mensurável? Karahanoğulları
analisou o período 1988-2006 e documentou o fato de que o valor
médio da taxa de mais-valia durante esse período era de 239% –
passando de 254%, em 1988, para 312% em 2006 (Karahanoğulları,
2009).44
Em outro trabalho empírico relevante para a discussão do
imperialismo no contexto da Turquia, Tonak (1998) explorou as
razões lucro-salário (um pseudoindicador da taxa de mais-valia) em
algumas das empresas intensivas em IED durante 1996. Baseado
nos dados das 500 principais empresas, coletados pela Câmara dos
Industriais de Istambul, e das seis principais joint ventures com
capital estrangeiro, os resultados foram consistentes com nossas
expectativas teóricas. Como essas joint ventures são
tecnologicamente sofisticadas e capazes de implementar a
supervisão gerencial para aumentar a intensidade do trabalho, todas
apresentaram índices de lucro-salário muito mais altos do que a
média das 500 empresas. Para dar uma noção concreta da
amplitude da “exploração”, conforme indicado pela razão lucro-
salário, podemos citar o fato de que 4 empresas (de setores
variados, incluindo tabaco – Philip Morris – e automotivo – Renault)
tiveram suas razões de lucro-salário entre quatro e seis vezes acima
da média, e as outras duas (ambas as fabricantes de automóveis –
Toyota e Fiat – que são joint ventures com o capital turco) tiveram
um pouco mais de três e duas vezes a média, respectivamente.
O trabalho relativamente recente sobre a taxa de mais-valia na
Grécia é de Tsoulfidis e Persefoni (2014), e eles descobriram que a
taxa estimada de mais-valia mudou de aproximadamente 150% em
1970 para cerca de 200% em 2006 (Tsoulfidis e Persefoni, 2014).
Uma das primeiras contribuições importantes na literatura para a
análise comparativa das taxas de mais-valia na indústria de
transformação, no período 1969-1977, foi feita por Alice Amsden
(1981). Tanto a originalidade de sua análise quanto sua relevância
para nossa compreensão do capitalismo antes do atual período de
globalização podem ser vistas em sua observação introdutória:
Uma comparação internacional das taxas de mais-valia lança luz sobre as
dimensões e as possibilidades de criação de mais-valia sob várias condições
históricas e institucionais. Serve como ponto de partida para a disseminação
desigual do capitalismo em escala global, que afeta a extração de mais-valia
em contextos sociais díspares. (Amsden, 1981, p. 229)
O resultado final das descobertas de Amsden, mesmo considerando
que seus cálculos foram setoriais e não agregados para o período
pré-globalização, bastante inesperado: ela descobriu que as taxas
de mais-valia nos países do Sul excederam substancialmente as do
Norte. Curiosamente, a taxa de mais-valia entre os países de renda
média do Sul tende a ser maior do que a dos países de renda baixa
do Sul (Amsden, 1981, p. 242).
Taxas comparativas de mais-valia

Fontes: Compilado de vários estudos pelo autor


Como mencionado anteriormente, a diferença entre as taxas de
mais-valia nos países do Norte e do Sul tem sido uma ideia central
no desenvolvimento da noção de superexploração e, com base
nisso, no desenvolvimento de uma teoria do imperialismo, desde a
contribuição original de Ruy Mauro Marini.45 Os proponentes mais
recentes dessa abordagem são Andy Higginbottom (2010) e John
Smith (2016). Em particular, o livro premiado de Smith recebeu
muita atenção e gerou um debate substancial. Em vez de resumir as
questões do debate, que estão disponíveis especialmente através
do blog mantido por M. Roberts (2019), simplesmente quero
destacar alguns dos pontos de concordância e discordância entre
mim e Smith.
Não há dúvida de que a expansão global do circuito do capital
produtivo, na forma de cadeias de valor, seja um fenômeno
relativamente recente e muito importante. É uma área que
definitivamente requer mais atenção e precisa de trabalho adicional,
tanto teórico quanto empírico, a partir do uso da teoria do valor-
trabalho. Também foi demonstrado por alguns trabalhos empíricos
incluindo o nosso no Instituto Tricontinental de Pesquisa Social
(2019) que essas empresas integrantes das cadeias de valor no Sul
impuseram taxas de mais-valia muito mais altas a seus
trabalhadores do que suas contrapartes no Norte. Nosso trabalho
mais recente sobre o iPhone 10 estimou que a taxa de exploração
dos trabalhadores envolvidos em sua produção seja acima de
2.000% (Tricontinental, 2019).
Além desses pontos de acordo, no entanto, o fato de a transferência
de valor entre o Norte e o Sul (ou das economias capitalistas mais
fracas para as mais fortes, tanto doméstica quanto
internacionalmente) ter múltiplas fontes, como indicado
anteriormente, torna bastante complicado determinar a direção e o
valor líquido dessas transferências, bem como destacar uma fonte
particular (por exemplo, taxas mais altas de mais-valia) para tentar
construir uma teoria do imperialismo em torno dela. O conceito de
superexploração requer uma definição clara e empiricamente
aplicável. Smith tentou fazer o primeiro em seu livro, definindo a
superexploração como surgindo no Sul quando a taxa de mais-valia
é mais alta que a taxa média de mais-valia no Norte.46 No entanto,
não há uma única estimativa comparativa das taxas de mais-valia
no próprio livro, embora afirme que o próprio conceito de
superexploração não apenas serve como base de uma nova teoria
do imperialismo, mas também inicia o renascimento do marxismo.

Conclusão
Para recapitular, a teoria do imperialismo precisa de uma teoria da
concorrência global, e tal teoria pode ser desenvolvida com base na
noção de concorrência doméstica de Marx, apresentada n’O capital.
Essa tentativa envolve teorias do comércio internacional, da
determinação da taxa de câmbio real e da formação de preços
através da aplicação de uma teoria real da concorrência entre
setores e dentro de setores, internacionalmente.47 Portanto, o
próprio imperialismo não deve ser entendido como um exercício de
poder pelas empresas monopolistas do Norte sobre as mais fracas
do Sul. Em vez disso, as relações imperialistas devem ser vistas
como manifestações da natureza muito desigual, e historicamente
determinada, do desenvolvimento capitalista global. Essas relações
contêm várias formas de transferência de valor, que são os próprios
meios de perpetuar as relações imperialistas já existentes, em vez
de serem suas causas.

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34
Sem implicá-los, sou muito grato à I. C. Schick, V. Prashad, e Z.
Ü. Kutlu pelas sugestões.
35
Uso o termo capitalisticamente imperialista para distinguir meu
foco de outras relações imperialistas que existiram historicamente
entre países fortes e fracos (territórios, comunidades etc.) nos
modos de produção pré-capitalistas.
36
Como frequentemente citado, Harvey escreve que “aqueles de
nós que pensam as antigas categorias do imperialismo não se
enquadram muito bem nos tempos atuais, não negam os fluxos
complexos de valor que expandem a acumulação de riqueza e de
poder em uma parte do mundo às custas da outra. Nós
simplesmente achamos que os fluxos são mais complicados e que
mudam de direção constantemente. A drenagem histórica de
riqueza do Oriente pelo Ocidente por mais de dois séculos, por
exemplo, tem sido, em boa medida, revertida ao longo dos últimos
30 anos.” (Harvey, 2017, p. 169). John Smith identifica estes
autores, utilizando um termo um tanto quanto pesado, como os
“negadores do imperialismo”, e aqueles que têm diferentes
formulações sobre os mecanismos de transferência de valor como
“Euro-marxistas”, outro adjetivo politicamente carregado. (Smith,
2016 and 2018)
37
Curiosamente, vários aspectos da concorrência capitalista real,
como formulados inicialmente por Marx, são atribuídos ao
monopólio. Para demonstrar o desnecessário uso do monopólio e o
significado e a aplicabilidade funcional da concorrência ao
capitalismo moderno, substituí o termo “monopólio” por
“concorrência” (com pequenas modificações) na seguinte citação do
novo livro de Smith sobre imperialismo. Como os leitores podem ver,
a citação modificada faz todo sentido e a necessidade do termo
“monopólio” é, digamos,no mínimo, questionável: “A concorrência
ocorre de várias formas. Algumas dizem respeito à produção, isto é,
inovações tecnológicas que permitem que um capitalista individual
produza uma determinada mercadoria com mais eficiência do que
outras; outras, à distribuição (marca ou outras formas de
concorrência no mercado, barreiras para novos entrantes, captura
do Estado, acesso privilegiado a insumos baratos etc.); tudo pode
ter vida curta ou duradoura. É comum a todas as formas de
concorrência que elas redistribuem a mais-valia entre os capitais,
permitindo que capitalistas individuais ou grupos de capitalistas
obtenham lucros extras vendendo mercadorias por mais que valores
(isto é, mais que preços diretos que são proporcionais aos valores
de mercadorias) aos custos de lucros mais baixos para o resto”
(Smith, 2018).
38
A noção de concorrência de Marx como guerra é um dos
conceitos fundamentais do recente livro de Shaikh, Capitalismo, em
que a chamou de concorrência real, “[...] antagônica por natureza e
turbulenta em operação. É o mecanismo regulador central do
capitalismo e é tão diferente da chamada concorrência perfeita
quanto a guerra é diferente do balé. A concorrência dentro de um
setor obriga os produtores individuais a estabelecerem preços que
os mantenham no jogo, assim como os obriga a reduzir custos para
que possam reduzir os preços para competir de maneira eficaz. Os
custos podem ser reduzidos cortando salários e aumentando a
duração ou a intensidade da jornada de trabalho, ou pelo menos
reduzindo o crescimento salarial em relação ao da produtividade.
Mas estes devem enfrentar a reação do trabalho, razão pela qual a
mudança técnica se torna o meio central no longo prazo. Nesse
contexto, os capitais individuais tomam suas decisões com base em
julgamentos sobre um futuro intrinsecamente indeterminado. A
competição coloca vendedor contra vendedor, vendedor contra
comprador, comprador contra comprador, capital contra capital,
capital contra trabalho e trabalho contra trabalho. Bellum omnium
contra omnes.” (ênfase minha; Shaikh, 2016, p. 14).
39
É um fato frequentemente citado que Marx planejou, mas nunca
foi capaz de completar, um volume específico d’O capital, o sexto,
inteiramente dedicado à economia global (“o mercado mundial e as
crises”, nas palavras de Marx) (Mandel, 1976).
40
Para uma discussão detalhada desses pontos, consulte o fértil
artigo de Shaikh sobre comércio exterior, lei do valor e troca
desigual (1979, 1980). Este artigo também é útil para identificar as
diferenças entre os principais teóricos da troca desigual, como
Arghiri Emmanuel, Ernest Mandel e Samir Amin. Devo indicar que
alguns dos pontos do texto de Shaikh também foram desenvolvidos
por Javier Iguiñiz em sua tese de doutorado (orientada por Shaikh)
na New School (Iguiñiz, 1999).
41
Um trabalho empírico recente sobre troca desigual sugeriu que,
para o Sul, a transferência de saída de valor variou entre 10% e
20% (Ricci, 2019).
42
Uma conceituação altamente original e precoce da transição da
dominação de um tipo de circuito de capital para outro foi proposta
pelo marxista francês Christian Palloix (1977).
43
Este trabalho forneceu a base metodológica de outras estimativas
semelhantes em muitos países diferentes, incluindo as da Grécia
por Paitaridis e Tsoulfidis (2012), Tsoulfidis e Persefoni, (2014), e da
Turquia por Karahanoğulları (2009). Devo também mencionar as
importantes contribuições de Simon Mohun na atualização de
nossas estimativas (com algumas correções) com base na
disponibilidade de conjuntos de dados mais recentes (Mohun, 2005).
44
Algumas das primeiras estimativas foram feitas por Tonak (1980),
que aponta que os números mudaram de 376% em 1950 para 352%
em 1975.
45
Do nosso ponto de vista, os defensores do conceito de
superexploração, em última análise, pertencem à escola do
subdesenvolvimento, uma vez que, para eles, a questão tem sido
como identificar a fonte do “desenvolvimento do
subdesenvolvimento” dentro do domínio das chamadas causas
externas, isto é, o imperialismo. Entretanto, nessa perspectiva, o
subdesenvolvimento do Sul é o produto do desenvolvimento do
Norte e, nesse sentido, os dois processos estão entrelaçados.
Ademais, a abordagem da superexploração implica uma
passividade atribuída às classes trabalhadoras tanto no Sul quanto
no Norte.
46
De acordo com Smith, a troca desigual entre capitalista e
trabalhador (no sentido de que os trabalhadores são pagos abaixo
do valor da força de trabalho) leva à superexploração.
Dentro de um país, alguns relatos devem ser feitos sobre o
“problema da habilidade” em Smith, Ricardo e Marx. Um artigo
sobre Shaikh e Glenn (2018), sobre o qual taxas iguais de
exploração mesmo dentro de um país implicam salários desiguais,
é: https://ideas.repec.org/p/new/wpaper/1811.html
47
Algumas dessas áreas de pesquisa foram abordadas em nosso
livro anterior (Shaikh e Tonak, 1994), mas também de forma mais
abrangente no livro recente de Shaikh (2016).
NOTAS SOBRE A ATUALIDADE
DO IMPERIALISMO E A NOVA
ESTRATÉGIA DE SEGURANÇA
NACIONAL DOS ESTADOS
UNIDOS
ATILIO A. BORON

Introdução
Nas páginas que seguem, compartilharemos algumas observações
sobre a atualidade do imperialismo e seu impacto sobre a guerra e a
paz no mundo atual e, especialmente, sobre o presente e o destino
da América Latina e do Caribe. Trata-se, sem dúvida, de um
conjunto de assuntos da maior importância porque o capitalismo
esteve desde seu nascimento associado à guerra e à arte militar.
Diversos escritos de Marx e Engels comprovam o cuidadoso
acompanhamento que ambos faziam das guerras em curso dentro e
fora do continente europeu. Em sua “Introdução”, de 1857, Karl
Marx nos diz que “a guerra se desenvolveu antes do que a paz” e,
por isso, ele se propõe a “mostrar a maneira com que certas
relações econômicas, tais como o trabalho assalariado, o
maquinismo etc., foram desenvolvidos pela guerra e nos exércitos
antes do que no interior da sociedade burguesa” (Marx, 1974, p. 56-
57). Mas dos dois jovens amigos, foi Friedrich Engels quem se
especializou no estudo sistemático da problemática militar. Este, a
quem, por sua paixão pelas questões da guerra, Marx havia
apelidado de “o general”, deixou inúmeros escritos dispersos ao
longo de sua obra que são uma fonte fundamental de reflexão sobre
o tema que nos interessa, e que nós, latino-americanos, deveríamos
estudar em profundidade.48
Obviamente que, por mais importante que seja este tema –
sobretudo em um continente como o nosso que, atualmente, alberga
80 bases militares dos Estados Unidos e algumas da Otan –, não
será o objetivo desta apresentação pesquisar as reflexões de Marx
e Engels sobre o assunto. Tampouco farei uma análise do corpus de
teorias acerca da guerra surgido no calor da Primeira Guerra
Mundial, em que Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Kautsky e, mais
tarde, Gramsci fazem extensa referência. O propósito desta
intervenção está fortemente marcado pelas exigências impostas
pela conjuntura e, por conseguinte, me limitarei a convidar os
leitores a buscar esses escritos militares dos pais fundadores e das
principais figuras do marxismo clássico. Em todo caso, será
suficiente apontar aqui que, na medida em que a tradição marxista
coloca no centro da dinâmica histórica o enfrentamento social, é
evidente que suas análises sociológicas e econômicas acabassem
se referindo, de alguma maneira, à guerra social, realizada aberta
ou encoberta. Por isso, no célebre Manifesto do Partido Comunista,
Marx e Engels falam da “guerra civil mais ou menos encoberta” que
se desenvolve nas sociedades burguesas, e de aí também a
permanente referência aos escritos sobre a guerra de Carl von
Clausewitz, o mais importante teórico da guerra naquele tempo.49
Dito isso, passemos a abordar a problemática central deste trabalho:
o imperialismo.

Caracterização da fase atual do capitalismo: a terceira onda da


expansão imperial
A expansão/globalização do modo de produção capitalista é um
aspecto estrutural deste sistema econômico. Isso adquire um
impulso especial após a Segunda Revolução Industrial, que, em
meados do século XIX, modificou radicalmente o panorama dos
transportes e dos meios de comunicação. A revolução na
navegação e nas ferrovias, bem como na telegrafia sem fios, deu
um novo impulso ao comércio mundial e à expansão territorial do
capitalismo. Pouco mais de um século depois, na época atual, as
telecomunicações, a internet e os avanços nos transportes aéreo,
marítimo e terrestre produziriam idênticos resultados, mas em uma
escala e com uma profundidade incomparavelmente maior.
Hoje estamos imersos no que apropriadamente poderia ser
chamado de “a terceira onda” da expansão imperialista. A primeira
teve sua origem como toque final da Segunda Revolução Industrial
e fez com que as principais potências coloniais europeias
repartissem o mundo, um ato de pilhagem consagrado e legalizado
na Conferência de Berlim de 1884-1885 que, embora tenha tido
como eixo das discussões o desmembramento da África, também
teve implicações para o resto dos países que, em seguida, seriam
denominados como o Terceiro Mundo. As consequências dessa
divisão criminosa e irresponsável são sofridas por muitos povos até
hoje. A tragédia que cobre de luto muitos países africanos e o
Oriente Médio tem nessa conferência uma de suas causas mais
significativas. Esta primeira onda de expansão imperialista culmina
com a carnificina da Primeira Guerra Mundial; a queda de quatro
impérios: o tsarista, o alemão, o austro-húngaro e, em câmera lenta,
o otomano; e nada menos do que com o triunfo da Revolução
Russa, abrindo assim uma nova etapa na história universal.
Não obstante, o que se seguiu não foi a paz, mas um armistício.
Para alguns autores, como Immanuel Wallerstein em vários de seus
escritos, na realidade não houve duas guerras mundiais, mas
apenas uma, com uma trégua de duas décadas até que, após
serem realinhadas as forças e as alianças, se produziu a batalha
definitiva no que normalmente se reconhece como a Segunda
Guerra Mundial. Se na anterior caíram quatro impérios, nesta foram
derrubados os dois que continuavam em pé: o império britânico e o
francês, sobrevivendo em extrema precariedade aventuras imperiais
marginais como a dos portugueses, belgas e holandeses. Mas a
Segunda Guerra Mundial, além disso, foi testemunha de um
acontecimento assustador: a sobrevivência da Revolução Russa e
seu incrível fortalecimento. Ela não apenas havia resistido aos
horrores da guerra civil e à invasão de cerca de 20 exércitos das
“democracias ocidentais” dispostas a afogar a peste soviética em
seu berço, mas que, duas décadas mais tarde, foi protagonista
decisiva para derrotar o nazismo. Mais do que isso: com a derrota
das Potências do Eixo, faliu também a velha e complexa estrutura
de um sistema internacional baseado nos voláteis acordos entre as
principais potências europeias e cujo eixo integrador era o Reino
Unido, dando lugar a uma mais simplificada, de caráter bipolar e que
colocava no auge um confronto de duas superpotências e seus
aliados: os Estados Unidos e a União Soviética.

A segunda vida do imperialismo


A redistribuição do poder econômico, político e militar internacional,
unida à fenomenal destruição de vidas humanas, territórios e forças
produtivas provocada pela conflagração, só podia deixar profundas
marcas na consciência da época, especialmente se se leva em
conta que foi nesse contexto que se realizaram os dois maiores
atentados terroristas da história universal: o bombardeio atômico
sobre as cidades indefesas de Hiroshima e Nagasaki. É um lugar
comum dizer que o segundo pós-guerra abriria o capítulo mais
esplendoroso da história do capitalismo, o famoso “quarto de século
de ouro” transcorrido entre 1948 e 1973. Foi nesse breve lapso que,
segundo a recentemente falecida teórica marxista Ellen Meiksins
Wood, o capitalismo deu o melhor que podia oferecer. A adoção da
perspectiva keynesiana nessa fase se traduziu na expansão da
cidadania, dos direitos sociais e trabalhistas; favoreceu a construção
de regimes democráticos, o fortalecimento das organizações
populares, dos sindicatos, dos partidos comunistas e socialistas.
Mas esse período chegou a seu fim abrupto em meados dos anos
1970 com o auge do neoconservadorismo nos países desenvolvidos
– com Margaret Thatcher e Ronald Reagan à frente – e a
implementação de sangrentas ditaduras militares em quase toda a
América Latina. Assim como afirmava Meiksins Wood, essa
primavera não voltaria a se repetir nunca mais. Com a
desintegração da União Soviética, o capitalismo retornou à sua
normalidade e as antigas conquistas populares foram ou suprimidas
totalmente, ou severamente reduzidas, enquanto que as
democracias burguesas foram sofrendo uma perversa metamorfose
que terminou convertendo-as, atualmente, em vergonhosas
plutocracias (Brooks, 2016).50 Na Europa, a soberania popular não
brota mais do povo, mas repousa nos tentáculos da Troika
(Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário
Internacional) que tira e coloca governos a seu bel prazer, como o
demonstram vários casos, sendo a Grécia o mais evidente de todos,
embora longe de ser o único. Em outras palavras, se a dominação
do capital admitiu avanços em matéria de direitos civis e
organização democrática, foi devido à presença ameaçadora da
União Soviética e do perigo de um “contágio” do “vírus russo” que
derrubasse os regimes burgueses que imperavam na época. Mas
com a desaparição da URSS, as coisas mudaram.
Porém, como lembra em sua notável obra o historiador catalão
Josep Fontana, entre o fim da Segunda Guerra e o início do “quarto
de século de ouro”, houve três anos terríveis. A URSS perdeu 27
milhões de vidas, especialmente de homens jovens. A ocupação
alemã arrasou 1.710 cidades e cerca de 70 mil aldeias. Alemanha e
Japão viram grande parte de seus territórios serem destruídos pelos
bombardeios. E a essa devastação se acrescentou a fome, produto
da destruição da agricultura, a seca que arruinou as colheitas de
1946 e o frio incomum do inverno de 1946-1947. “Aos milhões de
mortos causados pela guerra” – observa Fontana – “teriam que ser
somados outros milhões de vítimas das grandes fomes de 1945 a
1947” (Fontana, 2011, p. 25).
Uma sequência de fatos que, somando as pessoas que morreram
não apenas no cenário europeu mas também no asiático, sobretudo
por causa dos horrores da ocupação japonesa, chega facilmente a
cerca de 100 milhões de pessoas sacrificadas no altar da taxa de
lucro do capital. Este foi o necessário preâmbulo daqueles anos
“gloriosos” de 1948-1973, que coincidiram com a veloz expansão do
imperialismo estadunidense em escala planetária, cujas origens
remetem ao roubo de grande parte do território do México na
metade do século XIX, à sua precoce expansão na região centro-
americana e caribenha no fim daquele mesmo século e, sobretudo,
ao seu sequestro da vitória cubana sobre o colonialismo espanhol
em 1898. Depois da Segunda Guerra Mundial, com o Reino Unido e
a França despedaçados, suas colônias em franca rebeldia e sem
rivais à vista, a expansão imperial estadunidense parecia não
conhecer limites. Esta foi a segunda onda imperialista, que coincide
em termos gerais com os “anos gloriosos”. Só que, com a
recuperação europeia e japonesa, visível desde os anos 1960, a
paisagem do imperialismo começa a reconhecer múltiplas bandeiras
e não só a das estrelas e listras dos Estados Unidos. As
transnacionais estadunidenses pouco a pouco começaram a se ver
desafiadas pela rápida aparição de grandes conglomerados
corporativos de origem europeia e japonesa primeiro, e em seguida
de outros países, principalmente a Coreia do Sul.
A segunda onda imperialista culminou com o abandono do
keynesianismo, o retorno da ortodoxia (no dizer de Raúl Prebisch), o
auge da globalização neoliberal impulsionada pelos enormes
avanços tecnológicos no campo da informática, as
telecomunicações e o transporte. Tudo isso em um clima
conservador orquestrado por um formidável tridente reacionário
composto por Ronald Reagan, Margaret Thatcher e o Papa João
Paulo II. Ao fim da década de 1980 se derruba o muro de Berlim e,
pouco depois, se desintegra a União Soviética. Parecia então que a
vitória do Ocidente estava garantida e, assim, alguns intelectuais e
acadêmicos estadunidenses e seus seguidores latino-americanos,
de pensamento ligeiro e superficial, concluíram que havia chegado a
hora do “novo século (norte) americano” e que de agora em diante a
estrutura do sistema internacional seria “unipolar”. Sem perder
tempo, as corporações e as agências do governo federal
começaram a alimentar financeiramente uma fundação criada com o
objetivo de elaborar o roteiro desse novo século, que parecia tão
propício para os Estados Unidos. Centenas de acadêmicos,
especialistas e intelectuais se dedicaram à tarefa de elaborar os
contornos de tão promissória jornada. Bill Clinton, na companhia de
seus mordomos britânicos, fez a sua parte: desmontou as últimas
peças que restavam em pé das regulações financeiras e criou o
mundo sonhado por Wall Street e a City londrina. Parecia,
efetivamente, que tudo estava sob controle. A Alca não era nada
além da manifestação hemisférica desse processo de reorganização
global de um império sem rivais.
Porém, como diz Rubén Blades, “a vida te dá surpresas”, e óbvio
que Washington teve as suas. Antes de mais nada, no meio desses
hinos e cantos de alegria pelo novo século estadunidense se
produziram os atentados de 11 de Setembro, o primeiro ataque em
território estadunidense em quase dois séculos. Lembre-se de que
os Estados Unidos haviam participado das duas Guerras Mundiais
sem que um tiro sequer tivesse sido disparado em seu território.
Subitamente o país se deu conta da sua vulnerabilidade, e de que o
enorme orçamento militar não garantia sua inviolabilidade. Se
militarmente os Estados Unidos deixavam de ser inexpugnáveis, a
vertiginosa ascensão da China – não inesperada, mas sim
prematura, segundo os analistas do império, que a estimavam para
o ano 2030, aproximadamente – junto ao inquietante retorno da
Rússia aos primeiros planos da política mundial, a impetuosa
entrada da Índia nos assuntos internacionais e a consolidação de
uma série de potências regionais, como Brasil, África do Sul,
Indonésia, Coreia do Sul e Turquia configuraram um cenário global
muito mais desafiante do que o da era bipolar. Porque agora, com a
desintegração da União Soviética e os avanços da informática, a
não proliferação nuclear se transformava em uma quimera, e a
“segurança nacional” dos Estados Unidos demonstrava ser mais
incerta do que antigamente.

Relançamento imperial
É neste cenário que a liberalização financeira e comercial, junto à
violenta aplicação das políticas neoliberais em quase todo o mundo,
deu lugar ao terceiro ciclo de expansão imperialista, que ganha
impulso precisamente na década de 1990 e que continua até nossos
dias, incorporando profundamente, como áreas de caça do capital
imperialista, regiões e países outrora vetados a suas ambições:
Rússia, os países do Leste Europeu, China, Vietnã. Isso permite
falar de um imperialismo revigorado e estimulado por novos
horizontes nos quais desenvolver seus projetos. Vários são os sinais
distintivos deste tempo, mas gostaria de chamar atenção para dois
deles. Em primeiro lugar, o acelerado ritmo de concentração da
riqueza em todos os países, da China aos Estados Unidos, sem
nenhuma relevante exceção em âmbito mundial. Isso foi denunciado
pela Oxfam em seu relatório no Fórum Econômico de Davos, ao
apontar que, segundo estimativas oficiais, no momento atual, o 1%
mais rico da população mundial detém o controle de 51% da riqueza
do planeta, ou seja, mais do que os 99% restantes da população
mundial possuem. Relacionado a isso, um estudo realizado pela
Universidade de Zurique demonstrou que 147 megacorporações
controlam 40% da riqueza do planeta. O segundo sinal
característico da fase atual é a intensificação da corrida
armamentista, o surgimento de várias zonas de extrema tensão
bélica e o aumento no número de guerras e de suas vítimas.
Existem, hoje em dia, três pontos quentes no sistema internacional:
o barril de pólvora do Oriente Médio, infame consequência da
rapacidade dos Estados Unidos e seus comparsas europeus que
não hesitaram nem por um minuto em destruir países inteiros
(Líbano, Iraque, Líbia e atualmente a Síria) a fim de apropriar-se de
seu petróleo, que é a única coisa que lhes interessa.
Desencadearam uma série de dramas humanitários como o mundo
não via desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Segundo ponto
quente: a Ucrânia e sua extensão na Europa do Leste, em que o
ímpeto da Casa Branca e da União Europeia de conter o “urso
russo” (nada soviético!) levou a promover um golpe de Estado
naquele país, com o ativo protagonismo do Departamento de Estado
na pessoa de sua subsecretária, Victoria Nuland, e deslocar as
tropas da Otan para a própria fronteira russo-ucraniana. E isso
considerando que, quando caiu a URSS, os líderes das
“democracias” ocidentais juraram solenemente que a Otan “não se
movimentaria nem uma polegada para o Leste”. Não o fizeram. Só
que se movimentaram várias centenas de quilômetros para os
confins da fronteira russa. O terceiro ponto quente se localiza no
mar do sul da China, rico em petróleo, e que é um território em
disputa entre vários países: China, Japão e Vietnã, entre os mais
diretamente envolvidos. Esta é uma situação que pode facilmente
sair do controle, bem como as já apontadas, e de uma gravidade
especial: Washington pode reagir mornamente diante de uma
invasão da Rússia na Ucrânia, ou a uma retaliação de Moscou
contra a Turquia por causa de uma avião russo derrubado. Mas só
pode reagir com toda a sua força se a China, o segundo maior
orçamento militar do planeta, decidir atacar o seu sócio e vassalo
japonês.
Em resumo, esta fase, terceira na história da expansão imperialista,
apresenta, como todas as demais, a guerra como sua necessária
contrapartida. Esta lacerante realidade demonstra, pela enésima
vez, os erros da teoria do superimperialismo, ou ultraimperialismo,
elaborada inicialmente por Karl Kautsky e continuada por muitos de
seus seguidores contemporâneos que insistem em rechaçar a tese
de que o imperialismo poderia hoje, não necessariamente no
passado, mas sim hoje, desembocar em uma guerra entre potências
capitalistas. Apesar de seu glorioso passado soviético, a Rússia é
uma delas e, com suas peculiaridades, também o é a China. E para
os mais recentes documentos do Pentágono e do Conselho de
Segurança Nacional dos Estados Unidos, a Rússia é,
explicitamente, não um competidor mas sim o inimigo a ser
derrotado. Fora isso, há que se levar em conta que, ainda durante
os anos da bipolaridade Estados Unidos-União Soviética, as guerras
proliferaram sem cessar na periferia do sistema e, na atualidade, o
panorama, longe de ter melhorado, só se agravou.

Fatores determinantes desta retomada do impulso expansivo


do imperialismo
Como entender esta delicada situação atual? Falando sucintamente,
e sob o risco de simplificar demasiadamente esta apresentação,
digamos que existem três aspectos do sistema internacional que
podem oferecer algumas chaves interpretativas para compreender
esta escalada de guerra.
Em primeiro lugar, a instabilidade do equilíbrio geopolítico mundial é
um elemento de decisiva importância na geração das tensões e
conflitos que agitam o sistema internacional. Cada vez mais os
diversos documentos elaborados pelos organismos militares e de
inteligência dos Estados Unidos insistem em apontar que o novo
cenário mundial está cheio de ameaças à segurança nacional e que,
consequentemente, o país deve se preparar para várias décadas de
guerras. Isso não para expandir a dominação global dos Estados
Unidos, mas para conservar as posições relativas no tabuleiro
geopolítico mundial. A paz, ou a busca por ela, é algo que nem se
menciona nesses documentos; a suposição básica é a continuação
indefinida da guerra, seja de caráter “preventivo”, como propunha
George W. Bush, seja de tipo “retaliatório”, diante de um ataque aos
Estados Unidos, aos seus cidadãos ou a países aliados e seus
cidadãos. A multipolaridade atual é um formato do sistema
internacional relativamente novo. Houve no passado algo parecido,
que se chamou “Concerto de Nações”, mas era um sistema
exclusivamente europeu: nem os Estados Unidos, nem o Japão e
menos ainda a China faziam parte desses acordos que duraram
desde a paz de Westfália (1648) até seu estrepitoso colapso gerado
pela Primeira Guerra Mundial. Durante esses quase três séculos,
nenhum país de fora da Europa tinha algo a dizer nas mesas de
negociações. Hoje é muito diferente, porque as potências não
europeias diminuíram a gravitação da declinante e decadente
Europa, e os consensos difíceis do passado, entre nações que
compartilhavam basicamente uma mesma cultura, são muito mais
difíceis de alcançar atualmente, quando quem faz parte da
discussão são nações e governos que carregam histórias e
cosmovisões muito diferentes e, em mais de um sentido,
contraditórias. E que, logicamente, carregam interesses em conflito
e, em boa medida, irreconciliáveis. Sob essas condições, a paz se
converte em uma missão que deve superar enormes dificuldades
para se realizar, e marca também a excepcionalidade da América
Latina que, de longe, é a região mais pacífica, a única zona de paz
deste convulsionado planeta. Os principais líderes da esquerda e o
progressismo latino-americano não deixaram de marcar essa
singularidade, ratificada também formalmente pela aprovação, em
janeiro de 2014, na Segunda Cúpula da Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), que aconteceu em
Havana, de que a América Latina e o Caribe são uma “Zona de
Paz”.
Segundo, um fator que estimula e promove as guerras e a violência
é a crescente gravitação do complexo militar-industrial-financeiro no
processo decisório do governo estadunidense e, em menor medida,
de seus aliados europeus. Essa maquinaria infernal vive da guerra e
para a guerra. Para eles, a paz significa sua ruína, sua falência, e a
única estratégia positiva para essas megacorporações é estimular
os conflitos e as rivalidades por todos os meios possíveis. Sua taxa
de lucro está diretamente associada com a guerra e é inversamente
proporcional à paz. Seu poderio é imenso: foi denunciado nada
menos do que pelo presidente Dwight Eisenhower em seu discurso
de despedida de 17 de janeiro de 1961, que o descreveu como a
mais séria ameaça para a liberdade e a democracia dos Estados
Unidos. Ao longo de mais de meio século, esse imenso poder não
fez nada além de crescer, até assumir proporções monstruosas. Se
naquela época era uma ameaça, hoje ele é quem realmente manda
nos Estados Unidos, acelerando a passagem de uma república
democrática para um regime plutocrático.51 Quer dizer, uma forma
política que, parafraseando Lincoln, é o governo do dinheiro, pelo
dinheiro e para o dinheiro. E dado que o gasto militar dos Estados
Unidos é o principal motor da economia, aglutinando em si setores
industriais, financeiros e petroleiros, está no interesse dos governos
oferecer todo tipo de garantia às empresas desse setor. E estas, por
sua vez, dispondo de fenomenais recursos, se transformaram nas
principais e indispensáveis financiadoras das onerosas carreiras
políticas de representantes, senadores, governadores e presidentes,
prostituindo definitivamente o funcionamento da democracia nos
Estados Unidos e abrindo as portas para a constituição da
plutocracia que hoje governa esse país. Não é de estranhar,
consequentemente, que da Guerra da Coreia em diante, os Estados
Unidos não tenham passado um ano sequer sem ter tropas
combatendo no exterior. Tampouco se estranha que, apesar dos
otimistas anúncios oficiais, o gasto militar tenha aumentado inclusive
depois da desaparição daquele que durante os longos anos da
Guerra Fria havia sido seu inimigo fundamental: a União Soviética.
Neste sentido, a operação propagandística do império, proclamando
os supostos “dividendos da paz” como fonte de uma renovada ajuda
para o desenvolvimento, foi rapidamente descoberta. Nem se
melhorou a distribuição de recursos para facilitar o progresso
econômico e social dos países da periferia, nem se reduziu o
aumento do gasto militar. Segundo os cálculos mais rigorosos, o
gasto militar total dos Estados Unidos superou o limite considerado
até pouco tempo atrás como absolutamente insuperável de 1 bilhão
de dólares, o que equivale aproximadamente à metade do gasto
militar mundial.52 Com perfis menos acentuados do que nos Estados
Unidos, o complexo militar-industrial-financeiro atua também nos
países europeus, no Japão e na Coreia do Sul. Em outras palavras,
a acumulação capitalista sempre esteve marcada pela violência
(senão, como explicar a “conquista da América”, ou o massivo
saqueio dos camponeses nos países do capitalismo metropolitano,
para não falar do que é prática cotidiana na periferia) e, em tempos
recentes, esta violência se institucionalizou e se aprofundou pari
passu com o fenomenal crescimento do aparato militar, o que
impulsiona as guerras ao mesmo tempo que destrói os fundamentos
da democracia tanto no mundo desenvolvido quanto na periferia do
sistema.
Um terceiro elemento que impulsiona as guerras é o que Michael
Klare denominou “a caça aos recursos naturais” (Klare, 2012). Em
um mundo cada vez mais ameaçado pelo esgotamento de certos
bens comuns de caráter estratégico, começando pela água e
seguindo pelo petróleo, a biodiversidade, os minerais estratégicos e
os alimentos, e diante de um aumento ininterrupto da população
mundial que, até meados deste século, pode cruzar a marca dos 10
bilhões de habitantes, as principais potências se lançaram com toda
sua força em uma campanha mundial para garantir para si os
insumos básicos requeridos por um padrão de consumo capitalista
caracterizado pela utilização irracional e o irresponsável
esbanjamento dos recursos naturais. Não é um mistério para
ninguém que a vigorosa expansão da China em direção aos países
do Terceiro Mundo tem como objetivo fundamental garantir para si o
fornecimento de certos recursos naturais imprescindíveis para sua
economia, fenômeno este que se manifesta sobretudo na África,
mas também, embora em menor medida, na América Latina. Não é
necessário ser um pessimista radical para reconhecer que, muito
frequentemente, o que começou como uma guerra comercial acaba
sendo uma guerra no sentido mais integral do termo. Um único
dado, dos muitos existentes, servirá para comprovar o que
significou, em termos de uso de recursos naturais, a modernização
capitalista da China. Um informe recentemente divulgado pela
revista de negócios estadunidense Forbes demonstra que, entre os
anos 2011 e 2013, a China consumiu mais cimento do que os
Estados Unidos ao longo de todo o século XX (McCarthy, 2014).
Deixando de lado o caso particular do gigante asiático, uma boa
perspectiva sobre a gravidade da “caça aos recursos naturais” é
oferecida pelo cálculo da “pegada ecológica” realizado pelo Global
Footprint Network. Este indicador nos diz que, no ritmo atual de
consumo, os Estados Unidos, o Reino Unido e a França requerem
de 3 a 5 planetas e meio para sustentar seu nível atual de consumo.
Isso nos dá uma informação extremamente eloquente e torna
desnecessário fazer maiores comentários, e serve por si só para
demonstrar a insustentabilidade do padrão de consumo “ocidental”,
tão publicitado pelos meios de comunicação e tão promovido pelos
governos capitalistas de todo o mundo. Esse padrão de consumo
desenfreado só pode funcionar se uma parte significativa da
população mundial for condenada à pobreza e à indigência.
Simplesmente, não há ferro para todos, cimento para todos, petróleo
para todos, fosfato para todos, água para todos! Por isso o
imperialismo foi se tornando cada vez mais agressivo e sanguinário,
estimulado pela pressão para preservar um modelo de sociedade, o
“american way of life”, ao qual só uma minoria da população mundial
pode ter acesso. Um último exemplo: o papel é produzido a partir da
pasta de celulose, extraída das árvores. Boa parte do
desmatamento pelo qual passa o planeta se origina no grande
aumento que ocorreu nos anos recentes em termos de consumo de
papel. Mas nem todo o mundo o consome de maneira igual. O
consumo por pessoa/ano nos Estados Unidos é de 270 kg e, na
Europa Ocidental, de 230 kg. Mas na Indonésia e no Brasil é de 35
kg por pessoa/ano, e de apenas 5 kg por pessoa/ano na Índia e na
África Subsariana!53

A Estratégia de Segurança Nacional dos Estados Unidos para


enfrentar os desafios contemporâneos
Em fins de 2017, a Casa Branca apresentou uma nova versão de
sua Estratégia de Segurança Nacional, a primeira com Donald
Trump na presidência. Este documento, emitido com a data de
dezembro de 2017, foi publicado pouco depois de sua versão
anterior, de fevereiro de 2015, elaborado no final da administração
de Obama. Houve outro anterior produzido pela equipe da Casa
Branca depois de ele assumir a presidência, publicado em maio de
2010. Passaram-se cinco anos entre a edição dos dois primeiros
documentos, 2010 e 2015, e apenas dois anos entre este último e o
de 2017. Não é alheio a tudo isso o ritmo vertiginoso em que a cena
internacional tem se transformado nestes últimos anos e o
verdadeiro terremoto político que significou a irrupção e o ingresso
na Casa Branca de um personagem extravagante e alheio à
nomenclatura de Washington como Donald Trump. Nas páginas
seguintes trataremos de analisar alguns dos aspectos mais
relevantes das duas últimas versões da Estratégia de Segurança
Nacional (ESN, NSS na sigla em inglês), especialmente no que
cabe à América Latina e Caribe.
Se no último documento de Obama, o pano de fundo era o
reconhecimento explícito da acelerada passagem do sistema
internacional na direção da multipolaridade ou do policentrismo –
transição impossível já de negar e cujo ritmo foi extraordinariamente
acelerado pela pandemia do Covid-19 –, o que se elabora sob a
inspiração (para dizê-lo de alguma maneira) de Donald Trump
proclama, desde as primeiras linhas, que sua missão é de que os
Estados Unidos “voltem a ser grandes outra vez” e a nova
configuração do poder mundial é olimpicamente ignorada, ou pelo
menos desprezada.54 A formulação não poderia ser mais explícita:
China e Rússia desafiam o poder estadunidense, sua influência e seus
interesses, em uma tentativa de erodir a segurança e a prosperidade
americanas. Eles estão determinados a tornar as economias menos livres e
menos justas; a expandir suas forças militares e a controlar a informação e os
dados necessários para reprimir suas sociedades e expandir sua influência.
(NSS, 2017, p. 2)
Note-se a linguagem utilizada neste documento: anunciam a
emergência de um desafio integral à segurança e prosperidade dos
Estados Unidos e um plano maligno para que as economias sejam
menos justas e livres, junto com um crescimento do músculo militar
da Rússia e da China e uma intenção de controlar e reprimir suas
respectivas sociedades e expandir sua influência. O diagnóstico se
insere sem atritos na retórica da Guerra Fria. Mas, atenção: estes
são os únicos inimigos de Washington? De maneira alguma: além
dos vilões principais há vários “Estados vilões”, dos quais três
concentram poderosamente a atenção dos redatores do informe:
Coreia do Norte e Irã, aos quais agrega o denominado “Estado
Islâmico”.
Como não podia deixar de ser, os governos da Rússia e da China
reagiram iradamente uma vez que o documento foi tornado público.
O porta-voz da chancelaria chinesa disse que o documento reflete
uma mentalidade da Guerra Fria e uma concessão de soma zero da
arena internacional que distorce os objetivos estratégicos de seu
país. O Kremlin, por sua vez, classificou o documento como um
anacronismo que revela uma vocação imperialista ancorada nos
anos da Guerra Fria prenhe de consequências abomináveis.
À luz destes antecedentes, torna-se evidente a obstinação da
administração Trump em se negar a reconhecer que o mundo já não
é o que era e que por mais que os Estados Unidos deseje retomar
seu esmagador poder global, tal aspiração está condenada ao
fracasso. A nova ordem multipolar, detectada com clareza e uma
evidente dose de resignação no segundo documento da
administração Obama, apenas se fortaleceu com o passar do
tempo. A China não apenas é uma grande potência econômica, mas
se transformou também na segunda maior economia do planeta –
ou a primeira, se se mede seu PIB pela paridade de poder de
compra – e a principal locomotiva industrial e comercial do mundo,
tirando os Estados Unidos deste posto. Cabe acrescentar que os
Estados Unidos nunca, em sua história, foi o primeiro sócio
comercial ou financeiro de 133 países, coisa que a China conquistou
em 2019. A Rússia, por sua vez, com uma liderança que demostrou
uma capacidade incomum para ler corretamente o tabuleiro da
política mundial e uma atitude cerebral que lhe permitiu contornar
todas as armadilhas e provocações que o Ocidente lhe armou,
recuperou seu papel protagonista nos assuntos mundiais, fechando
o ignominioso parênteses aberto pela infausta dupla Mikhail
Gorbachov/Boris Ieltsin.
De uma maneira mais lenta, a Índia está emergindo aos primeiros
planos da política internacional. Atualmente, sua área de influência
se circunscreve sobretudo à Ásia, mas em poucos anos começará a
jogar no cenário global. Por sua vez, ainda debilitados, os BRICS se
reafirmam como uma constelação de poder cuja presença já não
pode ser menosprezada e muito menos ignorada. Na Nossa
América, a Unasul e a Celac, apesar da perda de vigor devido à
derrota do impulso progressista e de esquerda que aflorara com
força no início do século, ainda assim são incômodas realidades
para o império, o que explica o empenho de Washington e o de seus
aliados, como Mauricio Macri e outros, em enfraquecê-las e, se
possível, desmantelá-las definitivamente.
Sem dúvida, todas essas mudanças, muito brevemente esboçadas,
expressam a profundidade do processo de transição hegemônica
em curso, bem como do caráter irreversível do declínio do poderio
imperial dos Estados Unidos, refletido com intensidade incomum no
âmbito interamericano no qual anteriormente as políticas dos
Estados Unidos se impunham sem resistência, salvo Cuba, que foi
por eles expulsa do sistema interamericano.
Claro que a Casa Branca não se resigna a perder o controle da
estratégica massa continental que se estende até o sul do rio Bravo
e recentemente lançou uma contraofensiva para restaurar a
“harmonia interamericana” em função, é claro, de seus interesses.
Convém esclarecer que ao falar de transição hegemônica não
significa que haverá outra potência – China, Rússia? – que vai
ocupar o trono deixado vago pelos Estados Unidos porque esse
sólio não existe mais. Com a passagem da unipolaridade dos anos
1990 para a multipolaridade da segunda década do século XXI, o
lugar do hegemon inexpugnável desapareceu. O que existe em seu
lugar é uma constelação de grandes potências com capacidade de
veto recíproco e sem que nenhuma possa impor unilateralmente sua
vontade em todos os terrenos da vida internacional. Os Estados
Unidos são agora o “primus inter pares” e não mais a onipotente
nação do passado. É a principal potência militar do planeta, seus
exércitos conseguem arrasar países, mas não conseguem ganhar
guerras. Podem destruir países inteiros, mas não podem ocupá-los,
normalizá-los e explorar seus recursos em seu proveito.

Cinco transições
Sobre o documento elaborado pela equipe de Trump, é possível
dizer, sem exageros, que pretende ser um guia para a política
externa, mas prescinde de oferecer um mapa de navegação para o
piloto da Casa Branca. Ademais, analistas do sistema internacional
concordam em assinalar que o magnata nova-iorquino elabora e
executa sua política externa sem atender minimamente as regras
institucionais que tradicionalmente estiveram em vigor nos Estados
Unidos. Como os monarcas absolutistas, são os seus caprichos que
fazem a política internacional dos Estados Unidos, volúvel e instável
como seus óculos e suas mudanças de humor.
O eixo da ESN 2017 está na proteção do território estadunidense,
de suas fronteiras, contra o juhadismo, as migrações, as pandemias
e o narcotráfico; por outro lado, na necessidade de preservar a paz
por meio da força e de dissuadir seus inimigos – que a atacam a
partir da informática (Rússia), destruindo a livre imprensa e
deslegitimando a democracia ou a partir do comercial (China) – para
que não continuem com suas agressões.
Mas a descrição da estrutura e dinâmica do sistema internacional
estão ausentes da ESN 2017. O documento anterior, em troca, tinha
outra densidade teórica, que no gestado pela administração Trump
se dilui completamente, ao ponto de aparecer como um texto
declamatório, mais que uma análise; uma interminável série de boas
intenções, mas sem um relevo sério e preciso da situação atual do
sistema internacional e de sua provável evolução futura. Por isso
nos referimos um pouco mais alongadamente à estratégia
antecessora, na qual se identifica cinco transições globais, de
caráter histórico, que transformaram radicalmente o tabuleiro da
política mundial e, consequentemente, os imperativos da segurança
estadunidense. Os Estados Unidos devem compreender essa
dinâmica transicional, diz o documento, e influenciar suas trajetórias,
aproveitar as oportunidades que essas mudanças precipitam e
administrar-se com eficácia frente aos riscos que elas representam.
As transições identificadas pela ESN 2015 são as que seguem.
Primeiro, o poder internacional e sua distribuição mudaram
significativamente. Produziu-se um deslocamento no centro de
gravidade da economia mundial com o avanço da Ásia-Pacífico e,
sobretudo, da China. O G-20 desempenha novos papéis, que
deslocaram outras instâncias da organização internacional, como o
Banco Mundial e o FMI. Surgiram os BRICS, projetando uma
influência importante nos assuntos mundiais, sobretudo nas bordas
dos capitalismos centrais. Mas nessa questão, o documento aponta
especialmente três coisas: o potencial de crescimento da Índia, que
junto com a China representará 39% do PIB mundial em pouco mais
de uma década; a ascensão já produzida e consolidada da China
como a segunda economia do planeta e, como já dito, o principal
núcleo de dinamização da economia mundial; e, em terceiro lugar, a
“agressão” [sic!] da Rússia (NSS, 2015).55 A estigmatização deste
país se acentua na ESN 2017, quando o caracteriza como o inimigo
que “está utilizando ferramentas informacionais em uma tentativa de
minar a legitimidade das democracias. Nossos adversários têm
como objetivos os meios de comunicação, os processos políticos, as
redes financeiras e os dados pessoais” (NSS, 2017, p. 14). Por isso
os governantes da Rússia têm razão quando falam de “Russofobia”
que está infestado na ESN 2017 e nas atividades e nas iniciativas
do governo Trump. Se até o final da administração Obama, Moscou
era um adversário perigoso, com Trump passa a ser, clara e
diretamente, um malvado inimigo a ser derrotado.
Ambas as versões da ESN concordam – apesar de dizê-lo de
maneira oportunamente implícita – que o poderio relativo dos EUA
no campo internacional diminuiu. Os dados que avalizam tal
diagnóstico são irrefutáveis, mas não são expostos nos
documentos, o que constitui um tácito reconhecimento do que vimos
observando há um tempo na América Latina: o lento, porém
irreversível, declínio da potência hegemônica, negado
intransigentemente pelos seus porta-vozes e pelos seus lacaios
neocoloniais na Nossa América, apesar de saltar aos olhos e ser
reconhecido inclusive em um documento oficial tão importante como
este que estamos analisando.56 Isso atualiza a necessidade de
estudar a trajetória e a velocidade desse declínio, seu impacto sobre
o resto do mundo e as modalidades aberrantes em que, em termos
de violência, todo império incorre em sua fase de declínio. Explorar,
em outras palavras, se a “aterrissagem imperial” será suave (“soft
landing”), brusca (“rough landing”) ou simplesmente se ele cairá
como resultado do assédio dos “bárbaros” que o rodeiam.57
Inclusive um autor como Joseph Nye, tradicional acadêmico de
Harvard e alto funcionário de sucessivas administrações
estadunidenses, reconhece essa mutação do poder internacional e
o enfraquecimento do poderio do país. A linguagem que utiliza não
deixa lugar para dúvidas:
na primeira metade deste século, os EUA vão conservar sua primazia em
matéria de recursos de poder e vão continuar desempenhando um papel
fundamental no equilíbrio mundial de poder [...]. Porém, ainda que a era da
primazia dos EUA não tenha acabado, vai passar por mudanças importantes.
O que não se sabe é se essas mudanças vão aumentar a segurança e a
prosperidade mundiais ou não. (Nye, 2004)
Toda a nova teorização sobre o “poder brando” (“soft power”), do
qual Nye é um dos principais expoentes, se assenta sobre essa
premissa.
Uma reflexão final sobre esta primeira transição remete ao tema das
mudanças realizadas na principal configuração do poder no mundo
contemporâneo: o Estado. Muitos vão discordar dessa afirmação
dizendo que essa cristalização, na realidade, se materializa nas
grandes empresas transnacionais, e não no Estado. No entanto,
segundo nosso ponto de vista, não é assim. Assim como há
empresas pequenas, médias e gigantescas, também se pode dizer
o mesmo dos Estados. E enquanto as megacorporações de hoje em
dia não podem exigir para si – e menos ainda aplicar – na vida
prática o monopólio da violência legítima, os Estados serão mais
poderosos do que as empresas e vão continuar sendo a principal
cristalização do poder social – com seu núcleo duro classista – no
mundo contemporâneo, estabelecendo, ademais, o marco jurídico e
organizando o aparato coercitivo que as grandes corporações
necessitam para prosseguir depredando o planeta e submetendo
sociedades inteiras. Mas isso não significa que a imagem
convencional que os cientistas sociais têm do Estado seja a correta
e corresponda ao que é na atualidade. O politólogo e diplomata
Chester A. Crocker acertou quando disse que “a imagem clássica de
um Estado Leviatã, capaz de controlar, coagir, restringir, regular,
cobrar impostos e recrutar cidadãos para seus exércitos (e recrutar
também corporações) é antiquada” e já não corresponde à realidade
dos Estados no mundo de hoje (Crocker, 2015). Alguns ainda
conservam boa parte dos atributos hobbesianos clássicos, mas
mesmo nesses casos, suas capacidades se viram em certo modo
reduzidas pelas modificações produzidas no capitalismo
contemporâneo. São quase infinitos os interstícios e as fraturas da
sociedade burguesa e, além do mais, as novas tecnologias de
informação e comunicação oferecem uma grande quantidade de
escapatórias ao controle estatal que nem remotamente existiam no
passado, embora também ofereçam uma fenomenal capacidade de
vigilância e controle por parte das autoridades. O “Grande Irmão”
(“Big Brother”) de Aldous Huxley em Admirável mundo novo
antecipava com clarividência esta abominável realidade, mas o
aumento da capacidade de fiscalização tropeça no fato de que
essas mesmas tecnologias também oferecem inéditas capacidades
de fuga e resistência para quem, na sociedade, resiste ou deseja
combater o sistema. Ou então, como no caso das grandes
corporações, desejam escapar dos controles que um regime político
poderia impor sobre suas atividades. Em todo caso, a tese de
Crocker – “o mundo está à deriva e carente de liderança” – é
suficientemente forte para expor nitidamente a preocupação que se
instala nos corredores das agências do governo estadunidense.
Segunda transição: o documento da ESN de 2015 aponta que o
poder está sendo deslocado para baixo e para além do Estado-
nação. Inclusive Estados com controles frágeis devido à ausência
de eficazes “pesos e contrapesos” que contraponham a dinâmica
devastante do Executivo encontram demandas de prestação de
contas diante de atores subestatais, ou inclusive atores não estatais,
ancorados em uma sociedade civil cada vez mais empoderada. Os
exemplos que são oferecidos no documento vão desde os prefeitos
de megacidades até os grandes gerentes das megacorporações,
que dispõem de um poder de facto que não pode ser ignorado pelas
autoridades estatais. A juventude e uma classe média pujante,
ambas potencializadas em sua influência social e política por sua
familiaridade com as novas tecnologias, erguem também
importantes barreiras à ação estatal. Ainda que isso seja um
desenvolvimento que a ESN encara com bons olhos, em alguns
casos pode se traduzir na conformação de atores não estatais muito
violentos, portadores de instabilidade e de conflitos políticos muito
graves em Estados frágeis ou falidos, com o risco de rupturas
revolucionárias de consequências imprevisíveis ou o retorno a
despotismos tradicionais dispostos a preservar a proeminência do
Estado a qualquer custo em algumas regiões do Terceiro Mundo. O
já mencionado Crocker diz, por exemplo, que o antigo monopólio
estatal da gestão internacional é coisa do passado. Hoje,
numerosos e poderosos atores não estatais fazem sentir sua
influência no cenário global, favorecidos pelas novas tecnologias de
informação e as redes sociais que empoderaram sujeitos e
organizações que antes tinham chances mínimas – se é que tinham
alguma! – de gravitar no cenário mundial. O ininterrupto ciclo de 24
horas de notícias divulgado pelas grandes redes internacionais tem
a capacidade (nem sempre realizada) de resgatar milhões de
pessoas de sua passividade e isolamento, ao mesmo tempo que
potencializa a gravitação das gigantescas corporações
transnacionais e os mercados globais, os organismos
supranacionais como o G20, mas também o crime organizado em
escala internacional e as violentas milícias dos terroristas, ainda que
este autor não acabe de definir quem faz por merecer este
predicado. As companhias estadunidenses de subcontratação de
mercenários, os marines, o Estado Islâmico, quem? Agregaríamos
que para contornar os efeitos paralisantes da quarentena imposta
por conta da pandemia, uma parte significativa dos sujeitos do
campo popular e da esquerda se viu obrigada a aprender a utilizar
os instrumentos que as novas tecnologias da informação e da
comunicação oferecem, possibilitando novas formas do que poderia
chamar-se “associativismo digital” que antes não dispunha e que lhe
facilita a realização de estratégias de ação coletiva anteriormente
dificultadas, em grande medida, pela distância, a escassez de
recursos materiais e o desconhecimento mútuo entre os sujeitos
sociais. A combinação de uma renovada presença nas ruas na
saída da quarentena junto com a potencialidade organizativa e
conscientizadora do “associativismo digital” podem inclinar à
esquerda a saída da crise capitalista. Os “paraísos fiscais” que
articulam e viabilizam os negócios sujos de governos e corporações
em sua vinculação com o crime organizado, especialmente o
narcotráfico, também deram lugar à emergência de novos atores
que se movimentam na cena internacional, mas isso não é um
assunto que preocupa os redatores dos documentos de 2015 e de
2017. A lista seria extensa demais para os fins do presente trabalho.
Terceira transição: se assinala como outra das grandes transições
de nosso tempo a crescente interdependência da economia global e
os rápidos e profundos processos de mudança nas tecnologias da
informação, algo que já mencionamos anteriormente. Seus autores
observam o caráter dual desses processos: por um lado, a
internacionalização da acumulação capitalista, eufemisticamente
caracterizada com o nome neutro de “globalização”, facilita a
cooperação através das fronteiras e a liberação dos mercados,
porém, simultaneamente, dizem, cria vulnerabilidades diante dos
perversos desígnios de atores antissistêmicos. Os ciberataques, as
pandemias, o crime transnacional (narcotráfico, tráfico de pessoas e
órgãos, venda ilegal de armas etc.) que nesta última versão tem
como objeto de referência os imigrantes que tentam penetrar nos
Estados Unidos (por isso o muro que Trump pretende levantar)
expressam uma execrável realidade nova: as renovadas
capacidades daqueles que, no documento, são chamados de
“atores violentos extremistas”, cuja faculdade de atuar
malignamente cresce exponencialmente a partir dos maiores níveis
de interconexão do sistema em seu conjunto. Naturalmente, em
nenhum dos documentos da ESN, ao longo de todos os anos, se faz
a menor alusão à responsabilidade dos Estados Unidos no
surgimento destas variantes do “crime organizado” ou na aparição
de “atores violentos e extremistas”, como o Estado Islâmico, por
exemplo, comprovadamente demonstrado que sua origem,
desenvolvimento e fortalecimento foi possível graças ao apoio
financeiro, militar, diplomático e midiático dos Estados Unidos,
Israel, Reino Unido e Arábia Saudita. O mesmo vale dizer da crucial
responsabilidade dos principais países do capitalismo desenvolvido
na perpetuação de uma rede de “paraísos fiscais” que permitem a
evasão fiscal e o desfinanciamento dos Estados, a cobertura dos
atos de corrupção, a fuga de capitais e a fraude aos poupadores
ingênuos (Shaxson, 2014).
Quarta transição: analisada, não por acaso, de modo muito rápido
no documento de 2015 é a que se coloca publicamente nas
mudanças que estão ocorrendo no Oriente Médio e no Norte da
África, as quais desataram uma intensa luta pelo poder que,
segundo seus autores, poderia desestabilizar irreparavelmente uma
região fundamental para o mercado petroleiro mundial. Afirma-se,
por exemplo, que está em marcha uma luta geracional
desencadeada em toda região após a Guerra do Iraque e que se
manifestou de forma contundente com os levantes no mundo árabe
de 2011, que puseram fim às ditaduras no Egito e na Tunísia. Neste
contexto, o documento citado afirma que está em curso uma
redefinição das relações entre as diferentes comunidades étnicas e
entre os jovens cidadãos do mundo árabe e seus governos. Os
perigos de uma desestabilização em cadeia crescem por causa do
extremismo religioso ou do rechaço que governos autocráticos têm
em aceitar reformas democráticas, o que poderia incendiar uma
região crucial para a economia mundial.
Mas a ESN 2017 dá um passo a mais, levando em conta a total
simbiose entre a Casa Brance e Tel Aviv, relação dirigida
pessoalmente e à margem de qualquer relação institucional
estadunidense pelo genro do presidente Trump, o empresário Jared
Kushner. A ESN 2017 diz textualmente: “Hoje as ameaças das
organizações jihadistas e do Irã demonstram que Israel não é a
causa dos problemas da região” (NSS, 2017, p. 49).
Quinta transição: as mudanças no mercado global de energia,
intimamente vinculado ao ponto anterior. O essencial não é o que
diz o documento, que garante que os Estados Unidos estão
chegando à autossuficiência petrolífera; nem a acusação de que a
Rússia utiliza suas reservas energéticas, sobretudo o gás, para
fazer política e coagir a Europa.58 Na nossa visão, o mais importante
é o que se menciona quase de passagem, a saber: que nos
próximos anos o mundo subdesenvolvido vai consumir mais energia
do que os desenvolvidos, alterando os fluxos comerciais de energia
e desestabilizando os arranjos tradicionais.59

A nova agenda internacional


Do exposto, depreende-se que há uma agenda de política externa
que já tem pouco a ver com a tradicional. Se a cena mundial mudou,
como de fato ocorreu, é evidente que os desafios e os grandes
temas das relações internacionais já não podem ser os mesmos. A
agenda da época da Guerra Fria tinha como eixo principal toda uma
série de questões – a corrida armamentista, o equilíbrio nuclear, as
guerras em e entre proxies, as “áreas de influência” etc. – que
giravam em torno do que se costumava chamar de conflito
Leste/Oeste, eufemismo que ocultava o que em termos mais
prosaicos deveria denominar-se como a competição entre
capitalismo e socialismo. Outros temas eram a dívida externa, as
políticas de ajuste estrutural e de condicionalidade financeira, as
migrações, e assuntos tais como equidade de gênero e direitos das
minorias sexuais.
A agenda atual é muito diferente. Sobrevivem alguns dos velhos
temas, como o ajuste estrutural e as políticas de austeridade, a
queda dos preços das commodities e a dívida externa, por exemplo,
mas existem outros, sobre os quais o consenso é ainda mais difícil
de ser alcançado do que antigamente. Entre eles, sobressaem: a) o
terrorismo internacional em suas diversas formas e distintos
objetivos; b) a desestabilização e a crise no Oriente Médio (Síria,
Estado Islâmico), Palestina, Iraque, Curdistão, Turquia e Europa
Oriental (principalmente a Ucrânia); c) as crescentes tensões no Mar
do Sul da China; d) a militarização do espaço exterior; e) as
ciberguerras e a cibersegurança; f) os refugiados e as migrações
incontroladas, por guerras e por mudança climática; g) a mudança
climática; h) a governança da internet; i) a conservação da
biodiversidade e recursos marinhos; j) a exploração de recursos no
Ártico e k) o tráfico de pessoas e o tráfico de órgãos.
Da simples enumeração dos temas em disputa, o documento da
ESN 2015 deduz algumas recomendações estratégicas, algumas
das quais sobrevivem na gestão Trump enquanto outras passam
completamente a um segundo plano.
Em primeiro lugar, e aqui ambos os documentos coincidem, a
necessidade de não ceder na defesa da ordem mundial do pós-
guerra: suas instituições e seu marco normativo (“liberalismo global”,
“democracia”, “liberdade”, “direitos humanos”, tudo isso entre aspas,
porque remete à concepção ideológica que o império tem sobre
estes temas) que, como reconhece o documento de 2015, “serviram
muito bem” aos interesses dos Estados Unidos durante 70 anos e
nada permite pensar que uma mudança nos fundamentos da “ordem
mundial”, em realidade, uma perigosa e irreparável desordem,
poderia ser do ponto de vista de Washington uma contribuição
positiva à ordem mundial.60 Note-se que Henry Kissinger assegurou
que por causa da pandemia a velha ordem mundial jaz em ruínas,
mas exortou à fundação de uma nova ordem também inspirada,
como sua antecessora, no liberalismo global, algo que certamente
não acontecerá (Kissinger, 2020). As reiteradas tentativas dos
países da periferia de democratizar as Nações Unidas e, sobretudo,
o despótico, não representativo e inoperante Conselho de
Segurança se lançam contra essa nítida defesa que Washington faz
de um sistema que, como diz o documento, funcionou bem (para os
EUA ao lhe outorgar impunidade a seus crimes), por conta disso
qualquer mudança seria para pior.
Segundo, uma nova área de concordância entre as duas versões da
ESN encontra-se na recomendação de fazer pagar um alto preço a
quem, como a Rússia, transgride – segundo os governos ocidentais
– as normas da ordem mundial do pós-guerra. Mas na versão de
Trump, a ênfase das sanções é ainda mais marcada e entre os
países aos quais elas devem se aplicar inclui-se, agora, a China,
que na versão de 2015 estava a salvo das iras da Casa Branca.
Portanto, ambos os documentos convergem na ideia de que as
sanções econômicas pontuais e específicas devem continuar. No
que toca à Rússia, o secretário de Estado, Mike Pompeo, declarou
em sua audiência de confirmação ante o Senado estadunidense que
“a época em que as políticas com relação à Rússia eram suaves”
terminou. Sanções quando possíveis devem ser aplicadas
multilateralmente; em caso contrário, de modo unilateral. É por isso
que no documento de 2017 o multilateralismo passou ao
esquecimento e aparece somente como uma referência verbal
carente de toda substância. Claro que seria um erro atribuir este
desprezo ao multilateralismo apenas à administração Trump. A
postura atual de Washington tem sido predominante desde o final da
Segunda Guerra Mundial, que, longe de se atenuar, se acentuou
com a desintegração da União Soviética e com o auge do
neoliberalismo global dos anos de Bill Clinton. Recordemos que foi
Madeleine Albright, a secretária de Estado no segundo mandato
daquele presidente, que tempos depois prognosticaria o fim da
diplomacia, ao anunciar a mudança na missão da pasta que havia
estado sob sua responsabilidade. “Antes o Departamento de Estado
fixava a política exterior e o Pentágono a respaldava com a força
dissuasiva de suas armas. Agora é este quem a determina e, aos
diplomatas, nos cabe a missão de explicá-la e de conseguir que
outros governos nos acompanhem em nossa tarefa”, disse com total
cinismo.
O mesmo Barack Obama destacou mais de uma vez que às vezes
“tinha que se torcer um pouco o braço dos amigos” para que
aceitassem as políticas de Washington. Albright recordava em outra
ocasião que os Estados Unidos deve guiar a formulação da política
exterior a partir dos seguintes princípios: “O idealismo quando
possível, o realismo quando necessário; priorizar os direitos
humanos quando possível, a elevação do interesse nacional em
todo momento; o multilateralismo quando possível, o unilateralismo
quando necessário”. As palavras de Albright soam como música
celestial aos ouvidos dos falcões estadunidenses e dos belicosos
assessores de Donald Trump. Mas uma reconhecido pesquisador
estadunidense, já falecido, advertia sobre os perigos que o
unilateralismo entranhava para a segurança dos Estados Unidos.
Samuel P. Huntington, um conservador sem fissuras, recomendava
redobrar os esforços para avançar pela via da cooperação com os
aliados em lugar de cair na arriscada tentação de converter seu país
em um temerário “xerife solitário” (Huntington, 1999). Alinhado a
isso, Washington não apenas se esmerou em aplicar sanções
unilateralmente, mas tratou de que elas fossem acompanhadas por
seus aliados e súditos. Os casos concretos mais recentes são as
sanções contra Cuba, Irã, Venezuela e Rússia, que já no primeiro
documento era caracterizada não como concorrente, mas como o
inimigo a ser vencido.
Terceiro: a ESN 2015 recomenda fortalecer a presença dos Estados
Unidos na Ásia-Pacífico, reafirmando que esse país é uma potência
do Pacífico e tem intenção de continuar sendo. No documento de
2017, a ênfase é menor. Os acordos firmados entre Estados Unidos
e Austrália sob a administração Obama, que autorizaram a
instalação de pessoal militar em várias bases dos Estados Unidos
em território australiano e a reforma constitucional que Washington
exigiu do Japão, em virtude da qual se autoriza a saída de
contingentes militares fora do território japonês, são manifestações
evidentes dessa política de reafirmar a presença estadunidense na
Ásia-Pacífico. Esta se inscreve na estratégia mais global de conter
ou cercar a China, o que no caso da administração Trump se
encontra exacerbado. Se o documento de 2015 diz textualmente
que “damos boas-vindas a uma estável, pacífica e próspera China
ao mesmo tempo que tratamos de minimizar as incompreensões e
os cálculos errôneos [‘miscalculations’]”, na ESN 2017 o gigante
oriental já entra na categoria de país inimigo, responsável por erodir
a gravitação dos Estados Unidos na política e na economia
mundiais. A guerra comercial desatada por Trump contra a China
encontrou neste país uma rotunda resposta. Pela primeira vez em
muitos anos Beijing dobra a aposta da guerra comercial declarada
por Washington com duras declarações de seus governantes e com
enérgicas medidas protecionistas.61
Quarto, o documento de 2015 enfatiza a necessidade de fortalecer a
“permanente aliança” com a Europa e ressalta o papel essencial que
a Otan desempenha, transformada, de fato, em uma extensão do
Pentágono não apenas na Europa e no Atlântico Norte mas também
nos mais diversos teatros de operações onde se encontrem tropas
dos Estados Unidos. A questão ucraniana, apresentada a partir de
um ponto de vista completamente distorcido, absorve grande parte
deste parágrafo, ao mesmo tempo que se justifica a severa
penalização infringida à Rússia por sua suposta agressão àquele
país. Não obstante, na versão de 2017, o papel da Otan se debilitou
na medida em que Trump exige que seus sócios europeus
dediquem maiores esforços e fundos para a defesa europeia. De
fato, se algo aconteceu durante sua administração foi um marcado
distanciamento com os líderes europeus, em especial com Angela
Merkel, e um indissimulado ataque à União Europeia (não apenas
com Brexit), que hoje se encontra seriamente debilitada.
Quinto, trabalhar para alcançar a estabilidade e a paz no Oriente
Médio e no Norte da África. Este parágrafo é de uma
superficialidade impressionante porque se limita a dizer que, para a
realização desses objetivos, é preciso fortalecer a ajuda a Israel, às
monarquias amigas do Golfo Pérsico e Jordânia. Dedica apenas
uma linha e meia ao conflito Palestina-Israel, e não se faz nenhuma
menção ao Estado Islâmico.
Em sexto lugar, os documentos aconselham a Casa Branca a
favorecer um fluxo de investimentos na África, sem nenhum tipo de
precisão.
Sétimo, e último, o documento de 2015 “comemora os avanços nas
Américas”, o que se traduz no fato de que, pela primeira vez na
história, existe mais classe média do que pobres, enquanto a região
adquiriu uma crescente importância no mercado energético mundial.
Claro está que a estabilidade de ambas as conquistas é colocada
em questão, segundo o documento, por um diagnóstico que em boa
medida desmente o otimismo anterior. De fato, o avanço da região é
assombrado por “frágeis instituições, alta criminalidade, grupos
criminosos altamente organizados, narcotráfico, desigualdade
econômica e inadequados sistemas de saúde e educação” (NSS,
2015, p. 27). O documento torna explícito o apoio de Washington
aos Diálogos de Paz em Havana e confia que, “embora alguns
poucos países permaneçam presos a velhos debates ideológicos” –
em oblíqua referência a Cuba e aos países bolivarianos e inclusive à
Argentina kirchenista e ao Brasil do PT, “continuaremos trabalhando
com todos os governos que estejam interessados em cooperar
conosco para fortalecer os princípios da Carta Democrática da
OEA”. E, em referência a Cuba, sustenta: “avançaremos em nossa
nova abertura em relação a Cuba de forma tal que promova, mais
efetivamente, a capacidade do povo cubano para determinar seu
futuro livremente” (NSS, 2015, p. 28).
A ESN 2017, por sua vez, limita a pouco mais de uma página todas
as referências ao “Hemisfério Ocidental” com as consabidas críticas
a Cuba, sem trazer qualquer elemento de novidade. Mas a
belicosidade de Trump contra Caracas e Havana aumentou de
modo extraordinário: dão provas disso a continuidade da guerra
econômica e o acosso diplomático, midiático, financeiro e
(para)militar contra o governo de Nicolás Maduro, junto ao total
congelamento das relações diplomáticas e econômicas entre
Estados Unidos e Cuba. Medidas tais que, apesar de sua
radicalidade, foram endurecidas no marco da pandemia, incorrendo
em uma política genocida que se configura como um delito de lesa
humanidade.
A ESN 2017 manifesta a preocupação pelas atividades do crime
organizado na Guatemala, Honduras e El Salvador e pela
continuidade de modelos anacrônicos de esquerda em Cuba e na
Venezuela, que continuam reprimindo seus povos e os condenando
à pobreza. Observa – diríamos que com razão – que a China está
aumentando sua capacidade de influência na região, mediante
fortes investimentos de suas empresas públicas e algumas privadas
e que a Rússia continua promovendo suas fracassadas políticas da
Guerra Fria. Rússia e China têm sustentado a ditadura na
Venezuela, agrega o documento, que coloca graves desafios para a
segurança nacional dos Estados Unidos (NSS, 2017, p. 51).

O lugar da América Latina e do Caribe no tabuleiro da


geopolítica mundial
Sobre este cenário, levando em conta as colocações do documento
analisado, comprova-se que a guerra – ou a ameaça de sua
explosão – é o pano de fundo sobre o qual se desenvolvem as
relações internacionais da América Latina e do Caribe. Cabe
perguntar-se qual é o papel desta parte do mundo.
Para começar, somos a região do mundo melhor dotada de recursos
naturais: com 7% da população mundial, dispomos de algo entre 42
e 45% da água doce da Terra. Somos, além disso, o pulmão do
planeta, donos da metade da biodiversidade mundial, sede de
enormes depósitos de petróleo, gás e minerais estratégicos e de
terras extraordinariamente bem dotadas para a produção de todo
tipo de alimentos de origem vegetal ou animal. Essa incrível
provisão atiça o apetite do império estadunidense de subordinar, a
qualquer custo, um país como a Venezuela, cujas reservas
comprovadas de petróleo são as maiores do mundo, hoje superiores
às da Arábia Saudita. Um continente que conta com 80% das
reservas mundiais de lítio, fonte energética fundamental para toda a
indústria microeletrônica e seus derivados (celulares, computadores
em suas diversas variantes, câmeras fotográficas comuns e por
satélite, filmadoras, motores automotivos híbridos e assim
sucessivamente), reservas que se encontram inacreditavelmente
concentradas na Bolívia.62 A nanotecnologia e suas incríveis
aplicações têm como fundamento prático a biodiversidade, da qual a
América Latina (e especialmente a América do Sul) tem a maior
riqueza do planeta. Sem falar da água, crucial para um país como
os Estados Unidos, cujo desperdício desse elemento líquido os
levou a transformar o outrora impetuoso rio Colorado, capaz de
cavar um profundo cânion no Arizona, em um arroio que
frequentemente não chega sequer a desaguar no Oceano Pacífico.
Teriam que ser muito ignorantes os administradores imperiais (e não
o são) para ser indiferentes diante de uma realidade tão exuberante
como a que a nossa região oferece. Por isso, desde o início de sua
vida independente, os Estados Unidos consideraram essa parte do
mundo como seu “quintal”, sua zona de segurança. E por isso
também tanto Fidel quanto Che não se cansaram de dizer que a
América Latina e o Caribe eram “a retaguarda estratégica do
império”.
Em segundo lugar, as concepções estratégicas militares dos
Estados Unidos desde os anos fundacionais da república sempre
aderiram à tese da “grande ilha americana”, estendendo-se desde o
Alasca até a Terra do Fogo. Essa concepção militar assume que a
Segurança Nacional dos Estados Unidos depende da capacidade de
Washington de evitar que poderes extracontinentais se consolidem
em algum setor da ilha americana, ou que existam nela governos
hostis aos – ou incompatíveis com – desígnios dos Estados Unidos.
Esta concepção se aperfeiçoou desde meados do século XIX e
adquiriu conotações práticas nitidamente belicosas no final do
mesmo século, com sucessivas invasões a diversos países da
América Central e do Caribe, incluindo o México. A “Doutrina
Monroe” de 1823 e o “Corolário” desse postulado doutrinário
formulado por Theodore Roosevelt em 1904 expõem abertamente a
aspiração hegemônica dos Estados Unidos sobre esta dilatada
geografia que se localiza ao sul do Rio Bravo. Como resultado
disso, Washington pode tolerar, embora rangendo os dentes, um
governo socialista em algum país africano (casos de Moçambique,
Zimbábue ou Angola, em determinado período), mas responde com
fulminante brutalidade quando uma pequena ilha de 344 km2 e 90
mil habitantes como Granada comete “o erro” de eleger, em 1979,
um governo socialista radical sob a liderança de Maurice Bishop. A
resposta da administração Reagan não se fez esperar: em outubro
de 1983 despachou um poderoso contingente militar composto por
quase 8 mil homens (pouco menos do que 10% da população
invadida) que em poucos dias depôs o governo. A justificativa por
este crime: a construção de um novo aeroporto para facilitar o
turismo na ilha, o que foi interpretado pelos criminosos de
Washington como um perverso plano para facilitar a aterrissagem de
aviões de guerra soviéticos no Caribe. Nada remotamente
semelhante foi feito pelos Estados Unidos em nenhuma outra região
do planeta diante de um país como Granada, com suas pequenas
dimensões e quase nula influência, a não ser na América Latina e
no Caribe, turbulenta fronteira de um império protegido por uma
enorme hinterlândia e dois grandes oceanos.63 O único perigo vem
do Sul, do mundo do subdesenvolvimento latino-americano. É por
isso que, com algumas nuances, argumentos semelhantes aos
expressados no caso de Granada sobre uma suposta ameaça à
“segurança nacional” continuam sendo usados até hoje. Foram
usados antes com a Guatemala de Arbenz, em 1954, com Cuba
desde 1° de janeiro de 1959, depois com a revolução nicaraguense,
em 1979 e, desde março de 2015, com a primeira ordem executiva
assinada pelo presidente Barack Obama estabelecendo uma
“emergência nacional” pela ameaça “incomum e extraordinária” à
segurança nacional e à política exterior dos Estados Unidos que
implica o governo bolivariano da Venezuela. Trump se limitou a
aprofundar e radicalizar a linha demarcada pelo seu antecessor,
expressando de modo inequívoco que naquele país – como
frequentemente Noam Chomsky recorda – não há dois partidos,
mas apenas um: o partido do capital imperialista.
Do exposto, depreende-se que Washington vai se opor a qualquer
processo genuinamente democratizador que se desenvolva em
nossos países. Qualquer força política que chegue ao governo e
trate de tornar realidade a soberania popular que se assenta na
soberania econômica e política em um mundo de nações
poderosas, imperialistas e colonialistas, por um lado; e países
frágeis e submetidos, por outro, será ferozmente combatido pelo
império.
Pense-se na parafernália de vínculos existentes entre os aparatos
de inteligência estadunidenses (nada menos do que 16, segundo a
última conta) e os organismos militares e policiais do império com
seus homólogos da América Latina e do Caribe. O governo dos
Estados Unidos treina os nosso espiões, soldados e policiais;
ensina-lhes táticas de interrogatório; lhes dá armas e, junto com as
armas, a definição doutrinária de quem são os amigos e quem são
os inimigos aos quais é preciso disparar; coordena com seus
exercícios conjuntos as tarefas de nossos exércitos de ar, mar e
terra; mantém escolas especiais, como a renovada Escola das
Américas, agora com nome novo, mas que segue cumprindo as
mesmas funções; mantém em vigor a Junta Interamericana de
Defesa, para coordenar os estados maiores de nossas Forças
Armadas em função das prioridades e necessidades militares dos
Estados Unidos. Tudo isso continua de pé, apesar dos esforços da
praticamente morta Unasul e suas tentativas de conceber e
coordenar uma estratégia sul-americana de contenção da virulência
imperial, experiência que hoje está paralisada; e algumas valiosas
exceções como Cuba e Venezuela. Falar de imperialismo, violência
e guerra é algo tão elementar que não deveria exigir maiores
argumentações.
Em contrapartida, e em consonância com a crescente importância
do “golpe brando” como substituto do velho golpe militar latino-
americano, Washington se esmerou em trabalhar muito
meticulosamente seus vínculos não apenas com os militares ou os
governos da região, mas também concentrou enormes recursos
(dinheiro, pessoal, organizações) para “colaborar” com o
“aggiornamento” dos poderes Judicial e Legislativo dos nossos
países, assim como com a modernização dos meios de
comunicação. Diversos cursos e viagens de estudo são organizados
regularmente pela Usaid, pela NED (National Endowment for
Democracy) e outras agências do governo federal ou organizações
supostamente “independentes” de Washington, como universidades
e fundações privadas, para educar juízes e legisladores latino-
americanos e caribenhos nas “boas práticas” de seu ofício. São,
digamos sem rodeios, cursos de formação ideológica e política
voltados para socializar os valores estadunidenses com os
participantes e torná-los especialmente amigáveis em relação aos
interesses nacionais dos Estados Unidos e seus conglomerados
empresariais. O mesmo ocorre com os jornalistas, e os resultados
desta política são evidentes. Os “golpes brandos” contra Mel Zelaya,
Fernando Lugo e, agora, Dilma Rousseff, tiveram como atores
principais juízes “independentes”, uma turba de legisladores
fanáticos em níveis poucas vezes vistos na região e a oligarquia
midiática, coordenada de Washington, difamando sem trégua os
citados chefes de Estado e manipulando a população com uma lista
interminável de mentiras que, no fim, conseguiram criar um “clima
de opinião” favorável ao golpe. Impulsionado pelo juiz Sérgio Moro,
o mecanismo de lawfare ou guerra judicial foi utilizado no Brasil para
proibir a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva nas eleições de
2018, graças a que elege-se Jair Bolsonaro, que recompensou Moro
ao nomeá-lo ministro da Justiça. Bastou pouco mais de um ano de
desgoverno para que ambos os canalhas, Moro e Bolsonaro,
rompessem sua cumplicidade, mas o dano causado ao Brasil seria,
a essa altura, imenso, como o prova o grande número de vítimas
mortais do Covid-19 ocasionado pelas política criminosas do ex-
capitão do Exército brasileiro e do inescrupuloso advogado e ex-juiz
que tornou possível sua chegada ao Planalto.

Palavras finais
Nosso continente é a prioridade número um para a política exterior
dos Estados Unidos. É a região mais importante do mundo, de
longe. Defendemos isso em todos os detalhes em um trabalho
anterior e não faz sentido insistir nesse tema aqui (Boron, 2014;
Boron e Vlahusic, 2009). Washington pode perder Angola, Namíbia,
Nigéria, Camboja, Vietnã, mas não vai ficar de braços cruzados
diante da perspectiva de perder Granada, Nicarágua, Cuba, Chile,
nem, digamos, Brasil ou Venezuela. Pode se esforçar para “conter o
comunismo”, como o fez nos anos da Guerra Fria e, para isso,
elaborar uma série de alianças regionais. Sendo que o eixo
articulador da revolução comunista mundial (como se dizia naqueles
anos em Washington) estava na Europa, em Moscou; para sermos
mais precisos, foi a Europa a primeira beneficiária da estratégia de
contenção que George Kennan elaborou para o presidente Harry S.
Truman? Não! Foi a América Latina. Em um mundo ameaçado pelo
risco mortal da dominação comunista, a primeira região que os
Estados Unidos trataram de colocar a salvo dessa indesejável
eventualidade foi a América Latina. Em 1947 foi assinado o Tratado
Interamericano de Assistência Recíproca (Tiar) com esse propósito.
E a Europa? Teria que esperar mais dois anos, pois apenas em abril
de 1949 seria criada a Otan. E no apogeu do auge progressista na
região, e em coincidência com os anúncios do presidente Lula da
Silva, informando ao mundo a descoberta das grandes jazidas de
petróleo no litoral paulista, a resposta da Casa Branca foi ordenar a
reativação da Quarta Frota, que havia sido desativada em 1950.
Como diz um conhecido aforismo estadunidense, “first things first”,
ou seja, “primeiro as primeiras coisas”. E a primeira coisa é a
América Latina. Se a África cai nas mãos do comunismo é um
problema; se a Ásia cai é um problema muito maior; se a Europa cai
é uma tragédia; mas se a América Latina cai é uma catástrofe de
projeções incalculáveis. Porque a Ásia, a África e a Europa estão
longe, separadas por grandes oceanos. Mas, desde a América
Latina, os inimigos do império podem chegar caminhando nos EUA,
como no meio da psicose despertada pela revolução sandinista se
escutava dizer nos corredores do governo estadunidense em
Washington. As mudanças na paisagem sociopolítica latino-
americana desde o fim do século XX marcaram um importante
retrocesso da influência estadunidense na região. O rechaço da
Alca foi uma duríssima derrota para o império, e a consolidação de
uma série de governos progressistas, alguns de esquerda, e a
heroica sobrevivência da Revolução Cubana marcaram a fogo todo
o período aberto desde a eleição presidencial de Chávez, em
dezembro de 1998, até hoje em dia. A vitória do líder bolivariano foi
a faísca que incendiou o campo: seu carisma e sua capacidade
fenomenal de se comunicar com as massas do continente mobilizou
e excitou os desejos emancipatórios dos povos e nações da área,
abatidos e humilhados por séculos de opressão colonial e
neocolonial. Chávez derrubou na Venezuela a primeira peça de um
dominó que logo percorreria todo o continente: a segunda cairia no
Brasil com Lula em 2002, para continuar com Kirchner na Argentina,
em 2003; com Evo e Tabaré Vázquez na Bolívia e no Uruguai, em
2005; com Correa no Equador, em 2006 e nesse mesmo ano com
Ortega na Nicarágua e com Zelaya em Honduras; com Cristina em
2007; com Lugo no Paraguai em 2008 e Funes em El Salvador, em
2009, abrindo o caminho para que o ex-comandante do FMLN,
Salvador Sánchez Cerén, assumisse a presidência desse país em
2014. Em 2010, José “Pepe” Mujica ratificaria a hegemonia da
Frente Ampla e conquistaria a presidência do Uruguai, a mesma que
em 2015 voltaria a recair nas mãos de Tabaré Vázquez.
Em suma: basta recordar esta radical modificação do mapa
sociopolítico latino-americano para medir a imperecível espessura
política da herança chavista e a ansiedade da burguesia imperial
para retomar a “normalidade” nas relações hemisféricas. Diante
desse desafio inédito, a contraofensiva estadunidense não se fez
esperar: começou com o frustrado golpe de Estado contra Chávez
em abril de 2002 e continuou, diante de seu fracasso, com a
paralisação petroleira de dezembro de 2002 a fevereiro de 2003 e
com os violentos protestos (“guarimbas”) de 2014 a 2017,
inflamados pelo império e continuados até hoje com diversos ciclos
de protestos, sabotagens, ataques paramilitares recorrentes na
fronteira colombo-venezuelana, tentativas de assassinato do
presidente Nicolás Maduro até chegar, em maio de 2020, à tentativa
de invasão por mar de um pequeno exército mercenário, operação
que cumpria um contrato firmado entre Juan Guaidó e seus
colaboradores e a Silvercorp, empresa destinada a realizar
“operações especiais” para o governo dos EUA. Derrotadas aquelas
iniciativas do começo do século, que tiveram um efeito bumerangue
e liquidaram a Alca em 2005, pouco depois o império voltou a
atacar: frustrada tentativa de golpe e secessão da Bolívia em 2008,
mas retomada, com êxito para o imperialismo, em novembro de
2019, ilustrando o controle decisivo que Washington exerce sobre
as Forças Armadas e policiais treinadas por décadas sob sua tutela;
golpe “jurídico-parlamentar” em Honduras contra Zelaya em 2009;
golpe frustrado, no Equador, contra Correa em 2010, por conta de
que tiveram que esperar a traição de Lenin Moreno em 2017; golpe
exitoso no Paraguai, também “jurídico-parlamentar”, contra Lugo em
2012; “golpe jurídico-parlamentar-midiático” contra Dilma Rousseff,
consumado em agosto de 2016 e consolidado com o triunfo de
Bolsonaro (2018), mediante a proibição de Lula. Some-se a isto o
importantíssimo triunfo diplomático e geopolítico regional ao
conseguir o triunfo de Mauricio Macri na eleição presidencial de
novembro de 2015. Sua presidência, desastrosa para o povo
argentino, foi eficaz em recriar mecanismos de dominação, entre os
quais se destacam a multiplicação da dívida externa e o poder do
capital financeiro internacional, além do alinhamento incondicional à
política exterior estadunidense. Todos estes acontecimentos ilustram
os alcances da ofensiva restauradora do império, configurando um
mapa sociopolítico em permanente movimento porque as respostas
populares, ainda frágeis e carentes de coordenação continental, não
puderam ser neutralizadas. A eleição de Andrés Manuel López
Obrador no México e Alberto Fernandéz na Argentina são indícios
de que o pêndulo começa a se mover em sentido contrário. E não
se pode deixar de reconhecer a enorme importância dos grandes
protestos populares contra o governo Sebastián Piñera, sem dúvida,
o “carro chefe” do neoliberalismo latino-americano. A formidável
mobilização sustentada desde meados de outubro de 2019 no Chile
só foi atingida pela pandemia e pela quarentena, quando Piñera
parecia já ter seus dias contados. Mais ao norte, o Equador
desfalece diante do monumental fracasso do governo corrupto e
traidor de Lenín Moreno, sustentado infelizmente, assim como
Piñera, pela involuntária desmobilização imposta pela pandemia.
Grandes protestos contra o neoliberalismo também sacudiram a
Colômbia, o Peru e o Haiti; e, talvez de modo menos vigoroso,
Honduras. Este 2020 poderia ter sido o ano em que cairiam vários
governos neoliberais. O coronavírus os preservou dessa fatalidade,
mas, como uma vez dissera Hugo Chávez, isso é “por agora”.
Neste contexto há um país que desempenha um papel de
excepcional importância em Nossa América: Colômbia. Nesse
sentido, há que se destacar que a assinatura, em junho de 2013, de
um acordo de cooperação entre a Colômbia e a Organização do
Tratado do Atlântico Norte (Otan) causou uma previsível
preocupação na Nossa América. A Otan é uma organização sobre a
qual pesam inúmeros crimes de guerra e massiva violação dos
direitos humanos perpetrados na própria Europa (lembremos o
bombardeio à ex-Iugoslávia e os massacres nos Bálcãs), a
destruição do Líbano, do Iraque, da Líbia; sua cumplicidade com o
governo fascista de Israel em seu contínuo genocídio do povo
palestino e agora sua colaboração com os terroristas que tomaram
de assalto a Síria, semeando morte e destruição em todo o Oriente
Médio.64 Até agora, o único país da América Latina “aliado extra
Otan” havia sido a Argentina, que obteve esse desonroso status
durante os nefastos anos de Carlos S. Menem, e mais
especificamente em 1998, após participar da Primeira Guerra do
Golfo (1991-1992) e aceitar todas as imposições de Washington em
muitas áreas da política pública, como por exemplo desmantelar o
projeto do míssil Condor e congelar o programa nuclear que durante
décadas vinha sendo desenvolvido na Argentina. Dois gravíssimos
atentados que contabilizaram mais de uma centena de mortos – na
Embaixada de Israel e na Associação Mutual Israelita Argentina
(Amia) – foi o saldo que deixou na Argentina a represália por ter se
somado às atividades da organização terrorista do Atlântico Norte.
O status de “aliado extra Otan” foi criado em 1989 pelo Congresso
dos Estados Unidos – não pela organização, mas pelo Congresso
estadunidense – como um mecanismo para reforçar os laços
militares com países situados fora da área do Atlântico Norte e que
poderiam ser de ajuda nas inúmeras guerras e processos de
desestabilização política que os Estados Unidos realizam nos mais
diversos cantos do planeta. Austrália, Egito, Israel, Japão e Coreia
do Sul foram os primeiros a ingressar, e pouco depois o fez a
Argentina e agora a Colômbia. O sentido desta iniciativa do
Congresso estadunidense salta aos olhos: robustecer e legitimar
suas incessantes aventuras militares – inevitáveis durante os
próximos 30 anos, se lemos os documentos do Pentágono sobre
futuros cenários internacionais – com uma aura de “multilateralismo”
que na verdade não têm. Esta incorporação dos aliados extra Otan,
que também está sendo promovida nos demais continentes, reflete
a exigência imposta pela transformação das Forças Armadas dos
Estados Unidos em seu trânsito a partir de um exército preparado
para travar guerras em territórios limitados a uma legião imperial
que, com suas bases militares de diversos tipos (mais de mil em
todo o planeta), suas forças regulares, suas unidades de “rápido
deslocamento” e o crescente exército de “terceirizados” (vulgo:
mercenários) quer estar preparada para intervir em poucas horas
para defender os interesses estadunidenses em qualquer ponto
quente do planeta. Com sua incorporação como “aliado extra Otan”,
a Colômbia se põe a serviço desse funesto projeto e, internamente,
reforça a militarização de um país que está há mais de meio século
em guerra civil.
Ainda que a Argentina seja um lamentável precedente (que em 2012
felizmente perdeu o status de “aliada extra Otan”), o caso
colombiano é muito especial, porque há décadas esse país recebe,
sobretudo no marco do Plano Colômbia, um importantíssimo apoio
econômico e militar dos Estados Unidos – de longe, o maior dos
países da área – e só superado pelos desembolsos realizados a
favor de Israel, Egito, Iraque e Coreia do Sul e um ou outro aliado
estratégico de Washington. A pretensão da direita colombiana, no
poder desde sempre, é se transformar, especialmente a partir da
presidência de Álvaro Uribe Vélez, na “Israel da América Latina”:
com o respaldo da Otan, erigir-se como a polícia regional da área
para vigiar, ameaçar e eventualmente agredir vizinhos que tenham a
ousadia de se opor aos desígnios imperiais. Por sua vez, cabe se
perguntar que implicações tem, sobre os diversos projetos de
integração e coordenação de políticas na América Latina, o fato de
que a Colômbia, ao se associar à Otan, adere à postura britânica na
disputa com a Argentina pelas Ilhas Malvinas?
Um projeto há muito tempo acalentado pelos nossos povos é fazer
com que a América Latina seja um continente desnuclearizado. Se
durante décadas pudemos estar seguros disso, hoje não podemos
mais. Há evidências que sugerem que é muito possível que exista
armamento nuclear nas Ilhas Malvinas e ignoramos que tipo de
armamento está nas sete bases de que Washington dispõe no
território colombiano, ou nas 11 existentes no Peru.65 Os acordos
que tornaram possível a instalação dessas bases contêm cláusulas
que conferem aos Estados Unidos o direito de colocar dentro das
bases carregamento militar sem ter que ser submetido a nenhum
controle dos Estados anfitriões. Não é por nada que, em uma das
reuniões da Unasul, quando Chávez solicitou à organização que se
procedesse a uma verificação do que havia em cada uma das bases
estadunidenses na região, o pedido tropeçou na firme negativa de
Álvaro Uribe e Alan García, não por acaso os dois países que
abriram de par em par suas portas para a penetração de tropas e
equipamentos militares estadunidenses em seus territórios. É
impossível que este continente conquiste a paz com mais de 80
bases militares dos EUA existentes em nossos países. Essas bases
são dispositivos para a guerra, não para a paz. E entrarão em pleno
funcionamento à medida que a deterioração da situação
internacional impulsione Washington a consolidar sua segurança no
quintal traseiro e a sufocar qualquer tentativa de autodeterminação
nacional ou de avanço democrático. Deveríamos lançar uma
campanha continental para expulsar todas as bases
estadunidenses, e as poucas que existem do Reino Unido, da
Holanda e da França, da região. Elas só vão trazer violência e morte
e nós, latino-americanos e caribenhos, queremos paz. É uma
proposta razoável, que atravessa a grande maioria das forças
políticas e movimentos sociais da região. E nossos filhos e os filhos
de nossos filhos jamais nos perdoarão o fato de que não tenhamos
feito tudo que está a nosso alcance para acabar definitivamente com
essas ameaças.

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48
Em uma carta a Joseph Weidemeyer, na qual lhe pedia livros e
artigos sobre a questão militar e as guerras, Engels diz que havia se
proposto a estudar a fundo o assunto “pela imensa importância que
devemos dedicar a ele, visando a próxima insurreição da classe
operária”. Cf. F. E., “Carta a Weydemeyer”, 19 de junho de 1851.
49
Agradeço a Paula Klachko por haver voltado minha atenção para
esse assunto, bem como por sua tão cuidadosa leitura da primeira
versão deste trabalho. Desta mesma autora, recomendo
especialmente o livro escrito conjuntamente com Katu Arkonada,
Klachko e Arkonada (2016).
50
Veja as declarações do ex-presidente James Carter sobre isso.
Ele comentou a sentença da Suprema Corte dos EUA, que
estabelecia que as doações de campanha tanto de indivíduos
quanto de empresas seriam, em essência, livre expressão e,
portanto, não podem ser limitadas como algo equivalente à simples
e pura legalização do suborno. Ele agregou, em uma entrevista
recente para a Rádio 4 da BBC, que graças à sentença errônea da
Suprema Corte, milionários e multimilionários poderão contribuir
com montantes ilimitados de dinheiro, de modo que o suborno aos
políticos foi legalizado. Autores como Jeffrey Sachs, Noam
Chomsky, Tom Engelhardt e Gianni Vattimo têm elaborado este
mesmo argumento nos últimos anos.
51
Tema sobre o qual já falamos e que agora ratificamos, aludindo
diretamente às obras de Tom Engelhardt, “El nuevo orden
estadounidense”, em <http://www.rebelion.org/noticia.php?
id=196927>.Veja também dois textos clássicos sobre este tema:
Scott (2014), Wolin (2009). Também Bosch (2015).
52
Este cálculo é nosso (Boron, 2012).
53
O consumo de papel é importante, entre outras coisas, como um
indicador da higiene dos produtos alimentícios e farmacêuticos que
se enviam ao mercado. Não é casual a correlação inversa que
existe entre taxas de mortalidade e morbidade infantil e consumo de
papel nos países mais pobres do planeta. Analisamos esse assunto
em Boron (2014).
54
Não é um dado menor recordar que a expressão “Make America
great again” (“Tornar a América grande novamente”) foi registrada
como uma marca por Donald Trump, que também fez o mesmo com
o próprio lema da sua campanha para a eleição de 2020: “Keep
America Great” (“Conservermos a América grande”). Ver Wilson
(2018).
55
O documento diz textualmente: “In particular, India’s potential,
China’s rise, and Russia’s aggression all significantly impact the
future of major power relations” (NSS, 2015, p. 4). Em nenhum lugar
do documento se indica qual é o país ou o objetivo da agressão
russa. Trata-se de uma caracterização preconceituosa, negativa e
abstrata e não de uma acusação verídica.
56
Sobre o tema da decadência do poderio imperial, ver Boron
(2014, p. 50-58).
57
Em Washington circula entre murmúrios esta visão tripartida dos
possíveis desenlaces: “soft”, “rough” e “crash landing”, embora seja
politicamente incorreto falar em voz alta dessas coisas.
58
Os Estados Unidos estão tratando de alcançar a “independência
petrolífera” desde a primeira crise do petróleo, em 1973, sem obter
sucesso nessa política. Para piorar, as decisões da Casa Branca de
acompanhar vergonhosamente a política do Estado Islâmico de
vender o petróleo cru a 30 dólares por barril com o objetivo de
agredir economicamente a Rússia, o Irã e a Venezuela desatou uma
gravíssima crise nas empresas que extraíam o “shale oil” (petróleo
de xisto) e que haviam diminuído a dependência estadunidense do
petróleo cru importado. Agora tudo isso é história, e as empresas
que exploravam esse petróleo não convencional no Texas, na
Califórnia e nas Dakotas encerraram suas atividades. Sobre o uso
de um recurso como o gás ou o petróleo como arma política: os
Estados Unidos foram os campeões nesse ramo, de modo que sua
crítica à Rússia por fazer o mesmo que Washington tem feito desde
tempos imemoriais não tem substância nenhuma.
59
Não obstante, a derrubada dos preços do petróleo nos últimos
meses não apenas transformou a fisionomia do mercado petroleiro
mundial, mas também liquidou a alavanca fundamental com a qual
os EUA desestabilizaram esse mercado nos últimos anos. O
fracking, decisivo para a presença estadunidense nesse mercado,
foi derrubado porque sua rentabilidade requer que o barril de
petróleo oscile em torno de US$ 70,00, coisa que não ocorre nem
com o petróleo russo, nem com o saudita. As renovadas tensões do
sistema internacional encontram ali uma de suas múltiplas causas.
60
Aqui se marca claramente o dissenso no conselho bipartite, pois
Trump atribui ao liberalismo global a responsabilidade pela
decadência industrial dos EUA.
61
Esta enigmática frase, “cálculos errôneos”, certamente faz
menção à possibilidade de que a China, que está reforçando seu
músculo militar, possa empreender alguma ação bélica no marco do
litígio do Mar do Sul da China, especialmente voltada para atacar ou
neutralizar a presença do Japão naquela área. Em uma
manifestação completamente incomum da diplomacia chinesa, o
jornal oficial do Partido Comunista da China, Diário do Povo,
publicou pouco depois da visita de Obama à Austrália para assinar o
acordo de instalar bases estadunidenses nesse país que “a
Austrália poderia ficar presa em um fogo cruzado” entre Estados
Unidos e China.
62
Por isso que alguns observadores dizem que, dado que o lítio
será neste século o que o petróleo foi no passado, a Bolívia deve
ser considerada como a Arábia Saudita do lítio, ao contar com as
maiores reservas comprovadas desse estratégico elemento.
63
Sobre este tema do intervencionismo estadunidense na Nossa
América, é inevitável a referência à monumental obra de Gregorio
Selser (1994) Cronología de las intervenciones extranjeras en
América Latina. Veja-se também a obra, mais recente, do politólogo
e historiador cubano Luis Suárez Salazar (2006).
64
Sobre o sinistro papel da Otan, veja o estudo completo publicado
como livro de Nazemroaya (2015).
65
Sobre o tema das bases militares, consultar o imprescindível livro
de Telma Luzzani (2012) e, também, os diversos documentos de
trabalho do Movimento pela Paz, a Soberania e a Solidariedade
entre os Povos, que sob a direção de Rina Bertaccini, realizou um
notável trabalho de levantamento das bases militares estrangeiras
estabelecidas na região.
A RECONFIGURAÇÃO IMPERIAL
DOS ESTADOS UNIDOS E AS
FISSURAS INTERNAS DIANTE DA
ASCENSÃO DA CHINA66
GABRIEL E. MERINO

Introdução
A atual transição histórico-espacial do sistema mundial se
manifesta, entre outros modos, como uma crise capitalista estrutural
e uma crise da hegemonia estadunidense e da ordem mundial
construída pelo polo de poder anglo-americano. São dois lados da
mesma moeda. A acumulação capitalista está sempre relacionada
com o poder político e militar que a garante (que sanciona as regras
do jogo, constrói monopólios para o aumento do valor, conquista
territórios, disciplina os rivais, concede legitimidade etc.). E o poder
político e militar se alimenta do poder econômico e da acumulação
infinita de valor para obter para si os recursos de sua própria
reprodução ampliada. Esta é a natureza do imperialismo moderno.
A transição histórica, em sua dimensão geopolítica, começa a ser
percebida nitidamente a partir de 1999-2001, quando brota a
situação de multipolaridade relativa que vivemos hoje, como reação
à globalização financeira neoliberal estadunidense-anglo-americana
e sua expansão política e militar. A decadência relativa dos Estados
Unidos e do “Ocidente”, por um lado, e a reemergência da China e
da Ásia-Pacífico, por outro, é uma das características centrais da
mudança de época que vivemos, o que não pode ser interpretado
somente como mais uma transição hegemônica dentro do moderno
sistema mundial. Quer dizer, como parte da sucessão de ciclos de
hegemonia iniciado no século XV: ibérico-genovês, holandês,
britânico, estadunidense e, agora, [...] a reemergência da China, a
ascensão da Ásia-Pacífico, as alianças com a Rússia, o crescente
desenvolvimento de um espaço Euro-Asiático e a insubordinação
anti-hegemônica impulsionada por forças do Sul Global constituem
expressões da crise dos elementos constitutivos do moderno
sistema mundial: seu caráter eurocêntrico ou “ocidentalocêntrico”,
para incluir os Estados Unidos, seu caráter capitalista, seu particular
ordenamento centro-semiperiferia-periferia e a especificidade do
imperialismo moderno associado à acumulação infinita do capital e a
resolução dos obstáculos da acumulação.
Atualmente, estamos no processo inverso do que aconteceu no fim
do século XVIII e início do século XIX, quando o imperialismo
capitalista ocidental liderado pelo Reino Unido conseguiu subordinar
e provocar o declínio das economias mais importantes do mundo,
China e Índia, transformando-as em periferia. Isso foi alcançado
fundamentalmente por seu poderio militar britânico. Esse processo,
conhecido como a Grande Divergência, nos leva a perguntar se hoje
em dia estamos diante de uma nova grande divergência, porém no
sentido inverso.
Uma questão fundamental da transição é que os grupos de poder e
as forças dirigentes dos Estados Unidos não chegam a um acordo
sobre o que fazer ou como enfrentar a ascensão da China, dando
lugar a diferentes estratégias imperiais. Neste sentido, Arrighi (2007,
p. 283) aponta diferentes opções. Em primeiro lugar, destaca a
posição neoconservadora dominante durante o governo de Bush,
segundo a qual as forças estadunidenses devem ser o
suficientemente fortes para dissuadir possíveis adversários de
continuar uma acumulação militar com a esperança de ultrapassar
ou igualar o poder dos Estados Unidos. O foco se centra na
supremacia militar dos Estados Unidos, o intervencionismo unilateral
e o controle da região do Oriente Médio e de seus recursos de
hidrocarbonetos como uma das chaves para a primazia mundial.
Diante disso, e especialmente devido ao fracasso no Iraque,
emergem três estratégias na perspectiva neorrealista: 1) a da
contenção da China mediante uma coalizão de equilíbrio e o
estabelecimento de uma aliança militar na Ásia-Pacífico, similar à
Otan e conhecida como Pacom, formulada por Kaplan, que outros
estendem também ao Índico; 2) a estratégia de cooptação e o
estabelecimento conjunto de um sistema internacional estável, uma
estratégia de contenção centrada nas dimensões políticas e
econômicas, que comprometa a China a sustentar a ordem mundial
vigente em troca de concessões, formulada essencialmente por
Kissinger e também por Brzezinski; e 3) a estratégia de “terceiro
feliz” dos Estados Unidos, apostando na rivalidade da China com
outras potências asiáticas (especialmente Índia e Japão) e uma
política neohamiltoniana de industrialização (fortemente
protecionista) com foco nas indústrias vitais para a defesa,
formulada por Pinkerton.67 Podemos diferenciar esta última e
compreendê-la como duas formulações articuladas. Também
podemos mencionar o internacionalismo liberal, que se centra na
crítica à China pelo não respeito aos direitos humanos e, em geral,
pela recusa do conjunto dos dirigentes políticos da China em aceitar
a comunidade de valores proposta pelo Ocidente. O liberalismo
argumenta que a guerra não é inevitável e que a China pode ser
controlada a partir do estabelecimento de instituições e normativas
regulatórias para os Estados, não apenas externas mas também
internas.
Considerando esses debates, propomos aqui outra perspectiva para
observar as diferenças estratégicas nos Estados Unidos para
enfrentar a ameaça que a ascensão da China significa para sua
posição dominante em nível mundial. Esta outra perspectiva é
formulada com base na identificação das forças em disputa nos
Estados Unidos, focando-nos nas disputas entre os que
denominamos globalistas e americanistas. A partir disso,
articulamos discursos, grupos de poder e interesses para identificar
duas grandes estratégias imperiais, com suas geoestratégias
particulares, e compreender as diferentes maneiras de enfrentar a
China. Partindo dessa análise, neste trabalho busca-se
compreender as reconfigurações imperiais em curso a partir da
presidência de Donald Trump. Além disso, observam-se certos
elementos-chave da ascensão da China, seus aspectos geopolíticos
e as respostas do gigante oriental diante das estratégias de
Washington contra ele. Por último, realiza-se uma análise da guerra
comercial no contexto das fraturas internas dos Estados Unidos e as
disputas geopolíticas.
A fugaz belle époque neoliberal unipolar
As transformações no campo econômico, produto do
desenvolvimento do capital financeiro transnacional, e a mudança
nas relações capitalistas de produção, junto à ofensiva nos campos
político, ideológico e militar do projeto neoliberal encabeçado pelos
Estados Unidos e o Reino Unido, possibilitaram uma reconstrução
da hegemonia estadunidense e, em termos mais exatos, anglo-
americana. Sem sombra de dúvidas, a queda da URSS foi
fundamental nesse sentido. O novo ciclo de crescimento iniciado em
1993-1994, que deixou para trás o ciclo negativo que vinha desde
os anos 1970, consolidou a breve belle époque neoliberal.
O mundo se tornou unipolar, e o globalismo emergiu como descrição
ideológica da nova fase do capitalismo mundial, mas também como
projeto político. À transnacionalização financeira, produtiva e, em
boa medida, cultural devia corresponder uma estrutura de poder
transnacional que administrasse a nova ordem do sistema mundial e
suturasse as contradições do capitalismo global. O projeto dos
Estados Unidos como Estado verdadeiramente global era
impossível, porém, por sua vez, sobre sua base e desenvolvimento
configurou-se o andaime de uma institucionalidade globalista. Em
função disso, se fortaleceram algumas organizações multilaterais
chave do pós-guerra sob o controle dos Estados Unidos e do Norte
Global: o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
Além disso, criou-se a Organização Mundial do Comércio (OMC) e
começou a se impulsionar um conjunto de normas globais voltadas
para o comércio, o investimento, a propriedade intelectual etc.,
materializadas em acordos e instituições. Inclusive, estabeleceram-
se tribunais internacionais, como o Centro Internacional para a
Arbitragem de Disputas sobre Investimentos (Ciadi),68 para arbitrar
sobre disputas relativas a investimentos, despojando os Estados
nacionais de ferramentas soberanas. Toda essa institucionalidade
globalista significou um processo de fragilização das soberanias
nacionais, uma desnacionalização progressiva dos Estados.
No entanto, no final do século, no auge da belle époque neoliberal,
começaram a se manifestar os primeiros sintomas da crise.
Enquanto o levante dos camponeses zapatistas no sul do México
em 1994 colocava em evidência o feroz impacto do projeto
financeiro neoliberal sobre os pobres do Sul Global, por volta de
1999 se manifestava uma série de contradições entre os grupos
dominantes do sistema – tanto centrais quanto semiperiféricos e
periféricos – e começavam a ser observados em termos políticos e
estratégicos os primeiros indícios da particular multipolaridade, da
forma geopolítica da transição. A reconstrução da hegemonia
estadunidense dos anos 1980, e em seu esplendor nos 1990,
começou a mostrar seus próprios limites e contradições: se a
chamada globalização, a transnacionalização econômica e os
vínculos com a China foram pilares de dita reconstrução, esses
elementos continham por sua vez o gérmen de uma crise terminal
da hegemonia estadunidense.
Neste sentido, se até o último ano do milênio os BRICS69 apareciam
como os espaços fundamentais da expansão do capital
transnacional do Norte Global, nova solução espacial para a
acumulação do capital, e integrados progressivamente como
semiperiferias nas instituições internacionais de governabilidade
global criadas pelo Ocidente, também se observará o que poucos
anos depois será uma realidade pouco feliz para o establishment
defensor da ordem mundial vigente: o desenvolvimento, em certos
países chamados “emergentes” ou do Sul Global, de capacidades
estruturais e de forças político-sociais desafiantes das hierarquias
estatais estabelecidas, das instituições da ordem mundial e do lugar
designado a elas na divisão internacional do trabalho. Assim o
interpreta o establishment anglo-americano, que podemos ler no
Financial Times:
Não faz muito tempo que os políticos do Ocidente assumiram que China e
Rússia eventualmente decidiriam que iriam querer ser como ‘nós’. A China se
desenvolveria como um ator responsável na ordem internacional existente e a
Rússia, embora com erros, veria seu futuro na integração com a Europa. Xi e
Putin tomaram outra decisão. O mundo está despertando dos sonhos pós-
modernos da governança mundial para outra época de grande competição pelo
poder.70
O ataque militar unilateral da Otan conduzido pelos Estados Unidos
contra a Iugoslávia em 1999 e o bombardeio a Belgrado, em que as
forças estadunidenses destruíram a embaixada chinesa, começou a
mostrar os limites da crença sobre o “fim da história”. Por sua vez,
no mesmo ano, China recupera Macau, posição portuguesa desde o
século XVI transformada em colônia em 1887, sendo que dois anos
antes já havia recuperado a soberania de Hong Kong, colônia do
império britânico desde 1842 e provavelmente o primeiro marco
histórico da Grande Divergência, iniciada com as Guerras do Ópio,
em um caminho de subordinação e periferização da China. Isso,
junto com a consolidação da Organização para Cooperação de
Xangai com a Rússia e com os países da Ásia central, sobre os
quais os Estados Unidos tinham colocado o foco em seus avanços,
são algumas das manifestações geopolíticas de uma mudança de
época que tem a China como protagonista.
Outro indício disso seria a captura, por parte da China, de um avião
espião estadunidense que colidiu com um avião caça chinês em
abril de 2001 no Mar da China, obtendo acesso a material eletrônico
de vigilância de alta tecnologia, extremamente secreto, em um
equipamento considerado uma fortaleza tecnológica aérea. Isso
exacerbou os ânimos do governo de George W. Bush e mostrou a
crescente hostilidade de Beijing aos desafios à sua soberania
territorial.
Este fato ocorreu em meio a uma profunda mudança na definição da
relação bilateral por parte dos Estados Unidos diante do gigante
asiático com a ascensão do governo de Bush, que passou da
“associação estratégica no século XXI” para a “concorrência
estratégica”. As implicações dessa nova definição incluíam a
possibilidade de que os Estados Unidos vendessem armas
modernas para Taiwan, ilha sobre a qual a China reclama soberania,
e construísse um “escudo antimísseis” ao redor da China.
Em contrapartida, com base na definição de “concorrência
estratégica”, passou-se a considerar a China como uma ameaça no
“quintal” estadunidense, por sua crescente influência comercial na
América Latina. No ano de 2005, durante um debate sobre “A
influência da China na América Latina” organizado pelo Subcomitê
do Hemisfério Ocidental do Congresso dos Estados Unidos,
legisladores e funcionários do Departamento de Estado e do
Pentágono coincidiam em que a influência da China crescia todo dia
na Argentina, no Brasil, na Venezuela e no resto da América Latina,
e que isso representava “uma ‘preocupação’ para o
desenvolvimento da democracia e dos direitos humanos no
continente”.71 Nessa ocasião, a referência máxima do Departamento
de Defesa para a América Latina, o subsecretário adjunto Roger
Pardo Maurer, afirmou estar “preocupado com o aumento da
presença da China nos países da região” e destacou que os
Estados Unidos devem “estar alertas” diante de “certas atividades
chinesas”.72
A crescente tensão com a China desde 1999 e a mudança nos
Estados Unidos que, como veremos, é produto de uma modificação
de relação de poder a favor do que chamamos de “americanismo”
naquele país, também coincide com um conjunto de fatos que
marcam o começo do fim da belle époque neoliberal unipolar: 1) o
estabelecimento do euro por parte das forças “continentalistas” da
Europa, conduzidas por Berlim e Paris, em sua busca por se
fortalecer e ganhar maiores margens de manobra diante de seu
aliado e “protetor” fundamental, os Estados Unidos; 2) a ascensão
de Putin na Rússia, que expressará a reemergência das forças
nacionais do gigante Euro-Asiático; 3) a ascensão de Chávez na
Venezuela, que indicará uma quebra-chave da hegemonia
estadunidense e do Consenso de Washington na América Latina,
junto à crise no Brasil que debilitou as forças neoliberais no
“gigante” sul-americano e as fraturas dos grupos de poder e classes
dominantes na Argentina com a aparição do Grupo Produtivo;
também devemos somar aqui a crise do Equador, cuja saída é a
dolarização e, por volta do ano 2000, a Guerra da Água na Bolívia,
ponto-chave do processo nacional popular que leva ao governo,
anos depois, o Movimento ao Socialismo (García Linera, 2008, p. 4)
o lançamento do Jubileu da Dívida 2000 por parte da Igreja Católica,
que propôs perdoar a dívida dos países pobres, acompanhado de
uma crítica ao neoliberalismo e ao capitalismo “selvagem”. Isto é, aí
começam a se observar as primeiras manifestações geopolíticas da
crise da hegemonia estadunidense e da ordem mundial vigente, a
qual se mostrará mais nitidamente a partir do fracasso da guerra no
Iraque e da crise global de 2008.

Fratura nos Estados Unidos e imperialismo


A mudança na definição por parte do governo G. W. Bush da
relação com a China para a categoria de “concorrência estratégica”
deve ser interpretada como parte dos antagonismos que existem no
“establishment” estadunidense (e anglo-americano). As
características do atual racha nos grupos de poder e nas classes
dominantes começa a ser observada no fim do mandato de Clinton,
quando este impulsiona, entre outras questões: a) a revogação da
Lei Glass-Steagall, que permite acabar com a divisão entre banco
comercial e banco de investimento, criando imensas redes
financeiras globais; b) a criação do G20, impulsionado pelas forças
globalistas como novo âmbito de governabilidade mundial de um
capitalismo transnacionalizado; c) o fortalecimento e/ou criação, por
parte das forças globalistas, das instituições internacionais
multilaterais (FMI, BM, OMC) em detrimento das soberanias
nacionais, inclusive a soberania dos próprios Estados Unidos,
segundo os “americanistas”.
Com o governo de Bush, a partir da queda das Torres Gêmeas e a
ascensão do neoconservadorismo no domínio da política exterior, se
evidencia uma reação “americanista” que se expressa na prática do
unilateralismo: deixa-se de lado a ideia do G20 para retomar o velho
G7 do Norte Global (Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental e
Japão) e, alternativamente, o G8, que inclui a Rússia. Além disso,
se instala um unilateralismo estadunidense-anglo-americano, em
detrimento do multilateralismo globalista de Clinton, apelando para a
supremacia militar e para o domínio da região do Oriente Médio
para assegurar a posição hegemônica dos Estados Unidos na
Ordem Mundial, o que tensiona as relações com seus próprios
aliados, como a França e a Alemanha na guerra no Iraque (Harvey,
2004). Também se desdenha o fortalecimento excessivo de
instituições internacionais multilaterais, para recuperar poder de
decisão direta dos Estados Unidos em detrimento da “burocracia
global”.73 Por sua vez, aplicando um keynesianismo militar (deficit
público e aumento superlativo do orçamento militar, legitimado pela
guerra), buscou-se dinamizar a economia interna a partir do
complexo industrial militar.74 Em contrapartida, como vimos, definiu-
se que a China é um competidor estratégico e se colocou em prática
uma política que Donald Trump levaria muito mais longe: impedir as
empresas chinesas de adquirir ativos considerados estratégicos por
Washington. O caso mais estrondoso foi o impedimento de que a
chinesa CNOOC comprasse a petroleira Unocal.
A crise de 2007-2008, com epicentro nos Estados Unidos e no
Reino Unido, foi outro momento fundamental dessa disputa no
interior das classes dominantes, entre grupos financeiros, entre
globalistas e americanistas (Merino, 2014), em uma crise que
deixava evidente os limites da financeirização e o problema da
superacumulação. Com o triunfo de Obama, o “globalismo” voltou
ao governo, recolocando na agenda o multilateralismo-unipolar, o
incentivo de tratados multilaterais de comércio e investimento, as
alianças militares expansivas na periferia Euro-Asiática para conter-
impedir a emergência de rivais geopolíticos, a tentativa de fortalecer
as instituições multilaterais criadas pelo Norte Global e o incentivo
do multiculturalismo como ideologia dominante. Também as
tentativas de abandonar as guerras convencionais e concentrar-se
no que se denominam guerras híbridas, revoluções coloridas e
guerras não convencionais. Um exemplo disso foi a multiplicação
por dez dos ataques com drones em territórios onde os Estados
Unidos não estavam formalmente em guerra, como no Iêmen, na
Somália ou no Paquistão, bem como o apoio a forças insurgentes e
às revoluções coloridas nos países com governos contrários aos
seus interesses. Seu governo articulou o programa dominante do
capital financeiro transnacional (especialmente de origem anglo-
americano) e os interesses geopolíticos do establishment político e
ideológico globalista (que procura incluir os seus aliados da Europa
ocidental e o Japão), com certas concessões mínimas às classes
populares estadunidenses através de programas focados e da
recuperação parcial da agenda liberal em relação aos direitos civis e
às liberdades individuais. Mas essa articulação era contraditória
demais.
Para as forças globalistas, o que está em jogo no cenário
estratégico atual é quem escreve as regras do jogo do século XXI,
ou seja, a institucionalidade que vai emergir desta transição
histórico-espacial que estamos atravessando e que vai configurar
uma nova ordem no sistema mundial, com capacidade para conter
os polos de poder desafiantes. Essa disputa é crucial, uma vez que
a geoestratégia das forças globalistas anglo-americanas é
inseparável da lógica do capital internacional, das redes financeiras
globais. Seguindo o raciocínio de Arrighi e Silver (2001) e de Harvey
(2004), entre outros, a atual crise capitalista só pode ser “resolvida”
(ou só se encontrará uma saída), em suas implicações geopolíticas,
na medida em que se construir um poder político e militar que
garanta a acumulação do capital transnacional do Norte Global. E
isso estabelece uma tendência para avançar na direção de uma
nova institucionalidade globalista, na direção de um novo impulso de
um impossível Estado global partindo dos Estados Unidos e do polo
de poder anglo-americano, e subordinar-conter os polos emergentes
que desafiam o polo dominante. Para isso, são cruciais os acordos
de livre comércio e as alianças militares nas periferias Euro-
Asiáticas, regiões-chave do rimland.
Como observa Brzezinski, um neorrealista com grande influência
sobre o grupo que denominamos globalistas, a “primazia global dos
EUA depende diretamente de por quanto tempo e quão
efetivamente poderão manter sua preponderância no continente
Euro-Asiático” (Brzezinski, 1998, p. 39). Nesse sentido, a tarefa é
garantir que nenhum Estado ou nenhum grupo de Estados (polos de
poder) obtenham a capacidade de expulsar os Estados Unidos da
Eurásia ou de limitar seu papel de árbitro. E para isso se tornam
fundamentais os acordos de livre comércio na periferia ocidental e
oriental da Eurásia. Até 2014, tais acordos se tornaram ainda mais
cruciais diante da fragilidade dos Estados Unidos, da crise da
hegemonia global, da crise capitalista com epicentro no Ocidente,
do desafio das potências emergentes, do despertar do Oriente, do
grande desenvolvimento da China e da luta pelo controle do Pacífico
como área principal de acumulação em âmbito mundial.
Como expressão dessa geoestratégia que pretendia conduzir e
incluir o conjunto das forças do que se denomina geopoliticamente
como “Ocidente” e geoeconomicamente como “Norte Global”, Hillary
Clinton (2011) afirmava que o futuro da política mundial seria
decidido na Ásia e no Pacífico, não no Afeganistão ou no Iraque
(como definem os neoconservadores), e os Estados Unidos
deveriam estar no centro da ação. Clinton, que tinha sido secretária
de Estado de Barack Obama, acrescentou a essa ideia que o eixo
estratégico da política exterior estadunidense devia passar do
Oriente Próximo para a Ásia Oriental. Também projetava a
necessidade de gerar uma aliança similar à da Otan para o Pacífico,
que possa incluir o oceano Índico, isto é, fundamentalmente a Índia,
operacionada pelo Usindopacom (United States Indo-Pacific
Command).
A partir desse ponto de vista, as forças globalistas apostavam em
dois instrumentos-chave. O Tratado Trans-Pacífico (TPP, na sigla
em inglês) e o Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e
Investimento (TTIP, na sigla em inglês). O TPP teria então um
importante impacto geopolítico quanto à distribuição do poder na
Ásia-Pacífico, já que o interesse dos Estados Unidos era sustentar
um equilíbrio favorável nessa região e conter/cercar a China. Por
isso a insistência em “proteger” Estados como Filipinas, Vietnã e
Taiwan da grande dependência da economia chinesa, para que não
percam sua diplomacia independente e sua influência política.
No caso do TTIP, acordo para avançar na periferia ocidental da
Eurásia junto à Otan, a questão de fundo é se predomina o
atlantismo, reforçando a posição do globalismo. As ameaças euro-
asiáticas, a situação de crise da ordem mundial e os novos desafios
das potências emergentes aparecem insistentemente nos discursos
a favor do TTIP por parte dos atlantistas globalistas. Neste sentido,
em um discurso em Estocolmo, Michael Froman (Secretário de
Comércio dos Estados Unidos) avisou que não havia “plano B” se as
tratativas do TTIP não fossem concluídas durante o ano de 2016. E
acrescentava: “Ou trabalhamos juntos para nos ajudar a estabelecer
as regras do mundo ou deixamos esse papel para outros”.75 Como
observa em um artigo no Foreign Policy o analista, ex-almirante dos
Estados Unidos e comandante supremo da Otan, James Stavridis,
avançar com o TTIP implicaria: “[...] unir a Europa aos Estados
Unidos, o que diminui a influência da Rússia. O TTIP é um acordo
razoável por motivos econômicos, em termos gerais. Mas também
tem um enorme valor real no âmbito geopolítico” (2014).
Caso se concretizem o TTP e o TTIP, as forças globalistas, cujo
núcleo fundamental é a territorialidade anglo-saxã, poderiam
cimentar uma base territorial de 51 países, com 1,6 bilhões de
pessoas e dois terços do PIB mundial, contando com uma
importante massa crítica de poder para atravessar favoravelmente a
luta pela reconfiguração da ordem mundial. Isso consolidaria algo
crucial: a necessidade de manter o controle das periferias ocidental
e oriental da Eurásia para enfraquecer o desenvolvimento de um
bloco Euro-Asiático e reforçar uma Europa alinhada no Atlântico,
deixando a China “contida” em sua expansão e em sua influência
regional e global, e a Rússia mais isolada. Enquanto isso, na
América Latina avançaria a Aliança do Pacífico – forma regional do
TPP – e os acordos de livre comércio entre a UE e o Mercosul, sob
o paradigma do regionalismo aberto em detrimento das tentativas de
constituição de um polo de poder regional.
No entanto, primeiro a partir do Brexit e depois com a vitória de
Donald Trump sobre Hillary Clinton, as forças globalistas sofreram
uma grande derrota política em seus próprios territórios. Isso
acompanhou o impasse desglobalizante que já se expressava na
economia mundial desde 2010, quando se esgotou a fórmula da
chamada globalização econômica, pela qual, para cada ponto de
crescimento do PIB, cresciam dois pontos no comércio exterior e
três pontos no investimento estrangeiro direto.
Já na campanha presidencial de 2016, podíamos observar que a
luta política nos Estados Unidos, inerentemente entrelaçada com a
crise capitalista pela qual passamos76 e a perda de poder relativo no
cenário internacional (dois lados de uma mesma moeda), manifesta
uma situação de empate hegemônico entre grupos/forças
dominantes. Isso se expressa em profundas polarizações em torno
de todos os temas importantes na construção de um projeto político
estratégico: 1) a guerra no Iraque e a estratégia no Oriente Médio;
2) o papel e o poder dos organismos e instituições multilaterais
(FMI, BM, OMC etc.) em relação ao papel e o poder do Estado dos
Estados Unidos (unipolarismo unilateral versus unipolarismo
multilateral); 3) a estratégia para o enfrentamento com as
potências/polos de poder emergentes regionais e globais; 4) os
acordos multilaterais de comércio, investimento e regulação
econômica transacional (TPP, TTIP, Nafta); 5) as reformas na
regulação do sistema financeiro; 6) o valor da taxa de juros de
referência do Federal Reserve e sua política monetária geral; 7) a
questão da mudança climática; 8) a aposta nas guerras híbridas ou
nas guerras convencionais etc. E essas polarizações atravessam o
debate intelectual, articulando de forma diversa as diferentes
perspectivas teóricas e gerando, inclusive, um racha entre essas
perspectivas.
O que não deixa de ter um acordo geral na quase totalidade do
chamado establishment é quanto a manter o domínio unipolar e,
neste sentido, enfrentar em conjunto os polos de poder emergentes
que desafiam essa situação, especialmente a China, como também
a Rússia, e manter subordinados os aliados. Quer dizer, eles
compartilham os três grandes imperativos da geoestratégia imperial:
impedir choques entre vassalos e manter sua dependência em
segurança, manter os tributários obedientes e protegidos e impedir a
união dos bárbaros (Brzezinski, 1998). No entanto, diferem no
como, o que tem raízes estruturais. Entretanto, como tais disputas
continuam se condensando e ao mesmo tempo se unificando no
Estado, que expressa a situação das relações de força, produz-se
um resultante político particular com continuidades estratégicas.
Porém, ao mesmo tempo, isso faz com que dentro do próprio
Estado existam múltiplas políticas contraditórias e se encontre
polarizada também a burocracia, dando lugar a uma intensa disputa
palaciana.

Trump e o retorno ao imperialismo unilateral


A vitória de Donald Trump indica um momento qualitativamente
superior da disputa pelo poder nos Estados Unidos e expressa a
reação de um conjunto de atores que se veem ameaçados ou
prejudicados no processo de globalização (fase específica do
processo histórico de internacionalização do sistema-mundo),
acentuada pela decadência mais pronunciada dos Estados Unidos e
a crise capitalista que exacerba a luta entre capitais e afeta
importantes camadas de trabalhadores e grupos empresariais. Por
isso, Trump foi além da agenda clássica conservadora e neoliberal
da elite do Partido Republicano, incorporando maiores elementos do
nacionalismo econômico industrial e um discurso anti-establishment.
Trump se posicionou claramente como partidário do Brexit e se
manifestou contra o Nafta e o TLCAN, contra o TPP e o TTIP,
procurando levar as relações comerciais a uma relação bilateral,
para impor o peso da economia estadunidense, seu poder político
arbitrário e evitar as relações de concorrência “prejudiciais” aos
grupos e setores atrasados (especialmente a respeito dos capitais
de países aliados), acentuando as práticas protecionistas.77 Em
contrapartida, o governo de Trump retoma a política exterior do “eixo
do mal” definida por Bush e os neoconservadores, em que se incluía
Irã, Iraque, Coreia do Norte, Líbia, Síria e Cuba, ao que em seguida
se somaram a Bielorrússia, a Birmânia e o Zimbábue. A realização
de possíveis guerras nesses territórios secundários tem como
objetivo conquistar posições-chave e/ou impedir o avanço de
potências rivais, ao mesmo tempo que alimentar a economia
doméstica dos Estados Unidos mediante o complexo industrial
militar, fazendo uso do monopólio do dólar para seu financiamento.
Além disso, apresenta um apoio categórico à geoestratégia
neoconservadora do governo israelense de Netanyahu (expresso na
transferência da embaixada dos Estados Unidos para Jerusalém),
que implica avançar sem hesitação na conquista da Palestina e na
construção da Grande Israel para desequilibrar o jogo das potências
regionais. Também se observa o retorno ao recrudescimento da
posição contra o Irã como o grande inimigo a vencer na chave
geopolítica do Grande Oriente Médio e, por isso, a busca por todos
os meios de destruir o acordo nuclear entre esse país e as principais
potências mundiais.
Porém, por sua vez, também nesse plano se produz uma mudança
a respeito do governo de Bush, alinhada com a nova situação
mundial: a mudança na doutrina militar, na qual volta a ser central o
enfrentamento com Estados rivais que ameaçam o domínio dos
Estados Unidos no mundo, especialmente China e Rússia. Além
disso, com o governo de Trump, se exacerba o unilateralismo, como
se observa no caso da ruptura dos acordos com Irã e dos acordos
com Cuba, a retirada do Acordo de Paris, as tensões na Otan, a
guerra comercial que envolve aliados, o questionamento e a crise da
OMC, a transferência da embaixada para Jerusalém e a retirada da
Unesco. O paradoxal é que a ordem mundial construída
dominantemente pelos Estados Unidos é questionada pelas próprias
forças que disputam nos Estados Unidos: os globalistas, porque
entendem que já se tornou obsoleta e que é insuficiente para conter
as potências emergentes e a nova realidade do poder mundial,
enquanto que os “americanistas” e nacionalistas entendem que essa
ordem se voltou contra eles e é um obstáculo na estratégia de
recuperar a primazia.
Para a América Latina, o trumpismo retoma a aposta no controle
hegemônico direto da região, como área prioritária de influência
direta para o enfrentamento com outros blocos de poder. Nesse
sentido, o vice-presidente Mike Pence reivindicou posturas
ingerencistas próprias da Doutrina Monroe (“a América para
Washington”) e o ex-conselheiro de Segurança Nacional, John
Bolton, chegou a afirmar que tal doutrina está “vivinha da Silva”.78
Essas figuras, junto à de Pompeo, ligadas aos neoconservadores,
exacerbaram as pressões diretas contra Cuba, Venezuela e
Nicarágua. Entretanto, o próprio chefe do Comando Sul, o almirante
Kurt Tidd, apontou insistentemente e com especial preocupação
para a influência de Beijing na América Latina (como também da
Rússia e do Irã) e seu avanço no plano geoeconômico (principal
sócio comercial da América do Sul), identificando seus
investimentos como uma ameaça para a segurança nacional dos
Estados Unidos.79 Nesse sentido, Washington coloca em prática de
forma explícita a política de áreas de influência. Mesmo que, como
observa Boron (2014), a região é sempre prioritária para o
imperialismo estadunidense, é possível identificar uma mudança
importante de estratégia a partir de Trump. Por exemplo, basta
pegar o caso de Cuba e observar os acordos e a política de
“descongelamento” da era Obama em comparação com a política do
eixo do mal, bloqueio absoluto e sanções do governo Trump. Trata-
se de duas estratégias imperiais bem distintas, como também se
nota no caso do Irã.
No plano político, o “americanismo” reivindica um retorno à
soberania do Estado nacional e o fortalecimento unilateral do polo
de poder anglo-americano – junto ao Reino Unido, Canadá,
Austrália, Nova Zelândia e Israel – pelo que se torna muito
importante o Brexit e o estreitamento dos laços econômicos entre
esses países. O reforço do que podemos chamar um “anglo-
americanismo” unilateral no âmbito geopolítico corresponde a um
“anglo-saxonismo” identitário como horizonte estratégico, que em
sua forma dominante se expressa como um supremacismo, uma
exacerbação da identidade branca anglo-saxã e protestante (em
inglês, os WASP) e serve de argamassa para o imperialismo
atrasado, traduzindo-se na política como uma espécie de
nacionalismo étnico.
Essas mudanças expressas por Trump têm sua base econômica e
social. Assim como o globalismo no plano político tende a
institucionalizar o poder ocidental transnacionalizado e, no cultural, o
multiculturalismo (organizado sob a perspectiva do liberalismo
ocidental) desgasta as identidades nacionais nos países centrais; no
âmbito econômico o globalismo reconfigura o velho centro,
desenvolve novos nós centrais globais e cria novas periferias nos
velhos territórios centrais. Nesse sentido, emerge como nova
periferia o agora chamado cinturão da ferrugem nos Estados
Unidos, no que antes era o coração industrial do meio oeste, como
também o Midland britânico, cujos votantes se voltaram
majoritariamente para Trump e o Brexit. Os capitais industriais
centrados no mercado interno que dominam esses territórios, menos
competitivos em termos internacionais, se veem prostrados diante
da intensificação da competição e a concorrência de capitais. Além
disso, o avanço industrial da China, que já disputa nos primeiros
níveis mundiais de alguns setores produtivos e no controle dos
fluxos globais (dinheiro, mercadorias, dados), assim como os saltos
tecnológico-produtivos dos capitais do próprio Norte Global
(alemães, japoneses etc.) acentuam pressões competitivas e
diminuem o espaço para a acumulação global do capital,
exacerbando as lutas de competição e concorrência entre capitais.
Isso se reforça na medida em que custa ao Estado estadunidense
manter as condições de monopólio. Por isso, essas forças contrárias
ao globalismo também rejeitam o TPP e o TTIP e apontam contra
seus próprios aliados, aos quais demandam subordinação unilateral,
acentuando necessariamente as disputas no interior do Norte
Global.
A luta entre capitais e os processos de crise alimentam as disputas
político-estratégicas (modelos de capitalismo em disputa,
geoestratégias em disputa, identidades e cosmovisões em disputa
etc.) e constituem um elemento central para analisar as fissuras nos
Estados Unidos e no polo anglo-americano. Nesse sentido, não é
casual que um dos principais apoios de Trump provenha dos
industriais do carvão e do complexo sidero-metalúrgico
estadunidense. Dan Dimiccio, ex-CEO da siderúrgica Nucor, foi um
dos principais assessores de Trump em economia e política
comercial. Enquanto que Robert Lighthizer, nomeado por Trump
como Representante Comercial dos Estados Unidos, tem uma longa
trajetória representando a indústria siderúrgica estadunidense e foi
um promotor central da guinada protecionista em importantes
setores do Partido Republicano, ao mesmo tempo que protagonizou
as batalhas siderúrgicas contra o Japão décadas atrás. Reforçam
essa presença industrial no governo de Trump a figura de Mike
Pompeo como chefe de gabinete, estreitamente ligado com as
indústrias Koch, bem como o secretário de Defesa Mark Thomas
Esper, que foi vice-presidente da área de relações governamentais
de Raytheon (o maior contratante de defesa dos Estados Unidos).
Por sua vez, Esper substituiu Patrick Shanahan, que foi diretor entre
1986 e 2017 da empresa aeroespacial Boeing, estreitamente ligada
ao Pentágono.
Não é estranho, por isso, que uma das primeiras medidas de Trump
tenha sido ordenar ao Departamento de Comércio que realize uma
investigação para determinar se as importações de aço,
particularmente as procedentes da China, são uma ameaça para a
segurança nacional, em sintonia com suas promessas
protecionistas. Apoiado por representantes da indústria siderúrgica,
Trump afirmou: “o aço é fundamental tanto para nossa economia
quanto para nossas Forças Armadas. Essa não é uma área em que
podemos nos permitir depender de países estrangeiros”,80
afirmando que proteger tal indústria é uma questão de segurança
nacional. Quer dizer, o que se impôs como dominante no poder
executivo com Trump é um grupo-chave de poder do complexo
industrial-militar.
Outro ponto referente à agenda econômica e às disputas na cúpula
empresarial é sobre o imposto fronteiriço ou um imposto sobre as
importações, que o chefe de gabinete de Trump anunciou que
seriam impulsionadas como parte do projeto de reforma fiscal. Um
mês antes de tal declaração, 16 grandes companhias industriais
exportadoras emitiram um comunicado no qual instam ao governo
que adote o imposto sobre as importações. A carta em respaldo a
um imposto fronteiriço foi assinada pelos presidentes executivos da
Boeing, CoorsTek, Caterpillar, Dow Chemical Co., Celanese Corp.,
GE, Celgene Corp., Eli Lilly and Co., Raytheon Co., Merck & Co.
Inc., S&P Global Inc., Oracle Corp., United Technologies Corp.,
Pfizer Inc. e Varian Medical Systems Inc. Essas companhias
possuem uma forte base produtiva nos Estados Unidos, algumas
delas são grandes contratistas do Pentágono e se veem fortemente
afetadas em seus setores pela competição global, enquanto o
Estado estadunidense já não pode garantir monopólios.

A guerra comercial
Trump declarou a guerra comercial ao mundo. Com isso, se pôs em
curso um aprofundamento da política protecionista dos Estados
Unidos e um bilateralismo comercial que busca proteger os grupos
de capital e setores atrasados na economia global e fortalecer a
produção industrial dos Estados Unidos perante a China, mas
também perante a aliados como Alemanha, Japão e México. Os
objetivos são reequilibrar o deficit comercial (agravado pelas
políticas de hiper-estímulos da administração Trump e o
keynesianismo militar) e, sobretudo, reforçar a “segurança nacional”,
já que a indústria é a base da defesa, além de garantir os
monopólios tecnológicos estadunidenses contra seus rivais, aspecto
central no poder mundial (Amin, 1998). No último Discurso sobre o
Estado da União, Trump foi particularmente enfático na promessa
sobre importantes investimentos nas próximas indústrias
tecnológicas de importância estratégica.
Depois do primeiro ano do governo de Trump, o deficit comercial
subiu entre 2016 e 2017. Com a China, foi a 375.100 bilhões de
dólares. Diante disso, o governo de Trump pediu para a China uma
redução de 100 bilhões de dólares em suas exportações, tratando
de imitar o governo de Reagan nos anos 1980, quando se “obrigou”
a autolimitar o Japão em suas exportações, a ajustar-se à política
monetária do Federal Reserve e a financiar o Tesouro
estadunidense. O problema é que a China não é um protetorado
político-militar estadunidense como o Japão, sua escala é muito
maior (já superou os Estados Unidos no PIB em termos de paridade
de poder aquisitivo) e a aliança com a Rússia fortalece sua posição
político-estratégica na Eurásia.
A razão central do enfrentamento comercial com a China é deter
sua drástica ascensão global. Para isso, o trumpismo considera que
deve frear o “alarmante” plano de desenvolvimento tecnológico
Made in China 2025, que tem entre seus principais objetivos
solucionar o atraso relativo em alguns setores tecnológicos
fundamentais como robótica, semicondutores e indústria
aeroespacial, e ampliar a liderança em outras, como a inteligência
artificial e carros elétricos. Caso o plano se concretize, ainda que de
forma parcial, acabaria quebrando definitivamente a relação centro-
semiperiferia do gigante asiático com o Norte Global, colocando em
crise a divisão internacional do trabalho e as hierarquias na
economia mundial, ao mesmo tempo que colocaria um desafio
sistêmico: que um país com um quinto da população planetária se
transforme no centro desenvolvido.
O que está em jogo para o trumpismo é a primazia geopolítica dos
Estados Unidos a longo prazo. Assim o expressa o intelectual e
funcionário da administração Trump, Peter Navarro, em seu livro de
2011: Death by China: confronting the dragon – a global call to
action. A primazia estadunidense só pode ser alcançada através de
um equivalente do século XXI do Relatório sobre manufaturas, de
Alexander Hamilton de 1791, em que se decidam que indústrias são
essenciais para a segurança nacional, junto com uma política
tecnológica-industrial planificada para garantir que essas indústrias
vitais permaneçam no país, complementadas por um forte
protecionismo e uma guerra econômica com os rivais. Aqui aparece
o nacionalismo econômico de Pinkerton que mencionamos no início,
combinado com o neoconservadorismo.
A guerra comercial tem como pano de fundo a crescente “guerra”
econômica, na qual se acentuam as lutas entre capitais mediadas
pelos Estados. O contexto de baixo crescimento no Norte Global
desde a crise financeira global de 2007-2008 aprofunda essa
situação e sua perspectiva. Com o baixo crescimento, a acumulação
dos capitais privados se dá em detrimento dos mais atrasados e dos
trabalhadores, colocando em jogo mecanismos de acumulação por
despossessão. Os capitais globais se acumulam nos territórios
emergentes que crescem (particularmente a China), possibilidade
que não existe para os capitais dependentes da economia nacional
estadunidense. Porém, por sua vez, o processo conhecido como
globalização econômica, pelo qual o comércio mundial se expandiu
ao dobro do PIB mundial e o investimento estrangeiro direto ao triplo
durante quase 30 anos, se deteve com a crise que eclodiu em 2008,
deixando evidente seu limite estrutural.
O pouco crescimento que o Norte Global obteve nos últimos anos
ocorreu graças às políticas hiper-expansivas dos Bancos Centrais.
Essa política está encontrando seus limites, criando uma enorme
bolha nos títulos públicos, que possivelmente vai estourar em um ou
dois anos. Observa-se uma crise próxima, que pode se desdobrar
em um ciclo de crise muito mais profundo devido ao esgotamento do
ciclo expansivo (A) de Kondratiev iniciado em 1994 e às tendências
estruturais da economia mundial. Isso prognostica uma agudização
das lutas econômicas que, dependendo de como se desenvolva e
se “resolva”, vai alimentar a fissura nos Estados Unidos, a guerra
econômica em âmbito mundial e a luta entre polos de poder em
todos os âmbitos.

Ascensão da China
A ascensão da China e seu dinamismo econômico não são
reduzíveis, segundo entendemos, à adesão, por parte da China, ao
capitalismo neoliberal e/ou como epifenômeno da globalização e do
deslocamento produtivo do Norte Global, tal como se pensa em boa
parte da academia ocidental. Sua ascensão está estreitamente
relacionada, em primeiro lugar, à obtenção de importantes níveis de
autonomia e força político-militar (soberania) e certo bem-estar
básico em matéria de saúde e educação, produto da Revolução de
1949; em seguida, ocorreu a decolagem com as reformas iniciadas
em 1978 que atraíram os capitais da diáspora chinesa, absorveu
níveis inferiores do processo de terceirização na Ásia-Pacífico
encabeçado pelo Japão, desenvolveu importantes esquemas
econômicos públicos e estatais e, mais tarde, absorveu grandes
volumes de capitais do Ocidente sob suas próprias condições
(necessidades produtivas planificadas, transferências tecnológicas,
restrições à extroversão de lucros), para se tornar, por fim, a grande
plataforma industrial mundial. Isso foi feito com um projeto próprio, a
partir da sua história e características próprias – centrado no
crescimento da produtividade mais do que pelo investimento de
capital (Zhu, 2012) – e com uma singular combinação de modos de
produção, aproveitando a própria necessidade expansiva do capital
do Norte Global.
O modelo de desenvolvimento híbrido da China não se qualifica
dentro do marco capitalista ocidental clássico, já que se mantém a
propriedade coletiva da terra, os núcleos centrais da economia
estão nas mãos de grandes empresas estratégicas estatais e existe
um forte desenvolvimento das empresas de povoados e aldeias de
propriedade coletivas (TVE) que são as principais empregadoras da
economia. Portanto, a presente transição histórico-espacial não se
trataria de uma passagem do poder de um Estado ocidental e
capitalista para outro mais forte e dinâmico, para iniciar um novo
ciclo hegemônico do sistema-mundo moderno. Mais que isso, a
própria ascensão chinesa convida a consolidar a pergunta de se
existe uma tendência definitiva e estrutural sobre o fim da primazia
das forças fundamentais do Ocidente no sistema mundial e,
especialmente, sua supremacia protagonizada pelo mundo anglo-
saxão a partir do que se denomina a Grande Divergência, entre
início e meados do século XIX, com a combinação da Revolução
Industrial, a expansão capitalista, o colonialismo e a supremacia
militar. Isso está articulado com a formulação de Wallerstein (2006)
sobre estarmos diante de uma situação de limite estrutural para a
sobrevivência do sistema mundial moderno como tal, o que abre a
pergunta de se estamos diante de uma crise definitiva da
modernidade capitalista como sistema histórico e em que medida a
ascensão da China e da Ásia-Pacífico é parte desse processo.
Como apontamos no começo deste trabalho, no fim da belle époque
neoliberal unipolar, a China começou a mostrar sinais de seu futuro
como novo polo de poder desafiante da ordem mundial. Um
momento-chave da ascensão chinesa foi a crise de 2008, que
atingiu o Norte Global e expôs todas as suas contradições. A partir
daí, a China deixou de financiar o Tesouro estadunidense e seu
deficit estrutural, por meio da compra da dívida: se a China, entre
2005 e 2008, comprou 49,3% dos títulos públicos do Tesouro, em
2009, diante da queda no crescimento, adquiriu 19,6%, enquanto
que o resto foi destinado a impulsionar a demanda interna e impedir
uma recessão, injetando em sua economia fundos de 500 bilhões de
dólares (Martins, 2011). Isso diferencia profundamente a China do
Japão dos anos 1980 que, como um “protetorado” militar
estadunidense, aceitou as políticas deflacionistas do “dólar forte”,
financiar o deficit estadunidense e inclusive “autolimitar-se” em suas
exportações aos Estados Unidos. Algo parecido ao que hoje
demanda Donald Trump, mas que a China resiste em aceitar.
Entretanto, outra das respostas a partir de 2009 foi a convocatória à
primeira reunião dos Brics, na qual começou a se delinear um
espaço dos principais poderes emergentes – não mais apenas
mercados emergentes. Nessa ocasião se colocou sobre a mesa,
entre outras questões, a necessidade de avançar em uma
alternativa coletiva ao dólar, um desafio ao coração da hegemonia
estadunidense.
Quanto ao avanço econômico da China – cujo PIB medido pela
paridade do poder aquisitivo já superou o dos Estados Unidos em
mais de 20% e, por outro lado, superou a Eurozona como maior
sistema bancário do mundo –, três questões passam a ser
fundamentais a partir da crise de 2008:
1) A aquisição de empresas no estrangeiro e investimentos em
áreas críticas para suas necessidades de desenvolvimento,
vinculadas fundamentalmente à energia, alimentos e
infraestrutura: compra, por parte da comercializadora de grãos
estatal chinesa Cofco, do Noble Group e da cerealista Nidera
(de capitais holandeses e argentinos), com o que a China se
consolidou como um dos principais jogadores no monopólio da
comercialização de grãos. Por outro lado, a Bright Food, do
governo municipal de Xangai, adquiriu a marca britânica
Weetabix e, em 2015, comprou a empresa catalã Miquel
Alimentación. É preciso destacar também, entre outras
aquisições, a compra do gigante biotecnológico de origem suíça
Syngenta por 43 bilhões de dólares, o que lhe permitiu o acesso
à tecnologia de ponta em matéria agroalimentar. Ou a compra
da Volvo por parte da chinesa Geely, que lhe deu acesso à
tecnologia automotora de ponta. A tentativa recente de comprar
empresas de semicondutores dos Estados Unidos, com o fim
de se desenvolver nesse ramo tecnológico do qual a China é
fortemente dependente, foi proibido pelas autoridades
estadunidenses.
2) A internacionalização do yuan (renmimbi): crescente uso do
yuan como moeda de reserva de diversos bancos centrais,
assim como acordos com bancos centrais de empréstimos em
yuan para fortalecer as reservas (swaps cambiais bilaterais). O
Conselho Mundial do Ouro certificou que em 2016 China e
Rússia voltaram a se tornar, pelo sexto ano consecutivo, os
principais compradores de ouro de todo o mundo, aumentando
de forma substancial suas reservas desse metal. Isso está
estreitamente relacionado com a hipótese de sustentar suas
moedas retornando a alguma forma de padrão ouro, em
detrimento do dólar. Também o lançamento de um mercado de
petróleo em yuan reforça essa política de internacionalização
monetária e atinge o tão precioso monopólio do petro-dólar.
Isso se articula com a criação de novos instrumentos
financeiros internacionais, como o Banco Asiático de
Investimento em Infraestrutura e o lançamento do Novo Banco
de Desenvolvimento dos Brics junto a um Fundo (Arranjo
Contingente de Reservas) na Cúpula de Fortaleza, Brasil, em
2014. Essa arquitetura financeira fica em paralelo à do Norte
Global, centrada no FMI e no BM.
3) O avanço na direção da complexidade econômica e do
desenvolvimento de tecnologia, no que a China já diminuiu boa
parte da desvantagem com os centros do Norte Global e
inclusive começa a ser vanguarda em alguns setores. De
acordo com dados do Banco Mundial, a China é o maior
exportador de bens do mundo, dos quais 94,4% são bens
manufaturados, 48% são máquinas, e dos bens manufaturados,
25,6% são de alta tecnologia (em 2015). Entretanto, cerca de
731 milhões de cidadãos chineses estavam on-line em 2016 e
95% deles acessavam a internet com seus telefones celulares.
Isso fornece uma massa de informação digital – big data – que
é muitas vezes maior do que a estadunidense. É com base no
cruzamento com essa gigantesca base que a China desdobra
sua liderança na inteligência artificial (AI), a tecnologia decisiva
na nova revolução industrial em curso. Além disso, Shenzhen
ou Beijing disputam com o Vale do Silício e outros centros do
Norte Global o caráter de nó estratégico de alta tecnologia da
economia mundial. De fato, Shenzhen, Cantão, Hong Kong e
Macau fazem parte da Área da Grande Baía (AGB), no delta do
Rio das Pérolas, uma megalópole com 70 milhões de
habitantes que fabrica 90% dos artefatos eletrônicos que se
consomem em todo o mundo. Neste sentido, também devemos
mencionar o plano de desenvolvimento tecnológico e industrial
Made in China 2025, que busca terminar com a divisão ainda
existente com o Norte Global em alguns setores tecnológicos
mais avançados (semicondutores, robótica, tecnologia
aeroespacial), bem como consolidar a liderança em outras.
Paralelamente ao seu crescimento econômico, a China desenvolve
seu complexo militar e moderniza muito rapidamente suas Forças
Armadas. Isso, junto ao poder da Rússia nesse aspecto, colocam
em xeque o monopólio estadunidense. Nesse sentido, o orçamento
militar da China veio aumentando progressivamente nos últimos
anos, chegando em 2014 a 130 bilhões de dólares e ultrapassando
os 220 bilhões em 2017. A China possui o segundo orçamento
militar em âmbito mundial, embora muito abaixo dos EUA.81 Um dos
aspectos centrais do desenvolvimento militar chinês tem a ver com a
disputa pelo controle do Pacífico. Nesse cenário, a China aprofunda
a construção de porta-aviões, submarinos e mísseis, fortalecendo a
capacidade estratégica de seu complexo industrial-militar. Segundo
o general chinês Sun Sijing,
o aumento em dois dígitos no gasto de defesa pode parecer muito para
algumas pessoas, mas no desenvolvimento do complexo militar ainda estamos
muito atrás [...]. Nossas empresas dominaram o mercado mundial e temos o
que e quem defender.82
A situação na zona do mar da China se agrava pela agudização das
tensões globais e os conflitos geoestratégicos em torno das ilhas
Senkaku/Diaoyu, o arquipélago Spratly e as ilhas Paracel, além do
histórico conflito das Coreias. O Mar do Sul da China é essencial
para a economia da Ásia. Um terço dos navios do mundo navegam
por suas águas e enormes reservas de petróleo e gás jazem em seu
leito.83
Outro aspecto fundamental para analisar a ascensão da China é o
geopolítico, junto de seus imperativos geoestratégicos. Daí
sobressai uma aposta fundamental, a chamada “Nova Rota da
Seda”. O avanço do Tratado Trans-Pacífico (TPP), durante a
presidência de Obama, e a adesão do Japão ao TPP em março de
2013, implicou cercar a China e avançar na estratégia de conter sua
expansão e a influência do gigante asiático na Ásia-Pacífico. Diante
disso, o gigante asiático respondeu, em setembro de 2013, com a
promoção da Iniciativa do Cinturão e Rota – Belt and Road Initiative
(BRI), buscando consolidar, antes de tudo, seu poder no coração do
continente Euro-asiático, diante dos desafios do “Império do Mar”.
Nisso, converge com uma Rússia cada vez mais inclinada para a
construção de um eixo de poder baseado no espaço Eurasiático
contra o avanço dos Estados Unidos e aliados (Otan) em territórios
considerados sensíveis para seus interesses (Leste Europeu, o
Cáucaso, a Ásia Central, a Síria). A BRI, impulsionada por Xi Jinping
em 2013, após suas viagens à Rússia, à Bielorrússia e ao
Cazaquistão (os protagonistas da União Econômica Eurasiática com
sede em Moscou), envolve cerca de 60 países, em sua maioria,
países em desenvolvimento. Aí vivem 4,4 bilhões de habitantes
(63% da população mundial), se encontram 75% das reservas
energéticas conhecidas no mundo e se produz 55% do PIB mundial.
O governo da China prevê investir na BRI a cifra descomunal de 1,4
triilhões de dólares. Já está garantido um orçamento de 890 bilhões
de dólares, procedentes do Fundo da Rota da Seda, do Novo Banco
de Desenvolvimento e do Banco Asiático de Investimento e
Infraestrutura. Por sua vez, os bancos estatais-comerciais chineses
– Bank of China, ICBC e China Construction Bank – ofereceram
mais de 500 bilhões em empréstimos e investimentos de ativos
(Parra Pérez, 2017).
Os seis corredores da BRI parecem ter nítidas intenções
geoestratégicas: evitar os estrangulamentos ao desenvolvimento da
China e a geoestratégia anglo-americana de cercar/conter China,
Rússia e aliados continentais. Esta estratégia deixa a China
encurralada e vulnerável, com suas principais linhas de
abastecimento ameaçadas. Nesse sentido, no mapa onde se traçam
os corredores e a rota marítima, vemos que eles rompem os
estrangulamentos da China: um trem através de Myanmar
proporciona uma rota para o mar que elimina o ponto de
congestionamento do estreito de Malaca em Singapura (centro
financeiro global aliado do Ocidente). Entretanto, um corredor junto
a um novo porto no Paquistão proporciona acesso direto ao Oceano
Índico e ao Golfo Pérsico, de onde saem 40% do petróleo
comercializado no mundo, grande parte do qual vai para a China.84
Da mesma maneira, tanto o corredor China-Mongólia-Rússia quanto
o corredor Nova Ponte Terrestre da Ásia permitem uma conexão
direta com a Europa, uma saída para o Mediterrâneo e uma
integração Eurasiática continental. Isso rompe o eixo-tampão que
separa territorialmente a Ásia-Pacífico e a Europa, que dá
superioridade estratégica ao polo de poder que controla o mar. Além
do mais, o importante protagonismo da Rússia permite diminuir seus
possíveis receios geopolíticos com a ascensão da China. Em
contrapartida, o corredor Indochinês garantiria eliminar qualquer
ameaça no sudeste asiático continental.
O desenvolvimento da rede ferroviária Eurasiática, para comunicar e
integrar toda a massa continental, é um dos elementos centrais que
sobressaem na proposta da BRI: a projeção de uma grande ponte
terrestre eurasiática que desarticula o poder marítimo que os
impérios ocidentais da modernidade ostentaram historicamente. De
fato, um dos pensadores mais brilhantes do “império do mar” anglo-
saxão, Halford Mackinder, já tinha observado as implicações no
balanço de poder das ferrovias transcontinentais na Eurásia, no
início do século XX:
Há uma geração, o vapor e o canal de Suez pareciam ter aumentado a
mobilidade do poder marítimo com relação ao poder terrestre. As ferrovias
funcionaram principalmente como tributários do comércio oceânico. Mas as
ferrovias transcontinentais estão agora modificando as condições do poder
terrestre, e em nenhum lugar podem exercer tanto efeito quanto no fechado
‘coração continental’ da Eurásia [...] Essa extensa zona da Eurásia que é
inacessível aos navios, mas que antigamente estava aberta para os cavaleiros
nômades, e está hoje a ponto de ser coberta por uma rede de ferrovias, não é
a ‘região pivô’ da política mundial? (Mackinder, 2010, p. 315-316)
Em termos geoeconômicos, a BRI é parte de uma mudança global e
significa um avanço na formação de um novo padrão de
desenvolvimento, diferente do da tríade e de seu modelo centro-
periferia, que, por suas características, tende à diversificação dos
fluxos de capital e dos fluxos espaciais dos fatores de produção, que
se expandem progressiva e profundamente dentro das hinterlândias
eurasiáticas (Ning e Chuankai, 2018). A BRI implica dar forma a
uma transformação radical do mundo tal como está configurado
desde o século XIX, com centro no Atlântico e no Ocidente, e a
versão do século XX deste mundo, especialmente a partir do pós-
guerra: com centro nos Estados Unidos, de onde são coordenados
os outros dois centros econômicos do sistema mundial capitalista: a
Europa Ocidental e o Japão/Ásia-Pacífico. Da perspectiva da BRI, o
centro geoeconômico é a China que, integrando a Eurásia e suas
periferias dinâmicas oriental e ocidental, deixa em um papel
subordinado os Estados Unidos e consolida sua máxima estratégica
de construção de poder global: “o reino médio está (deve estar) no
centro de tudo que brilha sob o céu”. Concepção que difere do
imperialismo militarista de tipo ocidental.

Reflexões finais
A mudança de governo nos Estados Unidos, a partir da qual as
forças globalistas se enfraqueceram, permitiu que a China
avançasse em termos geoeconômicos e inclusive incorporar o
Japão na BRI. Esse novo momento político mundial refletiu-se na
cúpula do Fórum do Cinturão e da Rota realizado em maio de 2017,
no qual estiveram presentes mais de 1.200 delegados de 130
países e 29 chefes de Estado, junto com 70 organizações
internacionais. Outra amostra do avanço da China é a posição de Xi
Jinping em Davos, onde defendeu a liberalização do comércio e do
investimento contra o protecionismo estadunidense que veio com
Trump. Como ocorreu historicamente com as grandes potências
industriais assim que alcançam certo nível de desenvolvimento
relativo e de competitividade, tornando-se novos centros da
economia global, trocam suas posições protecionistas por posições
mais próximas ao livre mercado.
No entanto, os efeitos negativos na economia chinesa da guerra
comercial, a agressividade de Washington para impedir o avanço
tecnológico da China (o caso da Huawei é paradigmático nesse
sentido) e o desenvolvimento de uma série de tensões
geoestratégicas em torno dela apresentam grandes desafios para
essa ascensão. Beijing precisa garantir o fornecimento de matérias-
primas e de energia que o atual governo dos Estados Unidos está
disposto a limitar. Por isso, entre outras questões, os Estados
Unidos querem controlar o Oriente Médio ou bloquear o
investimento da China na América Latina. Além disso, a China deve
solucionar problemas de superacumulação de capital e de
supercapacidade de produção (ela tem uma importante
supercapacidade de produção de vários bens, entre eles aço e
cimento), que pode levá-la a realizar uma acumulação por
despossessão que dinamite sua concepção estratégica e a faça
desenvolver um imperialismo capitalista ao estilo ocidental. Também
teve que defender suas linhas comerciais, mas enfrenta o desafio
dos Estados Unidos, que ainda é a “potência militar dominante na
Ásia e cuja marinha tem a capacidade de bloquear os portos e o
tráfego marítimo chinês contando com a vantagem estratégica que
lhe oferecem suas bases em torno da periferia chinesa, no Japão,
na Coreia e em Guam” (Mackinla e Ferreirós, 2011, p. 3).
Diferentemente dos Estados Unidos, a China está cercada por
potências que encaram com receio a sua ascensão e Washington
busca fazer com que se confrontem. Soma-se a isso uma série de
conflitos territoriais cruciais no Mar da China.
Em contrapartida, existem desafios mais profundos para a ascensão
chinesa e da Ásia-Pacífico. Podemos apontar dois dos mais
importantes, estreitamente relacionados: a impossibilidade de
incorporar um sexto da população mundial no centro do sistema,
pelo padrão estrutural de desenvolvimento desigual e combinado
inerente ao moderno sistema mundial (que, além do mais, está em
processo de desmoronamento). E, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de realizar essa incorporação nos atuais parâmetros
de consumo e exploração da natureza, sem avançar para o abismo
ambiental.
A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e os rachas “internos”
diante da ascensão da China são características da mudança de
época que estamos vivendo. Cada uma das forças tenta enfrentar o
declínio dos Estados Unidos dentro de suas perspectivas
estratégicas, moldadas em relação a seus interesses. No governo
Trump observamos a aposta estratégica em um nacionalismo
econômico neohamiltoniano no estilo de Pinkerton combinado, como
vimos anteriormente, com linhas próprias do neoconservadorismo,
que apostam no controle do Oriente Médio, no unilateralismo e na
supremacia militar absoluta – encarnado nas figuras do demitido
John Bolton, no chefe de gabinete Mike Pompeo e no vice-
presidente Mike Pence. Também aparecem tentativas de reforçar as
alianças militares na zona Indo-Pacífica (Índia, Taiwan) e intervir nos
principais conflitos geoestratégicos da região. Entretanto, foi
deslocada a visão neorrealista de contenção, multilateralismo e
equilíbrio de poder, mais próxima dos globalistas, assim como as
concepções liberais.
Paradoxalmente, a atual orientação dos Estados Unidos pode ser a
mais favorável para a ascensão da China – de fato, praticamente
está lhe servindo de bandeja aliados-chave eurasiáticos como a
Rússia, o Irã, a Turquia e a Alemanha – mas ao mesmo tempo a
mais perigosa: não se sabe até onde pode chegar a escalada da
guerra, não apenas no âmbito comercial, mas também no militar.

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O presente trabalho é baseado em um conjunto de pesquisas
publicadas em Merino (2014, 2016, 2018a, 2018b, 2019) e Merino e
Trivi (2019).
67
Com diferentes matizes e avaliações, nas três estratégias aparece
a ideia do equilíbrio de poder próprio do neorrealismo e que também
é formulada por Brzezinski com o objetivo de que os Estados Unidos
mantenham a primazia na Eurásia e, a partir disso, no mundo:
“empregar sua influência na Eurásia para criar um equilíbrio
continental estável no qual os Estados Unidos exerçam as funções
de árbitro político” (Brzezinski, 1998, p. 11).
68
Pertencente ao Banco Mundial.
69
Acrônimo cunhado por Jim O’Neal, da Goldman Sachs, e para
quem a capital desses mercados emergentes era Londres.
70
Philip Stephens: “O Ocidente se mostra frágil diante do front
recarregado de China e Rússia”, Financial Times, 9 de junho de
2014.
71
Hugo Alconada Mon, “Os EUA estão preocupados com a
influência da China na América Latina. Especialmente na Argentina
e no Brasil”, La Nación, Buenos Aires, 7 de abril de 2005.
72
Ibid.
73
É mais do que interessante, neste sentido, o editorial do jornal
Wall Street Journal, um meio que expressa a voz das forças que
denominamos “americanistas”, a respeito da ação do governo
argentino diante da investida dos fundos abutres pela reestruturação
da dívida e em defesa da ação do juiz estadunidense Thomas
Griesa a favor da postura dos fundos abutres: “Um default seria tão
absurdo que faz pensar na possibilidade de que Kicillof esteja
usando-o como uma forma de forçar o Fundo Monetário
Internacional e os liberais da América a intensificarem sua
campanha de deixar as negociações de dívida nas mãos de uma
nova burocracia mundial. Isso daria mais poder de negociação aos
devedores e aos políticos e menos aos mercados financeiros e aos
tribunais dos Estados Unidos”. 28 de julho de 2014.
74
De acordo com dados do Banco Mundial, após uma década de
queda do gasto militar em relação ao gasto total do governo central
nos Estados Unidos, de 2001 a 2004 ele subiu de 15,15% para
18,61%, para se manter até 2008 em torno dessa porcentagem,
quando começa a cair novamente. E do deficit fiscal de 0,58% em
relação ao PIB em 2001, chegou-se a 6,68% em 2008 (agravado
pela crise).
75
Financial Times, “Europe and US in race to keep TTIP on track”,
21 de setembro de 2016.
76
Os neokeynesianos como Summers (2014), ex-secretário do
Tesouro durante o governo de Obama, mencionam e conceitualizam
a crise como uma etapa de estagnação secular.
77
As duas caras deste processo de “globalização” são evidentes:
por um lado, desde meados dos anos 1980 – a partir das reformas
neoliberais, a globalização financeira, a transnacionalização e os
saltos tecnológicos – aumentam extraordinariamente os lucros das
empresas estadunidenses e crescem, em particular e de forma
extraordinária, os lucros obtidos em outros países em relação com
os lucros obtidos nos Estados Unidos, os quais passam de 50
bilhões de dólares em meados dos anos 1980 para chegar a 500
bilhões de dólares em 2008, superando a massa de lucros internos.
Em contraste, esse processo se traduz, nos Estados Unidos, na
quebra de 60 mil empresas, no baixíssimo crescimento da
produtividade das pequenas e médias empresas entre 2010 e 2017
em relação ao núcleo mais dinâmico, na destruição de 5 milhões de
postos de trabalho industriais nos últimos 15 anos, na queda da
participação dos salários sobre o PIB de 48,7% (1980) para 42,7%
(2015) e na aparição de fenômenos de “superexploração” da força
de trabalho próprios da periferia, configurando uma paisagem
chocante de destruição criativa dos “moinhos satânicos do capital”.
78
Sputnik, “Conselheiro de Segurança da Casa Branca reafirma a
vigência da Doutrina Monroe”, 18 de abril de 2019.
79
Audição de Kurt Tidd diante da Comissão de Serviços das Forças
Armadas do Senado dos Estados Unidos, 15 de fevereiro de 2018.
80
EFE, Washington, 20 de abril de 2017.
81
O gasto militar mundial atingiu em 2017 seu nível mais alto desde
o fim da Guerra Fria, em um ano em que o Estados Unidos, a China
e a Arábia Saudita foram os que mais destinaram dinheiro para a
defesa, segundo um estudo do Instituto Internacional de Estocolmo
de Pesquisa para a Paz (SIPRI, em sua sigla em inglês). Os
Estados Unidos concentram 35% do gasto militar, a China, 13%, a
Arábia Saudita, 4%, a Rússia, 3,8% e a Índia, 3,7% (La Nación, 3 de
maio de 2018).
82
Fragmentos da entrevista com o comissário político da Academia
de Ciências Militares, o general Sun Sijing, que foram divulgados no
início dos noticiários na China e em seguida pelo canal CCTV
(Russia Today, “A China se prepara para uma guerra com o Japão e
o Ocidente”, 29 de setembro de 2014).
83
Por sua vez, o Japão (aliado estratégico dos EUA), no que
significou uma guinada histórica de sua política exterior, aumentou
significativamente o gasto em defesa e modificou a interpretação de
sua “Constituição da Paz”, para poder combater no estrangeiro e
defender os seus aliados, inclusive quando o Japão é atacado.
84
Parra Pérez (2017, p. 8) afirma que a “questão importante é a
profundidade do porto de Gwadar, que permite receber submarinos
e porta-aviões, tornando-se um ponto de referência na estratégia
militar da China no Além-mar. Esta base militar, junto com a de
Djibuti, mostram o crescente interesse da China por aumentar seu
desenvolvimento para além das águas da Ásia-Pacífico, entrando
em competição com as bases militares dos Estados Unidos na
região”.
SOBRE OS AUTORES
Ahmet Tonak
Economista marxista turco. Trabalha com uma diversidade de temas
vinculados à mensuração e aplicação empírica das categorias
marxistas para a análise das tendências e dos ciclos das economias
capitalistas contemporâneas. É professor da Universidade de
Massachussetts e pesquisador do Instituto Tricontinental de
Pesquisa Social.

Atilio Borón
Sociólogo e politólogo, catedrático e escritor argentino. Doutor em
Ciência Política pela Universidade de Harvard (Cambridge,
Massachusetts). É professor da Universidade de Buenos Aires e
pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y
Técnicas (Conicet). Publicou vários livros sobre imperialismo,
geopolítica e sobre o futuro dos projetos emancipatórios na América
Latina.

Emiliano López (organizador)


Economista, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas (Conicet) e professor da Universidade
Nacional de La Plata. Tem diversos artigos e livros publicados na
área de Economia Política e Sociologia Política latino-americana. É
membro do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social – escritório de
Buenos Aires

Gabriel Merino
Sociólogo, pesquisador do Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Técnicas (Conicet) e professor da Universidade
Nacional de La Plata. Especialista em temas de geopolítica e
relações internacionais. Tem publicado vários artigos sobre estes
temas

John Smith
Pesquisador independente, radicado em Sheffield, Reino Unido. É
autor de várias obras sobre Economia Política. Seu último livro
sobre o imperialismo – Imperialism in the Twenty-First Century:
Globalization, Super-Exploitation, and Capitalism’s Final Crisis – tem
reconhecimento internacional no debate atual sobre este tema.

Prabhat Patnaik
Economista e analista político marxista da Índia. Professor no centro
de estudos e planejamento econômicos na Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade Jawaharlal Nehry em Nova Delhi, de 1974
a 2010. Publicou uma série de artigos e livros sobre o tema do
imperialismo. Seu livro A Theory of Imperialism, escrito junto com
Utsa Patnaik, teve um grande impacto no pensamento crítico
internacional sobre a atualidade da teoria do imperialismo no século
XXI.

Utsa Patnaik
Economista e analista político marxista da Índia. Professora no
centro de estudos e planejamento econômicos na Faculdade de
Ciências Sociais da Universidade Jawaharlal Nehry em Nova Delhi,
desde 1974. Seu livro A Theory of Imperialism, escrito junto com
Prabhat Patnaik, teve um grande impacto no pensamento crítico
internacional sobre a atualidade da teoria do imperialismo no século
XXI.
Copyright © 2020, by Editora Expressão Popular Ltda.

Revisão: Aline Piva e Lia Urbini


Tradução: Paulo Henrique Pappen e João Pompeu
Projeto gráfico e diagramação: Zap Design
Capa: Fernando Badharó – Cpmídias

1ª edição: agosto de 2020

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR LTDA


Rua Abolição, 201 – Bela Vista
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Tel: (11) 3112-0941 / 3105-9500
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Table of Contents
Sumário
Uma caixa de ferramentas para fechar as nossas veias
Imperialismo na era da globalização
Exploração e superexploração na teoria do imperialismo
Capitalismo moribundo e competitivo
Notas sobre a atualidade do imperialismo e a nova Estratégia de
Segurança Nacional dos Estados Unidos
A reconfiguração imperial dos Estados Unidos e as fissuras internas
diante da ascensão da China
Sobre os autores

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