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O FUTURO REPETE O PASSADO NO SUL DA BAHIA: A

AGROFLORESTA INDÍGENA E O DESIGN DA FLORESTA


ATLÂNTICA

Eduardo Alfredo Morais Guimarães1

1. INTRODUÇÃO

O artigo enfoca a cultura do cacau no Sul da Bahia, principalmente o que diz


respeito ao quadro de exclusão social e degradação ambiental. É um trabalho
acadêmico, fruto de estudo etnográfico realizado no Quilombo do Empata Viagem,
localizado no município de Maraú, Bahia; sem deixar de ser uma experiência do
vivido, fruto de uma trajetória de mais de 30 anos como pequeno agricultor. Busca
estabelecer um contraponto entre o projeto monocultural, alicerçado no pacote
tecnológico da Revolução Verde2, e sistemas de cultivo adaptados ao ambiente de
floresta tropical, predominantes nas pequenas roças quilombolas e indígenas, nos
quais prevalece a diversificação de vida, denominados aqui como agrofloresta
indígena, pela forte relação com a sabedoria ancestral.

2. BREVE HISTÓRICO

A ocupação da Região Sul da Bahia pelo Império Português iniciou-se com a


criação da Capitania dos Ilhéus, doada por D. João III ao fidalgo Português Jorge de
Figueiredo Correa, em 1524. Parece que o fidalgo não se interessou muito pela
doação, pois nem chegou a conhecer suas terras. Passados dez anos, em 1535,
Jorge de Figueiredo Correa enviou o capitão-mor espanhol Francisco Romero para

1
Doutor em Estudos Étnicos de Africanos pela Universidade Federal da Bahia; Professor Assistente,
Universidade do Estado da Bahia e agrofloresteiro.
2
Modelo de agricultura que chegou ao auge entre as décadas de 1960 - 1970, direcionado ao
aumento da produção agrícola, alicerçado em melhorias genéticas em sementes, uso intensivo de
insumos industriais, mecanização e implantação de monocultivos de elevada produtividade.
administrar a capitania. A Vila de São Jorge, uma das primeiras vilas da história do
Brasil, foi fundada por Romero, no ano de 1536 e recebeu essa denominação em
homenagem ao donatário, fiel devoto de São Jorge. Jorge de Figueiredo Correa
permaneceu cerca de vinte anos com a posse das terras da Capitania, falecendo em
1551. O seu filho mais novo, Jerônimo de Alarcão de Figueiredo, acabou se
desfazendo do negócio, ao vender a capitania para um comerciante de origem
florentina, Lucas Giraldes.

A Capitania chegou a se destacar na produção de farinha de mandioca,


sobretudo, em terras hoje pertencentes aos municípios de Maraú, Camamu e Cairú,
que atendia, sobretudo a “[...] demanda da cidade de Salvador, dos engenhos de
açúcar do recôncavo, das frotas que partiam para as Índias e África, das tropas e
comboios que iam sertão adentro” (SOARES, 2009, p. 78); e na produção de açúcar,
com destaque para as terras generosamente doadas pelo Governador Mem de Sá,
grande benfeitor da Companhia de Jesus, aos Jesuítas do Colégio de Santo Antão
de Lisboa, onde foi edificado o Engenho Santana, no ano 1673, a maior propriedade
canavieira de todo o sul, que chegou a contar com mais de 300 escravos (MOTT,
2010, p. 199). Mas, foi com o cultivo do cacaueiro que a capitania conheceu a
prosperidade. De acordo com Dan Lobão, os primeiros cultivos foram realizados no
ano de 1665, na comarca de Cairu, “em clareiras abertas na mata no processo de
extração do pau-brasil” (2007, p. 5). No ano de 1679, o governo português autorizou
o cultivo do cacau na região com a edição de uma Carta Régia. Em 1746, o
agricultor baiano, Antônio Dias Ribeiro, com sementes doadas por Louis Frederic
Warneaux, proprietário de roças de cacau no Pará, plantou uma pequena roça em
Canavieiras, localidade distante alguns quilômetros da Vila de São Jorge dos Ilhéus
(ASSAD, 2017). A monocultura intensiva do cacau seguiu o caminho histórico como
atividade econômica predominante e, ainda hoje, domina as paisagens agrícolas do
Sul da Bahia.

Resumindo e simplificando, desde o início da colonização aos dias de hoje,


predomina na região Sul da Bahia uma agricultura na floresta. É verdade que as
primeiras tentativas de ocupação do território, de todo modo, respeitaram as
condições edafoclimáticas das espécies cultivadas. Em um primeiro momento com
grandes monoculturas de cana de açúcar e, posteriormente, com grandes
plantações de cacaueiros nas margens dos rios, seguindo a mesma configuração
dos cacaueiros nativos da Floresta Amazônica. A cultura do cacau foi um sucesso
absoluto. Um grande problema: os grandes fazendeiros queriam mais, muito mais.
Nos anos finais do período colonial, grandes fazendeiros, motivados pelo alto preço
pago pelas amêndoas secas de cacau, avançaram suas roças floresta adentro, em
uma configuração muito particular, predominante ainda hoje, o cacau cabruca; uma
monocultura na floresta, responsável por crescente desequilíbrio ecológico, fruto da
ganância de grandes produtores que, ávidos por aumentar seus lucros,
desrespeitaram saberes agrícolas ancestrais, barreiras edafoclimáticas e, inclusive,
o recurso mais valioso e abundante existente na floresta: conhecimento.
Em um primeiro momento, entre o final do século XIX e primeiros anos do
século XX, não obtiveram muito sucesso na expansão dos cultivos, quanto mais às
roças se distanciavam dos vales dos grandes rios a produtividade declinava. Como
os grandes fazendeiros colocaram o problema? Obviamente, a responsabilidade
recaiu sobre a ciência e, consequentemente, sobre os governos: a ausência de
tecnologias de cultivo adequadas. Os grandes fazendeiros foram atendidos em suas
reivindicações e, no ano de 1931, foi criado o Instituto do Cacau da Bahia. O ICB
tinha uma missão: criar condições para a expansão dos cultivos e, assim, possibilitar
um aumento na produção de amêndoas secas de cacau e, em consequência, na
lucratividade dos fazendeiros. Com apoio do ICB, os cultivos avançaram ainda mais
floresta adentro, com as sombras das árvores substituindo, na medida do possível, a
umidade natural das margens dos rios. Entre os anos 1930 e 1950, ocorreu um
aumento de 300% nas áreas de cultivo (COSTA, 2012, p. 6), no entanto, a produção
apenas dobrou. Isso dá o que pensar: se a produtividade das plantas cai à medida
que nos distanciamos das margens dos rios, esse método de cultivo não funciona
muito bem!

Naturalmente, nem os fazendeiros, nem os órgãos de pesquisa agronômica,


ficaram satisfeitos com os resultados alcançados pelo ICB. No ano de 1957, o
governo federal criou a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
(CEPLAC) para socorrer os agricultores e seis anos depois, em 1961, o Centro de
Pesquisas do Cacau (CEPEC). Os resultados alcançados pelo CEPEC foram de tirar
o fôlego: um aumento de 310% na produção nacional de amêndoas secas de cacau,
nos primeiros vinte anos de existência do centro (GUIMARÃES, 2019, p 221). O que
significou isso para o meio ambiente? O que aconteceu com a Floresta Atlântica? O
que aconteceu com as roças de cacau? O que aconteceu com os territórios
quilombolas e indígenas? O pacote tecnológico desenvolvido pelo CEPEC foi uma
onda de modernização alicerçada nas conquistas tecnológicas da revolução verde.
Os limites edafoclimáticos foram, praticamente, abandonados e a expansão dos
cultivos foi marcada por grilagem de terras e ludibriação na venda de posses, com
grandes plantações avançando sobre territórios indígenas e quilombolas. Por outro
lado, as roças passaram a depender de quantidades cada vez maiores de
fertilizantes e de corretivos de solos para corrigir os estragos causados, exatamente,
pelo uso desmedido de fertilizantes e corretivos, e os cacaueiros passaram a
depender, também, de uma quantidade cada vez maior de agrotóxicos, para se
proteger de inimigos que eles mesmos passaram a atrair, em decorrência da
situação de desequilíbrio nas quais vegetavam.

E como não há limites ambientais para esse modelo agrícola, os insumos


químicos aplicados em abundância acabaram provocando, de maneira direta ou
indireta, mudanças drásticas no ciclo da água, a morte dos solos, e, em
consequência, um aumento crescente na emissão de vários dos gases indicados
como responsáveis pelo efeito estufa, e, portanto, pelas mudanças climáticas, mais
especificamente, pelo aquecimento global. Não há dúvidas que esse modelo de
agricultura foi sucesso absoluto na região, sobretudo, entre os anos 70 e 80 do
século passado, momento no qual o Brasil alcançou a posição de um dos maiores
produtores de amêndoas secas de cacau do mundo. No entanto, no final da década
de 1980, a infestação dos cacauais da Bahia, pelo fungo Moniliophtora perniciosa,
agente causador da Vassoura de Bruxa, expôs a vulnerabilidade do modelo agrícola
adotado pelo CEPEC, que na realidade é uma vulnerabilidade do mundo todo.

3. AGROFLORESTA INDÍGENA

Embora a monocultura do cacau domine a paisagem agrícola do Sul da


Bahia, aqui, ali e acolá, pequenos sistemas agroflorestais da herança ancestral
indígena e africana ainda persistem, nas comunidades quilombolas, nos territórios
indígenas e em fundões de grandes fazendas de cacau ocupados por famílias de
posseiros. De modo semelhante às grandes plantações de cacau, nesses pequenos
espaços agrícolas, o pacote tecnológico desenvolvido pelo CEPEC também marca
presença. Uma coisa não muda: a utilização de fertilizantes e corretivos de solo,
prática agrícola bastante arraigada na região. Se não adubar, não dá! Existe mesmo
uma crença na inevitabilidade da adubação para a garantia de uma boa colheita, e
reagir a isso tem sido praticamente impossível; não obstante a forte evidência de
que, hoje, o aumento na produção das roças com a utilização dos fertilizantes seja
mínimo. O aumento da produtividade dos cacaueiros, quando existe, não chega a
compensar o investimento realizado com a compra dos fertilizantes. Além dos
fertilizantes e corretivos de solo, de modo semelhante, os agrotóxicos também são
utilizados nesses pequenos espaços agrícolas, com menos intensidade, é verdade,
mas, são utilizados.

O que importa tudo isso? O pacote tecnológico desenvolvido pelo CEPEC,


que segue ombro a ombro os princípios da revolução verde, como uma grande
onda, atingiu a todos e o mundo todo. No entanto, nas pequenas agroflorestas,
existentes aqui, ali e acolá, há sempre a possibilidade de uma reação, pois, não
obstante as agressões do pacote tecnológico, o bombeamento de nutrientes das
diversas camadas do solo, realizado pelas raízes das diversas espécies de árvores,
ainda persiste e, de qualquer forma, uma grande diversidade de vida está aninhada
com uma alta produção de biomassa, fatores que garantem maior resiliência do
sistema, em comparação com as monoculturas. A região ainda vive tempos difíceis,
em decorrência da grande crise provocada pela epidemia da Vassoura de Bruxa e
pelos baixos preços pagos pelas amêndoas secas de cacau. No entanto, embora a
crise tenha atingido toda a região, as pequenas agroflorestas, bem menos
dependentes de fertilizantes e agrotóxicos, representam uma luz no final do túnel.

A agrofloresta indígena é um sistema muito bem adaptado ao ecossistema de


floresta tropical. O segredo do sucesso está na estrutura, ou seja, no seu design.
Basta olhar com atenção esse sistema de cultivo para entender as razões do
sucesso. O sistema imita a formação florestal nativa da região, ou seja, o design da
floresta. É um sistema sustentável de cultivo que alia produção e conservação dos
recursos naturais e que, geralmente, apresenta diversidade maior do que as
capoeiras e florestas do seu entorno. Do design, ou seja, da sua estrutura, emana
conhecimento, o recurso mais abundante e valioso que, junto com o conhecimento
humano (saber ancestral), torna a agrofloresta um “sistema agrícola que possibilita
aos seres humanos uma interação criativa com os ecossistemas locais a partir da
coexistência de plantas silvestres e cultivadas com manutenção e, inclusive,
ampliação da diversidade biológica” (GUIMARÃES, 2019, p.90).

Embora os seres humanos sejam, por excelência, os designers da


agrofloresta indígena, para que o processo de design aconteça há necessidade de
agenciamentos de outros agentes: conhecimento, recurso abundante e valioso
intrínseco ao próprio ambiente florestal; animais que “possuem atributos humanos
em um movimento que subverte a relação clássica natureza versus cultura”
(GUIMARÃES, 2019, p. 131); quiçá, seres mágicos que protegem a floresta e, as
próprias forças da natureza, sempre presentes, no processo de criação e de manejo
do sistema. Nós estamos começando a aprender o quanto é importante o papel dos
humanos enquanto designers da agrofloresta indígena, que é sempre planejada de
acordo com um plano pré-estabelecido. Mas, estamos aprendendo também que
muitas das consequências do planejamento acabam sendo inintencionais ou
imprevistas, exatamente, em decorrência da forte presença de ‘designers’ não
humanos no projeto.

No processo de criação do design, a floresta, que, de certa forma, também é


uma agrofloresta, é praticamente ‘destruída’ e prontamente reconstruída em nova
configuração. Os humanos seguem realizando um propósito. A floresta é derrubada,
ou a capoeira, não importa muito, a madeira com algum valor é retirada e o fogo
completa a limpeza. Quem nos ensina a arte do fogo é uma Velha Senhora do
quilombo do Empata Viagem,

Queima a roça assim: bota fogo, devagarzinho vai fazendo a coivara


e vai queimando, sempre devagarzinho. Ajeita os paus e vai
queimando, queimando, sempre devagarzinho. Não pode esturricar a
terra! A terra muito queimada a mandioca dá mais ruim, porque a
terra ressecou, queimou demais e você passou fogo no mato,
queimou pelo maior, deixa a cinza, deixa o carvão, pode reparar.
Quando queima tudo, fica tudo limpo, não presta (GUIMARÃES,
2019, p. 131).
Um olhar em profundidade sobre a ‘agrofloresta indígena’ permite a
percepção das complexas relações entre o trabalho do designer e os elementos da
natureza: a terra, a água, o ar e o fogo, elementos nos quais os seres humanos
estão imersos e que são “[...] experimentados por meio de suas correntes, forças e
gradientes de pressão” (INGOLD, 2015, p. 149). Não é preciso ser um gênio do
designer agroflorestal para saber que existe uma forte sinergia entre o design das
agroflorestas indígenas, regime de ventos, “solos pobres e ácidos, cultivo secular da
mandioca, fogo, alto índice pluviométrico e tecnologias ancestrais que estão à
disposição dos seres humanos” (GUIMARÃES, 2019, p. 69). O conhecimento das
tecnologias agrícolas associadas ao fogo é, sobretudo, um legado indígena. O fogo,
além de ser uma ferramenta imprescindível na limpeza do roçado, fertiliza do solo
através das cinzas e do carvão pirogênico e age na sucessão ecológica,
contribuindo para um aumento da biodiversidade, não obstante a associação do uso
do fogo na agricultura à “piromania de agricultores ignorantes” (GUIMARÃES, 2019,
p. 149).

E quanto à água? De acordo com Fabiana Peneireiro, “Quando plantamos


árvores estamos plantando água organizada”, pois a “água é a vida organizada”,

Se nossas ações replicarem os princípios vitais do nosso planeta,


então nosso papel estará se cumprindo. Sem árvores não há chuva,
e sem chuva não há árvores. Agrofloresta, sistema de produção
baseado em princípios ecológicos, procura reproduzir a estrutura e a
função do ecossistema original do lugar. É um caminho para o
convívio harmônico entre ser humano e natureza, pois além de
produzir alimentos e outras matérias-primas necessárias à vida
humana, também produz água, terra e mantém a biodiversidade e o
clima (PENEIREIRO, 2008, p. 2).

E quanto ao ar? Os designers precisam conhecer bem o regime dos ventos


da região. Os ventos de verão, com uma força fenomenal, agem derrubando
grandes árvores e abrindo clareiras na floresta. Esse conhecimento é importante
para a escolha dos locais apropriados para o plantio de determinadas espécies de
árvores e, obviamente, para a construção das residências, das casas de farinha e de
outra qualquer instalação. Por outro lado, os ventos são de fundamental importância
na disponibilização da lenha, que é queimada com o intuito de amenizar o frio do
inverno e abastecer fogões, secadores de cacau e fornos das casas de farinha.

Na realização do seu propósito, o designer necessita desenvolver uma


aguçada capacidade de observação dos processos da natureza e, assim,
compreender corretamente o conhecimento que emana da floresta, o recurso mais
abundante e valioso de que ele dispõe. A floresta é um sistema inteligente no qual
prevalece a cooperação e que possui como propósito estratégico a complexificação,
como ensinam Humberto Maturana e Francisco Varela (1995). Fazendo uma
pequena revisão: o design da agrofloresta indígena é tecido na paisagem em um
processo contínuo e interminável.

Entrementes, na clareira aberta pelo fogo, após a limpeza, entra em cena a


mandioca, planta que se adapta bem nos solos ácidos e com baixa fertilidade
predominantes na região. Ela cresce rápido e consegue proteger outras plantas que
são cultivadas na sequência: hortaliças e verduras do roçado, árvores frutíferas, o
próprio cacau e as árvores que formarão o futuro dossel da agrofloresta. A
mandioca é uma planta muito rústica que, no mais das vezes, é vulnerável apenas
ao ataque de animais silvestres como o caititu, uma espécie de porco selvagem, e a
paca, que se alimentam da raiz da mandioca (GUIMARÃES, 2019, p. 131). No
imaginário dos designers humanos esses animais são quase gente, possuem
atributos humanos, chegam a agir de forma premeditada e, até mesmo, planejada.
Um jovem quilombola do Empata Viagem descreveu um ataque de caititus:

Santana estava contando que o cara botou uma roça bem perto de
casa, na linguagem dele, por causa do caititu! Aí ele foi e arrancou a
mandioca e deixou na roça. Aí, quando foi no outro dia, que ele
levantou, estava o rastro do caititu na beira da casa, na beira da
cozinha! Aí ele foi pra roça buscar aquela mandioca. Quando chegou
lá, os caititus “ajuntou” tudo na ruma de mandioca, comeram a
mandioca toda! E foi assim: teve um caititu que foi ver se ele estava
dentro de casa, pois estava o rastro na cozinha! Ele chegou na roça,
a mandioca toda esbagaçada!
De todo modo, o agenciamento de animais gera consequências imprevisíveis
e, no mais das vezes, não intencionais no design. Um dos motivos pelos quais os
animais adquirem importância enquanto ‘designers’ está no trabalho valioso de
dispersão das sementes. Pelo aparelho digestório de determinados animais passam
muitas das sementes das plantas que comporão o design da agrofloresta indígena;
muitas sementes cuja germinação só ocorre após passagem pelo trato digestivo
desses animais. Alguns animais chegam a se alimentar com os frutos de
determinadas árvores e enterrar – plantar – as sementes. É assim que o Tucano
surge como um dos mais importantes ‘plantadores’ da palmeira Pupunha (Bactris
gasipaes Kunth) no Sul da Bahia. A ave se alimenta da polpa do fruto e dispersa as
sementes alhures (GUIMARÃES, 2019, p. 213). Não surpreende a quantidade de
animais que se alimentam dos frutos da palmeira Jussara (Euterpe edulis Mart.) e,
em consequência, também dispersam as sementes (plantam a palmeira). Em estudo
realizado no Vale do Ribeira, no Estado de São Paulo, foram identificados 57
animais de diferentes espécies que se alimentam da palmeira “onde estão incluídas
espécies de aves, mamíferos, repteis, gastrópodes e insetos” (BARROSO; REIS;
HANAZAKI, 210, p. 521), a grande maioria diretamente responsável pela dispersão
das sementes e, consequentemente, pelo plantio da palmeira. À medida que os
animais se alimentam, dispersam as sementes, ou seja, plantam a agrofloresta.
Querendo ou não, animais e plantas se unem, cooperando uns com os outros e, se
ocorre a extinção de algum animal, ocorre também o risco de extinção de
determinada espécie vegetal, ou o contrário e, em consequência, podem ocorrer
alterações no design da agrofloresta.

4. SISTEMA AGROFLORESTAL CACAU CABRUCA, ERRO DE DESIGN E


FRAUDE DE PROJETO

Chegou, finalmente, a hora de concluir essas reflexões. É o que faço


refletindo um pouco sobre fraude de projeto e “erro” no design. No fundo, os grandes
problemas da humanidade têm raízes sistêmicas e a agricultura está no epicentro
desses problemas. Há quem defenda o pacote tecnológico da revolução verde e,
mais ainda, o desenvolvimento dos transgênicos. A defesa resulta da crença de que
esse aparato tecnológico seria imprescindível para a resolução do problema de uma
suposta escassez de alimentos no mundo. Mas como? Ameaçando a vida do
planeta? Sim, ameaçando a vida do planeta, pois o planeta é um organismo vivo que
reage a uma agricultura em larga escala, alicerçada na monocultura e baseada em
uma poderosa indústria de agrotóxicos, pesticidas e fertilizantes químicos que
colocam em risco o ambiente e contaminam quem produz e quem consome. Existem
alternativas? Sim, existem muitas alternativas. De início, é preciso compreender que
seres humanos e natureza integram um mesmo sistema: o sistema ecológico. É,
exatamente, o que o design da agrofloresta indígena revela. Mas, de todo modo, há
algo de muito importante que não agrada o mercado de commodities nesse design.
Ele nega o principal alicerce da revolução verde: a monocultura. Possibilita com que
a agrofloresta indígena produza muito e muito mais do que, simplesmente, cacau.
Isso não é tudo. Para uma produção abundante a agrofloresta indígena não
necessita de corretivos de solo, fertilizantes e agrotóxicos. O segredo do sucesso é
a sua estrutura: o seu design.

No Sul da Bahia, nem todos concordam quanto ao valor da agrofloresta


indígena. No âmbito do pacote tecnológico revolução verde existe um simulacro de
sistema agroflorestal que, ao se alicerçar na linearidade da monocultura, aborda a
diversidade como uma desvantagem: o Cacau Cabruca. O sistema surgiu no final do
século XIX, no âmbito do movimento de expansão dos cultivos de cacau floresta
adentro. Existe uma máxima na região do Sul da Bahia presente, sobretudo, na
ancestralidade indígena e africana: cacau é boqueirão, roça de córrego. Os
primeiros cultivos de cacau, realizados entre meados do século XVIII e final do
século XIX, seguiram essa máxima, com os cacauais sendo implantados nos vales
dos grandes rios. Em termos puramente edafoclimáticos, essa máxima impunha
limites que travavam a expansão dos cacauais. Diante da necessidade de expansão
dos cultivos, nos anos finais do século XIX a cultura do cacau passou por um
processo de reinvenção, com a substituição da umidade natural das margens de
rios, nascentes e cursos d’água pela sombra ‘protetora’ das grandes árvores da
Floresta Atlântica. O processo foi fomentado pelos poderes públicos que
forneceram, inclusive, suporte técnico aos grandes fazendeiros. No início dos anos
1960, o CEPEC chegou a recomendar a manutenção de apenas 25 a 35 árvores de
sombra por hectare, com o objetivo de aumentar a produtividade dos cacaueiros
(PINTO, 1965, p. 60). Com o sistema consolidado, no final dos anos 1980, cerca de
70% dos 700 mil hectares de cacau cultivados na Bahia, estavam em cabrucas
abertas na Floresta Atlântica (ARAUJO et al., 1988).

Como relatado anteriormente, não há como negligenciar o agenciamento de


animais nos sistemas agroflorestais. Esse é um detalhe importante demais para ser
colocado de fora pelos designers do Cacau Cabruca. A grande vedete desse
agenciamento é o macaco (sic) jupará, um mamífero da família Procyonidae.
Paradoxalmente, um macaco, parente de quatis e guaxinins, que nem macaco é.
Naturalmente, sem ofender o Jupará, um agenciamento envolto em fraude. A fraude
ganha grandes proporções quando os designers do Cacau Cabruca, quiçá,
perplexos com erros grosseiros de projeto, tomam a iniciativa de atribuir ao suposto
macaco o status de designer do Sistema Agroflorestal Cacau Cabruca. Reproduzo
aqui o depoimento de um Engenheiro Agrônomo que trabalhou por décadas na
CEPLAC. Ele inicia sua fala com uma avaliação curiosa e, ao mesmo tempo,
preconceituosa da agrofloresta indígena: uma forma extrativista de cultivo:

O cacau está sendo manejado praticamente de forma extrativista por


essas populações, eles sequer cultivam do ponto de vista orgânico
[…]. Aí você tem queima de solos, solos que foram queimados e
requeimados para o plantio intenso da mandioca. […] não existia
agricultura, ali existia uma coisa feita a bico de facão, plantada pelo
macaco, à seleção natural. O cacau era apenas roçado e colhido.
Com o advento da Ceplac é que se começou a fazer agricultura
(GUIMARÃES, 2019, p. 76).

Então, o Engenheiro afirma que só se começou a fazer agricultura no Sul da


Bahia com o advento da CEPLAC, ou seja, com o pacote tecnológico desenvolvido
pelo CEPEC, um pacote tecnológico que age destrutivamente nas roças, com o
objetivo de eliminar todas as formas de vida, exceto os cacaueiros, naturalmente.
Pois bem, qual o lugar do jupará nessa agricultura? O jupará, macaco agricultor
(sic), é uma fraude criada para esconder um ‘erro’ de projeto! Por quê? Porque o
Jupará foi alçado à condição de designer em um mito histórico que invisibiliza os
agenciamentos de indígenas e africanos na agricultura que se desenvolveu no Sul
da Bahia (MAHONY, 2007). Enfim, porque o pacote tecnológico que sustenta o
Cacau Cabruca mata o Jupará, espécie em risco de extinção no Sul da Bahia, em
função, exatamente, do desmatamento e da degradação do seu habitat pelo pacote
tecnológico desenvolvido pelo CEPEC. Sem constrangimentos, o Engenheiro só fala
do Jupará no passado. Mas, o suposto macaco ainda não morreu. O Jupará
permanece vivo no que ainda resta de Floresta Atlântica e, inclusive, continua
atuando, é importante ressaltar, em conjunto com outros animais, como designer na
Agrofloresta Indígena, ‘plantando’ de tudo, não só o cacau. O nosso Engenheiro
revela mais detalhes dessa história,

Não houve escravidão no cacau! […] Eles [os pioneiros] fizeram de


qualquer jeito. E quem difundiu o cacau foi o jupará. Agora… ele
plantava em determinado lugar, aí vinha o sol e matava. Então, por
isso os cultivos ficaram nas margens dos rios e nos boqueirões. Não
tinha cultivo nenhum, eles [os pioneiros] só faziam colher o cacau.
Igual ao que ocorria na Amazônia. (GUIMARÃES, 2019, p.190).

Concretamente, o Sistema Agroflorestal Cacau Cabruca conseguiu atender


ao desejo de grandes fazendeiros de expansão suas roças. No entanto, um designer
errado, que não leva em conta a diversidade e o dinamismo da sucessão natural,
inerentes à floresta tropical, comprometeu a sustentabilidade das roças. Não é sem
sentido o alerta de um sábio do quilombo do Empata Viagem: “O cacau-cabruca, pra
gente aqui, sabe o que é que dá? É broca no cacau! Dá broca em tudo quanto é pé
de cacau!” (GUIMARÃES, 2019, 89). Portanto, ao ralear aleatoriamente a floresta
sem levar em consideração os desafios da agricultura no sub-bosque, a importância
do bombeamento e da ciclagem de nutrientes e, sobretudo, o papel da sucessão
natural no fluxo de energias; criou-se um sistema de cultivo extremamente simples,
viciado em fertilizantes e corretivos de solo, necessários à manutenção de níveis
altos de produção e em agrotóxicos, necessário para à defesa do sistema de
inimigos que o próprio sistema atrai: um sistema agrícola insustentável.

Essa última reflexão merece ênfase: os designers do Sistema Agroflorestal


Cacau Cabruca desconsideram o recurso mais abundante e valioso presente na
floresta, o conhecimento; desprezam a rica diversidade da floresta e negam as
virtudes da complexificação, O resultado não poderia ser outro: os recursos
declinam e a simplificação do sistema leva o ambiente a se degradar. Em
consequência o Cacau Cabruca entra em forte entropia (PASINI, 2017). Não há
como ver o que há de vir nesse contexto de crise, não mais do que as virtudes da
sabedoria ancestral e do conhecimento inerente à floresta. Na realidade há muitas
luzes no final do túnel que apontam para a insustentabilidade do atual modelo de
desenvolvimento. Há, inclusive, sinais que apontam para mudanças na maneira
como o ser humano se relaciona com a natureza, um desdobramento, até certo
ponto, natural da atual crise sanitária que abarca todo o planeta. Peço licença para
concluir com uma citação aparentemente destoante, retirada de um livro da área de
Administração de Empresas, que abre perspectivas para uma visão aprofundada do
ocaso da cultura do cacau no Sul da Bahia. A citação foi retirada do livro “O que a
Floresta Tropical nos ensinou, escrito por Tachi Kiuchi, presidente da Mitsubishi nos
Estados Unidos e Bill Shireman, presidente da Future 500: 3

Todos os ecossistemas complexos têm um equilíbrio dinâmico,


mediante o qual a mudança é constante, embora as condições que
favorecem a vida sejam de algum modo sustentadas. Num
ecossistema simples, com poucos organismos – como um gramado
ou uma floresta jovem -, uma única ruptura pode levar à devastação
total. Enquanto for abastecido de recursos que induzem o
crescimento, como fertilizantes, esse ecossistema consegue vingar
durante algum tempo e manter-se quase inalterável, a não ser no
tamanho físico. Mas, se posteriormente for atacado por um fundo ou
uma peste, pode ser rapidamente destruído. (grifos no original)
(KIUCHI; SHIREMAN, 2003, p. 24),

5. BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Maria Luiza Nora de. Um estudo cultural do cacau com perspectiva
para o turismo. 2004. 273 f. Dissertação (Mestrado em Cultura & Turismo) –
Universidade Estadual de Santa Cruz; Universidade Federal da Bahia, Ilhéus, 2004.

3
Future 500, organização sem fins lucrativos que se dedica a criar soluções para desafios ambientais
e sociais de grandes empresas.
ASSAD, Leonor. Uma oportunidade que (ainda) não se concretizou. Ciência e
Cultura,  São Paulo,  v. 69, n. 2, p. 11-13,  abr.  2017 .  Disponível em:
<http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-
67252017000200005&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 13 mai. 2020. 

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