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A FILIAÇÃO ETERNA DE CRISTO

Perto do final de sua vida, Agostinho de Hipona reviu meticulosamente tudo o que ele já
tinha publicado. Ele escreveu um catálogo completo de suas próprias obras, uma bibliografia
detalhadamente anotada com centenas de revisões e correções para corrigir falhas que ele viu
em seu material anterior. O livro, intitulado Retractationes, é uma evidência poderosa da
humildade e do zelo de Agostinho pela verdade. Nenhuma de suas publicações anteriores
escapou do exame do teólogo mais maduro. E Agostinho foi tão corajoso em renunciar os erros
que ele percebeu em suas próprias obras como ele tinha sido ao refutar as heresias de seus
adversários teológicos. Porque ele reviu suas obras na ordem cronológica, Retractationes é uma
memória maravilhosa da rigidez de Agostinho, bem como de sua busca incessante por
maturidade espiritual e precisão teológica. Sua franqueza em tratar de suas próprias deficiências
é um bom exemplo do por que Agostinho é estimado como um modelo raro tanto de piedade
como de erudição.

Eu frequentemente tenho desejado a oportunidade de revisar e corrigir todo o meu material


já publicado, mas receio de que jamais terei o tempo ou a energia para realizar a tarefa. Nesses
dias de arquivos eletrônicos, meu material “publicado” inclui não apenas os livros que já escrevi,
mas também quase todo sermão que já preguei - aproximadamente 3.000 deles até agora. É
muito material para que eu possa fazer uma análise critica exaustiva da forma como eu desejaria
poder.

Não que eu faria revisões abrangentes e por atacado. Durante todo o meu ministério,
minha perspectiva teológica tem permanecido fundamentalmente imutável. A declaração
doutrinária básica que subscrevo hoje é a mesma que afirmei quando fui ordenado ao ministério
há quase 40 anos atrás. Eu não sou alguém cujas convicções são facilmente modificadas. Eu
penso que eu não sou uma cana sacudida pelo vento, nem o tipo de pessoa que é facilmente
levada por quase todo vento de doutrina.

Mas ao mesmo tempo, eu não quero ser resistente ao crescimento e correção,


especialmente quando minha compreensão da Escritura pode ser aguçada. Se o entendimento
mais preciso de um ponto importante de doutrina exige uma mudança no meu pensamento - até
mesmo se isso significar emendar ou corrigir material já publicado - eu quero estar disposto a
fazer as mudanças necessárias.

Eu tenho feito muitas dessas revisões durante anos, frequentemente tomando medidas
para deletar declarações errôneas ou confusas de minhas próprias pregações, e algumas vezes
até mesmo pregando novamente em porções da Escritura com um melhor entendimento do texto.
Onde quer que eu tenha mudado minha opinião sobre qualquer questão doutrinária significante,
tenho buscado tornar minha mudança de opinião, bem como as razões dela, tão clara quanto
possível.

Para esse fim, quero declarar publicamente que abandonei a doutrina da ‘filiação
encarnacional'. Um estudo cuidadoso e reflexão me trouxeram ao entendimento de que a
Escritura, de fato, apresenta o relacionamento entre Deus o Pai e Cristo o Filho como um
relacionamento eterno de Pai-Filho. Eu não mais considero a filiação de Cristo como um papel
que ele assumiu na sua encarnação.
Minha posição anterior surgiu do meu estudo de Hebreus 1:5, que parece falar da geração
do Filho pelo Pai como um evento que aconteceu num ponto no tempo: “Tu és meu Filho,  hoje te
gerei ”; “ Eu lhe serei Pai, e ele me será Filho” (ênfase adicionada).

Esse versículo apresenta alguns conceitos muito difíceis. “Gerar” normalmente fala
da origem de uma pessoa. Além do mais, filhos são geralmente subordinados aos seus pais. Eu,
portanto, encontrei dificuldade em ver como um relacionamento eterno Pai-Filho poderia ser
compatível com a perfeita igualdade e eternidade entre as Pessoas da Trindade. “Filiação”,
conclui, indica o lugar de submissão voluntário à qual Cristo condescendeu em sua encarnação
(cf. Filipenses 2:5-8; João 5:19).

Meu objetivo era defender, não de alguma forma minar, a absoluta deidade e eternidade de
Cristo. E eu me esforcei desde o princípio em deixar isso tão claro quanto possível.

Todavia, quando eu publiquei pela primeira vez minhas visões sobre o assunto (em meu
comentário sobre Hebreus de 1983), alguns críticos sinceros me acusaram de atacar a deidade
de Cristo ou questionar sua eternidade. Em 1989 eu respondi àquelas acusações numa sessão
plenária da convenção anual das Igrejas Fundamentalistas Independentes da América (a
ordenação que me ordenou). Logo após aquela seção, para explicar mais as minhas visões,
escrevi um artigo intitulado “A Filiação de Cristo” (publicado em 1991 na forma de livreto).

Em ambas as ocasiões eu re-enfatizei o meu comprometimento incondicional e inequívoco


com a verdade bíblica de que Jesus é eternamente Deus. A visão da ‘filiação encarnacional',
embora admitidamente uma opinião da minoria, não é de forma alguma uma heresia. O cerne da
minha defesa da visão consistia de declarações que afirmavam tão claramente quanto possível
meu compromisso absoluto com as essências evangélicas da deidade e eternidade de Cristo.

Ainda, controvérsias continuaram a girar ao redor das minhas visões sobre ‘filiação
encarnacional, incitando-me a re-examinar e repensar os textos bíblicos pertinentes. Através
desse estudo eu tenho ganhado uma nova apreciação do significado e da complexidade desse
assunto. Mais importante, minhas visões sobre o assunto têm mudado. Aqui estão duas razoes
principais para a minha mudança de opinião:

1. Estou agora convencido de que o título “Filho de Deus” quando aplicado a Cristo na
Escritura sempre fala de sua deidade essencial e de sua igualdade absoluta com Deus, não de
sua subordinação voluntária. Os líderes judeus dos tempos de Jesus entenderam isso
perfeitamente. João 5:18 diz que eles pediram a pena de morte contra Jesus, acusando-o de
blasfêmia “porque não só violava o sábado, mas também dizia que Deus era seu próprio Pai,
fazendo-se igual a Deus”.

Naquela cultura, um filho adulto dignitário era considerado como sendo igual ao seu pai em
estatura e privilégio. A mesma deferência exigida por um rei era fornecida ao seu filho adulto. O
filho era, no final das contas, da mesmíssima essência que o seu pai, herdeiro de todos os
direitos e privilégios do pai - e, portanto, igual ao pai em toda consideração significante. Assim,
quando Jesus foi chamado de “Filho de Deus”, isso foi entendido categoricamente por todos
como um título de deidade, fazendo-o igual com Deus e (mais significantemente) da mesma
essência que o Pai . Isso foi precisamente o porquê os líderes judeus consideraram o título “Filho
de Deus” como alta blasfêmia.
Se a filiação de Jesus significa sua deidade e expressa igualdade com o Pai, ela não pode
ser um título que pertence somente à sua encanação. De fato, o ponto principal do que se quer
dizer por “filiação” (e certamente isso incluiria a essência divina de Jesus) deve pertencer aos
atributos eternos de Cristo, não meramente à humanidade que ele assumiu.

2. É agora minha convicção de que a geração da qual se fala em Salmos 2 e Hebreus 1 não é um
evento que aconteceu no tempo. Mesmo que à primeira vista a Escritura pareça empregar
terminologia com insinuações temporais (“hoje te gerei”), o contexto do Salmo 2:7 parece se
referir claramente ao decreto eterno de Deus. É razoável concluir que a geração da qual se fala
ali também é algo que pertence à eternidade, e não a um ponto no tempo. A linguagem temporal
deveria ser entendida, portanto, como figurativa, não literal.

A maioria dos teólogos reconhece isso, e quando tratando com a filiação de Cristo, eles
empregam o termo “geração eterna”. Eu não gosto da expressão. Nas palavras de Spurgeon, ela
é um “termo que não nos transmite nenhum grande significado; ela simplesmente encobre nossa
ignorância”. E, todavia, o conceito em si - estou agora convencido - é bíblico. A Escritura se refere
a Cristo como o “unigênito do Pai” (João 1:14; cf. v. 18; 3:16, 18; Hebreus 11:17).  A palavra grega
traduzida como “unigênito” é monogenes . A ênfase do seu significado tem a ver com a unicidade
absoluta de Cristo. Literalmente, ela pode ser traduzida como “um de um tipo” - e, todavia, ela
claramente significa que ele é da mesmíssima essência que o Pai. Esse, creio, é o próprio cerne
do que se quer dizer pela expressão “ unigênito”.

Dizer que Cristo é “gerado” é em si mesmo um conceito difícil. Dentro do reino da criação,
o termo “gerado” fala da origem da descendência de alguém. O gerar de um filho detona sua
concepção - o ponto em que ele veio à existência. Assim, alguns assumem que “unigênito” refere-
se à concepção do Jesus humano no ventre da virgem Maria. Todavia, Mateus 1:20 atribui a
concepção do Cristo encarnado ao Espírito Santo, não a Deus o Pai. O gerar ao qual o Salmo 2 e
João 1:14 se referem parece claramente ser algo mais do que a concepção da humanidade de
Cristo no ventre de Maria.

E, de fato, há outro significado, mais vital, para a idéia de “gerar” do que meramente a
origem da descendência de alguém. No desígnio de Deus, cada criatura gera sua descendência
“segundo sua espécie” (Gênesis 1:11-12; 21-25). A descendência carrega a semelhança exata do
pai. O fato de que um filho é gerado pelo pai garante que o filho compartilha a mesma essência
do pai.

Eu creio que esse é o sentido que a Escritura deseja transmitir quando ela fala da geração
de Cristo pelo Pai. Cristo não é um ser criado (João 1:1-3). Ele não teve princípio, mas é tão
eterno quanto o próprio Deus. Portanto, o “gerar” mencionado em Salmo 2 e suas referências
cruzadas não tem nada a ver com sua [de Cristo] origem .

Mas ele tem a ver com o fato de que ele é da mesma essência que o Pai. Expressões
como “geração eterna”, “Filho unigênito”, e outras pertencentes à filiação de Cristo, devem todas
ser entendidas nesse sentido: a Escritura as emprega para enfatizar a absoluta unicidade da
essência entre Pai e Filho. Em outras palavras, tais expressões não pretendem evocar a idéia de
procriação; elas pretendem transmitir a verdade sobre a unicidade essencial compartilhada pelos
Membros da Trindade.
Minha visão anterior era que a Escritura empregava a terminologia Pai-
Filho antropomorficamente - acomodando verdades celestiais insondáveis às nossas mentes
finitas, moldando-as em termos humanos. Agora estou inclinado a pensar que o oposto é
verdade: relacionamentos humanos de pai-filho são meramente figuras terrenas de uma realidade
celestial infinitamente maior. O relacionamento arquétipo verdadeiro Pai-Filho existe eternamente
dentro da Trindade. Todos os outros são meramente réplicas terrenas, imperfeitas porque elas
são limitadas pela nossa finitude, todavia, ilustrando uma realidade eterna vital.

Se a filiação de Cristo é toda sobre sua deidade, alguém se perguntaria por que isso se
aplica somente ao Segundo Membro da Trindade, e não ao Terceiro. Afinal de contas, não nos
referimos ao Espírito Santo como Filho de Deus, nos referimos? Todavia, ele também não é da
mesma essência que o Pai?

Certamente ele é. A essência plena, não diluída e não dividida de Deus pertence
igualmente ao Pai, Filho e Espírito Santo. Deus é apenas uma essência; todavia, ele existe em
três Pessoas. As três Pessoas são co-iguais, mas elas ainda são Pessoas distintas. E as
características principais que distinguem entre as Pessoas estão implicadas nas propriedades
sugeridas pelos nomes Pai , Filho e Espírito Santo . Os teólogos têm chamado essas
propriedades de paternidade , filiação e processão . Que tais distinções são vitais para o nosso
entendimento da Trindade é claro a partir da Escritura. Como explicá-las completamente
permanece de certa forma um mistério.

De fato, muitos aspectos dessas verdades podem permanecer inescrutáveis para sempre,
mas esse entendimento básico das relações eternas dentro da Trindade, contudo, representa o
melhor consenso do entendimento cristão durante muitos séculos da história da Igreja. Eu,
portanto, afirmo a doutrina da filiação eterna de Cristo, enquanto reconhecendo-a como um
mistério no qual não deveríamos esperar sondar muito profundamente.

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