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ORGANIZADORES

Carla Mary S. Oliveira


Ricardo Pinto de Medeiros

PREFÁCIO DE

Guilherme Gomes da Silveira D’Avila Lins

João Pessoa - PB
2007

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SUMÁRIO

Apresentação .................................................................................................... 7

Prefácio ............................................................................................................... 9
Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins

Guerra e açúcar: a formação da elite política


na Capitania da Paraíba (séculos XVI e XVII) ................................ 23
Regina Célia Gonçalves

“Marcar com sinais próprios”:


as balizas da conquista na Maurits Stadt ......................................... 69
Acácio José Lopes Catarino

Doações e controle de cargos na Provedoria da


Fazenda Real da Capitania da Paraíba (1647-1733) ...................... 87
Mozart Vergetti de Menezes

Política indigenista do Período Pombalino e seus


reflexos nas Capitanias do Norte da América portuguesa ...... 125
Ricardo Pinto de Medeiros

A “Glorificação dos Santos Franciscanos”: questões


sobre pintura, alegoria barroca e produção artística ................... 161
Carla Mary S. Oliveira

Sobre os Autores ........................................................................................ 185

***

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APRESENTAÇÃO

ste livro tem muitos significados, para cada um dos autores que
dele fazem parte. Para uns, o trabalho aqui apresentado é a
síntese de suas teses de Doutorado. Para outros, representa
somente o início de pesquisas que pretendem aprofundar. O livro é
também o resultado da consolidação de um grupo de pesquisas mas,
bem mais do que isso, em suas páginas se pode ver um pouco das
paixões que movem os historiadores que o escreveram. Economia,
política, administração, redes de poder local e arte fazem parte de um
mesmo mundo, e aqui aparecem amalgamados, tal como sempre
foram, tal como continuam a ser em nossos dias.
Dizer o que mais ao leitor? Que cada um dos artigos aqui reunidos
representa apenas parte das pesquisas que seus autores desenvolveram
nos últimos anos? Que se pretende que este livro seja apenas o primeiro
- dentre outros - organizado pelo Grupo de Pesquisas Estado e
Sociedade no Nordeste Colonial? Isso seria pouco. Queremos provocar
o leitor, fazer com que a dúvida histórica o motive a questionar as
idéias que cada um destes textos traz. Isso sim, é o que realmente
importa: sempre buscar o que ainda falta ser dito sobre cada um dos
temas que este livro reúne, dialogando, debatendo e construindo uma
paisagem possível de nossa História.
Que nossos leitores façam, conosco, o início deste percurso...

Os organizadores.
João Pessoa, abril de 2007.

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PREFÁCIO
OS BEM-VINDOS “NOVOS OLHARES
SOBRE AS CAPITANIAS DO NORTE
DO ESTADO DO BRASIL”

Guilherme Gomes da Silveira d’Avila Lins1

o raiar do ano de 2007 fui tomado de uma agradável surpresa


e subida deferência ao ser convidado para prefaciar esta
oportuna obra que só engrandece a historiografia nacional,
em particular, a regional nordestina. Diante de tal incumbência,
independentemente da responsabilidade que por certo haveria de recair
sobre meus ombros, tive a clara percepção de que, por vários motivos,
esta era uma tarefa irrecusável, e só me restava aceitá-la por menor que
fosse meu “engenho & arte” e por maior que fosse a tibieza do meu
preâmbulo. Dou ao menos dois motivos que me encorajaram no sentido
de aceitar aquele convite.
Em primeiro lugar os cinco co-autores deste livro são professores,
doutores em História ou Sociologia, conhecidos e reconhecidos por
sua proficiência nessas áreas do conhecimento e por sua respeitável
experiência acadêmica. No meio universitário exercem suas atividades
docentes no Departamento de História da Universidade Federal da
Paraíba, junto à Graduação e ao Programa de Pós-Graduação em
História, e também no Departamento de História e no Programa de
Pós-Graduação em Arqueologia da Universidade Federal de
Pernambuco.
Na verdade, a modelar peça histórica, que ora vem à luz da imprensa,
está dividida em cinco trabalhos independentes enfeixando um corpus
in solidum, os quais foram elaborados por um quinteto harmonioso
composto por Carla Mary S. Oliveira, Regina Célia Gonçalves, Acácio
José Lopes Catarino, Mozart Vergetti de Menezes e Ricardo Pinto de
Medeiros. A primeira e o último dos co-autores são os organizadores
da obra em tela. Como se pode ver, os dados preliminares da
qualificação dos autores já constituem motivos suficientes para se

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GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS

aquilatar a honra contida naquele convite dirigido a mim, tão somente


um velho estudioso e pesquisador da nossa História ao longo das
últimas quatro décadas, todavia, um autodidata e amador (no sentido
mais cristalino desta palavra).
Em segundo lugar os vários novos olhares históricos desta obra
versam sobre o Brasil colonial e dizem particular respeito ao Nordeste
e, em especial, à Paraíba. Levando-se em conta que sou um apaixonado
pelo período colonial do Brasil, principalmente da região nordestina,
há aí mais um motivo para eu ficar feliz ao ter sido lembrado por
aqueles autores para esta tarefa. Fico, aliás, duplamente feliz. Isto porque
vejo com muita alegria o fato de que nos últimos anos o período
colonial deste País, que andava bastante esquecido, vem reacendendo
o interesse de diversos estudiosos de História, e isto é muito oportuno
tendo-se em vista a riqueza documental que está hoje facilmente
disponível para tais empreendimentos, o que outrora demandava um
trabalho hercúleo. A propósito, lembro-me muito bem que há cerca
de uma década o saudoso Prof. Dr. José Pedro Nicodemos lamentava
aquela perda de interesse pelos estudos do período colonial do Brasil.
Isto, seguramente, mudou. Por certo ele ficaria muito satisfeito com o
que se pode ver atualmente a este respeito e creio que, como eu, ficaria
ainda mais contente ao ler este livro.
Isto posto, devo dizer que, como um todo, salta aos olhos nessa
obra o seu texto substancioso e sem dificuldade para qualquer leitor
interessado. Além disso, ele está calcado sobre uma exemplar
exuberância de fontes, em especial as documentais, o que enriquece
ainda mais o trabalho dos autores em epígrafe. Dessa maneira,
considerando-se o apreço que tenho às fontes documentais, manuscritas
ou já impressas, infere-se que a leitura desse livro e sua farta
fundamentação em fontes confiáveis foi, para mim, um verdadeiro
“colírio” - se me permitem esta imagem médica que denuncia minha
formação básica, a qual me inclinou naturalmente para um modelo
metódico dos estudos históricos. Ressalte-se ainda que as notas
explicativas e ou de natureza crítica no final de cada uma das cinco
partes que compõem a obra em apreciação representam um aval da
solidez do alicerce sobre o qual caminhou este afinado quinteto de
autores.

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PREFÁCIO

Que não se iludam os eventuais analistas açodados diante da


relativamente pequena extensão dessa obra. O seu texto de menos de
duzentas páginas certamente demandou horas, dias, semanas, meses e
até mesmo anos de uma gestação laboriosa e bem cuidada. Horas
insones foram gastas, aqui e alhures, na pesquisa de documentos,
inclusive cartográficos, na leitura paleográfica de inúmeras fontes
manuscritas e na interpretação das mesmas, sem falar da consulta das
demais obras de referência bibliográfica, além da pesquisa de campo
abrangendo documentação fotográfica in loco. Isto é apenas uma parte
de um trabalho desse tipo. De per se o documento manuscrito autêntico
e fidedigno é apenas um tijolo de um edifício em construção ou a
célula de um organismo pluricelular. Ele precisa de ligação com outros
documentos (com outros tijolos ou com outras células) para juntos
configurarem a forma e a função de um determinado momentum
histórico. Isto pode ser muito bem constatado nesse livro. Para mim
este procedimento delineia um momento mágico da (re)construção
da História. Enfim, assim procedendo, o que antes era, no máximo,
somente olhado, passa agora a ser visto e melhor entendido. Amplia-
se dessa maneira, com maior nitidez, a abrangência do horizonte
histórico a ser descortinado. Abrem-se novas perspectivas de
abordagem investigativa, novas vertentes de investigação histórica.
Vislumbra-se, enfim, um trabalho quase sem fim. Diante disto, apesar
da inexorabilidade da sentença segundo a qual tempus fugit, chego até a
imaginar que, mesmo que o tempo parasse, a História dificilmente
acabaria, pois ainda restariam incontáveis veios e filões históricos a
serem analisados.
Divagações à parte, já é hora de lançar as vistas sobre a obra em
questão, ainda que de forma frugal. Evidentemente não vou aqui privar
o leitor da própria descoberta desses Novos Olhares sobre as Capitanias do
Norte do Estado do Brasil tecendo comentários desvendadores que lhe
subtrairiam o deleite de um encontro muito pessoal e intransferível.
Farei apenas um rápido vol d’oiseau sobre os temas aí desenvolvidos até
porque prefiro não entediar os leitores destas palavras.
Carla Mary S. Oliveira, uma das organizadoras dessa obra, revela já
na capa do livro seu gosto esmerado ao estampar aí o precioso mapa
do Brasil intitulado Nova et Accurata Brasiliae totius Tabula (Johan Blaeu,

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GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS

c. 1599-1673). Aliás, ela foi ainda responsável pelo competente projeto


gráfico e pela editoração eletrônica dessa capa. Além disso, nos brinda
com um erudito estudo sobre a pintura e alegoria barroca da Igreja de
São Francisco do Convento de Santo Antônio da Paraíba, discutindo
com equilíbrio e proficiência diversas questões concernentes a este tema,
dando inclusive atenção muito especial à Glorificação dos Santos Franciscanos,
pintura magnífica do forro da nave principal daquela Igreja, a qual foi
elaborada em torno do terceiro lustro da segunda metade do século
XVIII, porém de autoria incerta.
Fartamente ilustrado com fotografias da própria Carla Mary, o
texto representa uma versão ampliada de um outro que o precedeu e
que em novembro de 2006 foi apresentado no IV Congresso Internacional
do Barroco Ibero-Americano: Território, Arte e Sociedade, realizado em Ouro
Preto (MG). Em suma, sou interessado na História dos Frades Menores
na Paraíba, à qual tenho dedicado particular atenção e sobre a qual
ainda há muito o que se dizer, todavia, não sou suficientemente versado
sobre a pintura e a alegoria barroca que adornam o conjunto
arquitetônico dos Franciscanos nesta terra. Assim, sem dúvida, pude
aprender bastante com esse artigo, em cuja detalhada análise
interpretativa é assinalada inclusive, entre outros aspectos, a influência
do corpo de doutrina do Concílio de Trento sobre a produção artística
da Igreja de São Francisco na capital paraibana. Enfim, sensibilidade
estética e conhecimento daquela particular arte sacra são as tônicas
desse trabalho da autora em apreço.
Já Ricardo Pinto de Medeiros, também organizador desse livro, a
seu turno nos oferece um primoroso e minudente artigo sobre a política
indigenista do período pombalino (reinado de D. José I) e suas
repercussões, principalmente nas Capitanias do Norte da América
Portuguesa, expressão esta que foi utilizada ainda na primeira metade
do século XVIII, pelo renomado cronista Sebastião da Rocha Pitta,
para figurar as terras sul-americanas sob o domínio do Reino de
Portugal.
A temática aí desenvolvida, ainda muito pouco investigada, tem
nesse erudito estudo de Ricardo Medeiros uma importante contribuição
onde são discutidos, com base numa exuberante pesquisa de fontes
primárias, vários aspectos das conseqüências da política pombalina no

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PREFÁCIO

tocante aos nossos índios.


Sob este ângulo parece aceitável dizer que a nova ordem política e
administrativa implementada pelo poderoso Ministro de D. José I,
Sebastião José de Carvalho e Melo, Conde de Oeiras (1759) e Marquês
de Pombal (1770), marcou o fim do antigo modelo segregador dos
aldeamentos indígenas, então vigente e cultivado pelas ordens religiosas,
dando lugar a um novo modelo tido como “integrador” dos índios à
comunidade colonial portuguesa. Procurou-se reduzir as diferenças
sociais abismais então existentes entre os autenticamente nativos da
terra e o restante da população dita “civilizada”, nascida aqui ou noutras
partes do Reino. Essa política indigenista veio a propiciar uma marcante
proliferação de novas vilas que foram sendo erigidas em locais de
antigos aldeamentos indígenas mais ou menos afastados dos então
rarefeitos centros urbanos desta antiga Colônia, desde que preenchessem
os requisitos necessários para tanto. É nesse contexto político e no
correspondente recorte cronológico que, por exemplo, surgiram na
Capitania da Paraíba a Vila de Alhandra (antigo aldeamento de
Arataguy), a Vila do Conde (antigo aldeamento da Jacoca) e a Vila do
Pilar (antigo aldeamento dos Cariri) para citar somente algumas.
No meu entender, o estudo desse autor é exemplar e merecem
também destaque aí suas considerações finais, que ilustram a recepção
e a aplicação daquela nova legislação indigenista, bem como o seu
oportuno e importante Anexo I, ou seja, a Relação das aldeias que há no
distrito do governo de Pernambuco, e capitanias anexas, de diversas nações de índios
[1760], contida no códice 1919 dos Livros de Pernambuco (Arquivo
Histórico Ultramarino), manancial documental exaustivamente
consultado por Ricardo. Aliás, foi muito oportuna a divulgação dessa
Relação das aldeias ..., cujo conteúdo é hoje virtualmente desconhecido
embora grande parte dele já tenha sido estampado no remoto ano de
1908 na Informação Geral da Capitania de Pernambuco2. Enfim, quero crer
que esse estudo irá abrir novas e promissoras sendas investigativas.
Por sua vez, Acácio José Lopes Catarino também me proporcionou
uma grande satisfação com o seu trabalho intitulado “Marcar com sinais
próprios”: as balizas da conquista na Maurits Stadt. Se eu só tivesse direito a
quatro palavras para tecer um comentário sobre esse seu texto eu diria:
temática inspirada e estilo elegante. Aliás, na minha modesta opinião

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GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS

não é muito comum ver um bom texto histórico vazado em estilo


redacional esmerado e são vários os exemplos de tal natureza.
Neste caso em particular, Acácio nos oferece uma leitura muito
inspirada e prazerosa sobre a Capitania de Pernambuco dos séculos
XVI e XVII. O leitor embarca aí numa singular viagem histórica em
que lhe é apresentado um erudito discurso interpretativo, concernente
ao Brasil colonial dos primeiros tempos, sob a influência de duas
culturas européias distintas em muitos aspectos, ou seja, a lusitana e a
neerlandesa, esta representada pela [Oude] West-Indische Compagnie das
Províncias Unidas dos Países Baixos. Nesse confronto entre elas há,
entretanto, um substancial traço de união que é a vocação marítima de
ambos os povos.
Por assim dizer, ao longo de uma enriquecedora viagem histórica
através das águas mansas que bordejam a cidade do Recife, o autor
destaca dois marcos básicos da conquista dessa terra pelos
representantes daquelas duas culturas, marcos estes que servem de mote
para uma glosa elaborada em um competente tear onde se configura
uma ampla e bem fundada leitura interpretativa dos elementos
invocados. Um desses marcos, o mais antigo, é a Cruz do Patrão, com a
sua simbologia religiosa, própria do povo lusitano daquele tempo. O
outro, mais recente, é o Palácio da Liberdade (Vryburgh) - indelevelmente
apelidado de Palácio das Duas Torres pela população local dominada à
força das armas, porém detentora da força soberana do uso - edificado
na Maurits Stadt para ser a sede daquele Governo alienígena por João
Maurício, Conde de Nassau-Siegen, Governador, Capitão e Almirante
General de “todos os lugares conquistados e ainda por conquistar no Brasil pela
Companhia das Índias Ocidentais, assim como sobre todas as forças de terra e mar
que a mesma ali tiver e vier a ter”. Sem dúvida, o Palácio das Duas Torres é
um contraponto marcante do poderio dos “flamengos” e aquelas suas
duas torres (o observatório astronômico e o farol) acenavam (em
conteúdo latente) para quão distante eles pretendiam chegar.
Destaque-se ainda aqui um assinalamento de Acácio, tão oportuno
quanto pouco divulgado em nosso meio, que vem a reboque daquela
vocação marítima do povo neerlandês, o qual já havia conseguido sua
primeira circunavegação da Terra entre os anos de 1598 e 1601, tendo
como responsável Olivier van Noort que, inclusive, fundeou na barra

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PREFÁCIO

do Rio de Janeiro em fevereiro de 1599. Pois bem, o autor em


apreciação nos chama a atenção para o fato de que, antes mesmo da
invasão dos “flamengos” em Pernambuco no ano de 1630, já estavam
eles bastante interessados no conhecimento do litoral brasileiro, assim
como na sua cartografia. Aproveitou essa oportunidade para registrar
uma raríssima obra desse gênero, intitulada A Tocha da Navegação [Toortse
der Zee-Vaert ... door Dierick Ruÿters (1623)], que somente em 1966
foi publicada em português por Joaquim de Sousa Leão Filho3. Aliás,
também anteriores a 1630 e com a mesma finalidade, ainda podem
ser mencionadas aqui pelo menos duas outras obras neerlandesas muito
pouco divulgadas: o Roteiro do Rico Brasil [Reys-boeck van het Rycke
Brasilien ... (1624)], somente publicado em português no ano de 1975,
igualmente por Joaquim de Sousa Leão Filho4 e os Journaux et Nouvelles
tirés de la bouche de Marins Hollandais et Portugais de la Navigation aux Antilles
et sur lês Cotes du Brésil (1629) coligidos por Hessel Gerritsz[oon] e
somente estampados no Brasil em 19095.
Para finalizar este tópico, foi uma satisfação muito especial ver
desfilar, nesse texto de Acácio, diante de mim figuras basilares do porte
de Pedro Nunes, Bento Teixeira, o piloto Afonso Luiz, Frei Manoel
Callado [do Salvador], Dierick Ruÿters, Caspar Barlaeus, Johan [Jacob]
Nieuhof, Frans Post, Pieter Post, Albert Eckhout, Willem Pies e Georg
Marcgrave, para citar somente estes nomes mais antigos.
Cabe agora dizer algumas palavras sobre o trabalho de Mozart
Vergetti de Menezes, pernambucano de nascimento com paraibanidade
em História consumada, de forma brilhante, no ano de 2005, mediante
seu doutorado na Universidade de São Paulo. Por essa ocasião
acompanhei, de pouca distância, a dedicação com que ele analisava no
Instituto Histórico e Geográfico Paraibano muitos dos documentos
manuscritos necessários para sua pesquisa. Com o mesmo objetivo
esmiuçou muitas outras fontes primárias manuscritas do monumental
acervo documental do Arquivo Histórico Ultramarino, relativo à
Capitania da Paraíba, de cujo catálogo ele próprio fez parte como
membro da sua equipe organizadora 6 . Em algumas outras
oportunidades mantivemos conversas interessantes a respeito dessa
pesquisa. O fato é que seu empenho resultou num trabalho de
doutorado laborioso e profícuo, versando sobre o fiscalismo, a

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GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS

economia e a sociedade na Capitania da Paraíba desde meados do


século XVII até cerca da metade da centúria seguinte. Trata-se de um
recorte cronológico da História da Paraíba até então muito pouco
estudado e que a partir da investigação de Mozart teve seus luzeiros
acesos, permitindo uma clara compreensão do mesmo sob vários
aspectos. Um dos cernes do seu trabalho de doutorado (Capítulo II)
foi a administração da Provedoria da Fazenda Real na Capitania da
Paraíba, cobrindo o período que vai de 1647 até pelo menos 1733,
intervalo de tempo em que os cargos da Fazenda Real nessa terra,
mediante específica solicitação dos interessados, foram sendo
concedidos pela Coroa de Portugal a representantes de certas famílias
de restauradores da Capitania, bem como a seus descendentes, como
se tais cargos constituíssem uma espécie de espólio da guerra de
reconquista da terra aos dominadores holandeses, um tipo de “prêmio
pelo sangue derramado” naquela guerra. Surgiram assim alguns clãs
familiares mais ou menos “dinásticos” na pequena burguesia colonial
da Capitania da Paraíba, envolvendo um jogo de poder em que não
faltavam fortes suspeitas de malversação e prevaricação no exercício
daqueles cargos públicos. As denúncias dos prejudicados nem sempre
surtiam o efeito esperado, pois, em determinadas situações, a Coroa
parecia estimular passivamente o fisco levado às últimas conseqüências,
mesmo que isto representasse uma eventual perda de parte da
arrecadação em decorrência de desvios por parte de tais funcionários
da Fazenda Real. Essa situação muito peculiar perdurou durante quase
um século. De todo modo, ao que parece, em certos casos aquele
estilo administrativo condimentado pelo nepotismo ainda permanece
vivo até hoje em nosso país, evidentemente, com seus matizes bem
próprios.
Pois bem, numa feliz decisão Mozart resolveu publicar agora, com
as devidas adaptações, a essência daquele Capítulo II da sua brilhante
tese de doutorado, viabilizando, para um público leitor bem mais
abrangente, os frutos de sua laboriosa pesquisa, que ainda estava restrita
a poucos interessados. Com isto ficam generosamente beneficiados
aqueles que irão haurir nesse seu texto uma visão muito esclarecedora
sobre o tema em questão, até então envolto na densa névoa da História
não garimpada nas fontes.

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PREFÁCIO

Deixei propositadamente para o final as palavras que reservei para


o texto elaborado por Regina Célia Gonçalves, cujo título é Guerra e
Açúcar: a formação da elite política na Capitania da Paraíba (séculos XVI e
XVII). Quero crer que a localização desse seu texto na abertura do
livro é tão justificável quanto também o é aqui no fecho das minhas
palavras despretensiosas. Afinal, o tema desenvolvido por essa autora
se insere no recorte histórico mais primevo da Paraíba, período que
muito me encanta e levando isto em conta, diante do seu trabalho de
muito fôlego, fartamente documentado e largamente anotado, deixei
sua apreciação para o fim à maneira de uma boa sobremesa em um
banquete muito especial. Aliás, suas encorpadas notas explicativas
denotam a professora competente e cuidadosa para com a abrangência
do conteúdo daquelas suas chamadas de fim de texto, as quais
representam para os leitores um verdadeiro subtexto muito rico de
informações e de fontes de referência.
Enfim esse trabalho trata do (lento) processo da conquista da Paraíba
- das suas Guerras - e da subseqüente (e rápida) colonização inicial,
onde muitos dos olhos aventureiros e cobiçosos daqueles que punham
aí a expectativa de um futuro promissor miravam também suas terras
férteis para o cultivo da cana e para a implantação de engenhos - ou
seja, para o lucro decorrente do Açúcar. Versa ainda sobre os estratos
sociais, oriundos de Portugal (continental ou insular) e, em particular,
os provenientes das Capitanias de Pernambuco e Itamaracá, cujos
representantes se envolveram naquele empreendimento da ocupação
territorial dessa terra situada além das então fronteiras setentrionais do
Brasil efetivamente ocupado pelo elemento colonizador. Noutras
palavras, analisa quem eram, na verdade, os primeiros moradores da
Paraíba, a partir dos quais se plasmou a elite política inicial dessa nova
conquista que, durante quase três lustros, permaneceu ainda ameaçada
pelos belicosos potiguara, naturais senhores da terra, e pelos corsários
franceses, seus aliados, que os tratavam muito bem e só tinham com
eles um projeto meramente extrativo e sazonal, mediante um escambo
barato, sem qualquer compromisso colonizador ou doutrinador para
com os indígenas.
No respeitante ao processo da conquista da Paraíba, Regina Célia,
ao lado de várias outras fontes consultadas segue, basicamente, com

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GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS

plena adequação, não as várias disponíveis fontes de segunda água,


mas o manancial pioneiro percorrido por aquele jesuíta anônimo, autor
do Sumário das Armadas, a protocrônica dessa terra em língua portuguesa,
testemunha que foi de boa parte dos acontecimentos por ele narrados.
Aliás, àquela crônica anônima tenho dedicado muitos anos dos meus
estudos e a considero a obra essencial sobre as guerras da conquista da
Paraíba. Diga-se ainda que raros são os Estados brasileiros que, como
a Paraíba, possuem uma crônica primordial como ela. Somos, portanto,
felizardos. Ela constitui, inclusive, um núcleo narrativo de onde podem
irradiar-se inúmeras vertentes de investigação, e possui bons seguidores
inclusive no Portugal hodierno, como é o caso do ilustre Prof. Joaquim
Veríssimo Serrão. Incidentalmente, por não conhecer aquela crônica
anônima (então apenas rascunhada,) o próprio enciclopédico Gabriel
Soares de Sousa cometeu equívocos importantes em relação à Paraíba.
Por sua vez, o seráfico frei Vicente do Salvador, o primeiro nativo do
Brasil a redigir uma História Geral dessa antiga Colônia de Portugal,
foi um fiel caudatário daquela relação anônima jesuítica pelo fato de
ter obtido o seu texto, documento reservado da Companhia de Jesus,
graças à amizade que ele conseguiu preservar com seus antigos mestres
inacianos. Este assinalamento já havia sido feito por Capistrano de
Abreu, considerando que naquele tempo essas duas Ordens religiosas
se toleravam muito mal. Ademais, frei Vicente do Salvador chegou a
residir e missionar índios na Paraíba durante cerca de três anos, quando
a conquista dessa terra tinha ainda menos de duas décadas, entretanto,
ele absolutamente não foi nem podia ter sido “testemunha ocular da
conquista da Paraíba”, como tenho visto escrito e reescrito por certo
desavisado autor paraibano.
No que concerne à formação do núcleo social dos expedicionários
da conquista da Paraíba e dos seus primeiros moradores, enfim no
que toca à formação da sua primitiva elite política, Regina Célia tece
uma análise abalizada e minudente, mercê de muitas outras fontes
documentais por ela compulsadas, manuscritas ou já impressas. Assim,
dentre aqueles expedicionários que estiveram desde cedo na Paraíba e
aí vieram a se fixar, bem como vários outros colonos que aí se
estabeleceram pouco depois da conquista, tornando-se seus primeiros
moradores, fosse de forma temporária, fosse permanentemente, vemos

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PREFÁCIO

desfilar nesse particular estudo, diante de nossos olhos, figuras como


Frutuoso Barbosa7, Pero Coelho de Sousa8, o Capitão de Infantaria
Francisco Castrejon9, João Tavares10, Ambrósio Fernandes Brandão11,
Duarte Gomes da Silveira12, João Afonso Pamplona13, Diogo Nunes
Correia14, Gaspar Manoel Machado15, Gaspar Gonçalves16, Miguel
Álvares17, André de Albuquerque18, Feliciano Coelho de Carvalho19,
Manoel Quaresma Carneiro20 e Francisco Gomes Muniz21. Enfim, a
autora do trabalho conclui, com adequação, que essa alentada lista dos
membros da elite local da Capitania da Paraíba daquela época
representava, em boa medida, uma extensão da chamada “nobreza da
terra” das Capitanias de Pernambuco e Itamaracá.
Poder-se-ia inclusive adicionar mais alguns nomes àquela já extensa
lista dos mais destacados dentre os primeiros moradores da Capitania
da Paraíba, incluindo aí, como membros do clero secular, ao menos
os dois primeiros vigários da Igreja Matriz de Nossa Senhora das
Neves, ou seja, o padre João Vaz Salem e o padre Dr. Bartolomeu
Ferreira. Dentre os não religiosos poderíamos mencionar ainda Antônio
da Costa de Almeida22, Baltasar da Nóbrega23, Matias Leitão24, Mauro
[ou Amaro] de Resende25, D. Pedro de la Cueva26, Sebastião de Araújo27,
Antônio Annes28, Bento Rodrigues29, Veríssimo de Sande30 e, finalmente,
João de Matos Cardoso31.
Agora, só me resta encerrar minhas modestas palavras, pois já devo
ter ultrapassado os razoáveis limites do seu uso. Congratulo-me, mais
uma vez, com os co-autores dessa obra pela superior qualidade dos
textos que elaboraram e reuniram aqui. Acredito que seus leitores terão
a mesma satisfação que eu tive ao me banquetear com ele.

João Pessoa, março de 2007.

Notas
1
Professor Emérito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Sócio Efetivo
do Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica (IPGH), Sócio Efetivo do
Histórico e Geográfico Paraibano (IHGP), Sócio Correspondente do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), do Instituto
Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP), do Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas (IHGAL) e do Instituto Histórico e
Geográfico de São Paulo (IHGSP), Membro Efetivo da Academia Paraibana
de Filosofia (APF), Membro Efetivo da Academia Paraibana de Letras e Artes

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GUILHERME GOMES DA SILVEIRA D’AVILA LINS

do Nordeste Brasileiro - Núcleo da Paraíba (ALANE-PB) e Membro Efetivo


da Academia Paraibana de Medicina (APMED).
2
Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, v. XXVIII, p. 419-422.
3
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 269, p. 3-85.
4
Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, v. 303, p. 181-
235.
5
Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, v. XXIX, p. 97-179.
6
Mozart Vergetti de Menezes, Elza Régis de Oliveira e Maria da Vitória Barbosa
de Lima (orgs.), Catálogo dos documentos manuscritos referentes à capitania da Paraíba,
existentes no Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (João Pessoa: Universitária,
2002).
7
Capitão-Mor de Mar e Terra de duas expedições de conquista da Paraíba,
infelizmente fracassadas, que foi o segundo Capitão-Mor e Governador da
Capitania.
8
Concunhado do anterior, que foi Vereador da Câmara da Cidade e o
empreendedor de duas expedições objetivando a conquista do Ceará.
9
Membro da armada do Capitão General Diego Flores de Valdés, que ficou
como alcaide do primitivo forte de São Filipe e São Tiago, de triste memória.
10
Primeiro Capitão-Mor e Governador da Capitania, tendo sido antes Escrivão
da Câmara da Vila de Olinda e Juiz de Órfãos e Ausentes da Capitania de
Pernambuco.
11
Cristão-novo, erudito expedicionário das lutas de conquista, que se tornou
senhor de três engenhos na Paraíba e é tido como o autor dos
Diálogos das Grandezas do Brasil.
12
Que chegou a possuir dois engenhos na Paraíba e foi o fundador da Santa
Casa da Misericórdia dessa terra.
13
Que recebeu a primeira carta de data em sesmaria da Paraíba, tendo sido
também o primeiro Tesoureiro de Órfãos e Ausentes dessa Capitania, além
de Juiz Ordinário da Câmara da Cidade.
14
Cristão-novo, irmão do famoso onzeneiro João Nunes Correia, que foi co-
senhor do segundo engenho da Paraíba e começou a levantar outra fábrica de
açúcar.
15
Um dos primeiros moradores da terra e que foi Vereador da Câmara da
Cidade.
16
Filho do anterior, que obteve uma carta de data em terras urbanas por seus
serviços prestados à Coroa, juntamente com seu pai.
17
Que talvez pelo laço matrimonial com uma das filhas de Manoel de Azevedo,
o primeiro Provedor da Fazenda de El-Rei na Capitania da Paraíba, aspirou a
propriedade de vários ofícios, dentre os quais se sabe que exerceu o de
Demarcador das Terras.
18
Filho do velho Jerônimo de Albuquerque, o torto, cunhado de Duarte Coelho,
que governou a Paraíba em duas ocasiões, uma de forma interina e a outra
efetivamente.

20
PREFÁCIO

19
Capitão-Mor e Governador da Capitania, que recebeu o poder das mãos de
André de Albuquerque em sua gestão interina.
20
Que foi senhor de engenho na Paraíba e que solicitou sem sucesso o ofício de
Provedor da Fazenda de El-Rei na Paraíba.
21
Que logrou o mesmo ofício pretendido pelo anterior.
22
Primeiro Escrivão da Fazenda de El-Rei na Paraíba, denunciado à Inquisição
como bígamo, tanto ele quanto sua esposa.
23
Desafeto do anterior, que chegou a substituí-lo no mesmo ofício.
24
Que também ocupou temporariamente o mesmo ofício precedente.
25
Que recebeu a terceira carta de data em sesmaria da Paraíba e que foi Juiz
Ordinário da Câmara da Cidade.
26
Que foi Capitão do efêmero “forte das fronteiras” na Paraíba, ou seja, aquele
que dava proteção ao segundo engenho dessa terra que pertenceu a Diogo
Nunes Correia, engenho este denominado Santo André, possivelmente o
mesmo nome do forte que o protegia.
27
Que foi Vereador da Câmara da Cidade.
28
Que foi também Vereador da Câmara da Cidade.
29
Que foi Escrivão das Datas e Demarcações na Paraíba.
30
Que respondeu temporariamente pelo ofício de Escrivão das Datas e
Demarcações.
31
Que inicialmente foi Escrivão das Datas e Demarcações e a partir de 1597
passou a ser Capitão do forte do Cabedelo, até o ano de 1634. Todas as
informações constantes nestas notas são fruto de pesquisa do autor destas
linhas, em diversas fontes primárias.

21
22
GUERRA E AÇÚCAR:
A FORMAÇÃO DA ELITE POLÍTICA NA
CAPITANIA DA PARAÍBA
(SÉCULOS XVI E XVII)

Regina Célia Gonçalves

m agosto de 1585, no Sanhauá, afluente da margem direita do


rio Paraíba, teve lugar um acordo de paz entre portugueses e
Tabajara, que representou a primeira grande vitória das forças
coloniais no território localizado ao norte da Capitania de Pernambuco,
no Estado do Brasil. No entanto aquele acordo ainda não significaria
a vitória decisiva sobre os Potiguara. Esses, os naturais senhores da
terra, só reconheceriam a derrota militar naquelas paragens quinze anos
mais tarde, em 1599. Até lá, e mesmo após, mas com menor impacto,
o cotidiano daquela que viria a ser a Capitania Real da Paraíba foi
marcado pela violência do estado de guerra permanente.
A história da conquista do Paraíba relaciona-se diretamente com a
das Capitanias de Pernambuco e de Itamaracá, mais especificamente
com a necessidade de garantir a segurança necessária para o
desenvolvimento da colonização daquelas áreas. Para tanto, fazia-se
necessário estender a linha da fronteira com os índios não-aldeados,
no caso os Potiguara, que habitavam o território que se estendiam do
rio Paraíba até o Jaguaribe, já no Ceará, para o local mais distante
possível das fazendas, currais e povoações já estabelecidas.
Parte do território do que viria a ser a Capitania Real da Paraíba,
especificamente a área situada entre o rio Goiana, ao sul, e a baía da
Traição, ao norte, que correspondia a cerca de 23 léguas, foi
desmembrada da Capitania de Itamaracá 1. Na época em que se
processaram as primeiras expedições de conquista do rio Paraíba, no
início dos anos setenta, essa faixa de terra, com exceção da região
localizada às margens do rio Goiana, permanecia praticamente
despovoada pelos portugueses. Era terra dos Potiguara e porto dos
franceses, mercadores de pau-brasil, seus aliados.

23
REGINA CÉLIA GONÇALVES

A Capitania de Itamaracá foi uma das que fracassaram com a


implantação do sistema, por D. João III, em 1534. Os recursos
financeiros do primeiro donatário, Pero Lopes de Sousa2, e de seus
herdeiros, foram insuficientes para bancar os altos custos da empresa
colonial que incluía não apenas o povoamento e a exploração econômica
da data de terra doada pela Coroa, mas também os custos da guerra
contra os índios. Além disso, do que se pode apreender dos poucos
dados biográficos encontrados sobre o primeiro donatário, os seus
principais interesses estavam situados nas águas dos oceanos, e não nas
terras do Novo Mundo. Nunca se estabeleceu, de fato, em qualquer
de suas capitanias, que sempre foram governadas por prepostos,
especialmente depois de sua morte, em 1539, quando retornava de
mais uma viagem às Índias Orientais.
Tais prepostos passaram a ser nomeados, em Portugal, por D. Isabel
de Gambôa, sua viúva. Datam dessa época as reclamações de Duarte
Coelho, donatário de Pernambuco, contra os moradores de Itamaracá,
a quem acusava de acoitarem toda sorte de bandidos, a exemplo de
traficantes de brasil e salteadores de índios, principalmente aqueles que,
fugindo da justiça por ele aplicada, encontravam abrigo na ilha de
Itamaracá3. As desavenças entre eles tornaram-se freqüentes a ponto
de serem relatados casos sérios de violência, como a tentativa de
assassinato, a mando de Duarte Coelho, de Francisco de Braga, que
havia sido colocado no governo de Itamaracá pelo próprio Pero Lopes
de Sousa, quando este partira para a corte. Conhecido como “grande
língua do Brasil” e como amigo dos Potiguara, o principal negócio do
governador em Itamaracá era, certamente, a exploração do pau-brasil.
Ferido de uma cutilada no rosto e sem possibilidade de vingar-se,
Francisco de Braga abandonou a Capitania, partindo para as Índias de
Castela4. A partir desse episódio, acontecido por volta de 1539, a
capitania ficou praticamente abandonada, até a nomeação de um novo
governador, o Capitão João Gonçalves. Abriu-se, a partir daí, segundo
as palavras de Frei Vicente, a “era dourada” de Itamaracá.
“E procurava [o capitão] o aumento desta sua capitania, não consentindo
que aos índios se fizesse algum agravo, mas cariciando a todos, com que
eles andavam tão contentes e domésticos que de sua livre vontade se ofereciam
a servir os brancos e lhes cultivavam as terras de graça, ou por pouco

24
GUERRA E AÇÚCAR

mais de nada; principalmente um ano que houve de muita fome na Paraíba


[grande seca de 1545], donde só pelo comer se vinham meter por suas
casas a servi-los. E assim não havia branco, por pobre que fosse, nesta
capitania, que não tivesse vinte ou trinta negros destes, de que se serviam
como de cativos, e os ricos tinham aldeias inteiras.” 5
Essa passagem reafirma o fato de que a garantia de paz e, portanto,
da estabilidade necessária para o incremento da atividade econômica
na colônia, naqueles tempos iniciais do povoamento, dependia
diretamente da política dos conquistadores em relação aos nativos.
Nessa primeira e breve fase, a habilidade dos colonos quanto à
apreensão dos valores vigentes no interior das sociedades indígenas, a
exemplo do seu código de guerra e de sua política de alianças, era
fundamental para a defesa dos interesses da implantação da colonização.
Em um segundo momento, com a posse da terra já garantida, em
decorrência do sucesso do povoamento branco e das atividades
agrícolas que haviam sido introduzidas, a relação com os índios mudaria
de patamar. A demanda por mão-de-obra, expandida na medida em
que a agromanufatura açucareira se desenvolvia nas várzeas de
Pernambuco, fez crescer o negócio e a prática do cativeiro e, com eles,
a violência.
Frei Vicente do Salvador, no trecho acima transcrito, ao falar em
“carinho do governador com os índios” e na “boa vontade” desses
em trabalhar “de graça” para os conquistadores, dilui o conflito existente
nas relações cotidianas entre as sociedades indígena e colonial, mesmo
em tempos de paz. Conflito esse que não podia ser evitado e que a
frase final do trecho revela, ao afirmar que, por mais pobre que fosse
o morador, ele haveria de ter índios cativos a seu serviço.
A relativa paz na Capitania de Itamaracá, no entanto, duraria apenas
até a morte do governador6, conhecido como “capitão velho”. A partir
de então, os que se ocupavam do negócio do cativeiro indígena
passaram a ter a liberdade de ação de que, freqüentemente, se queixava
Duarte Coelho em sua correspondência ao rei, que se estendeu até o
final de 1550. Mas esta atividade, após sua morte (1554), se tornaria
um grande negócio na Nova Lusitânia (e provavelmente em Itamaracá)
sob o comando de seus herdeiros.

25
REGINA CÉLIA GONÇALVES

O fato é que, embora as terras de Itamaracá se estendessem


oficialmente até a baía da Traição, a sua exploração nunca foi efetuada
pelos donatários. Os contemporâneos dos acontecimentos são claros
ao dizerem que, na primeira metade da década de 80, em decorrência
da guerra dos Potiguara, a capitania estava praticamente abandonada.
Anchieta afirma que contava com “aproximadamente 50 vizinhos portugueses;
tem seu vigário; é cousa pouca e pobre e vai se despovoando”7. No Sumário das
Armadas8 é informado que, em 1585, havia apenas 32 moradores,
encurralados na ilha, sustentando a capitania. Ou seja, a situação era
desesperadora e, do ponto de vista dos moradores de Pernambuco,
muito perigosa, pois os próximos alvos seriam, com certeza, os seus
povoados e fazendas que estavam situados além da margem direita
do rio Igarassu, o marco divisório entre as duas capitanias.
Ao cabo da ocupação inicial da Paraíba, a Capitania de Itamaracá
foi reduzida ao território compreendido entre a Ilha e a desembocadura
do rio Goiana. Segundo Frei Vicente do Salvador9, as demais terras
foram retomadas pelo rei, que as incorporou à Capitania Real da
Paraíba, porque fora ele a conquistá-las e a libertá-las do poder dos
inimigos, à custa de sua fazenda e de seus vassalos. Essa é a mesma
explicação que aparece nos Diálogos das Grandezas do Brasil, quando o
autor afirma que, originalmente, o distrito da Paraíba fazia parte da
Capitania de Itamaracá, “de que Sua Majestade a desmembrou, por haver
povoado à sua custa”10. Ou seja, entendemos, a partir de tais afirmações,
que, depois de efetivada a conquista do Paraíba, em 1585, a Coroa
despojou os donatários de Itamaracá das terras que ainda não haviam
sido exploradas. Procedimento, aliás, que já era previsto no Regimento
do Primeiro Governo Geral, de 1548.
Os motivos que levaram o rei D. Sebastião a ordenar a conquista
dessa área foram o levante potiguar, iniciado na década de 1560,
provocado pelos interesses dos portugueses envolvidos com o cativeiro
de índios, e o receio de que os franceses se instalassem e se fortificassem
no rio Paraíba11. Além desses, os contemporâneos dos acontecimentos
destacaram, ainda, as vantagens que a Coroa teria com a conquista e
povoamento dessas terras, entre elas, as que seriam auferidas da
exploração do pau-brasil, sem o inconveniente da concorrência dos
franceses, e as decorrentes da introdução da cultura de cana-de-açúcar.

26
GUERRA E AÇÚCAR

Esse é o teor da narrativa e dos argumentos de Gabriel Soares de


Sousa, em 1587:
“e porque entravam em cada ano neste rio [o Paraíba] naus francesas a
carregar o pau-da-tinta, com que abatia o que ia para o reino das mais
capitanias por conta dos portugueses; e porque o gentio Pitiguar andava
muito levantado contra os moradores da Capitania de Itamaracá e
Pernambuco, com o favor dos franceses, com os quais fizeram nestas
capitanias grandes danos, queimando engenhos e outras muitas fazendas,
em que mataram muitos homens brancos e escravos, assentou Sua
Majestade de o mandar povoar e fortificar...(...) Este rio da Paraíba é
muito necessário fortificar-se, a uma por tirar esta ladroeira dos franceses
dele, a outra por se povoar, pois é a terra capaz para isso, onde se
podem fazer muitos engenhos de açúcar.” 12
Quanto à qualidade do pau-brasil extraído nas capitanias do norte,
o autor do Sumário das Armadas indica aspectos importantes:
“esta Capitania de Parahyba, possuindo mais várzeas (...) que todas as
outras capitanias; e com isso e com ter mais páo brasil que Pernambuco,
é muito melhor; porque quanto mais para o norte, é preferível: e com
todo o da Parahyba se chamar de Pernambuco, se-tirará muito melhor
pela Parahyba, com a ajuda d’aquelles rios no inverno, que em
Pernambuco, onde o carreto d’ elle fica muito longe e muito custoso e
difficultoso (...) Dizem que o páo d’esta capitania da Parahyba é a
mercadoria, mais de lei que todas as outras, por não padecer corrupção
de tempo nem de água; antes a do mar o-afina. Na bocca é doce quase
como alcaçuz. Por respeito d’este páo, tractaram e procuraram tanto os
francezes permanecer na terra.” 13
A extração de pau-brasil já era uma atividade econômica consolidada
e, ao conquistar a Paraíba, a Coroa estaria, portanto, passando a
controlar, efetivamente, o tráfico em uma área que produzia dos
melhores paus-de-tinta da colônia.
Há ainda a destacar, nesse texto, a referência ao fato de que todo o
pau-brasil extraído das áreas situadas no que hoje é o Nordeste do
Brasil, era conhecido também como “pau de Pernambuco”, pois a
América portuguesa era associada, na Europa, à bem sucedida capitania

27
REGINA CÉLIA GONÇALVES

de Duarte Coelho. Sendo assim, parece-nos natural que, aos produtos


provenientes dessa região, se dissesse serem de Pernambuco. Por outro
lado, a qualidade do pau-de-tinta da Paraíba, elogiada pelo cronista do
Sumário, estava certamente associada ao fato de que, ali, as matas eram
mais fechadas e as árvores mais antigas, portanto, de maior porte do
que as que podiam ser encontradas nas capitanias ao sul, onde o
crescimento da agromanufatura açucareira fez aumentar a demanda e,
portanto, a derrubada das matas, e não apenas as do brasil, tanto para
atender ao mercado europeu quanto às necessidades dos engenhos. O
autor ainda destacava um outro aspecto que, nos séculos que se seguirão,
e até os dias de hoje, se coloca na pauta dos problemas a serem
resolvidos para que o desenvolvimento econômico da Paraíba seja
possível: a questão do escoamento da produção. Informando que o
pau-de-tinta da capitania deveria ser embarcado pelo rio Paraíba, que
não tinha problemas com a estiagem, afirmava que, se isso acontecesse
por Pernambuco, o custo seria mais alto e o deslocamento mais difícil.
Em 1574, depois da destruição, pelos Potiguara, do Engenho
Tracunhaém, que se situava na fronteira norte da Capitania de Itamaracá,
e diante do fato consumado de que nem os donatários nem os
moradores daquela capitania ou da de Pernambuco teriam condições
de completar, com sucesso, a ocupação das terras até o rio Goiana,
sem que o levante dos Potiguara fosse contido, a Coroa portuguesa,
finalmente, resolveu tomar para si as rédeas da situação. Se bem
sucedida tal ação também garantiria, por outro lado, a manutenção e o
reconhecimento internacional da sua soberania sobre aqueles territórios,
na medida em que os franceses fossem expulsos e que se promovesse
o povoamento português.
Essa preocupação estava na base da ordem, dada pelo rei D.
Sebastião, ao Governador-Geral D. Luiz de Brito d’Almeida, em 1574,
para que este fosse, pessoalmente, ver e resolver a situação, além de
eleger “um sítio para povoação”14. Impedido de ir, o governador mandou
em seu lugar o Ouvidor-Geral e Provedor-Mor da Fazenda do Estado,
Dr. Fernão da Silva, que, baseado em Pernambuco, reuniu “gente de pé e
de cavallo da dita capitania, e muitos índios, que ainda então havia” para castigar
os Potiguara. Essa foi a primeira expedição de conquista e o primeiro
fracasso português, já que os homens do Ouvidor-Geral foram

28
GUERRA E AÇÚCAR

obrigados a fugir pelas areias da praia, perseguidos de perto pelos


nativos. O fracasso fez com que o Governador-Geral se decidisse a
partir pessoalmente para o rio Paraíba. Para tanto, equipou, na Bahia,
ao custo de muitos mil cruzados da fazenda d’el-rei, “uma armada de
doze velas, com toda a gente que poude ajunctar, levando toda a nobreza da cidade,
officiaes da justiça e fazenda, com todos os petrechos e mantimentos necessários, enfim
com o maior apparato de capitães e soldados, e recado das mais cousas que lhe a elle
foi possível ajunctar”. Partindo, em setembro de 1575, assolada pelos maus
ventos, a armada arribou de volta à Bahia, sem nunca ter sequer chegado
próximo ao seu destino. “Desfez-se no ar, sem mais lembrança da Parahyba”,
como diz o autor do Sumário das Armadas.
As elevadas despesas com mais essa expedição fracassada e as
atribulações provocadas pela crise da sucessão de D. Sebastião em
Portugal contribuíram para colocar a guerra contra os Potiguara e a
conquista do rio Paraíba em segundo plano na política da Coroa para
o Brasil. Para os moradores de Itamaracá, principalmente, nada poderia
ter sido pior, pois os nativos e seus aliados, fortalecidos pelas sucessivas
vitórias sobre as forças portuguesas, aumentaram o número de
“correrias” no território da capitania, destruindo tudo o que fosse
encontrado pela frente. Os poucos moradores que resistiram,
recolheram-se, encurralados, à Ilha de Itamaracá. A terra dos Potiguara
estendeu-se, nesses anos, até à margem esquerda do rio Igarassu, na
fronteira com Pernambuco. Uma nova ordem da Coroa para atacá-
los só foi dada quatro anos depois, já sob o reinado do Cardeal D.
Henrique, atendendo à solicitação dos moradores dessa Capitania. Um
poderoso negociante, morador em Olinda, que havia enriquecido no
trato do pau-brasil da Paraíba, durante os breves períodos de paz
com os índios, se dispunha a bancar a expedição. Seu nome era Frutuoso
Barbosa15. A empresa, dessa feita, resultaria de uma parceria clara entre
o rei que, para ela, equipou quatro navios, e a iniciativa privada. Possuidor
de grandes cabedais, Frutuoso Barbosa foi nomeado “capitão de mar
e terra” da gente que levasse, por tempo de dez anos e, em troca, se
comprometeu a colonizar a Paraíba. Mais uma vez, a ênfase no
povoamento embasa o texto do alvará régio de 1579 16, que lhe
concedeu a autorização, pois tal era a prioridade tanto em termos da
manutenção da paz nos territórios das capitanias do norte quanto no

29
REGINA CÉLIA GONÇALVES

que dizia respeito à política colonial das nações européias:


“Chegou Fructuoso Barbosa a Pernambuco, creio, no anno de 7917, em
um formoso galeão, e uma zaura, e outros dous navios, com muita gente
portugueza, assim soldados como povoadores, casados, com muitos resgates,
munições e petrechos, e cousas do almazem necessárias assim à conquista,
como à povoação que logo havia de fazer; e trazendo um vigário, a quem
el-rei dava 400 crusados de ordenado, e religiosos de S. Francisco e de
S. Bento...”. 18
Percebe-se que, tanto o rei quanto os moradores de Pernambuco,
ao levarem a cabo essa expedição, esperavam concretizar, de vez, a
conquista do Paraíba. De Portugal, vieram os elementos fundamentais
- soldados, povoadores e religiosos, além dos meios materiais - que
deveriam ser completados, por Frutuoso Barbosa, em Pernambuco.
No entanto, tal como as anteriores, essa expedição também estava
fadada ao fracasso. Mais uma vez, o tempo ruim agiu, dispersando-a.
Algumas embarcações foram arribar à Bahia e outras, inclusive a do
capitão, às Índias. De volta ao reino, em busca de novo auxílio da
Coroa, recebeu, em 1582, ordens do rei - a essa época D.Filipe I, de
Portugal, o mesmo D.Filipe II, da Espanha - para retornar à colônia e
cumprir sua parte no contrato que havia sido firmado três anos antes.
Foi a sua segunda tentativa e seu segundo fracasso. Dessa feita, em
Olinda, contatou autoridades locais, em especial o capitão e ouvidor
de Pernambuco, reunindo homens e armas que partiram, por terra e
por mar, rumo ao Paraíba. Ali, depois de queimar cinco das oito naus
francesas que se encontravam atracadas com carga de pau-brasil,
travaram, durante oito dias, ferozes batalhas contra o gentio, que, mais
uma vez, saiu vitorioso. “E assim ficaram ambos em calma, e os inimigos mais
soberbos, e estas capitanias peior que nunca, e a de Tamaracá de todo desesperada”.
O adiamento dessa nova ofensiva, centralizada pela Coroa, contra
os Potiguara do Paraíba fora inevitável, tendo-se em vista o período
de conflagração que se sucedera em Portugal após a morte do Cardeal
D. Henrique, em fins de janeiro de 1580. A segunda expedição de
Frutuoso Barbosa foi compreendida, pelo novo rei, como sendo a
continuidade daquela que havia sido autorizada pelo monarca morto,
em 1579. Uma nova tentativa só seria feita depois que a União das

30
GUERRA E AÇÚCAR

Coroas Ibéricas19 estava, de fato, consolidada, em 1584. O domínio


filipino sobre Portugal (1580-1640) teve também um expressivo
significado para a América Portuguesa. Durante esse período, mais do
que em qualquer outro, a posse de Portugal sobre sua colônia no Novo
Mundo foi amplamente questionada e, mais do que isso, foi seriamente
colocada em risco. Por outro lado, também foi nesse período que,
paradoxalmente, se garantiu a posse efetiva de parte importante do
Brasil por Portugal, com a derrota dos índios e dos franceses.
Embora a historiografia identifique, na América portuguesa, durante
o período filipino, uma fase de desenvolvimento da colonização, os
escritores contemporâneos aos acontecimentos não se cansam de
reclamar da falta de atenção que a Coroa tinha para com o Brasil.
Gabriel Soares, em 1587, exorta o rei a prestar atenção à colônia, que
havia caído no esquecimento após a morte de D.João III, “o
colonizador”, pois nela seria possível construir um novo e grande
império, “o qual com pouca despesa destes reinos se fará tão soberano que seja um
dos Estados do mundo, porque terá de costa mais de mil léguas”. Não se cansa
de exaltar as riquezas e as vantagens da terra, diante das outras colônias
e mesmo da metrópole, tentando convencer a Coroa e a iniciativa
privada a investirem nela e a proverem o seu crescimento e extrairem
o seu “proveito”. Denuncia a falta de apoio que a colônia teve na
regência de D. Catarina e nos reinados de D. Sebastião e do Cardeal
D. Henrique, durante os quais o ostracismo e o abandono em que se
encontrou, fizeram com que ela tornasse “atrás de como ia florescendo”20.
Outra não foi, também, a intenção de Ambrósio Fernandes Brandão
ao escrever os Diálogos das Grandezas do Brasil, datado da segunda década
do século XVII, no reinado de Filipe II, em que procura descrever as
vantagens do Brasil sobre as Índias, de forma a atrair investimentos,
ao mesmo tempo em que denuncia a negligência das autoridades e
dos colonos em relação à terra. Da terceira década do mesmo século,
no reinado de Filipe III, temos a obra de Frei Vicente do Salvador,
que, cobrindo o período 1500-1627, insiste no mesmo argumento,
indo mais fundo na crítica ao governo:
“ainda que ao nome de Brasil juntaram o de estado e lhe chamam estado
do Brasil, ficou ele tão pouco estável que, com não haver hoje cem anos,
quando isto escrevo, que se começou a povoar, já se hão despovoados

31
REGINA CÉLIA GONÇALVES

alguns lugares e, sendo a terra tão grande e fértil (...), nem por isso vai
em aumento, antes em diminuição.
Disto dão alguns a culpa aos reis de Portugal, outros aos povoadores:
aos reis pelo pouco caso que hão feito deste tão grande estado, que nem o
título quiseram dele, pois, intitulando-se senhores de Guiné, por uma
caravelinha que lá vai e vem, como disse o rei do Congo, do Brasil não se
quiseram intitular; nem depois da morte de el-rei D. João III, que o
mandou povoar e soube estimá-lo, houve outro que dele curasse, senão
para colher as suas rendas e direitos”21.
O fato é que não apenas os problemas na península, mas também
as divergências entre os interesses da colônia, que podem ser entrevistos
nas queixas presentes nessas obras, e a política imperial metropolitana,
encontravam terreno fértil para a eclosão de conflitos em ambas as
margens do Atlântico; para não falar na guerra colonial, contra os
holandeses, que seria travada em todas as terras e mares onde o império
filipino se fizesse presente. A primeira guerra, de fato, mundial, no
dizer de Charles Boxer.
A distância física que separava metrópole e colônias, associada ao
grande número de burocratas e órgãos envolvidos na mediação entre
súditos e corte, tornava as situações de conflitos muito mais corriqueiras
nas áreas coloniais. No caso da organização e da realização das últimas
campanhas para a conquista do Paraíba, isso ficou bastante claro. A
conjunção das forças metropolitanas, que reunia soldados e autoridades
provenientes do reino (tanto espanholas quanto portuguesas),
autoridades coloniais (do Governo-Geral e das capitanias de
Pernambuco e Itamaracá), povoadores já estabelecidos nessas capitanias,
além de índios aldeiados e escravos (negros e índios), expressava bastante
claramente a divisão e a multiplicidade de interesses envolvidos na
empresa. Não poucas vezes, tais diferenças transformaram-se em
conflitos abertos que colocaram em risco o seu sucesso.
Em outubro de 1583, um apelo desesperado dos moradores de
Itamaracá e de Pernambuco chegou à Bahia, levado por Frutuoso
Barbosa. Depois do seu segundo fracasso, no ano anterior, a guerra
dos Potiguara havia chegado a um ponto em que o abandono da ilha
de Itamaracá parecia inevitável. As providências tomadas, então, pelo
governador Manoel Telles Barreto, foram, no geral, bastante eficazes e

32
GUERRA E AÇÚCAR

representaram um passo importante para a consecução dos objetivos


portugueses: enviou uma esquadra, com navios espanhóis (7) e
portugueses (2), sob o comando de um general experiente, Diogo
Flores Valdez, recém-chegado à Bahia depois de uma expedição ao
estreito de Magalhães. Acompanhavam-no Frutuoso Barbosa,
brandindo o alvará régio de 1579; o Ouvidor-Geral Martim Leitão,
que teria um papel importantíssimo na organização das forças terrestres
em Pernambuco e na provisão dos recursos necessários; e um certo
Martim Carvalho, nomeado Provedor da Fazenda e Mantimentos da
Armada de Conquista da Paraíba, cargo criado especialmente para, a
pedido do bispo D. Fr. Antonio Barreiros, beneficiar seu amigo que,
mais do que apoio à investida, provocaria muitas desavenças. As ordens
eram para que os lugares-tenentes dos donatários de Pernambuco e
Itamaracá fornecessem os homens e as armas necessárias para formar
uma força terrestre poderosa o suficiente para que os Potiguara e os
franceses fossem derrotados no rio Paraíba e para que, ali, fosse erguido
um forte que garantisse o início do povoamento branco. Assim foi
feito, e quase mil homens, incluindo mais de trezentos portugueses,
cerca de cem africanos e mais de quinhentos índios, foram reunidos
nas duas capitanias para comporem essa força que, somada à esquadra
de Valdez, tomaram a barra do rio onde foram aprisionadas cinco
naus francesas, uma conseguindo fugir, e deram início, na margem
esquerda do Paraíba, à construção do forte que recebeu o nome de
São Filipe, em homenagem ao rei. “Porque o principal que se pretendia, e
verdadeiro effeito, era povoar-se a terra”22, conforme afirma o nosso cronista
do Sumário que, dessa expedição e de tudo o mais que se seguiu, foi
“testemunha de vista”. Era 1º de maio de 1584. Dois meses haviam
passado desde que as forças enviadas pelo governador-geral zarparam
da Bahia. E os problemas estavam apenas começando.
Permanecendo em Olinda, depois da partida de Valdez, o Ouvidor-
Geral precisou enviar ainda três expedições de socorro, em maio e
novembro de 1584 e em fevereiro/março de 1585, aos homens do
Forte de São Filipe, impiedosamente atacados e cercados pelos índios
e seus aliados. Afinal, a conquista não passara, até aquele momento, do
estabelecimento de um reduto militar defensivo na margem esquerda
do rio, e não na direita como seria mais lógico, pela simples razão de

33
REGINA CÉLIA GONÇALVES

que, se assim não fosse, os soldados não teriam as profundas e turvas


águas do Paraíba a separá-los do caminho para casa. Simplesmente
fugiriam de volta para o sul, conforme alega o autor do Sumário.
Nenhum passo fora dado, até então, para estabelecer a tão sonhada
povoação.
A maior parte do tempo, a força que ali fora deixada, composta
por 150 arcabuzeiros espanhóis, comandados pelo capitão de infantaria,
também espanhol, Francisco Castrejon, e por 50 portugueses, incluindo
mamelucos e “outra gente miúda”, comandados pelo português Frutuoso
Barbosa, esteve lutando contra os inimigos, contra a fome e a falta de
armas e munições e contra si mesma. As desavenças entre o comando
espanhol e o português, que não se aceitavam mutuamente, eram um
perigo quase tão constante quanto os índios e os franceses. Na verdade,
essa divisão do comando fora acertada pelo General Valdez para
contornar as divergências bastante sérias surgidas entre os líderes das
tropas. Se a conquista do rio, ainda que não consolidada, só fora possível
porque as forças régias e as particulares, dos donatários e dos moradores
das capitanias de Pernambuco e Itamaracá, haviam se unido, não havia
como negar a divisão interna que as caracterizava. Colonos de origem
portuguesa, separados do reino pelo oceano e, portanto, distantes do
clima das negociações e acertos das cortes de Tomar; separados,
também, por algumas centenas de quilômetros da sede do Governo-
Geral na Bahia, sendo comandados, na guerra contra o pior dos seus
inimigos, por um estrangeiro, espanhol. Um súdito do rei que havia
subjugado a sua terra-mãe. Além disso, havia o alvará régio de Frutuoso
Barbosa, vianês como a maior parte dos colonos de Pernambuco,
concedendo-lhe o cargo de capitão-mor das forças da Paraíba, por
dez anos a partir da conquista. Certo era que os custos da expedição
corriam, desta feita, por conta do erário régio e não da fazenda do
interessado, mas este participara de todas as lutas, estivera à frente em
todas as batalhas e não desistiria de reivindicar o que julgava seu direito.
A suposta solução de Valdez não fizera, portanto, mais do que adiar
um conflito que se tornara inevitável e que explodiria no espaço interno
da paliçada do São Filipe, cercada dia e noite pelos inimigos: os
soldados, lutando contra as enfermidades, brigando pelos poucos
mantimentos, que já eram racionados; e os comandantes, enviando

34
GUERRA E AÇÚCAR

despachos regulares ao Ouvidor-Geral, em Olinda, solicitando socorro


e denunciando, um ao outro, por má conduta na guerra e por
desrespeito às suas respectivas autoridades.
Na capital de Pernambuco, a situação também não era diferente,
pois, embora Martim Leitão ocupasse o cargo mais importante, a
Ouvidoria Geral, era o outro Martim, o Carvalho, quem detinha o
poder de decidir quando e qual o valor dos recursos que a fazenda
real liberaria, se é que o faria, para o Forte de São Filipe. As discussões
entre ambos, apesar de acaloradas, parece terem se restringido
unicamente às reuniões para discutirem os destinos da conquista. O
primeiro Martim, apoiado pelos governadores e moradores das
capitanias do norte, cada vez mais preocupados com a possibilidade
de perderem o que já havia sido conseguido, defendendo o envio
imediato dos mantimentos, armas, munições e homens necessários
para manter o forte, e o segundo Martim, zeloso com os cofres do
rei, acusado de incompetência e ganância pelos demais, hesitando em
prover o que era solicitado. Já o conflito entre Martim Carvalho e
Francisco Castrejon, que, na condição de alcaide do forte, por nomeação
de Valdez, no auge do desespero havia se dirigido a Olinda para exigir
socorro, renderam cenas de pugilato público pelas famosas ladeiras de
Olinda, devidamente registradas pelo autor do Sumário e por Frei
Vicente do Salvador.
Se o estado das coisas já não era muito bom, por volta de fevereiro
de 1585 ficaram ainda piores. O terror tomou conta de Pernambuco
e Itamaracá assim que a notícia se espalhou: o famoso Piragibe, o Braço
de Peixe, e sua gente, os Tabajara, haviam chegado à Paraíba, em socorro
dos Potiguara. Alguns meses depois, entretanto, a fonte de horror se
transformaria em fonte de júbilo; o inimigo, portador da derrota, seria
feito aliado, portador da vitória.
Piragibe e Guirajibe, o Assento de Pássaro, o segundo principal entre
os Tabajara, lideravam um povo que, há algumas décadas, havia sido
desalojado de suas terras no litoral, especificamente as localizadas entre
o rio Goiana e a ilha de Itamaracá, por seus inimigos tradicionais, os
Potiguara, apesar da aliança que haviam firmado com os primeiros
povoadores portugueses. Dentre estes estava Jerônimo de Albuquerque,
o Adão pernambucano, que teve vários filhos com Maria do Espírito

35
REGINA CÉLIA GONÇALVES

Santo Arcoverde, nome cristão da filha do principal Tabajara. A maior


parte deste povo foi aldeiada em Pernambuco, enquanto outra migrou
em direção ao rio de São Francisco, onde, prosseguindo na prestação
de serviços aos portugueses, colaborou na guerra de cativeiro que
estes travaram contra o gentio inimigo. Frei Vicente do Salvador relata
os acontecimentos da última entrada que os pernambucanos realizaram,
por volta do início dos anos oitenta, com a ajuda dos Tabajara, nos
sertões do São Francisco, quando foram aprisionados mais de sete mil
índios23. Nessa ocasião, insatisfeitos com o número de cativos até então
obtidos, o que revela a extensão do negócio àquela época, os chefes
da entrada resolveram cativar também os Tabajara. Descobertos antes
de poderem realizar o seu intento, foram massacrados, e os prisioneiros,
libertos.
“Os homicidas, temendo-se que os brancos fossem tomar vingança destas
mortes, sendo tobajares e contrários dos potiguares, se foram meter com
eles na Paraíba e se fizeram seus amigos para os ajudarem em as guerras,
que nos faziam.”
No entanto, essa aliança tática com os Potiguara não duraria mais
que alguns meses. Imediatamente após a chegada da notícia a Olinda,
as autoridades centrais e as locais, numa rara ocasião de consenso,
determinaram o envio de uma expedição urgente de socorro ao forte
de São Filipe, comandada pessoalmente pelo Ouvidor-Geral. Ao
chegar à Paraíba, os Tabajara haviam estabelecido, com a anuência dos
seus novos aliados, duas grandes aldeias. A primeira, chefiada por
Piragibe, nas imediações do rio Tibiri, afluente da margem direita do
Paraíba, tinha “mais de três mil almas”, e a segunda, de Guiragibe,
localizada mais acima do mesmo rio, devia ter também o mesmo
número de pessoas. Ambas foram destruídas pelas forças portuguesas,
depois de Martim Leitão ter feito, junto aos principais, gestões, que
foram recusadas, para que abandonassem os Potiguara, dando-lhes
garantia de que não seriam punidos pelo massacre do São Francisco.
Embora não tivesse sido bem sucedido naquela ocasião, o Ouvidor-
Geral, que se destacaria nessa incursão e nas demais que se seguiriam
até o início efetivo do povoamento, como comandante prático,
implacável, impiedoso e com um grande senso de oportunidade
política, colheria os frutos da sua tentativa de aliciamento alguns meses

36
GUERRA E AÇÚCAR

mais tarde, especificamente em agosto. Contou, para isso, com o apoio


de seus espias, que se encarregaram de disseminar a versão de que os
Tabajara haviam facilitado as coisas para os portugueses, permitindo
que os mesmos conquistassem a margem sul do rio Paraíba e, mais
ainda, indicando-lhes os melhores roteiros para chegarem com maior
facilidade a Acejutibiró, a baía da Traição, onde os homens de Martim
Leitão fizeram grandes estragos nas aldeias e roçados dos Potiguara. A
velha tática, tão conhecida pelos primeiros povoadores europeus da
terra, de dividir para conquistar, de explorar o ódio tradicional existente
entre os diferentes grupos indígenas, voltava a dar resultados.
“[No fim do mês de julho] chegaram [a Olinda] dois índios de aviso de
Braço de Peixe ao Ouvidor geral, pedindo-lhe socorro contra os petiguares,
que, tornando-se pelo seo recado para baixo ao mar, o cercaram por
vezes, e tinham quase desbaratado. N’este próprio dia investiu Martim
Leitão aos índios, e se-foi dormir ao Arrecife, com João Tavares, escrivão
da câmara, e juiz dos orphãos; e ao parecer de todos pareceu mais
conveniente, e por serviço d’el rei, e por lh’o elle rogar, acceitou socorrer-
se, como havia annos, ao mesmo Braço no sertão havia feito; e assim, com
12 hispanhoes bem concertados e satisfeitos, e 8 portuguezes, em uma
caravela equipada e concertada para tudo, com algumas dádivas, e bom
regimento, partiu do porto de Pernambuco, a 2 de agosto de 1585"24.
No dia de Nossa Senhora das Neves, 5 de agosto, era firmada a
paz com os Tabajara. Uma nova fase da guerra de conquista iria ser
iniciada. Desde a instalação das Capitanias de Pernambuco e de
Itamaracá, essa era a primeira grande vitória dos portugueses contra
os Potiguara e os franceses. O “acordo de paz” significou a “virada”
da guerra para o lado dos portugueses, pois, pela primeira vez, os
inimigos seriam derrotados em seu território, e a marcha da civilização
branca, com o estabelecimento da povoação de Nossa Senhora das
Neves, daria mais um passo importante, às margens do rio Paraíba,
preparando o deslocamento da fronteira mais para o norte.
Como vimos, a participação direta da fazenda real na empresa da
conquista do Paraíba foi indispensável. Seu alto custo, inclusive, foi
inúmeras vezes, ressaltado nos relatos dos contemporâneos, entre os
quais, Ambrósio Fernandes Brandão que, num dos diálogos de sua

37
REGINA CÉLIA GONÇALVES

obra, faz Brandônio concordar com Alviano a esse propósito:


“Sim, custou [a Paraíba] com muitos capitães e armadas, que para o
efeito de sua conquista mandou o Reino; com presídio de castelhanos, que
assistiram na guarda de suas fortalezas; o que nunca vimos nas demais
conquistas que se fizeram por todo este Estado”25.
Por outro lado, vimos também que as forças que participaram dessa
campanha contra os Potiguara, resultaram da conjunção de homens e
recursos de diversas origens. Houve aqueles provenientes do reino, ou,
mais especificamente, da Coroa, mas também outros, reunidos pelas
autoridades coloniais, Governo-Geral e locotenentes das Capitanias
de Pernambuco e de Itamaracá. Tais forças caracterizavam-se, assim,
tanto pela multiplicidade dos seus elementos quanto pelos conflitos
permanentes, em seu interior, decorrentes da natureza diversa dos
interesses envolvidos. Conforme fica claro nos documentos e relatos
dos contemporâneos, a organização da empresa não foi fácil, assim
como não o foi o estabelecimento da povoação nas terras recém-
conquistadas. Muitos desafios precisaram ser enfrentados, o
fundamental, sem dúvida, a necessidade de uma decisiva vitória sobre
os Potiguara, tarefa que exigiu mais quinze anos de luta. Mas havia,
ainda, a necessidade de conciliar os múltiplos interesses no interior das
fileiras dos conquistadores.
Esses homens, mobilizados às centenas nas Capitanias de Itamaracá
e de Pernambuco, se constituiriam, também, no núcleo inicial dos
povoadores da Paraíba. Sendo assim, desde o início, as vinculações
entre os interesses que se estabeleceram na nova capitania e os que já
estavam instalados ao sul, especialmente em Pernambuco, que era um
exemplo de riqueza e prosperidade, à época, foram bastante próximas.
A Capitania Real da Paraíba, o novo espaço aberto para a colonização,
na prática funcionou, em termos populacionais e econômicos, como
uma extensão das capitanias de donatários suas vizinhas. E, mesmo no
que se refere aos aspectos políticos, embora sendo uma capitania real
cujas autoridades eram, portanto, diretamente nomeadas pelo rei, a
influência das elites instaladas em Olinda não tardou em se fazer
presente, especialmente com a criação da câmara municipal26. Assim
como não tardaram a eclodir conflitos entre as autoridades, em diversos

38
GUERRA E AÇÚCAR

níveis, em especial, entre os capitães-mores e os governadores-gerais,


e entre os primeiros e os religiosos, tanto jesuítas quanto franciscanos.
O processo da conquista definitiva dessas terras, garantida pelo
estabelecimento do povoamento branco, ocorreu com a metrópole
imersa em uma desgastante conjuntura, marcada por problemas
financeiros e militares, especialmente em função da revolta nos Países
Baixos e do aprofundamento da concorrência das outras nações
européias pelos espaços coloniais, fosse através da ocupação, fosse
através do corso e da pirataria. Sendo assim, e principalmente pelo
fato do território em questão na América ser parte do império colonial
de Portugal que manteve autonomia relativa em relação à Espanha
durante o domínio dos Filipes, a atenção a ele destinada não teve a
acuidade que era exigida para a rápida consolidação da conquista. A
participação da iniciativa privada, portanto, tornou-se indispensável.
Mesmo porque, se a conjuntura política e militar não era das melhores,
o mesmo não se poderia dizer da economia, especialmente no que
respeitava ao mercado do açúcar na Europa. O final do século XVI e
as primeiras décadas do século XVII constituem um período marcado
pela ampla valorização do produto no mercado internacional. Essa
situação ampliava os interesses daqueles que já estavam envolvidos no
negócio, fossem mercadores, financiadores, plantadores de cana ou
produtores de açúcar.
Sendo assim, ao analisarmos a evolução da ocupação do Paraíba
nesse período, não podemos deixar de considerar o atrativo que sua
várzea representou como área de produção açucareira. Se derrotar os
índios e seus aliados e iniciar o povoamento, eram condições
indispensáveis para a própria garantia da colonização portuguesa nessas
paragens, por outro lado, tal ocupação deveria responder a esse
movimento mais amplo da produção agro-manufatureira e do
comércio do açúcar para o mercado externo. Ambos os processos
são, portanto, inseparáveis, pois mobilizaram a corrente humana que
se dirigiu para o Paraíba e, em seguida, para o Rio Grande e os demais
territórios ao norte.
Quem eram esses homens? Quais as suas origens? Como já foi
dito, vieram, em sua grande maioria, das capitanias vizinhas que, por
sua vez, haviam sido povoadas por contingentes formados por pessoas

39
REGINA CÉLIA GONÇALVES

de todos os níveis sociais, originários de Lisboa, das ilhas atlânticas da


Madeira e de Açores e do norte de Portugal, especificamente das regiões
situadas entre o Minho e o Douro27, num movimento migratório
incessante que se estendeu ao longo de todo o período do domínio
colonial português. Em Pernambuco, devido às próprias origens da
casa donatarial, predominavam os imigrantes das cidades e vilas do
norte de Portugal, especialmente de Viana do Castelo. A diversidade
de origem social dos imigrados para a colônia podia ser observada,
inclusive, entre aqueles que foram os primeiros donatários, bem como
entre seus sucessores imediatos. Boxer afirma que
“não pertenciam [os donatários] à alta nobreza nem eram ricos mercadores
mas sim membros da classe média e da pequena nobreza. Não possuíam,
na sua maioria, capital ou outros recursos que lhes permitissem desenvolver
as terras, apesar dos enormes privilégios judiciais e fiscais que lhes tinham
sido concedidos pela Coroa”28.
O próprio Duarte Coelho, em que pesem as dificuldades, devidas
à falta de documentação, para estabelecer sua ancestralidade, não era
fidalgo de nascimento, mas foi elevado a essa condição, pelo rei, devido
aos seus feitos no Oriente. Trata-se de um exemplo de como a fortuna
e o status de nobreza podiam, no reino de Portugal, ao longo do século
XVI, serem alcançados através das armas e, principalmente, de uma
bem sucedida estratégia matrimonial. No caso, Duarte Coelho casou
com D. Brites de Albuquerque, ela sim, da mais nobre estirpe portuguesa.
As famílias que acompanharam o primeiro donatário a Pernambuco
formaram não apenas o núcleo inicial do povoamento. Deram,
também, início à produção açucareira e acabaram originando, diante
da efetiva ausência da nobreza portuguesa tradicional na colônia, uma
aristocracia local, nomeada “nobreza da terra”, apesar da sua origem
freqüentemente humilde. Nobreza essa cuja condição advinha da sua
dupla primazia: a do povoamento e a de detenção do poder, derivado
do controle dos principais meios de produção, especialmente terras,
escravos e engenhos. Além disso, ela soube tornar-se, também, a
“governança da terra”. É de Costa Porto a seguinte definição, a partir
dos documentos do Santo Ofício, na primeira visitação a Pernambuco
e Paraíba, entre 1593 e 1595:

40
GUERRA E AÇÚCAR

“’Homens da governança’ seriam os que exerciam postos de direção -


incluídos, assim, no rol das autoridades - ou ainda aparentados na casa
donatarial, ligados aos donos da capitania, como agregados, da sua
intimidade, de seus domésticos: o caso de Izabel Frazôa, qualificada
como “dos da governança dessa terra”, de certo porque filha de Francisco
Frazão, pessoa de confiança de Duarte Coelho que, numa das cartas lhe
chama “criado”, isto é, pessoa de seu serviço. “Da governança” se diz
Felipe Cavalcanti e em duplo sentido pois, além de genro de Jerônimo,
cunhado de Duarte Coelho, exercera o cargo de loco-tenente do segundo
donatário. Também D. Felipe de Moura, sobrinho de D. Beatriz, primo
do donatário, e, ao seu tempo, loco-tenente, além de casado em primeiras
núpcias com uma filha e, em segunda, com uma neta de Jerônimo; e
Pedro Homem de Castro, que se diz “sobrinho do donatário” certamente
por afinidade: Álvaro Fragoso, apontado como “da governança”, era
genro de Jerônimo. Antonio Barbalho e Álvaro Velho Barreto, esses
deviam ser aparentados da casa donatarial”29.
Portanto, como fica claro na passagem acima, a condição de
primeiros povoadores, de migrantes que acompanharam a família
donatarial em sua mudança para Pernambuco e que, com ela,
mantinham vínculos próximos, foi a origem dessa aristocracia local. A
natureza desse vínculo variou da situação do mero agregado ou serviçal
à do parente, próximo, remoto ou, simplesmente, por afinidade, mas
a sua existência garantiu a tais pessoas pelo menos uma fatia do poder
local que viria a caracterizar esse grupo como um todo. Foram eles os
fundadores de Pernambuco. E, na medida em que a colonização foi
se consolidando ao longo do século XVI, a presença, a influência e o
poder dessa aristocracia local foram se ampliando para outros
territórios, como foi o caso da Paraíba e do Maranhão, por exemplo.
No geral, e dependendo das especificidades locais, a formação e o
fortalecimento dessa “nobreza da terra” encontrou, na “política
matrimonial” das famílias proprietárias, um dos seus principais suportes.
Segundo Schwartz e Lockhart, “Os clãs de proprietários, em pequeno número,
acabam ligando-se, por meio de casamentos e associações, numa rede de famílias
patriarcais intimamente entrelaçadas, às vezes aliadas e às vezes hostis, mas que
tinham atitudes e comportamentos semelhantes”30.

41
REGINA CÉLIA GONÇALVES

Tratando de Pernambuco, mas como exemplo das estratégias


matrimoniais adotadas por essa camada dominante com a finalidade
de consolidar e ampliar o seu poder, Evaldo Cabral de Mello31 apresenta
o caso emblemático de Arnal de Hollanda e de sua mulher Brites de
Mendes Vasconcellos que, mediante o casamento de suas cinco filhas,
tornaram-se “fundadores de um verdadeiro sistema clânico ramificado em linhagens
cuja posição econômica, poder político e prestígio social chegaria intacto, como no caso
dos Rego Barros, até meados do século XIX”. Nesse sentido, segundo o
autor, os Hollanda foram mais bem sucedidos que outros troncos
duartinos mais prolíficos, como Jerônimo de Albuquerque, ou mais
ricos, como João Pais Barreto.
No entanto, nem sempre a estratégia do casamento exclusivo entre
os membros das famílias proprietárias era possível, ou desejável, porque
mesmo a endogamia, que em Pernambuco se acentuaria bastante após
a expulsão dos holandeses em 1654, tinha seus limites. Na Bahia, por
exemplo, havia outras possibilidades bastante eficientes e até mesmo
melhores, do ponto de vista da gestação de uma camada dominante
poderosa e com estatutos de nobreza. O aparato burocrático ali
montado para o governo da colônia, depois de 1549, era bastante
significativo, e o número de nobres portugueses, ocupados em altos
cargos, como os de governador-geral ou juízes reais, entre outros, era
bem maior do que nas demais capitanias. Esses acabaram se tornando
os candidatos preferidos, pelos grandes proprietários, às mãos de suas
filhas. No entanto, afirmam Schwartz e Lockhart32, para estes sempre
havia a possibilidade de casá-las “com um imigrante, mercador ou advogado,
quando não havia juízes reais ou sobrinhos do governador disponíveis”.
E essa parece ter sido a solução mais comum para os problemas
matrimoniais da “nobreza da terra” de Pernambuco diante da escassez
de “homens bons” naquela capitania. Nos anos iniciais do povoamento,
na colônia, de acordo com Mello, mais do que no reino, o desequilíbrio
demográfico entre os sexos, que fazia das mulheres portuguesas ou
filhas de portugueses um “bem escasso”, os preconceitos contra
matrimônios mistos eram bem mais tênues. Os relacionamentos
interétnicos encontravam, inclusive, importantes defensores e praticantes,
a exemplo de Jerônimo de Albuquerque, que já citamos, de estirpe tão
nobre quanto sua irmã, D. Brites de Albuquerque. Encontrava-se lugar,

42
GUERRA E AÇÚCAR

inclusive, para matrimônios com cristãs-novas, ignorando-se, portanto,


uma das mais profundas clivagens existentes na sociedade colonial: a
que opunha cristãos-velhos e novos. Mello afirma, ferinamente, que
“Mesmo os fidalgotes da máfia vianense não desdenhavam o matrimônio com
conversas”33. Enfim, o cristão-novo, desde que endinheirado, podia casar-
se com membros das melhores famílias da terra. O caso de Frutuoso
Barbosa é bastante emblemático. Depois de perder esposa, filho e
grande parte de sua fazenda na primeira tentativa de conquista do
Paraíba, em 1579, contraiu segundas núpcias, em Pernambuco, com
Felipa Cardiga, filha de Pero Cardigo, cristão-novo e senhor de engenho
naquela capitania. Uma outra filha deste senhor, D. Tomásia, era esposa
de Pero Coelho de Sousa, locotenente dos donatários de Itamaracá, e
que, da mesma forma que o cunhado e o sogro, participou intensamente
das campanhas contra os Potiguara do Paraíba, comandando homens
e fornecendo armas e suprimentos. Pero Cardigo seria julgado e
repreendido pelo Santo Ofício, em 1594, por haver blasfemado34. Por
seu turno, uma das filhas de Frutuoso Barbosa e Felipa Cardiga,
Magdalena Barbosa, vinculou-se à família donatarial, ainda que por
vias transversas, ao casar-se com Jorge Leitão de Albuquerque, um
dos muitos netos de Jerônimo de Albuquerque e Maria do Espírito
Santo Arcoverde35.
No período posterior à expulsão dos holandeses em 1654 - a fase
da Restauração -, a “nobreza da terra”, através de seus genealogistas,
procuraria escamotear a presença do sangue converso entre os
primeiros povoadores da Nova Lusitânia, como foi o caso da verdadeira
fraude encomendada por Filipe Pais Barreto, que Evaldo Cabral de
Mello estuda em O Nome e o Sangue. Ainda na introdução de sua obra,
o autor demonstra como, nessa fase, a genealogia assumiu estatuto de
saber vital para a elite dominante local, uma vez que classificava ou
desclassificava, naquela sociedade, o indivíduo e a sua parentela, a partir
da “fenda étnica, social e religiosa entre cristãos-velhos e cristãos novos”36.
Para o que nos interessa, é importante fixar que, de Pernambuco
principalmente, dirigiu-se para a Paraíba um grupo de conquistadores
liderados por elementos cuja origem era de uma elite social, porém de
caráter local. Em sua maioria, tais elementos encontravam-se ligados,
de alguma forma, aos negócios do açúcar e, muito provavelmente,

43
REGINA CÉLIA GONÇALVES

também do cativeiro de índios. Grande parte do contingente de


conquistadores era formada por homens que fugiam da pobreza. Na
verdade, tal “pobreza” referia-se, antes de qualquer coisa, à
impossibilidade de, em função de sua origem humilde, virem a
tornarem-se grandes senhores nas capitanias de donatários. Ambrósio
Fernandes Brandão, escrevendo cerca de trinta anos depois do início
do povoamento da Paraíba, relembrava, uma vez que ele próprio
havia participado de várias expedições da conquista, e, ao mesmo
tempo, reafirmava a estreita vinculação, desde as suas origens, da nova
capitania com os homens que vinham de Pernambuco:
“E tenho por ser dúvida, que, se não estivera tão conjunta com a capitania
de Pernambuco, que já se houvera aumentado no seu crescimento, com se
haver começado a povoar por poucos e pobres moradores, posto que mui
valorosos soldados, do ano de 1586 a esta parte; porque, no mesmo ano,
me lembra haver visto o sítio onde está situada a cidade agora cheia de
casas de pedras e cal e tantos templos, coberto de mato.”37
Tal como nas capitanias ao sul, serão esses os homens, poucos e pobres,
e valentes soldados, que se tornarão povoadores da terra e que
procederão à instalação das primeiras fazendas e engenhos de açúcar.
Schwartz e Lockhart, ao tratarem dos proprietários dos primeiros
engenhos no Brasil, reafirmam essa origem plebéia dos senhores.
“Os primeiros engenhos foram criados não só por donatários mas também
por gente de origem mais humilde. Embora alguns detentores de títulos
de nobreza de Portugal possuíssem terras e engenhos de açúcar no Brasil,
poucos chegaram a pôr os pés em suas propriedades. Contentavam-se em
recolher os lucros dessas atividades no ultramar e dependiam de
procuradores e feitores no Brasil. Alguns fidalgos (nobres) recebiam prêmios
em terra por seus serviços na conquista da costa, assim como outros que
vieram no séqüito de governadores depois de 1549, mas muitos dos que
obtiveram sesmarias nas regiões açucareiras eram plebeus capazes, por
meio das armas ou do tráfico de influências, de obter a terra, o crédito e
o capital necessários para iniciar a plantação de cana”.38
O caminho das armas na luta para dizimar ou aprisionar os índios
foi um dos mais usados pelos moradores de Pernambuco e de
Itamaracá para, após a conquista, se estabelecerem na Paraíba e obterem

44
GUERRA E AÇÚCAR

datas de terra. Os documentos consultados nos revelam que muitos


soldados graduados daquela guerra foram agraciados com sesmarias
para instalação de currais, canaviais e engenhos, bem como para a
extração de lenha para movê-los. Um dos casos mais exemplares nos
é revelado pela primeira carta de doação de sesmaria na Paraíba, hoje
conhecida, que foi concedida a João Affonço (Pamplona), em 10 de
janeiro de 1586, portanto, dois meses após a fundação da povoação
de Nossa Senhora das Neves 39. Morador de Pernambuco, João
Affonço obteve a concessão de uma légua de terra, em quadra, para a
construção de um engenho, por despacho do Ouvidor-Geral Martim
Leitão e do Capitão e Governador da Capitania, João Tavares,
conforme o seguinte argumento:
“que elle [João Affonço] tem servido a S. Magestade a muitos annos a
esta parte, nestas partes do Brasil e especialmente na conquista desta
dita Capitania com muito risco de vida e despeza de sua fazenda vindo
quando Fernão da Silva veio a esta conquista acompanhando-o com
armas e com cavallos, escravos e gente branca a sua custa, e outro sim
veio com o Licenciado Simão Rodrigues Cardoso, com d. Felippe de
Moura e com vossa mercê [Martim Leitão] duas vezes (...) e porque era
esta Capitania comessada a povoar e tem necessidade de moradores e de
pessoas ricas que a possam povoar e porque elle supplicante he homem
rico e afortunado e tem cabedal com que muito bem possa sustentar a
Povoação deste forte com seus escravos, e criações com que possa fazer
muitos serviços a S. Magestade com povoar e cultivar esta terra e fazer
nella fazenda”.40
Outros soldados que participaram da guerra da conquista, mais
modestos, conseguiram, quando muito, obter lotes de terra para
construírem sua moradia na cidade, que, lentamente, foi sendo erigida
ao longo da colina que se debruça sobre o rio. Foi esse o caso de um
certo Gaspar Giz (ou Gonçalves) que, em 15 de novembro de 1588,
finalmente recebeu a doação de um lote com “sete braças de testada e
quinze de quintal no lugar (...) no cabo da Rua Nova indo para as Aldeyas da
banda do loeste (...) para nellas fazer casa e benfeitorias”. Para tanto, alegava o
requerente,

45
REGINA CÉLIA GONÇALVES

“filho de Gaspar Manoel Machado, morador nesta cidade, que elle


viera com seu pay a esta Capitania e fora dos primeiros moradores que
a ella vieram e em todas as guerras que nella se fizeram e rebates, em
todos se achara muito prestez com suas armas e nas vigias que nesta
cidade se fizeram vigiara sempre sem nunca elle ter soldo de Sua
Magestade e nem lhe ter feito mercê alguma de dada de terra nem de
chãos para casa”.41
No entanto, saltam aos olhos, na documentação, os casos em que a
participação na guerra da conquista contra os índios rendeu benesses,
sob a forma de ofícios na estrutura burocrática da capitania recém-
criada, durante muitos anos e mesmo décadas após o desenrolar dos
acontecimentos. Por exemplo, em 8 de novembro de ano não
identificado, mas anterior a 1607, alegando, entre outros motivos, o
fato de ter participado da guerra da conquista do Paraíba contra índios
e franceses e de, além disso, ser dos moradores mais antigos da
Capitania, Miguel Alvarez apresenta ao rei, D. Filipe II, um requerimento
solicitando nomeação da propriedade dos ofícios de escrivão das
execuções, demarcações, descarga, zelador e guarda da alfândega e a
mercê do ofício de meirinho de inquiridor da fazenda real e alfândega,
para casamento de uma filha 42. Pelo menos a primeira parte do
requerimento foi atendida, pois, por volta de 1624, já viúva, Maria
Siqueira, moradora na Paraíba, solicita a propriedade dos mesmos
ofícios em que servira seu defunto marido, Miguel Alvarez, para a
pessoa que casar com a sua filha mais velha. Dentre os documentos
que são anexos ao processo, com a finalidade de embasar o
requerimento, encontram-se várias certidões, de diferentes autoridades,
em diferentes anos, atestando a participação do falecido nas guerras
da Paraíba, entre outros serviços que posteriormente prestou a Sua
Magestade43.
Não faltaram, também, as situações em que o tráfico de influências,
mais do que qualquer outro atributo do beneficiado foi o responsável
pela concessão das mercês ou, pelo menos, pela habilitação do pleiteante.
Esse foi o caso acontecido com Manoel Coresma Carneiro, que, em
1622, solicitava o ofício de provedor da fazenda na Paraíba. Seu
requerimento apresentava como anexos, além da folha demonstrando
seus serviços, em duas ocasiões, na armada da costa, também a

46
GUERRA E AÇÚCAR

informação do Juiz da Índia, Domingos Carneiro, seu irmão, de que


era “muito nobre de pai e mai [sic] e sem raça alguma”.44 Infelizmente, para o
pleiteante, ele não obteve o cargo, muito embora sua “folha de serviços”
tenha sido considerada boa o suficiente para que ficasse em segundo
lugar dentre os sete candidatos à vaga. Nesse caso, o nomeado foi
Francisco Gomes Munis, fundador de uma família cujo poder seria
enorme na capitania durante o século XVII. Suas qualidades reuniam
os dois requisitos fundamentais para a obtenção de mercês junto à
Corte: uma bem sucedida e extensa folha de serviços prestados ao rei
e bons vínculos ou relações com as pessoas certas, no momento certo.
O resumo de suas credenciais, apresentadas ao rei pelo Conselho da
Fazenda, diz o seguinte:
“Francisco Gomes Munis, natural da Ilha de São Miguel, sobrinho do
dezembargador do paço Aluísio (?) Lopes Munis, homem nobre e sem
raça alguma, cazado, com mulher e filhos morador na mesma Capitania
da Paraíba aonde ha annos que serve de capitão do campo aonde por
muitas vezes e com soldados a sua custa [combateu] o gentio alevantado
prendendo muitos que forão castigados e acodindo aos capitães mores e
em outras [ocasiões] passou o rio a nado por muitas vezes de noite a por
fogo as aldeas dos gentios alevantados com muito risco da vida e despesa
de sua fazenda e fes muitas obras publicas en cuja satisfação pede este
officio”.45
Quanto aos créditos e capitais necessários para o início das
plantações e para a construção dos engenhos, estavam vinculados aos
mercadores instalados em Olinda. Aliás, a própria conquista do Paraíba
não teria sido feita sem a colaboração deste segmento social que adiantou
os recursos e mantimentos necessários à empresa, sob as expensas de
Martim Leitão, no primeiro semestre de 1585. No Sumário das Armadas,
fica claro como o sistema funcionava:
“era infinita a diligência de Martim Leitão em particularmente escrever
a todos muitas cartas, convidando-os com rasões, a que ninguém poude
fugir, para a jornada, e aviando a muitos; porque como, no Brasil, tudo
é fiado, e a maior parte dos nobres n’estas cousas querem
superambundancias, a que os mercadores já não accudiam, era forçado

47
REGINA CÉLIA GONÇALVES

fazêl-os elle prover e aviar uns e outros; e era infinito isto, e ordenar o
necessário”. 46
A atividade mercantil era, sem dúvida, o principal negócio e a própria
razão de ser do império ultramarino português, e nela estavam
envolvidos inúmeros grupos, em maior ou menor escala, desde os
mercadores, especificamente, até membros da nobreza, do clero, das
corporações militares, além dos homens do mar, marinheiros e capitães
de navios. Na colônia, parcela da elite local e seus agregados e
descendentes também viriam a ter vínculos com esta atividade. No
caso de Pernambuco, número significativo de comerciantes instalados
em Olinda era, ou tinha, origem cristã-nova. Em Gente da Nação, livro
essencial para a compreensão da inserção dos judeus e cristãos-novos
em Pernambuco, e também na Paraíba, embora essa não fosse sua
preocupação, nos dois primeiros séculos da colonização, José Antonio
Gonsalves de Mello discute os motivos que os levaram a transferirem-
se para o Brasil47. Dentre eles, estava a preocupação em se afastarem
das vistas da Inquisição, com o objetivo de conservarem um pouco
da sua liberdade religiosa, e também a perspectiva de se fixarem em
uma terra em que o desenvolvimento da agromanufatura açucareira se
mostrava bastante promissor. Sendo assim, já em 1542, Mello identifica
a presença de dois deles em Pernambuco: Diogo Fernandes e Pedro
Álvares Madeira48. Esses primeiros cristãos-novos e judeus passaram,
a partir de então, a ter uma expressiva participação na economia colonial
na área açucareira,
“predominantemente como detentores de capitais: mercadores que se fazem
senhores de engenho, vários deles conservando-se nas duas atividades; uns
poucos que se fazem rendeiros da cobrança de dízimos e fazem empréstimos
às vezes onzeneiros a donos de engenhos, como é o caso de James Lopes da
Costa, João Nunes Correia e Paulo de Pina”.49
João Nunes Correia foi um dos cristãos-novos a estabelecerem
importantes vínculos com a Paraíba, tanto na fase da conquista quanto
na de implementação da produção de açúcar, tendo construído dois
engenhos, em sociedade com seus dois irmãos, Diogo Nunes Correia
e Henrique Nunes. Foi um dos mercadores que, instados por Martim
Leitão, contribuiu com os créditos necessários para a fazenda real

48
GUERRA E AÇÚCAR

organizar o empreendimento da conquista. Seu irmão, Diogo, que


depois se estabeleceria na Paraíba como virtual proprietário dos
engenhos acima referidos, chegou a participar, pelo menos em uma
ocasião, das campanhas militares contra os Potiguara no rio Paraíba.
Além dele, pelo menos três outros cristãos-novos estavam presentes
na expedição de março de 1585, sob o comando de Martim Leitão.
Foram eles: na condição de capitães dos mercadores, Fernão Soares,
que também era senhor de engenho em Pernambuco, e Ambrósio
Fernandes Brandão, nosso velho conhecido, que viria a possuir, ainda
no século XVI, um engenho em São Lourenço, também em
Pernambuco, e outros três na Paraíba, nas primeiras décadas do século
seguinte. Além deles, encontramos ainda Cristóvão Pais d’Altero, grande
amigo de João Nunes Correia, na condição de capitão dos cavalarianos.
É bom lembrar que o grosso da tropa compunha a infantaria e que só
os mais ricos faziam parte da cavalaria.
Esse João Nunes Correia foi descrito, em processo do Santo Ofício,
quando foi denunciado e julgado por blasfêmia e prática pública da
onzena, como homem “mui poderoso nesta terra e [que] fazia e desfazia
quando queria e as justiças e todos da terra faziam tudo o que ele queria a torto e
através”50. José Antonio Gonsalves de Mello, examinando os papéis
desse processo, conseguiu obter importantes informações sobre esse
poderoso cristão-novo. Senhores da “nobreza da terra”, como Filipe
Cavalcanti e Cristóvão Lins51, foram nomeados, nas denúncias, como
vítimas das onzenas de João Nunes, que, inclusive, havia chegado a
ameaçar o primeiro de pôr a pregão o seu engenho. Como conclui
Raminelli52, é fácil perceber que homens como ele desestabilizavam a
hegemonia política da elite cristã-velha, pois “fidalgos”, homens da
“governança” e soldados valentes, como Filipe Cavalcanti e Cristóvão
Lins, que haviam participado de inúmeras campanhas militares, dentre
elas as da conquista do Paraíba, sentiam-se usurpados em honra e
prestígio, ambos conquistados através de seus feitos como soldados,
de suas terras e de seus engenhos.
Uma outra informação, extremamente importante, que Gonsalves
de Mello garimpou no processo contra João Nunes no Santo Ofício,
é a de que ele e Francisco Madeira tinham interesses comuns na captura
e venda de escravos índios. Em carta a Nunes, datada de 22 de

49
REGINA CÉLIA GONÇALVES

dezembro de 1591, anexa ao processo, Madeira sugere que o sócio


recorra ao prestígio que tinha, junto ao Governador-Geral D. Francisco
de Sousa, para obter favores relacionados com o negócio53. O caso de
João Nunes Correia, com a observação da amplitude de seus negócios
- concessão de créditos à fazenda real e empréstimos a senhores de
engenho, comércio e produção de açúcar e cativeiro de índios −, revela
o nível de inserção que os cristãos-novos alcançaram na economia e na
sociedade coloniais no primeiro século da ocupação. Nesse caso
específico, podemos perceber a existência de uma verdadeira empresa
comercial na colônia, constituída basicamente em torno das atividades
relacionadas com o açúcar. Enquanto João Nunes, ora na Bahia, ora
em Pernambuco, gerenciava os negócios como um todo, o irmão
mais novo, Diogo Nunes, foi destacado para cuidar daqueles que
começaram a se instalar na Paraíba, depois de 1585. No entanto, o
verdadeiro “cabeça” da empresa, a serviço do qual os outros dois
trabalhavam, era Henrique Nunes, que, de Lisboa, monitorava a atuação
dos irmãos na colônia e, ao mesmo tempo, cuidava da ramificação
européia dos negócios do açúcar. Os cristãos-novos, que controlavam
a exportação açucareira de Pernambuco, tinham conexões com as
comunidades judaicas de origem portuguesa de Amsterdam e
Hamburgo, que se encarregavam da distribuição do produto na
Europa54. A vinculação empresarial entre os irmãos fica clara quando,
em agosto de 1591, ao saber que o Santo Ofício estava vindo para o
Brasil, Henrique Nunes tratou de mandar uma carta a João, avisando-
o do que se passava na corte e mandando que, em seis meses, resolvesse
todos os negócios e deixasse Pernambuco. Recebida em 13 de maio
de 1592, quando ele já estava preso, na Bahia, pelo Santo Ofício, a
carta passou a constar como mais um anexo do processo inquisitorial55.
Quanto ao irmão mais novo, Diogo Nunes Correia, as poucas
notícias que temos, também foram disponibilizadas pelo processo que
sofreu por parte do Santo Ofício, que assim o identifica:
“Diogo Nunes Correia, cristão-novo, natural de Castro Daire, solteiro,
43 anos [em 1594], filho de Manuel Nunes, mercador e de Lucrécia
Rodrigues, irmão de João Nunes Correia, lavrador e senhor de um
engenho na Paraíba moente e corrente e de outro que está acabando, nos
quais tem somente a metade e a outra metade é de seu irmão Henrique

50
GUERRA E AÇÚCAR

Nunes Correia. Dizia e repetia que dormir carnalmente com mulher


solteira ou “negra da aldeia” ou “negra da terra” não era pecado, desde
que fossem pagas”.56
Pela acusação acima, acabou condenado pelo tribunal e, em 4 de
agosto de 1594, participou do auto público em corpo, desbarreteado,
cingido com uma corda e com uma vela acesa na mão a fazer a
abjuração de levi suspeito na fé. Pela identificação do réu, pode-se
perceber que fazia parte de uma família de mercadores, pois seu pai
também o fora, assim como fica clara, mais uma vez, a sua relação
com Henrique, seu irmão, nos negócios que mantinha na Paraíba. O
engenho moente era o Santo André e, segundo Lins57, foi levantado
entre 1587 e 1588, às expensas de João Nunes, que, como já vimos,
era o “testa-de-ferro” dos negócios de Henrique Nunes na colônia.
Esse engenho, à margem direita do rio Paraíba, na época de sua
construção, estava situado na fronteira da área povoada, tendo sido
fortificado e protegido por uma aldeia de índios Tabajara que foi
transferida para lá com o objetivo de prover a segurança da fábrica. O
mesmo autor informa que o Santo André foi vendido entre julho de
1594 e janeiro de 1595, ou seja, logo após a condenação de Diogo
Nunes pela Inquisição. O outro engenho, então em construção, ainda
não foi identificado. Segundo Mello58, com raras exceções, como parece
ter sido o caso de Ambrósio Fernandes Brandão, que, de mercador
passou a bem sucedido senhor de engenhos, tendo, inclusive, deixado
três deles de herança, quando de seu falecimento, no início da década
de vinte do século XVII, os cristãos-novos, que eram senhores, parecem
não terem se deixado enraizar nas suas terras e, entre os motivos,
certamente estavam os atropelos causados pela presença do Santo
Ofício na colônia.
Mais um indicativo do poder e da riqueza dos irmãos Nunes
Correia na Paraíba pode ser encontrado, na documentação do Arquivo
Histórico Ultramarino de Portugal, em declaração que se encontra anexa
à provisão do Governador-Geral do Brasil, D. Francisco de Sousa,
datada de 10 de novembro de 1593, ordenando que o então capitão
da Paraíba, Feliciano Coelho de Carvalho, levasse em despesa, ao
almoxarife de Pernambuco, a quantia necessária para, durante um ano,
prover o sustento e contentamento dos índios da Paraíba. Essa

51
REGINA CÉLIA GONÇALVES

declaração do Capitão da Paraíba, datada de um mês depois, em 15


de dezembro de 1593, afirma que a quantia lhe havia sido adiantada
por Diogo Nunes:
“[Recebi] sento e corenta mil réis de Dioguo Nunez por conta de Duarte
Reimão, almoxarife de Pernãobuco os cais sento e corenta mil réis despendi
com hos índios de paz que na capitania da Paraíba servem a saber vinte
mil réis cada mês. Conforme a provizão do senhor governador pela coal
se começou a venser de primeiro de janeiro de noventa e dous, ate o
dinheiro de julho da mesma era que são sete mezes que fazem os ditos
sento e corenta mil réis”.59
Enfim, como afirma Horácio de Almeida60, no que diz respeito à
conquista e povoamento da Paraíba, a ação dos homens vindos de
Pernambuco acabou sendo muito mais eficaz que a do Governo-
Geral. Conhecedores da terra, habituados com o trato dos índios,
transplantaram-se para a nova capitania, organizaram as lavouras de
cana, montaram engenhos nas várzeas e construíram casas no povoado.
Como já foi dito, nem todos eram homens ricos como os Nunes
Correia; muito pelo contrário, a Paraíba foi povoada basicamente por
aqueles que fugiam do empobrecimento.
Com relação à elite que nela se constituiu, alguns autores, como
Gilberto Osório 61 , tratando dos senhores de engenho locais,
argumentam que eles não formaram uma “nobreza da terra” própria
da nova capitania e que isso se deveu “`a falta daquela endogamia que
Gilberto Freyre situa, com a monocultura latifundiária e escravocrata, na base da
aristocratização dos senhores de engenho de Pernambuco”. Na verdade, pelo
menos nos primeiros anos da ocupação da várzea do rio Paraíba, as
mesmas famílias que detinham o poder político e econômico nas
capitanias de Itamaracá e Pernambuco, passaram a detê-lo na nova
capitania, a despeito de a mesma ter sido criada como capitania real.
Portanto, não faz sentido falar da existência de uma “nobreza da terra
pernambucana” ou da inexistência dessa nobreza na Paraíba. Faz sentido
falar de um espaço colonial único, organizado em função dos interesses
daqueles que controlavam a agromanufatura açucareira, cujo território,
do ponto de vista político-administrativo, distribuía-se em três
capitanias: Pernambuco, Itamaracá e Paraíba, sendo que, em Olinda,

52
GUERRA E AÇÚCAR

estavam sediados os capitais necessários para o seu desenvolvimento.


Ao analisarmos as relações de parentesco entre as famílias que
exerceram o poder político-administrativo e econômico na Paraíba e
nas outras capitanias até a ocupação holandesa, identificamos vinculações
diretas entre elas, através do casamento. No caso específico da Paraíba,
governadores, senhores de engenho, proprietários dos principais ofícios,
em sua grande maioria, estavam ligados, direta ou indiretamente, aos
três principais troncos familiares de Pernambuco, notadamente os
Albuquerque, mas também os Cavalcanti e os Hollanda62. A nosso
ver, essa “nobreza da terra” pode ser compreendida, pelo menos até
a ocupação holandesa, como um bloco único que, apesar de
divergências familiares pontuais, mantinha a hegemonia na sociedade
colonial nas três capitanias do norte. Tal equilíbrio foi completamente
comprometido durante a presença dos holandeses e, principalmente,
após o período da guerra, na fase da restauração. O fracionamento
provocado por diferentes posições adotadas pelas várias famílias, e
até mesmo no interior das famílias por seus diversos membros, durante
as fases de resistência à invasão, da ocupação propriamente dita e da
restauração, explodiria com a “querela dos engenhos”. A partir daí,
conforme demonstra Evaldo Cabral63, a tendência da “nobreza da
terra” de Pernambuco foi a de fechar-se ainda mais em torno de si
mesma, reforçando a prática da endogamia, de forma a preservar o
seu poder nos mais diversos níveis da sociedade colonial.
João Fragoso, estudando a formação da elite local no Rio de Janeiro,
na passagem dos quinhentos para os seiscentos, aponta os mecanismos
através dos quais ela se constituiu:
“a constituição daquelas famílias baseou-se na combinação de três
práticas/instituições vindas da antiga sociedade lusa: a conquista/guerras
- prática que nos trópicos se traduziria em terras e homens, a “baixos
custos”, porque foram apossados das populações indígenas; a administração
real - fenômeno que lhes dava, além do poder em nome Del Rey, outras
benesses via sistema de mercês; [e] o domínio da câmara - instituição que
lhes deu a possibilidade de intervir no dia-a-dia da nova colônia”.64
Parece-nos que sua via de análise, bem como suas conclusões, são
aplicáveis ao caso da Paraíba, pois, nela, a elite local, formada na guerra

53
REGINA CÉLIA GONÇALVES

da conquista, tornou-se detentora das terras, através da obtenção de


sesmarias e de mão-de-obra - via cativeiro, já que a guerra da conquista
enquadrava-se na categoria de “guerra justa”, ou via missões religiosas
que se instalaram na área. Como conquistadores e, depois, produtores
de açúcar, em um mesmo movimento, lhes foram garantidos, ainda,
os principais cargos e ofícios disponíveis na burocracia local.
Vera Ferlini65 aponta a importância da vinculação aos negócios do
açúcar como uma via de qualificação social dos colonos que migravam
de Portugal. A própria transferência para o Brasil já era um primeiro
passo nesse sentido, no entanto, aqueles que, de alguma forma, se
enquadravam na economia açucareira, obtinham o sucesso com maior
facilidade66. O Brasil, segundo a autora, funcionava, na lógica vigente à
época, tanto para a população portuguesa em geral quanto para as
autoridades, como um purgatório onde se processariam a purificação
e requalificação daqueles que para ele se dirigissem. E esse processo
era possível porque existia o horizonte da riqueza, derivado da
exploração que se fizesse da terra. “Participar da produção do açúcar afigurava-
se forma de enobrecimento, de ascensão social na colônia”, diz a historiadora,
mesmo que, como já vimos, o título não representasse uma nobreza
real.
Ambrósio Fernandes Brandão, referindo-se, com uma certa ironia,
aos degredados que vieram para a colônia, como parte da política de
arregimentação de colonos adotada pelas autoridades portuguesas, faz
Brandônio apontar para Alviano como esse processo de qualificação
acontecia e como a nobilitação poderia dele decorrer, desde que se
conhecesse, de fato, como as coisas funcionavam nessa verdadeira
“academia” que era o Brasil:
“Haveis de saber que o Brasil é praça do mundo (...); e juntamente
academia pública, onde se aprende com muita facilidade toda a polícia,
bom modo de falar, honrados termos de cortesia, saber bem negociar e
outros atributos desta qualidade.
(...) Mas deveis de saber que esses povoadores, que primeiramente vieram
a povoar o Brasil, a poucos lanços, pela largueza da terra deram em ser
ricos, e com a riqueza foram largando de si a ruim natureza, de que as
necessidades e pobrezas que padeciam no Reino os faziam usar. E os
filhos dos tais, já entronizados com a mesma riqueza e governo da terra,

54
GUERRA E AÇÚCAR

despiram a pele velha, como cobra, usando em tudo de honradíssimos


termos, com se ajuntar a isto o haverem vindo depois a este Estado
muitos homens nobilíssimos e fidalgos, os quais casaram nele, e se liaram
em parentesco com os da terra, em forma que se há feito entre todos uma
mistura de sangue assaz nobre. E então, como neste Brasil concorrem de
todas as partes diversas condições de gente a comerciar, e este comércio o
tratam com os naturais da terra, que geralmente são dotados de muita
habilidade, ou por natureza do clima ou do bom céu, de que gozam,
tomam dos estrangeiros tudo o que acham bom, de que fazem excelente
conserva para a seu tempo usarem dela”.67
No caso da Paraíba, tais processos tenderam a se repetir, mas,
desde o início, a sociedade que nela se constituiu, embora contasse
com a presença da “nobreza da terra” advinda de Pernambuco,
também contava com alguns elementos que a diferenciavam. O primeiro
diz respeito ao cabedal dos seus povoadores iniciais, pois, se é verdade
que, dentre eles, se encontravam homens ricos como Diogo Nunes
Correia e Duarte Gomes da Silveira, os mesmos constituíam exceção.
Os que predominaram, de fato, foram aqueles, de extratos sociais mais
baixos, que buscavam fugir da “pobreza” nas demais capitanias, onde
a colonização já se estendia por cinqüenta anos e onde a “nobreza da
terra” e os “cristãos-novos” já haviam se instalado, açambarcando as
melhores terras, os melhores ofícios e os melhores negócios. A Paraíba
era, portanto, na década de oitenta do século XVI, a fronteira a ser
conquistada. Terra das oportunidades para os que se dispunham a
enfrentar novos desafios. Dessa forma, atraiu aventureiros e aqueles
que não tinham, ainda, conquistado seu lugar ao sol. Esse foi, por
exemplo, o caso das famílias de colonos vianenses, oriundas das camadas
pobres da sociedade portuguesa, que acompanharam Frutuoso Barbosa
em 1588, quando este assumiu, por decisão régia, o governo da capitania,
substituindo João Tavares.
O segundo elemento que diferenciava, nesse momento, a Paraíba
das demais capitanias do norte, era a presença dos numerosos
contingentes indígenas. Mais que substrato populacional para a garantia
do povoamento, os nativos constituíam, também, a mão-de-obra
necessária para a implementação dessa ocupação, fosse no trabalho de
construção do povoado, dos engenhos e dos fortes, fosse na agricultura.

55
REGINA CÉLIA GONÇALVES

Essa presença marcante da população indígena no litoral da Paraíba,


desde o rio Goiana até o rio Camaratuba, perdurou durante
praticamente toda a primeira metade do século XVII, incluindo o
período da ocupação holandesa. Tratava-se de uma sociedade em que
a população branca e a indígena interagiram durante um longo tempo,
pois, na Paraíba, ao contrário do que havia acontecido em Pernambuco,
os índios aliados foram, de certa forma, preservados do cativeiro e
funcionaram, durante todo este tempo, como elementos de contenção
do gentio inimigo e, também, do gentio da Guiné, que começou a ser
introduzido na capitania, na medida em que a produção açucareira foi
se desenvolvendo. Ao mesmo tempo, esses índios aliados, formaram,
também, fileiras nas tropas que a Coroa organizou, com a ajuda dos
colonos, para estender as conquistas para o norte - Rio Grande, Ceará,
Maranhão e Pará -, deslocando, cada vez mais, as fronteiras da ocupação.
Da mesma forma que Olinda fora a base logística de onde partiram
os conquistadores da Paraíba, esta o seria para essas novas áreas.
Portanto, ao nos debruçarmos sobre esse período da história da
Paraíba que vai do início da conquista, em 1585, às primeiras décadas
da ocupação colonial, podemos estabelecer algumas conclusões.
Em primeiro lugar, parece-nos claro que essa história finca suas
raízes na ocupação e colonização das capitanias de Pernambuco e de
Itamaracá, com destaque para a primeira. Foram os interesses de
proteção e de expansão da sociedade colonial ali instalada que
determinaram as medidas tomadas pela Coroa e pelos donatários
daquelas capitanias para submeterem os Potiguara, que dominavam o
rio Paraíba e todo o território ao norte, até o Ceará. Dentre tais interesses
predominavam, por um lado, os da agromanufatura açucareira, cujos
senhores, numa conjuntura internacional extremamente favorável,
caracterizada pelo alto preço do açúcar e, do ponto de vista interno,
pelo enfrentamento de dificuldades decorrentes da falta de mão-de-
obra, viam, na conquista do Paraíba, a possibilidade de expandir seus
negócios, ao mesmo tempo em que arregimentavam trabalhadores.
Os Potiguara constituíam, à época, o agrupamento indígena mais
populoso da região. Por outro lado, além dos interesses dos próprios
senhores de engenho, havia ainda a considerar os dos comerciantes
instalados em Olinda, representantes de grupos mercantis sediados na

56
GUERRA E AÇÚCAR

Europa, e financiadores da produção açucareira. Todos buscavam a


ampliação de seus negócios. Não é por menos que, entre os
expedicionários das campanhas para a conquista do rio Paraíba, é
possível encontrar representantes de todas essas categorias: senhores
de engenho, mercadores e financistas estabelecidos em Olinda, alguns,
inclusive, ligados por redes clientelares à casa de Duarte Coelho.
Além disso, neste esforço para derrotar os Potiguara e ocupar o rio
Paraíba, estavam envolvidos, ainda, os interesses próprios daqueles
colonos que se ocupavam diretamente do negócio do cativeiro de
índios. Dentre esses, encontravam-se, também, indivíduos diretamente
vinculados a casa donatarial de Pernambuco. É importante destacar
que foi a ação dos apresadores de índios, em suas incursões pelo
território dos Potiguara, que provocou o início da rebelião, ainda nos
anos sessenta do século XVI. Na ocasião, os nativos puderam contar
com o apoio dos franceses, com os quais mantinham contatos antigos
envolvendo a extração do pau-brasil. A partir de então, os Potiguara
passaram a atacar as fazendas instaladas na fronteira da ocupação branca,
principalmente em Itamaracá, o que provocou o virtual abandono da
capitania pela impossibilidade de defesa. Essa situação deflagrou as
ações, orientadas pela Coroa, a partir de meados dos anos setenta,
para derrotá-los.
Para tanto, foi necessária a associação entre as forças do Governo-
Geral, representando diretamente os interesses da Coroa, e as dos
donatários de Pernambuco e Itamaracá, sem os quais, do ponto de
vista militar, a empresa não teria sido bem sucedida. A capitania real
da Paraíba foi criada e estabelecida como a fronteira da expansão
desses negócios e dessa área. Foi a lógica da colonização, sustentada no
negócio do açúcar e no tráfico de escravos, que determinou esse esforço
de conquista e, também, a implantação da colonização.
A segunda conclusão que pode ser extraída desse processo é o fato
de que a elite local formada na capitania da Paraíba, também deve ser
compreendida como extensão da “nobreza da terra” de Pernambuco.
Foram, em sua maior parte, os egressos das famílias de senhores já
estabelecidos naquela capitania de donatário, que se instalaram na
fronteira recém-conquistada.

57
REGINA CÉLIA GONÇALVES

Os descendentes dos grupos vinculados à família de Duarte Coelho,


tornaram-se sesmeiros e senhores de engenhos e ocuparam a maior
parte dos cargos e ofícios distribuídos pela administração colonial na
Paraíba. Nesse processo de formação da elite local, a participação na
guerra da conquista contra os Potiguara foi fundamental. Através dessa
participação, esses homens puderam reivindicar, ao rei, as honras, mercês
e privilégios com os quais a Coroa produzia súditos fiéis, ao mesmo
tempo em que reproduzia o seu próprio poder.

***
Notas
1
A carta de doação da Capitania de Itamaracá a Pero Lopes de Sousa, por D. João
III, data de 1° de setembro de 1534, e, o foral, de 6 de outubro de 1534. Os
limites estabelecidos para a capitania foram os seguintes: “e as trinta léguas (...)
comessarão no rio que cerca em redondo a ilha de Tamaracá, ao qual rio eu hora puz nome
- Rio da Santa Cruz, e acabarão na Bahya da Trayção, que está em altura de seis graus
(...); e será sua [do donatário] a dita Ilha de Tamaracá e toda a mais parte do dito Rio de
Santa Cruz que vay ao norte; e bem assim serão suas quaesquer outras Ilhas que houverem
athe dez léguas ao mar na frontaria [da dita Capitania]”. Maximiano Lopes Machado,
História da Província da Parahyba. v.1 [1912] (João Pessoa: Ed. Universitária/
UFPB, 1977), p. 11-2.
2
Pero Lopes de Sousa participou da armada que foi enviada ao Brasil em 1530,
sob o comando de seu irmão, Martim Afonso de Sousa, e que tinha, entre
seus objetivos, o reconhecimento do litoral, o apresamento de navios franceses,
a exploração e descobrimento de metais preciosos e a fundação de povoações
litorâneas. Como capitão de uma parte da frota, foi bem sucedido ao expulsar
os franceses de Itamaracá e, em seguida, reconstruiu e fortificou a antiga feitoria
portuguesa que havia sido destruída pelos inimigos. Com a instituição do
sistema de capitanias, recebeu três lotes como recompensa pelos serviços
prestados à Coroa. Foram eles: Santo Amaro (com 10 léguas de costa), Santana
(com 40 léguas) e Itamaracá (com 30 léguas). Nenhuma das três alcançou
desenvolvimento.
3
Em carta de 20 de dezembro de 1546, Duarte Coelho reclama ao rei e pede
providências quanto à situação da Capitania de Itamaracá, onde, segundo ele,
havia a presença de contrabandistas de pau-brasil a carregarem a madeira, com
a anuência dos prepostos dos donatários, a quem chama de incompetentes.

58
GUERRA E AÇÚCAR

Acusa os mesmos prepostos de darem guarida a bandidos e de não


reconhecerem as cartas precatórias por ele emitidas. Em outra carta, datada de
15 de abril de 1549, volta a atacá-los, chamando-os de mercenários. Ver: José
Antonio Gonsalves de Mello e Cleonir Xavier de Albuquerque, Cartas de
Duarte Coelho a El Rey (Recife: FUNDAJ/ Massangana, 1997), p. 100-11.
4
O episódio é narrado por Frei Vicente do Salvador, História do Brasil:1500-1627
(Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1982), p. 125.
5
Salvador, História do Brasil, p. 126.
6
Horácio de Almeida, sem informar a fonte, afirma que o Capitão João Gonçalves
teria morrido por volta de 1545. In: História da Paraíba - Tomo 1 (João Pessoa:
Imprensa Universitária, 1966), p. 39.
7
Padre José de Anchieta, “Informação da Província do Brasil para Nosso Padre
- 1585”, in Cartas: informações, fragmentos históricos e sermões (1554-1568) (Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988), p. 418. Na nota 549 (p. 448),
elaborada por Capistrano de Abreu para esse texto, consta a informação de
que, nesta data, o donatário de Itamaracá era D. André de Albuquerque, filho
de D. Jeronymo de Albuquerque (o “Adão Pernambucano”, cunhado do
primeiro Duarte Coelho, de Pernambuco) e da índia Tabajara D. Maria do
Espírito Santo Arcoverde (seu nome cristão). D. André de Albuquerque era,
então, casado com uma neta de Pero Lopes de Sousa, pela sucessão, a quinta
herdeira da Capitania. Todos, por essa época, moravam em Portugal, mas fica
explícita a política de alianças, a partir do matrimônio, que caracterizaria, nestes
primeiros séculos da colonização, a prática das elites locais, como instrumento
para manutenção do controle da terra e das estruturas de poder político nas
capitanias do norte.
8
A principal fonte para os acontecimentos relacionados à conquista do rio
Paraíba é o Summario das armadas que se fizeram, e guerras que se deram na conquista
do rio Parahyba; escripto e feito por mandado do muito reverendo padre em Christo, o
padre Christovam de Gouveia, visitador da Companhia de Jesus, de toda a província do
Brasil, conhecido simplesmente por Sumário das Armadas. Utilizamos a 5ª edição
(Campina Grande: Fundação Universidade Regional do Nordeste/
Universidade Federal da Paraíba, 1983). Trata-se de uma fonte oficial da
Companhia de Jesus, cuja autoria e data de redação permanecem sendo objeto
de discussão e investigação. Sabe-se, a partir da leitura do texto, que o autor foi
testemunha ocular de parte dos acontecimentos que narra, pois ele próprio
declara-se “testemunha de vista” das jornadas empreendidas pelo Ouvidor-
Geral Martim Leitão, em março e em outubro de 1585. Sobre o assunto,
consultar: Guilherme Gomes da Silveira D’Avila Lins, Páginas de História da
Paraíba: Revisão Crítica sobre a Identificação e Localização dos Dois Primeiros
Engenhos de Açúcar da Paraíba (João Pessoa: Empório dos Livros, 1999). A

59
REGINA CÉLIA GONÇALVES

informação que citamos no texto encontra-se às páginas 28 e 29 do Sumário.


9
Salvador, História do Brasil, p. 126.
10
Salvador, História do Brasil, p. 49-50.
11
Sumário das Armadas, p. 33-4.
12
Gabriel Soares de Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587 (Recife: Fundação
Joaquim Nabuco/ Massangana, 2000), p. 14 e p. 16.
13
Sumário das Armadas, p. 28-30.
14
Todas as citações a respeito das expedições de conquista da Paraíba, com
exceção das identificadas de outra forma, foram extraídas do Sumário das
Armadas, p. 33-4.
15
Personagem controverso da história da Paraíba, português nascido em Viana,
conquistador fracassado em sua tentativa como capitão, participaria das outras
operações de guerra, sempre em situação de conflito com as autoridades
responsáveis por elas. Finalmente, depois de firmado o Acordo de Paz de
1585 e estabelecidos os fundamentos da povoação de Nossa Senhora das
Neves, se tornaria governador da Capitania. Para alguns autores, como o
cronista do Sumário, era homem soberbo e arrogante, co-responsável pelos
sucessivos fracassos nas tentativas da conquista do rio Paraíba, entre 1580-
1585, devido a sua personalidade centralizadora e ambiciosa. Outros autores,
como Coriolano de Medeiros, o consideram incapaz, “não obstante ser
contrabandista de páo brasil, (...) fraco de animo, pobre de inteligência”, in: “Os Cinco
Heroes”. Publicações do Instituto Histórico e Geográfico Parahybano (Parahyba do
Norte: s./ed., 1925) p. 3-16. Já na perspectiva de Maximiano Lopes Machado,
em História da Província da Parahyba, e Horácio de Almeida, em Hístória da
Paraíba, era um empreendedor que foi vítima da adversidade, pois, além de
perder, para o mar, dinheiro, navios e homens, viu morrerem sua mulher e
seu único filho em suas jornadas para a conquista da Paraíba. Já Irineu Pinto
o caracteriza como rico proprietário português, fidalgo da casa real e negociante
de pau-brasil, algo desastrado em certas situações, mas inegavelmente um
homem perseverante. Ver: Irineu Ferreira Pinto, Datas e Notas para a História da
Paraíba - v. I [1908] (João Pessoa: Ed. Universitária/ UFPB, 1977), p. 14-6.
16
O alvará régio, abaixo transcrito, foi descoberto por Varnhagen. A edição que
consultamos, resultou da cópia realizada pelo historiador paraibano Irineu
Pinto, em inícios do século XX, no Arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa
e publicada, pela primeira vez na Paraíba, pelo Cônego Florentino Barbosa.
Há uma divergência importante, entre essa edição e todas as outras referências
ao documento, inclusive do próprio Irineu Pinto em seu livro, que diz respeito
à data da sua emissão. Segundo Varnhagen, que depois foi seguido por todos
os outros historiadores do período, o alvará data de 25 de janeiro de 1579,
enquanto que, na transcrição que utilizamos, a data é de 25 de novembro de

60
GUERRA E AÇÚCAR

1579. “Eu, El-Rey, faço saber aos que este alvará virem que mando ora a Fructuoso
Barbosa a povoar as terras da Paraíba nas partes do Brasil e lançar do rio dellas os corsários
que ahi estão e as tem ocupado o qual leva consigo alguns moradores deste reino para
viverem nellas pelo que hei por bem que o dito Fructuoso Barbosa seja o capitão de toda dita
gente e da gente da navegação dos navios que com elle vão assim na viagem do mar como
depois que chegar às ditas terras e estar nellas todo o tempo que nellas poder estar e assim
hei por bem que elle seja capitão da fortaleza e povoação que nas ditas terras fizer e isto por
tempo de dez annos não mandando eu primeiro o contrario. E mando a todas as ditas
pessoas que hajão o dito Fructuoso Barbosa por seu capitão e acudam aos seus chamados
e cumpram seus mandados inteiramente como ao seu capitão sob as penas em que por
minhas leis e ordenações incorrerem os que desobedecem aos seus capitães. Notifico assim
a todas as ditas pessoas para que em tudo cumprão e guardem o que se nesta provisão
contem sem duvida e nem embargo algum a qual quer que valha como se fosse carta, etc. E
elle jurará em minha Chancellaria aos Santos Evangelhos que bem e verdadeiramente
sirva o dito cargo. João Siqueira o fez em Almeirim a vinte e cinco de Novembro de mil
quinhentos setenta e nove. Gaspar Rabello o fez escrever”. Registrada no livro 42, p.
382 v. da Chancellaria do D. Sebastião e D. Henrique, doações. Ver Côn.
Florentino Barbosa, “Documentos Históricos - 1579", in: Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, v.10 (João Pessoa: Departamento de Publicidade,
1946), p. 173-4.
17
Irineu Pinto faz referência, mas não os publica, a vários outros documentos
oficiais, encontrados no Arquivo da Torre do Tombo, sobre a armada; diz que
a mesma largou do Tejo em fins do mês de janeiro de 1580, tendo chegado a
Pernambuco com ótima viagem, ou seja, cerca de cinquenta ou sessenta dias
depois. Pinto, Datas e Notas para a História da Paraíba, p. 16.
18
O cronista do Sumário omite os carmelitas que também participavam dessa
expedição. Irineu Pinto publica a Patente passada a essa ordem, que enviou
quatro religiosos ao rio Paraíba. Pinto, Datas e Notas para a História da Paraíba,
p. 15-6 (nota 2).
19
Em 16 de abril de 1581, o rei de Espanha Filipe II, foi jurado pelos três
estados, reunidos nas Cortes de Tomar, como sucessor do Cardeal D. Henrique
no trono de Portugal, onde passou a ser conhecido como Filipe I. Para uma
breve reconstituição do processo, inclusive da política matrimonial dos Avis e
dos Habsburgo, que levou à crise de sucessão em Portugal e à conseqüente
União das Coroas Ibéricas, consultar, entre outras obras: J.H.Elliot, A Europa
Dividida: 1559-1598, tradução de Conceição Jardim e Eduardo Nogueira (Lisboa:
Editorial Presença, s.d.), 199-204 e Joaquim Veríssimo Serrão, O Tempo dos
Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668) (Lisboa: Colibri, 1994), especialmente
o capítulo “Portugal e a Monarquia Hispânica: causas próximas e remotas da
União Ibérica em 1580”.

61
REGINA CÉLIA GONÇALVES

20
Sousa, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, p. 1 e p. 94.
21
Salvador, História do Brasil: 1500-1627, p. 57.
22
Sumário das Armadas, p. 40. Grifo nosso.
23
Salvador, História do Brasil: 1500-1627, p. 182.
24
Sumário das Armadas, p. 64.
25
Ambrósio Fernandes Brandão, Diálogos das Grandezas do Brasil [1617] (Recife:
Imprensa Universitária, 1962), p. 45.
26
Não há vestígios documentais que comprovem a existência de uma Câmara
Municipal imediatamente após a fundação de Nossa Senhora das Neves, que
ocorreu em novembro de 1585. Provavelmente, devido à instabilidade reinante
nos primeiros anos de existência da Capitania da Paraíba, logo após o acordo
de paz com os Tabajara, não houve essa instalação. O primeiro documento
conhecido a fazer referência a existência de uma Câmara Municipal da Filipéia
de Nossa Senhora das Neves e aos seus vereadores, sugerindo que a mesma se
encontrava em pleno funcionamento, data de 21 de junho de 1589. Ver Nonato
Nunes e Nyll Pereira, orgs., A Câmara de Filipéia (João Pessoa: LM, s.d), p. 21-
5.
27
Charles R. Boxer, com base no censo da população portuguesa de 1527, que
apontava um total que variava entre 1.000.000 e 1.400.000 habitantes, calcula
que cerca de 2.400 pessoas, em sua maioria homens válidos, jovens e solteiros,
deixavam anualmente o reino e partiam para as colônias. A maior parte desse
contingente era oriundo de Lisboa, “a Meca para os famintos e desempregados” que,
muitas vezes, se viam embarcados para as colônias, voluntariamente ou à
força. Por sua vez, as ilhas atlânticas e as províncias do Minho e do Douro,
marcadas pela tradição da pequena propriedade e da família extensa, liberavam
mão-de-obra que partia em busca de novas oportunidades, daí serem, à época,
regiões conhecidas por sua alta taxa de emigração. In: O Império Marítimo
Português: 1415-1825 (Lisboa: Edições 70, s.d.), p. 66-8. A migração portuguesa
para a colônia americana permaneceu constante durante todo o período colonial
uma vez que, nos períodos favoráveis à agromanufatura açucareira, eram criadas
oportunidades para os recém-chegados e, nos períodos de crise, sempre havia
lugar para aqueles que se dispunham a correr o risco.
28
Boxer, O Império Marítimo Português: 1415-1825, p. 98.
29
Costa Porto, Nos Tempos do Visitador. Subsídio ao Estudo da Vida Colonial
Pernambucana, nos Fins do Século XVI (Recife: Universidade Federal de
Pernambuco, 1968), p. 102.
30
Stuart B. Schwartz & James Lockhart, A América Latina na Época Colonial,
tradução de Maria Beatriz de Medina (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2002), p. 249.

62
GUERRA E AÇÚCAR

31
Evaldo Cabral de Mello, O Nome e o Sangue: Uma Fraude Genealógica no
Pernambuco Colonial (São Paulo, Companhia das Letras, 1989), p. 99.
32
Schwartz & Lockhart, A América Latina na Época Colonial, p. 277.
33
Cabral de Mello, O Nome e o Sangue, p. 109.
34
José Antonio Gonsalves de Mello, Gente da Nação: Cristãos Novos e Judeus
em Pernambuco, 1542-1654 (Recife: FUNDAJ/ Massangana, 1996), p. 185-6.
35
Antonio Vitoriano Borges da Fonseca, Nobiliarchia Pernambucana - V. II (Rio
de Janeiro: Bibliotheca Nacional, 1935), p. 405.
36
Cabral de Mello, O Nome e o Sangue, p. 11.
37
Brandão, Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 44.
38
Schwartz & Lockhart, A América Latina na Época Colonial, p. 247-8.
39
O historiador Guilherme Gomes da Silveira D’Ávila Lins, especialista na
crítica erudita clássica da documentação sobre a história colonial da Paraíba,
busca estabelecer a identidade desse João Affonço, que teria recebido a primeira
sesmaria na Paraíba. Segundo o autor, trata-se do mesmo João Antonio
Pamplona, nomeado algumas vezes no Sumário das Armadas. Seus argumentos
são apresentados em João Afonso Pamplona: A restituição do nome daquele que
foi o primeiro proprietário de terras na Capitania da Paraíba (João Pessoa,
Empório dos Livros, 1996). Em outro trabalho, pautado nos mesmos critérios
da erudição crítica, o historiador questiona a afirmação, já consagrada pela
historiografia paraibana, de que Nossa Senhora das Neves já teria sido fundada
como cidade por ter sido fundada numa capitania real. Utilizando, entre outros
documentos, a carta de doação de sesmaria a João Affonço, Lins demonstra
que o núcleo inicial de povoamento da Paraíba foi erigido como povoação e só
teria alçado a condição de cidade no final de 1586 ou início de 1587, quando
deve ter recebido oficialmente o nome de Cidade de Nossa Senhora das Neves.
Só em 1588, durante a gestão de Frutuoso Barbosa, é que passou a chamar-se
Cidade Filipéia de Nossa Senhora das Neves, em homenagem ao rei D. Filipe
I. Sobre o assunto, consultar do mesmo autor: Revisão e Retificação dos Sucessivos
Nomes Oficiais da Capital da Paraíba ao Longo do Tempo (João Pessoa: A União,
2000).
40
João de Lyra Tavares, Apontamentos para a História Territorial da Paraíba [1909].
(Mossoró: s./ed., 1982), p. 29-31. Embora incompleta essa obra oferece a
amostragem mais importante das sesmarias doadas na Paraíba, tendo se
tornado referência obrigatória para os que estudam a questão agrária no Estado.
Não há dados precisos quanto ao número total de sesmarias que foram doadas
na Paraíba durante a vigência do sistema, sendo que Tavares registra, na íntegra,
1138 cartas emitidas entre 1586 e 1824, das quais apenas 17 no período que é
objeto de nosso estudo.
41
Tavares, Apontamentos para a História Territorial da Paraíba, p. 32-3.

63
REGINA CÉLIA GONÇALVES

42
AHU_ACL_CU_014, cx. 1, D. 16. Essa documentação foi disponibilizada,
em CD-ROM, pelo Projeto Resgate Barão do Rio Branco, do Ministério da
Cultura do Brasil, a partir de pesquisa realizada no Arquivo Histórico
Ultramarino de Portugal, na cidade de Lisboa. As siglas que são utilizadas
neste texto para identificar esse corpus documental correspondem, conforme
o Catálogo dos Documentos Manuscritos Avulsos Referentes à Capitania da Paraíba
existentes no Arquivo Ultramarino de Lisboa (João Pessoa, Universitária/UFPB,
2002), ao seguinte: AHU - Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal). ACL -
Administração Central. CU - Conselho Ultramarino, 014 - Série Brasil - Paraíba,
Cx - caixa, D - documento.
43
AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, D. 16.
44
Domingos Carneiro foi morador proeminente da Capitania, onde era
proprietário do Engenho das Barreiras, na várzea do Rio Paraíba. Antes de ser
nomeado para a Casa da Índia, em data desconhecida, ocupou o cargo de
Ouvidor da Paraíba. Cf. Chancelaria de Filipe II. Livro 3, fl.170v. e
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 19. A sua intervenção na oportunidade do
pleito do irmão, Manoel, certamente se configurava como uma tentativa de
estender ainda mais sua área de influência na Capitania. Não foi bem sucedido
porque a concorrência lhe era absolutamente desfavorável tendo em vista a
folha de serviços e as indicações que foram feitas em favor de Francisco Gomes
Munis, que ocupava cargo estratégico para a segurança da Capitania, em tempos
de luta permanente contra os Potiguara.
45
AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, D. 15.
46
Sumário das Armadas, p. 49.
47
A obra está fundamentada no exame dos processos do Santo Ofício e em
documentação de origem holandesa, relativa à comunidade judaica do Recife,
tanto nos arquivos da Companhia das Índias Ocidentais quanto no Arquivo
Municipal de Amsterdam. Parte do trabalho foi publicado, a partir de 1960, na
Revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco. Utilizamos
a segunda edição, de 1996, pela FUNDAJ/ Massangana e Banco Safra.
48
Gonsalves de Mello, Gente da Nação , p. 7-9.
49
Gonsalves de Mello, Gente da Nação, p. 9.
50
Conforme as Denunciações de Pernambuco - 1593-1595, p. 69, citado por: Ronald
J. Raminelli. “Tempo de Visitações: Cultura e Sociedade em Pernambuco e
Bahia - 1591-1620” (Dissertação de Mestrado em História, Universidade de
São Paulo, 1990), p. 153-4.
51
Filipe Cavalcanti que, segundo Borges da Fonseca, era fidalgo florentino,
casou-se com a filha mais velha e, conforme o mesmo genealogista, mais
amada, de Jerônimo de Albuquerque e Maria do Espírito Santo Arcoverde,
vinculando-se, portanto, diretamente à casa donatarial. Tornou-se um dos

64
GUERRA E AÇÚCAR

mais poderosos senhores de engenho das Capitanias de Pernambuco e de


Itamaracá. Cristóvão Lins, por sua vez, casou-se com Adrianna de Hollanda,
uma das filhas do poderosíssimo Arnal de Hollanda e de Brites Mendes de
Vasconcellos, que vieram de Portugal junto com Duarte Coelho. Tornou-se,
bem como seus descendentes, um dos mais ricos e influentes senhores de
terras e engenhos na região sul da Capitania de Pernambuco, área conhecida
como Porto Calvo (hoje território de Alagoas).
52
Raminelli, “Tempo de Visitações”, p. 155.
53
Gonsalves de Mello, Gente da Nação, p. 57.
54
Um outro exemplo de como a rede de negócios dos cristãos-novos em
Pernambuco era extensa nos é, mais uma vez, fornecida por José Antonio
Gonçalves de Mello na página 11. O segundo maior exportador de açúcar da
capitania, em finais do século XVI, era o mercador cristão-novo Manuel Nunes
de Matos, irmão de João Nunes de Matos, que também exportava açúcar de
Olinda. Seus consignatários em Lisboa eram os Ximenes, também família de
ascendência cristã-nova. Em 1609, além de mercador, João Nunes de Matos
também era senhor de engenho em Pernambuco. Manuel Nunes, por sua vez,
havia sido, em 1601, o arrendatário da cobrança dos dízimos do açúcar da
Paraíba. Em fins de 1606, no entanto, foi obrigado a fugir de Pernambuco,
depois de receber a notícia de que a família da esposa havia sido aprisionada
pela Inquisição em Lisboa. Em 1608, estava em Amsterdam, onde se tornou
figura proeminente na comunidade dos judeus portugueses. Como se pode
perceber, os exemplos dos Nunes Correia e dos Nunes de Matos, interligando
os três vértices do negócio do açúcar à época (a produção/exportação em
Pernambuco, a importação via signatários em Portugal e a distribuição no
varejo em Amsterdam e/ou Hamburgo), são muito importantes para a
compreensão dos mecanismos de funcionamento da relação entre metrópole
e colônia e, especificamente, para o dimensionamento da participação dos
capitais de origem cristã-nova ou judia nos negócios do açúcar.
55
Trecho da correspondência que Mello transcreve à página 57: “Tenho escrito o
necessário para vos aviardes do Brasil, que é tempo, e dentro de seis meses estais despedido
do Brasil e de todas as vossas cousas feitas e tudo trespassado em mim, sem fazer nenhuma
memória de vós em nenhuma cousa, porque assim convém e é necessário para colhermos
alguma cousa do Brasil e vir e estar fora dele dentro de seis meses e se parecer vender o
engenho venda-se e se parecer traspassá-lo em mim traspassese, e o dito basta por ora”.
56
Gonsalves de Mello, Gente da Nação, p. 191.
57
Guilherme Gomes da Silveira D’Ávila Lins, Páginas de História da Paraíba (João
Pessoa: Empório dos Livros, 1999), p. 74.
58
Gonsalves de Mello, Gente da Nação, p. 9.
59
AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, D. 1.

65
REGINA CÉLIA GONÇALVES

60
Almeida, História da Paraíba, p. 49.
61
Gilberto Osório, O Rio Paraíba do Norte [1957] (João Pessoa: SEC-PB/ Ed.
Universitária/ UFPB, 1997), p. 106-8.
62
Por exemplo, um dos filhos legítimos de Jerônimo de Albuquerque com D.
Felipa de Mello, André de Albuquerque e Mello, além de construir engenho na
Paraíba, foi governador da capitania, na década de noventa do século XVI.
Antonio de Albuquerque Maranhão, neto do mesmo Jerônimo de
Albuquerque e da índia Maria do Espírito Santo Arcoverde, era senhor de
engenho e governador da Paraíba à época da ocupação holandesa, em 1634.
Haviam se passado cerca de cinqüenta anos, desde que Nossa Senhora das
Neves fora fundada, e os Albuquerque ainda mantinham, tanto quanto em
Pernambuco, a mesma influência da época do início da colonização. Outro
exemplo pode ser encontrado na família Silveira, que, na pessoa de Duarte
Gomes da Silveira, se tornaria, se não a mais poderosa, pelo menos uma das
mais poderosas da Paraíba até os anos quarenta do século XVII. O próprio
Duarte, senhor de engenho muito rico na capitania, casou-se com a filha de
João Tavares. Por seu lado, em Olinda, seu irmão Domingos da Silveira, que
ocupava o cargo de ouvidor de Pernambuco, casou suas filhas com homens
que também ocupavam cargos importantíssimos na burocracia local, os
Camello e os Rego Barros (seu genro era irmão do conselheiro do rei, João
Velho Barreto). Na terceira geração, já encontramos neto de Domingos da
Silveira casado com descendente das casas Hollanda e Cavalcanti, instalado
como senhor de engenho na Paraíba. Aliás, os Silveira foram, nessas décadas
iniciais da colonização, a família que, vinda de Pernambuco, mais se enraizou
na Paraíba, com seus membros se estabelecendo como senhores de engenhos
e ocupando cargos públicos importantes, como os de provedoria da Fazenda
e de Ouvidor, além de assentos na Câmara Municipal.
63
Cabral de Mello, O Nome e o Sangue.
64
João Fragoso, “A Formação da Economia Colonial do Rio de Janeiro e de sua
Primeira Elite Senhorial (séculos XVI e XVII)”, in João Fragoso, Maria Fernanda
Bicalho e Maria de Fátima Gouvêa, orgs, O Antigo Regime nos Trópicos: A
Dinâmica Imperial Portuguesa (séculos XVI-XVIII) (Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2001), p. 42.
65
Vera Lúcia Amaral Ferlini, Terra, Trabalho e Poder: O Mundo dos Engenhos no
Nordeste Colônia (São Paulo: Brasiliense, 1988), p. 211-2.
66
Esta também é a apreciação que Schwartz e Lockhart fazem, especialmente ao
tratarem do caso dos cristãos-novos, pois estes “envolveram-se desde o início com
o empreendimento brasileiro, e, depois de 1537, muitos vieram para o Brasil, para evitar a
Inquisição ou por causa de sentenças de deportação e exílio penal. Se o Brasil oferecia
algum tipo de mobilidade social para portugueses em geral, seus atrativos multiplicavam-

66
GUERRA E AÇÚCAR

se para os cristãos-novos. É curioso notar que jesuítas e cristãos-novos falavam do Brasil


quase com as mesmas palavras como ‘sua empresa’. No Brasil, os cristãos-novos
freqüentemente ocupavam cargos no governo civil e mesmo postos eclesiásticos que lhes
eram vedados na Europa. Tornaram-se senhores de engenho e lavradores de cana, artesãos
e mercadores, ocupando uma ampla faixa de posições sociais”. In: A América Latina na
Época Colonial, p. 268.
67
Brandão, Diálogos das Grandezas do Brasil, p. 134.

67
68
“MARCAR COM SINAIS PRÓPRIOS”:
AS BALIZAS DA CONQUISTA
NA MAURITS STADT

Acácio José Lopes Catarino

“XVII
Pera a parte do Sul, onde a pequena
Ursa se vê de guardas rodeada,
Onde o Céu luminoso mais serena,
Tem sua influição, e temperada;
Junto da nova Lusitânia ordena
A natureza, mãe bem atentada,
Um porto tão quieto, e tão seguro,
Que pera as curvas Naus serve de muro.

XVIII
É este porto tal, por esta posta,
Uma cinta de pedra, inculta e viva,
Ao longo da soberba e larga costa,
Onde quebra Netuno a fúria esquiva.
Entre a praia e pedra descomposta
O estanhado elemento se deriva,
Com tanta mansidão, que uma fateixa
Basta ter à fatal Argos aneixa.”
Descrição do Recife de Paranambuco,
Prosopopea, Bento Teixeira, 16011.

ostumavam os mareantes que demandavam o porto do Recife


aproximar-se bordejando o litoral, paralelamente à faixa de
arrecifes (coberta apenas nas invernadas) e, uma vez avistada a
Cruz do Patrão no istmo que constitui hoje o bairro do Recife,
aguardavam que este pilar de alvenaria firmasse alinhamento com a
torre da igreja em Santo Amaro, situada por trás do rio Beberibe2.

69
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Nesse momento, investiam perpendicularmente na direção da barra, e


assim adentravam na segurança do porto.
Essa rotina, repetida incessantes vezes ao dia durante séculos, nada
tem de ordinário, pois estava intimamente associada ao ato de possessão
do território colonial. Com efeito, nela tomam parte os elementos
primários e essenciais que, conjugados, estabelecem o domínio
português: o mar e o navegador, o porto e, nele, uma autoridade
corporificando e representando a Elrei e a comunidade lusa, na figura
do patrão-mor da ribeira. E, mais além, a Igreja. Mediando o primeiro
contato com a terra daquele que vem da marinha, estava a torre
encimada pelo signo da cruz, baliza traçando seguras linhas imaginárias
no espaço a vencer (figura 1).

Figura 1 - Cruz do Patrão em princípios do século XX. “Uma cruz de pedra


elevada sobre a península de areia, em face da passagem maior, serve com alguns
edifícios de Olinda de guia aos pilotos.”3

70
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

Fincada no sítio dos pescadores que deu origem à vila (o “arrecife


dos navios” do foral de 1537), a Cruz foi, entretanto, bem mais que
um prático instrumento de navegação. Como monumento,
representava um importante marco colonizador na mesma medida
em que os padrões de pedra dos portugueses, lançados no decorrer
dos séculos XV e XVI nas costas do Atlântico e Índico, o foram.
Marcos expressam, implicitamente, atribuições do ato de posse e, a
par de sua diversidade com respeito ao aspecto propriamente material,
veiculam diferentes intenções e patrocinadores. Além disso, são
apropriados de modos bem específicos por aqueles que com eles
convivem, e a Cruz do Patrão não constitui exceção.
Instalada pelos primeiros donatários em algum momento na virada
dos séculos XVI-XVII, já registrada em princípios do século XVII
como uma cruz de madeira altamente alçada, acha-se hoje escondida
em meio ao parque de tancagem de combustíveis, isolada pelos aterros
que a foram distanciando do mar. Bem antes da introdução de outros
meios de auxílio à navegação pelos últimos capitães-generais da Capitania
de Pernambuco, o ermo sítio já era mais visitado pelos escravos urbanos
para seus cerimoniais noturnos, constando, inclusive, no folclore local
que neste recanto pouco freqüentado “o diabo pegou uma negra do toutiço
gordo e se sumiu com ela no meio da água” 4.
Essa seria a origem da Coroa Preta, visível nas marés do rio Beberibe,
manifestação diária do estranhamento que a Cruz causava entre aqueles
que precisavam passar de Recife a Olinda, testemunhada pelo romancista
Franklin Távora (1842-88): “Os matutos que tinham de vir desta ou voltar
daquella cidade aguardavam para o fazer, a maré-secca, que lhes permitia beirar o
rio em certos pontos por entre mangues, deixando a alguns passos a cruz fatidica.
Os canoeiros tinham o cuidado de navegar por dentro, afim de escusar a sua vista”5.
A viajante inglesa Maria Graham anotou, em seu diário, a presença
de corpos de negros mal enterrados ao percorrer o istmo em setembro
de 1821, provavelmente de africanos mortos ao findar a longa viagem
pelo Atlântico e por isto levados a um consentido cemitério de pagãos,
convenientemente situado fora das portas da vila6. Mas pode-se dizer
que sua primeira perda de prestígio, senão mágico, pelo menos náutico,
data da chegada dos holandeses.

71
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Florescente potência naval, também foi próximo a portos que se


afirmaram os elementos essenciais do domínio holandês. Como a
talassocracia portuguesa, de quem tomou de empréstimo “técnicas de
navegação, táticas náuticas, estratégias comerciais, práticas contábeis e capitais”7,
seus direitos ao exclusivo comercial tinham base na precedência de
chegada.
Ou, o que era entendido como equivalente, pelo estabelecimento
de ligações mercantis permanentes ordenadas por permissões
renováveis, oficialmente autorizadas a concessionários (outra prática
portuguesa, embora neste caso sem o caráter de guilda urbana que as
Companhias de Comércio das Índias assinalavam). Como sintetizou o
cronista oficial do Conde:
“A liberdade comercial foi sempre o baluarte de uma grande
potência. Com ela cresceram os tírios, os cartagineses, os persas, os
árabes, os gregos e os romanos. Por isso, os nossos navios mercantes,
comboiados pelas nossas armadas, navegaram primeiro para o Oriente,
depois para o Ocidente, fundando fora da Europa como que dois
impérios, sustentados por duas companhias.” 8
Mas, não tendo criado as técnicas que originariamente possibilitaram
as viagens pelo Mar Oceano (o clássico roteiro de bordo holandês
originou-se da adaptação por Jan Linschoten dos itinerários oceânicos
a que tivera acesso como secretário do bispo de Goa9), a reivindicação
centrava-se em torno do exame e descrição minuciosos dos acidentes
geográficos de interesse para os europeus. O que implicava em localizá-
los em relação tanto aos céus quanto na terra, isto é, nas cartas náuticas
e nos mapas, na impressão dos quais se distinguiram por séculos. Com
efeito, para os flamengos descobrir era ins-crever no papel10.
Embora não tenha resistido nem por vinte e cinco anos, o domínio
da Companhia das Índias Ocidentais teve um impacto duradouro na
conformação das identidades regionais nessa parte da América
portuguesa. De modo menos direto que a decisiva superioridade de
articulação política e militar (recuperada em certa medida pelos luso-
brasileiros após muitos reveses), foi afinal a abertura pelos flamengos
de uma agenda que ultrapassava largamente o padrão da colonização
mercantil a responsável pelo êxito que sua experiência brasileira
conheceria na memória regional e na História nacional11.

72
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

Tanto a agenda como sua infirmação na memória devem muito a


Nassau, que contratou e acompanhou cuidadosamente o serviço de
técnicos, urbanistas, artistas e sábios que fizeram de seu governo o
espelho de uma administração conduzida sob o signo da racionalidade
e da tolerância. Mas, se pela dimensão da posteridade, seu sucesso foi
inequívoco, seria interessante reavaliar pelo ângulo das manifestações
materializadas em textos, imagens e monumentos, atribuíveis de um
modo ou de outro a Nassau, de que modo elas denunciavam um
confronto pertinaz entre diversas culturas européias.
Um conflito nada surdo aos seus contemporâneos, pertencentes às
comunidades que coexistiam na capital do Brasil holandês, num
convívio que está longe de ser explicado em termos de adjetivos como
“urbanidade”, apesar da “nostalgia nassoviana” ainda perceptível
correntemente em Pernambuco12. E, se descobrir, para os holandeses
implicava uma produção comprovadora de sua expansão, um dos
suportes mais impactantes consistiu no registro de suas conquistas por
meio de pinturas.
A paisagem estava a afirmar-se como gênero pictórico naquele
momento, cindida entre os desejos de enclausurar um estado virginal
da natureza e o de remeter a uma natureza já humanamente marcada13.
E uma das primeiras a ser codificada seria exatamente a paisagem
“nordestina”, em especial pelas mãos de Frans Post, instituindo uma
escritura da ação holandesa sobre a terra (quase) intocada. Entre os
vulgarizadores das convenções desse Nordeste que incorpora, inclusive,
elementos exóticos das Índias e da África, encontram-se gravadores e
artífices de toda a Europa, como os tapeceiros de Gobelins14.
A cartografia holandesa sobre o litoral brasileiro já estava em franco
desenvolvimento antes da invasão de 1630, especialmente com a
publicação de A Tocha da Navegação pelo experiente piloto Dierick Ruiters
que, após sua captura em 1624, perambulara trinta meses por
Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro 15 . Além dos roteiros de
cosmógrafos lusos, como Manoel de Figueiredo (editados desde 1608),
mantinham-se atualizados pelas informações dos residentes.
Na medida em que se consolidava a conquista, as plantas-baixas
portuárias cederam lugar aos planos de horizontes urbanos, com
silhuetas descritivas, realizando percurso inverso à representação

73
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

européia das cidades16. Isso se deve ao fato de que os primeiros


especialistas da imagética presentes nas áreas colonizadas eram os
navegadores e os engenheiros militares, e não o artista, e ambos
trabalham com base na cartografia e não no prospecto. Integrando a
perspectiva vol d’oiseau, a interpretação visual dos trópicos in loco
transpõe-se, enfim, aos panoramas abrangentes das capitanias, já
dotados de expressividade artística autônoma, culminando na série de
gravuras encomendadas a Marcgraf e reunidas no mapa-mural Brasilia
qua parte paret Belgis (1647) pelo impressor Johan Blaeu.
Atribuídas a Frans Post, suas belíssimas vinhetas registram os sucessos
da vida nas capitanias do Norte situadas entre os rios São Francisco e
Ceará-Mirim, com cenas do cotidiano, da economia e da guerra, além
da diversidade intrínseca da sua natureza. A par do delineamento
notavelmente detalhado do contorno litorâneo e das vias fluviais de
penetração ao interior, denota-se um esforço no sentido de definir
espaços e tipificar os grupos que compunham sua população, como
legendas que são etiquetadas às diversas regiões conquistadas.
Editadas em seu aspecto original no História dos feitos recentemente
praticados..., essas gravuras fecharam o que Barlaeus argumentava, com
veracidade, ser um levantamento sem igual nas Américas e na Europa17.
Essas figurações ultrapassariam o registro simplesmente descritivo e
carregavam-se de estudado simbolismo em determinados trechos do
livro. Barlaeus estava claramente apto a registrar a gesta nassoviana em
prosa, mas o reconhecido latinista iniciou seu texto explicitando em
verso as alegorias contidas no brasão central do falso rosto do livro
(figura 2):
“A virgem pernambucana mira os seus olhinhos e, graciosa,
ergue uma mão, a qual segura a cana.
Próxima, a fecunda Itamaracá exibe os seus nectários rácimos e os
magníficos dons do próprio solo.
Junto a ela, a Paraíba põe nas formas o dulcíssimo açúcar e o torna
grato aos povos.
O avestruz, errante habitador do Rio Grande, foge correndo, e falsamente
imagina que se lhe dá de comer.”18

74
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

Figura 2 - Falso rosto da História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil, de 1647 (Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

75
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Essa composição, auto-explicativa - porque geograficamente


naturalizante - em que os atributos da fertilidade implicam as propensões
dos homens e das espécimes, transforma-se ao descrever as áreas
fronteiriças mais ao Sul, onde ainda resistiam os portugueses.
Prepondera uma visão quase geopolítica, assimilável à História com
suas guerras estremecendo a placidez da paisagem:
“Destarte se ufana o Novo Mundo com os brasões batavos e, sob o
governo de Maurício, floresce-lhe a gleba feraz. As gentes que a terra
distingue defende-as um só Chefe. E a Nau de Marte sulca as águas
ocidentais, fazendo conhecidos os seus mercantes e os senhores do mar.
Em frente pasma-se o sol ante as armas, ainda que violentas.
Tu, Sergipe, pões em face de tuas moradas as flamas de Febo, e sozinho
queres ser chamado de el Rei.
Teus são, Iguaraçú, os caranguejos.
A ti, Porto Calvo, aprazem os cimos: ali estás sobranceiro, ó tu, que
deves ser temido daquelas cumeadas.
O gênero escamígero mergulha-se nas rédias das Alagoas.
Contra Serinhaém relincha o belicoso corcel. Crava a âncora na areia os
dentes entravados e quer se nos dêem alí reinos diuturnos.”
Escrito num momento ainda favorável do domínio holandês do
Nordeste brasileiro, a alternância de imagens aprazíveis e conflituosas,
quase um paralelo entre os campos da natureza e o da ação humana,
sugere que a disjunção seria resolvida num plano superior pela
materialização do poder e prosperidade dos batavos nesse recanto do
Ocidente americano. Ainda mais qualificada pela presença de um
representante de casa nobilitada à testa do empreendimento de uma
companhia de comércio.
Lançados no mesmo ano pelo mesmo editor, tanto o mapa-mural
quanto o livro alcançaram sucesso imediato nas Províncias Unidas, e
seriam reimpressos nas décadas seguintes. Entretanto, dentre as heranças
preservadas do “tempo dos flamengos”, talvez sejam os artefatos
etnográficos que despertam maior admiração na atualidade.
Com olhos de antiquários pós-renascentistas, os holandeses
recolheram peças da cultura material dos diferentes grupos indígenas e
exemplares representativos da fauna e flora nativas, preparando a

76
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

primeira catalogação extensa e graficamente realista dos seres vivos


das Américas19. Entre esses esforços avulta, além das hiperrealistas
naturezas-mortas e dos fiéis retratos alegóricos das etnias existentes no
Brasil pintados por Albert Eckhout, a organização em doze volumes
da Historia Naturalis Brasiliae, por Marcgraf e Piso (1648).
Portanto, mais do que fornecer informações úteis ou imagens
agradáveis, esse escrutínio de roteiros, paisagens e seres era parte
integrante e essencial do processo de reivindicação da conquista. E em
mais de um sentido, pode-se afirmar que o Palácio das Duas Torres
era o pivô que, mais do que guardar e explicitar esse esforço descritivo,
o sancionava.
Nassau chegou a construir dois palácios. Um deles foi o da Boa
Vista, para onde se recolhia privadamente e que estava voltado para o
Capibaribe, facilitando a passagem à planície alagadiça. Mas o que
mais correspondia à concepção de uma residenz de aristocrata germânico
era o outro, simultaneamente centro de despachos e recepções elegantes.
Era no entorno desse Palácio que espécimes enviadas de todo o
Nordeste brasileiro, da África e da Ásia eram aclimatados no biotério.
Esse jardim exótico era espelhado pelas coleções de peças expostas
no seu interior, nos moldes dos gabinetes seiscentistas de curiosidades.
O acervo complementava-se pelas obras de artistas e sábios vindos na
entourage de Nassau (figura 3).
Aparato culminante da Cidade Maurícia pensada por Pieter Post, o
Vrijburgh seria traduzido não como Palácio da Liberdade pelos locais,
mas como o Palácio das Duas Torres. Uma das torres abrigava o
observatório astronômico de Willem Piso (no qual o Conde
acompanhou o eclipse solar de 1640) e a outra servia de farol e telégrafo
ótico, unidas por uma galeria que encimava a arcada sobre o corpo
central (figura 4).

77
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Figura 3 - Johan Blaeu, “Friburgum”, in Gaspar Barlaeus, História dos feitos


recentemente praticados durante oito anos no Brasil, de 1647
(Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

Figura 4 - Palácio Vrijburg ou “das Duas Torres”. Detalhe sobre gravura de Frans
Post, em História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no Brasil, de 1647
(Acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro).

78
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

Mas sua expressão arquitetônica mais evidente tinha, entretanto,


outros usos além da opulência estética, como depreende-se do relato
de um residente, quase quarenta anos depois:
“No centro do jardim erguia-se a residência do Conde (...). Edifício de
aspecto nobre que, ao que se diz, custou 600.000 florins. Oferecia uma
perspectiva admirável, tanto de mar como de terra e suas duas torres
podiam ser vistas do mar a cinco ou seis milhas de distância, servindo
mesmo de baliza aos marinheiros.” 20
O palácio de uma autoridade da Companhia das Índias Ocidentais
era o novo sinalizador para os viajantes. Não deixa de ser sintomático
que, no notório episódio em que uma multidão foi atraída para a
inauguração da ponte sobre o Capibaribe a pretexto de fazer um boi
voar, o Conde tenha eleito as torres do Vriburg como cenário21.
Sua presença conspícua, longe de dever-se ao capricho, chamava a
atenção de todos para a autoridade em nome da qual havia sido
construído. Numa questão delicada para os holandeses, como a atribuição
dos direitos de posse, contava-se em mais de uma maneira com o
prestígio de Maurício de Nassau.
Se, por um lado, o próprio Conde era oficialmente apenas o
representante maior da Companhia no Brasil holandês, Duas Torres
era como um brasão da nova coletividade que se formava, insígnia
coletiva na tradição medieval citadina dos Países Baixos, tornando visível
não só para todos os habitantes da terra, como desde o mar, qual era
o grupo da comunidade que detinha a posse, marco crítico numa zona
colonial infestada por culturas concorrentes e, mais do que isto, hostis.
A presença de Nassau, materializada plenamente na sua Residenz,
articula uma dimensão interna (propiciar a coesão dos recém-chegados)
a outra externa; sua preeminência era assumida inclusive pelos luso-
brasileiros de Pernambuco, que o chamavam por “príncipe”, segundo
o testemunho do frei Manuel Calado22.
O Palácio nucleia a Cidade Maurícia, nome de prestígio que Nassau
recebera de seu tio-avô, líder da guerra pela Independência das
Províncias Unidas. Situada não em Olinda, eixo simbólico do mando
ibérico em Pernambuco (e por isto incendiada e abandonada após a
invasão), nem tampouco no dorp (aldeia, vila, como era comumente

79
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

chamado o Recife), a Maurits Stadt fixava um topônimo flamengo


para a cidade-sede, o que conferia uma chancela importante no processo
de registro geográfico pelos holandeses.
Descrever minuciosamente a terra e representá-la graficamente num
mapa, localizando-a precisamente, denominar os marcos terrestres mais
visíveis na paisagem em sua língua e disseminá-los publicamente através
de impressos, demonstrando a presença e o poderio universal de uma
confederação mercantil que transforma os direitos de propriedade
(garantidos por estatutos) em posse efetiva através das ações. Da
descoberta à colonização, eis o que significa conquistar, no sentido
holandês do termo.
Em suma, recinto preser vado e preser vador dos sinais
imprescindíveis da posse, não deixa de ser interessante (e sintomático)
que o Palácio das Duas Torres também fosse... uma baliza. Retomando
as palavras de Barlaeus, ecoadas por Nieuhof: “De cima delas
descortinam-se, de um lado, as planícies do continente e, de outro, a
vastidão dos mares, com os navios aparecendo desde longe”23. Avistado
à distância e representado no eixo central das gravuras e mapas da
capital do Brasil neerlandês, o palácio de uma autoridade da
Companhia das Índias Ocidentais era o novo sinalizador.
Como num espelho invertido, é sintomático que a Cruz do Patrão
tenha sido silenciada e não esteja assinalada em nenhuma das
representações batavas do sítio do Recife, exceto naquelas que
apresentam sua tomada (figura 5). Teria sido destruída logo após a
ocupação, antecipando o desmoronamento de Olinda, cidade sede
do domínio ibérico na principal área açucareira da América?
Mas isso parece ter sido, apenas, a primeira morte da Cruz do
Patrão. Em data incerta, mas antes de 1739, a cruz de madeira já havia
dado lugar a um pilar de alvenaria, bem mais deslocado para o norte
do istmo, onde atualmente repousa (figura 6).
Marcos de posse definem-se diferentemente, e os portugueses o
fizeram num sentido muito mais implícito do que os batavos, inclusive
ao reconstruir a Cruz do Patrão. Nela não há qualquer inscrição que a
represente como símbolo de autoridade terrena, qualquer propaganda
que a identifique a algum rei. Mesmo a cruz que a encima não parece

80
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

relacionar-se univocamente a um signo religioso, dado que também


designa a constelação do Cruzeiro do Sul, orientação universal no
hemisfério austral e testemunho impassível dos saberes de marinharia
dos portugueses.

Figura 5 - Detalhe de “Descrição da vila de Olinda no país de Pernambuco”.


Gravura de Johan Blaeu [1643]24.

Figura 6 - Cruz do Patrão em princípios do século XVIII. Diogo da Silveira


Veloso, “Planta do Projeto de fortificação da vila do Recife de Pernambuco”25.

Como seus antepassados quatrocentistas, esse padrão é apenas um


suporte material que alerta aqueles que viajaram pelo oceano da
precedência de outros navegantes, dá-lhes uma indicação de onde se
encontram (como nos radiofaróis atuais) e lhes encaminham roteiros
(seja para a própria barra, seja para outros portos).
Este marco, portanto, afirma-se apenas na medida em que se refere
a outros, numa grade que ia crescendo na proporção em que as próprias
“descobertas” iam se fazendo, terminando à volta do século XVI por

81
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

tomar um contorno global. Cada um desses padrões, inclusive ao


agregar novos conhecimentos, só tinha validade enquanto suportes de
uma concepção metódica de entendimento e manipulação do espaço26.
Todos eram balizas, tal como alfinetes espetados nas esferas, para
base das operações de estima navegacional, seja na escala local ou
regional, seja numa escala mundial. Estão longe do simples
reconhecimento da fisionomia costeira, uso mediterrânico ainda muito
difundido entre os espanhóis em 1500, tal como indica a denominação
dada ao Cabo de Santo Agostinho (Pernambuco) como “Rostro
Hermoso”27.
Na verdade, para os portugueses envolvidos na constituição dos
distantes pontos de apoio de um império mercantil, a determinação
de um ponto qualquer na esfera terrestre e seu correspondente registro
com exatidão, relativo a uma carta celeste, eram equivalentes, ou melhor,
eram duas operações do ato de legitimação de sua posse. Pedro Nunes
assim o adverte em seu Tratado em Defensão da Carta de Marear [1537],
quando indica a precedência portuguesa: “novas ilhas, novas terras,
novos mares, novos povos; e acima de tudo, um novo céu e novas
estrelas”28.
Como tal, diversamente de achamentos episódicos de massas terrestres
desconhecidas, os portugueses entenderam as descobertas como fruto
de esforços sistemáticos e atribuíveis ao domínio de técnicas próprias.
Embora não fosse evidente quer para os indígenas, quer para os seus
concorrentes europeus, que a fixação descritiva dos novos territórios
numa grade imaginária permitisse reivindicar per si o acesso exclusivo à
sua exploração, essa justificativa era perfeitamente convincente para
aqueles que compartilhavam a cultura dos astrônomos e monarcas
lusitanos que as emitiam e sancionavam.
Entretanto, cada povo europeu, de acordo com sua tradição legal,
suas heranças culturais e suas experiências na incorporação de novos
territórios, desenvolveria padrões de legitimação das conquistas que se
traduziram em modelos discursivos que descreviam o modo pelos
quais grupos de colonos eram investidos de sua posse, em nome de
um rei ou de sua coletividade de origem. Esses modelos assumiram
formatos bem específicos, atendendo à diversidade de exigências para
legitimação e incorporavam de forma oblíqua os rituais considerados

82
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

indispensáveis em cada um desses horizontes culturais, expressos em


cerimoniais e cenários (como os requerimientos espanhóis ou a demarcação
de quintais pelos ingleses)29.
Essas atitudes visavam, antes de mais nada, aos seus compatriotas,
que as assumiram ou criticaram desde o interior de um quadro de
referências próprio, que tendia a se cristalizar exatamente a partir desse
período inicial das colonizações do Novo Mundo30. A constituição de
monarquias e coletividades delimitadas nacionalmente, a correspondente
institucionalização das práticas legais dos corpos sociais e a unificação
de sentidos dos vocábulos por meio de equivalências fechadas que a
dicionarização dos falares vernáculos ensejou perfazem passos
importantes nesse percurso.
Portanto, além de existir o (óbvio) descompasso entre as culturas
nativas da América e as européias, pressuposto subjacente a boa parte
do que se tem escrito em torno da implantação do processo de
colonização, haveria que se levar em conta as disjunções e as trocas
culturais propiciadas pelo desenvolvimento das diferentes matrizes
culturais européias no período no qual ocorreu a colonização moderna,
especialmente em seu período inicial.
Oposições como as que ocorreram no Recife nassoviano
demonstram mais que uma incapacidade de holandeses ou portugueses
de reconhecerem atribuições de posse que não estivessem no interior
de seus próprios quadros de referência mentais. Como sublinha Patrícia
Seed, não se deve homogeneizar o colonialismo como um único
projeto europeu indiferenciado31.
Desse modo, a Cruz do Patrão e o Palácio das Duas Torres
significam, enquanto balizas, uma continuidade na constituição da praça
mercantil e administrativa que foi o Recife colonial. Mas são marcos
de posse de projetos colonizadores diferenciados, duas tradições
culturais que, embora próximas, pois assentadas no mar, produzem
dinâmicas sociais (e memórias urbanas) distintas.

***

83
ACÁCIO JOSÉ LOPES CATARINO

Notas
1
Afonso Luiz Piloto; Bento Teixeira, Naufrágio & Prosopopea [1601], organizado
por Luzilá Ferreira (Recife: Ed. UFPE, 2001), p. 97.
2
Tadeu Rocha, Roteiros do Recife (3. ed., Recife: Banco Comércio e Indústria de
Pernambuco, 1967), p. 28.
3
Louis de Tollenare, Notas Dominicais [1816-17] (Recife: Secretaria de Educação e
Cultura de Pernambuco, 1978), p. 19.
4
G. Freyre; T. Maia, Recife & Olinda (2. ed., Recife: FUNDAJ; São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1978), p. 8.
5
Transcrito de <http://www.revista.cultura.pe.gov.br/novembro_2000/
trad_nov_texto.html>, acesso em 25 ago. 2005.
6
Waldemar Valente, Antecipação de Pernambuco no movimento da Independência:
testemunho de uma inglesa (Recife: Instituto Joaquim Nabuco, 1974), p. 129.
7
Patricia Seed, Cerimônias de posse (São Paulo: Editora da Unesp, 1999), p. 210.
8
Gaspar Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados durante oito anos no
Brasil sob o governo do ilustríssimo João Maurício [1647] (Belo Horizonte: Itatiaia;
São Paulo: Edusp, 1974), p. 5.
9
Seed, Cerimônias de posse, p. 238, nota 2.
10
Seed, Cerimônias de posse, p. 220.
11
Sobre a relação entre as duas, Evaldo Cabral de Mello, Rubro Veio (2. ed., Rio
de Janeiro: Topbooks, 1997), especialmente o capítulo “Inventário da
memória”, p. 31 ss.
12
“Nostalgia nassoviana” é o título do capítulo que trata da recuperação da
figura de Nassau pela historiografia oitocentista em Pernambuco em Mello,
Rubro Veio, p. 329 ss.
13
Luis Oramas, “Frans Post, invenção e ‘aura’ da paisagem” in Paulo Herkenhoff,
org., O Brasil e os Holandeses (1630-1654) (Rio de Janeiro: Sextante Artes, 1999),
p. 218.
14
Ao serviço de Luís XIV, presenteado com cartazes para matrizes de tapetes
pelo próprio Conde em 1678. Ana Belluzzo, coord., O Brasil dos viajantes (São
Paulo: Metalivros, 1994), p. 20. José Leite, “Período Nassau” in Arte no Brasil,
vol. I (São Paulo: Editora Abril, 1979), p. 77-81.
15
Max Guedes, “A Cartografia holandesa do Brasil” in Herkenhoff, org., O
Brasil e os Holandeses, p. 70.
16
Murilo Marx, “Olhando por cima e de frente”, Revista USP, n. 30 (1996), p.
174.
17
Guedes, “A Cartografia holandesa do Brasil”, p. 84.

84
ENTRE A CRUZ DO PATRÃO E O PALÁCIO DA LIBERDADE

18
Poema de abertura na edição traduzida por Cláudio Brandão [1974] do texto
de Gaspar Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados, p. V.
19
Berta Ribeiro; Lúcia Van Velthem, “Coleções Etnográficas” in Manuela da
Cunha, org., História dos Índios no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras/
FAPESP, 1992), p. 103.
20
Johanes Nieuhof, Memorável viagem marítima e terrestre ao Brasil [1682] (Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981), p. 45.
21
Manoel Calado, O Valeroso Lucideno, vol. I (4. ed., Recife: Fundarpe, 1985), p.
243.
22
Calado, O Valeroso Lucideno, vol. I, p. 101, p. 127, entre outras citações.
23
Barlaeus, História dos feitos recentemente praticados, p. 151-2.
24
Reproduzida em Leonardo Silva, Holandeses em Pernambuco (Recife: L. Dantas
Silva/ Instituto Ricardo Brennand, 2005), p. 28.
25
Desenho de 1739. Original na Biblioteca do Exército/ Rio de Janeiro,
reproduzido em Nestor Reis Filho, Imagens de vilas e cidades do Brasil Colonial
(CD-ROM, São Paulo, Edusp, 2001).
26
Seed, Cerimônias de posse, p. 143 ss.
27
Na atribuição do cronista Francisco Pereira da Costa, Anais Pernambucanos, vol.
VII (2. ed., Recife: FUNDARPE, 1984), p. 325. Também denominado de
“Cabo Fermoso”, em mapa de Turim datado de 1523.
28
Citado por Seed, Cerimônias de posse, p. 143.
29
Respectivamente: declarações prévias de intenções, herdadas da jihad sob a
tradição malikita da Ibéria islâmica; antigas associações entre a jardinagem
(husbandry) e o ato pelo qual o provedor (husband) define sua capacidade de
suster autonomamente uma família. Seed, Cerimônias de posse, p. 13-4.
30
Benedict Anderson, Nação e consciência nacional (São Paulo: Ática, 1989), p. 48.
31
Seed, Cerimônias de posse, p. 26.

85
86
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS NA
PROVEDORIA DA FAZENDA REAL
DA CAPITANIA DA PARAÍBA (1647-1733)

Mozart Vergetti de Menezes

omo um dos palcos da guerra de restauração contra o domínio


holandês, a Capitania da Paraíba encontrava-se, em 1655,
devastada. Nas palavras do seu governador, João Fernandes
Vieira, um dos principais líderes da vitoriosa força luso-brasileira e
proprietário de vários engenhos na capitania, a miséria era tanta que
“não ficara pedra sobre pedra”1. A tática de terra arrasada empreendida
contra o invasor e que fez ruir prédios e toda a estrutura produtiva da
capitania 2, deveria agora ser refeita. Paralelamente a isso, urgia a
remontagem do aparelho administrativo.
Para os restauradores da Paraíba, que alardeavam terem feito a
guerra, por muitos anos, às suas custas, os cargos da administração
deveriam lhes pertencer como um direito natural de conquista. Os
agraciados com os escalões da administração paraibana: na Justiça -
exceto o cargo de ouvidor3 -, na Milícia e na Fazenda, após o período
da restauração holandesa, foram providos como prêmio, pelo
reconhecimento ao sangue derramado em nome da Coroa e de Sua
Majestade. Em um trecho do Sermão da Visitação de Nossa Senhora,
pregado pelo padre Antônio Vieira no Hospital da Misericórdia da
Bahia, pela chegada àquela cidade do Marquês de Montalvão, vice-rei
do Brasil, a recomendação era dada:
“Necessário, é que haja prêmios para que haja soldados; e que os prêmios
entrem pela porta do merecimento; dêem-se pelo sangue derramado, e
não ao herdado somente; dêem-se ao valor e não à valia.” 4
Passados alguns anos, antigos soldados ajustaram contas com a
Coroa de olho nas gratificações que consideravam merecer pelos anos
de guerra. Milhares de cartas de serviço singraram o Atlântico em direção
ao Reino, relatando feitos heróicos dos interessados na partilha dos
ofícios que cobririam a administração na Paraíba. Possuir um cargo no

87
MOZART VERGETTI DE MENEZES

ultramar simbolizava, quer fosse ou não proprietário de engenhos e


escravos, uma marca de nobreza que infundia ao titular, no dizer de
Raimundo Faoro, o “acatamento aristocrático.” 5 A Fazenda Real paraibana
se reiniciava, portanto, como um espólio da conquista.
Mesmo que a Guerra da Restauração do Brasil ainda se estendesse até
1654 no território pernambucano, na Paraíba, desde exatos nove anos
antes, praticamente fora consolidada a expulsão do inimigo, reduzindo
o efetivo invasor a alguns soldados isolados nas fortalezas do Cabedelo
e Santo Antônio. Diante desse quadro, entregou-se El-Rei, D. João IV,
ao exercício da sua magnanimidade, distribuindo para os restauradores
da Paraíba os cargos da administração. Assim, considerando que o
acúmulo de cargos evitava a dispersão de funções e garantia uma melhor
remuneração para os agraciados, Sua Majestade doou para o capitão
Manuel Queiroz de Siqueira, em 1647, o ofício de Provedor da Fazenda
Real e os que mais lhe fossem anexos, como os ofícios de Contador e
Provedor dos Defuntos e Ausentes 6 e, em 1653, passou alvará para o
capitão Lopo Curado Garro - um dos três comandantes das tropas na
Paraíba -, garantindo a propriedade da escrivania da Fazenda,
Almoxarifado e Alfândega, como dote para quem casasse com sua
filha7. Por outro lado, quando consolidada a restauração em todo
território das capitanias do Norte, D. João IV ampliou os privilégios
nas doações e concedeu ao mestre de campo e comandante da
restauração, general Francisco Barreto de Menezes8, em janeiro de 1654,
a faculdade do provimento dos ofícios da Justiça e Fazenda, com a
vitaliciedade aos oficiais e soldados que serviram na guerra.9 Com esta
medida, o monarca dividia com o mestre de campo o poder do
exercício generoso de conceder e doar, em seu nome, as presas da guerra.
Francisco Barreto de Menezes encontrou no espólio da Fazenda
paraibana o ofício de almoxarife, que doou ao soldado e capitão Júlio
Farinha10, em 1654, e dois anos depois, curiosamente, tornou a doar o
mesmo ofício de escrivão da Provedoria da Fazenda Real, que o rei já
havia doado para Lopo Garro, e os mais a ele anexos, para Bento
Bandeira de Melo11. É provável que, anos antes, o mestre de campo
tivesse conhecido a Lopo Curado Garro, pois, além de provavelmente
terem pelejado, lado a lado, em diversas batalhas contra os holandeses,
Curado Garro era, naquela época, homenageado como governador

88
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

na Paraíba e como um dos principais restauradores nesta capitania. Da


mesma forma, Barreto de Menezes não devia ignorar o fato de Curado
Garro ser cunhado daquele que, futuramente, seria apresentado pela
história como seu grande dissabor, André Vidal de Negreiros12. Neste
sentido, é crível asseverar que os conhecidos conflitos de jurisdição
envolvendo Vidal de Negreiros, quando governou Pernambuco, e
Barreto de Menezes, quando chegou no topo da hierarquia no governo
geral da Bahia13, tenham sua origem na repartição dos ofícios que
vagaram quando da reconquista do território aos batavos.
Frise-se, portanto, que essa dupla doação da escrivania da Fazenda
feitas tanto pelo rei quanto pelo mestre de campo Barreto de Menezes,
resultou em dois momentos bastante significativos para a história da
Fazenda da Paraíba. Primeiro, por gerar uma extraordinária contenda
jurídica entre os dois agraciados, Lopo Curado Garro e Bento Bandeira
de Melo, que consumiu dezenas de anos e muitas horas de idas e vindas,
ao ultramar, das mais diversas peças documentais. Segundo, por ter
desencadeado a possibilidade de controle, tanto da escrivania como da
cabeça da Provedoria da Fazenda paraibana, por duas famílias de antigos
colonos povoadores da Paraíba - os Bandeira de Melo, que se tornaram
senhores da escrivania da Fazenda, Almoxarifado e Alfândega, por
todo o tempo que durou a Provedoria da Paraíba, 1647 - 1798; e os
Quaresma Dourado, que controlaram a cabeça do órgão por 77 anos;
período este que corresponde ao interstício que vai da doação do ofício
de provedor da Fazenda a Manuel Queiroz de Siqueira, em 1647, até o
desfecho da administração de Salvador Dourado, provedor proprietário
da Fazenda paraibana ao longo de cinqüenta anos (1683 -1733).
No centro dos enlaces e negociações para a manutenção do controle
sobre o órgão fazendário por essas famílias, figuras como o próprio
Bento Bandeira de Melo, agindo localmente com sua parentela e Feliciano
Dourado, que estendeu o raio dessa política ao Conselho Ultramarino,
aonde era conselheiro, engendraram um circuito de contatos que
ultrapassou as franjas litorâneas da Paraíba. Para a efetivação disso, foi
colocada em prática uma gama de ações que fez aflorar redes de
solidariedade por dentro e fora do circuito do ambiente formal do
poder que, em última instância, influiu em assuntos diversos, como
indicar quem deveria assumir este ou aquele cargo ou garantir certas

89
MOZART VERGETTI DE MENEZES

regalias e privilégios para determinados indivíduos ou grupos. Neste


ambiente, onde se desconheciam os valores do mérito técnico, o respeito
às relações de amizade, parentesco, honra e, principalmente de serviço, se
revestiam em um valor incomensurável na definição dos critérios para
o agraciamento de benefícios e sinecuras14.
Assim, o longo período que se estendeu da doação do ofício de
provedor da Fazenda a Manuel Queiroz de Siqueira, em 1647, até o
desfecho da administração de Salvador Dourado, em 1733, quando
ocorreu o fechamento da gestão do último provedor proprietário da
Provedoria da Fazenda Real da Paraíba, se reveste numa importância
capital para a história da administração fazendária colonial. Tal período
tem importância primeiramente, por nele se dar à trajetória de
negociações e conquistas, por alguns personagens pertencentes a famílias
de antigos colonos da Paraíba, com o fim de adquirirem um lugar no
corpo dos ofícios do ultramar. Além disso, serve, também, para mostrar
as maneiras pelas quais os beneficiados teceram na fissura aberta entre as
ordens da Coroa e os ditames do costume local, suas estratégias para tirarem
vantagem da moldura institucional patrimonialista.
Laços de Sangue e Alianças
O primeiro provedor da Provedoria da Fazenda Real da Paraíba,
Miguel de Siqueira, tomou assento em 1647, pela vontade de Dom
João IV e ficou no cargo até falecer, por volta de 1664. Dois anos
após, atendendo a uma solicitação vinda da Paraíba, D. Afonso VI fez
mercê da propriedade do dito ofício para o também restaurador Luís
Quaresma.
Vindo ao Brasil por conta da guerra, Luís Quaresma, natural da
vila de Santarém, Portugal, combateu como soldado os holandeses
na Bahia, junto ao terço do conde da Torre. Depois de ter debelado o
inimigo naquelas bandas, foi com o mestre de campo André Vidal de
Negreiros para Pernambuco e Paraíba, em 1645, onde se casou com
Dona Maria Dourado de Bulhões. As agruras das batalhas contra o
invasor em Pernambuco, entretanto, deixaram sérias marcas em Luís
Quaresma. Em um requerimento feito ao rei, em 1665, Dona Maria
Dourado de Bulhões já relatava o perigo pelo qual passava o marido
e, por isso mesmo, solicitava que se lhe fizesse a propriedade da

90
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

Provedoria da Fazenda Real da Paraíba pelo seu primogênito, Salvador


Quaresma Dourado 15 . À primeira vista, não havia nada de
extraordinário no alcance desta mercê. Prática corrente, cabia ao rei
agraciar seus vassalos através de sua magnificência, na medida daquilo
que, em retribuição, achasse por bem contemplar os esforços dos
soldados 16. Entretanto, pelo que conhecemos dos feitos de Luís
Quaresma, seus serviços apenas o capacitavam à outorga do posto de
capitão, “patente que depois da guerra se praticou com vários outros oficiais”17.
Desta forma, o capitão precisava possuir um catalisador no seu costado,
que favorecesse o alcance da graça. Não resta dúvida que, neste caso,
as recomendações do padre Antônio Vieira, para que se desse mais pelo
sangue derramado, e não ao herdado; mais ao valor e não à valia, não foi de
todo ouvido, pois valeu mais o peso da linhagem da mulher que as
feridas do marido. Dona Maria Dourado de Bulhões era irmã carnal
de Feliciano Dourado e unida por relações de alianças a Bento Bandeira
de Melo, de quem foi irmã colaça18.
Os Bandeira de Melo, por outro lado, entraram na Colônia por
volta de 1532 quando os dois irmãos Pedro e Felipe Bandeira de Melo,
“obrigados por razões de parentesco que tinham com Duarte Coelho, primeiro
donatário da dita capitania, o acompanharam quando veio povoar Pernambuco”19.
Portanto, Bento, o escrivão da Fazenda descendia da quarta geração do
costado de Pedro Bandeira de Melo. Os Dourado, por sua vez,
descendiam todos do Dr. Gaspar Fernandes Dourado que, em 1611,
apareceu na Paraíba como juiz dos Órfãos, provindo de Portalegre,
Portugal.20 Seu filho, Feliciano Dourado, “paraibano de nascença que, apesar
de mazombo, fizera uma carreira triunfante, primeiro nas embaixadas dos Países
Baixos e na França, depois nos conselhos de Sua Majestade”21, foi um dos homens
fortes no Reino e nunca titubeou nos apoios à sua parentela. Desta
forma, quando Dona Maria Dourado de Bulhões encaminhou seu
requerimento ao rei, em nome dos serviços prestados pelo marido,
pretendendo a cabeça da provedoria local, estava não apenas bem
informada sobre a vacância do posto, mas também respaldada pela
mão de um influente conselheiro. Ela contava, então, com a proteção
de Feliciano Dourado, junto à Coroa, e com as informações de Bento
Bandeira de Melo que, apesar de conhecedor das coisas da Fazenda da
Paraíba, ainda tinha um grande desafio a superar para ocupar

91
MOZART VERGETTI DE MENEZES

definitivamente a escrivania do órgão, vencer as batalhas judiciais con-


tra o também provido Lopo Garro.
As Escrivanias: Garro ou Bandeira?
Como falamos anteriormente, o ofício de escrivão da Fazenda
Real da Paraíba e os que lhe andavam juntos, como a escrivania da
Alfândega e Almoxarifado, foi doado tanto pelo rei, em 1653, a Lopo
Curado Garro, como dote para quem casasse com sua filha, como
também, pelo mestre de campo Francisco Barreto de Menezes, a Bento
Bandeira de Melo, em 165622.
A escrivania da Fazenda, feita em doação como dote para a filha
de Lopo Curado Garro, não excluía o direito de assentar ele próprio
como escrivão ou de delegar o poder a um serventuário que lhe pagasse
a terça parte daquilo que rendesse o ofício, até que a filha casasse23.
Contudo, como este ofício da escrivania da Paraíba não fora o almejado
- afinal, o restaurador Lopo Garro pretendia a escrivania da Fazenda
de Pernambuco24 - talvez ele tenha deixado de tomar os devidos
cuidados com a mercê conquistada. Mais atento, Bento Bandeira, assim
que alcançou a graça feita pelo mestre de campo, assumiu de pronto a
escrivania em 1656 e deve ter trabalhado durante sete anos consecutivos,
sem atropelos de nenhuma sorte, juntamente com Manuel de Siqueira
e Júlio Farinha, na reorganização da Fazenda, Almoxarifado e Alfândega
na Paraíba25. Mas este período de calmaria teve fim em 1663, quando
finalmente Lopo Garro voltou-se contra Bento Bandeira na busca da
validação da antiga doação que lhe fora feita por D. João IV.
Neste sentido, conseguindo Lopo Garro levantar “sinistras informações
envolvendo Bento Bandeira em negócios escusos” 26, remeteu inúmeros
documentos tanto para o Conselho Ultramarino como para o Governo
Geral, com fortes acusações ao então escrivão da Fazenda. Por uma
razão qualquer, a maioria dos documentos enviados ao Conselho veio
a se perder nas estantes do órgão27. Mas os que conseguiram chegar às mãos
do vice-rei do Brasil foram suficientes para que o Conde de Óbidos
afastasse Bento Bandeira da escrivania da Fazenda28 e provesse Lopo
Garro nos ofícios.
Por dois anos, Lopo Garro ficou na escrivania da Fazenda. Porém,
em 1665, Cosme de Barros Marinho, morador na Paraíba, contraiu

92
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

matrimônio com Maria Ramos Curado (filha de Lopo Garro) e, sem


perda de tempo, enviou para o rei D. Afonso VI o Alvará de Lembrança,
reivindicando a mercê de ofício em carta de propriedade da escrivania
da Fazenda e os mais a ele anexos29. A causa dificilmente tomaria outro
rumo além do reconhecimento dos direitos do genro beneficiário,
uma vez que se cumpriria a ordem passada em 1653.
Mas, como todos os documentos deveriam passar necessariamente
pelo Conselho Ultramarino - órgão este, ao que parece, não muito
afeito ao sigilo -, Bento Bandeira soube do processo de Cosme Marinho
antes de chegar à Chancelaria. De pronto encaminhamento, Bento opôs
alguns embargos ao processo. Primeiramente alegou a ilegitimidade
do mesmo por sub-reptício - isto é, o processo teria sido obtido de
forma fraudulenta, pois o encaminhamento de Currado Garro ao
vice-rei fora equivocado. Em função disso, reivindicou a seu favor,
sentença de ab-rogação - ou seja, fazer cessar a obrigatoriedade do
alvará em favor de Curado Garro. Por fim, requereu sentença de sub-
rogação - isto é, transferir para ele, Bento, todas as qualidades jurídicas
que encerrava a doação do ofício de escrivão da Fazenda, Alfândega e
Almoxarifado 30.
No retorno deste processo ao Conselho Ultramarino para realização
da consulta ao rei, em 16 de abril de 166631, os conselheiros, por
unanimidade, preferiram modificar um pouco as coisas: readmitir Bento
Bandeira na escrivania da alfândega e almoxarifado e manter Cosme
Marinho apenas como escrivão da Fazenda, já que o alvará, segundo
diziam, não fazia menção aos outros ofícios. Todavia, como a matéria
era bastante controversa e contrária ao que rezava a tradição, pois,
afinal, esses ofícios “sempre andavam todos juntos”, o Conselho resolveu,
também, encaminhar o pleito para os juizes dos Feitos da Coroa, “onde se
julgará a favor da parte que tiver justiça”32.
Esta situação se estendeu por vinte e três anos, de 1666, ano do
parecer, até 1689, sem que houvesse sentença. Durante todo este tempo,
Bento e Marinho viveram em litígio, disputando o ofício com
serventuários ao sabor do provimento dos governadores que,
“aproveitando-se da melhor fortuna”33, faziam dessa situação uma fácil fonte
de renda34. A situação só tomou outro rumo pelos idos de 1690, quando
Bento Bandeira conseguiu que o direito reservado fosse resolvido a seu

93
MOZART VERGETTI DE MENEZES

favor, no Juízo da Coroa. Porém, não foi mais possível para Bento
exercer o ofício, já que veio a falecer poucos anos depois.
Neste ínterim, seu filho mais velho, Hipólito Bandeira de Melo, tentou
manter as escrivanias sob a guarda da família, quando conseguiu ser
encartado no ofício, mas, para sua desgraça, foi tornado prisioneiro pelos
mouros em Salé, onde então combatia35.
Desta forma, a situação tinha, portanto, dois componentes principais.
Por um lado, Bento Bandeira estava morto36, com o seu filho mais
velho preso nas masmorras de Salé, sem que houvesse certeza do seu
estado. Por outro, ficava resolvida a querela sobre a quem caberia o
ofício, pois, sabendo que o mesmo fôra doado pelo mestre de campo
Francisco Barreto por apenas uma vez, isto é, durante uma vida presente, à
qual Bento não mais pertencia, o direito deveria caminhar em favor de
Cosme Marinho. Nesta situação, o genro de Lopo Garro voltou à
carga em 1694 e, enviando requerimento ao rei, solicitava ser encartado
nas escrivanias. Poderia, finalmente, usar da mercê de ofício que D.
João IV fizera37.
Mas as coisas não eram tão fáceis assim. Simultaneamente à petição
de Cosme Marinho, outros requerimentos também chegaram às mãos
de Sua Majestade. Desta feita, era a viúva de Bento Bandeira, Dona
Antônia Barbosa de Freitas, e a mulher do seu filho Hipólito Bandeira,
Dona Maria da Conceição, que entravam na disputa pela propriedade
do ofício. Se já tinha sido dispendioso para Cosme Marinho se livrar
das amarras processuais para se mostrar merecedor do ofício - pois,
anos antes, fora obrigado a pagar a estas mulheres os emolumentos
por ele recebidos durante o tempo que estivera à frente da escrivania -
, mais uma vez, via suas chances se esvaírem. Ademais, os argumentos
a favor das mulheres eram irrefutáveis e a mercê do ofício dificilmente,
tomaria outro rumo.
Ainda indeciso, o Conselho Ultramarino ordenou, em meados do
ano de 1695, que o ouvidor geral da Paraíba, Cristovam Soares
Reimão 38 , providenciasse uma averiguação, ouvindo as partes
interessadas e mais testemunhas e emitisse parecer sobre a quem caberia
o ofício. A opinião do ouvidor não foi diferente da esperada. Na
oportunidade, Cristovam Reimão disse que Cosme Marinho se
encontrava ausente da capitania pois era, já há alguns anos, morador na

94
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

Bahia e não tivera filho homem que pudesse sucedê-lo. Já Dona Maria
da Conceição amargava, além da falta do marido preso em Salé, ter de
sustentar quatro filhos menores. Desse modo, opinava o ouvidor, no
que seria seguido pelo Conselho e sancionado pelo rei, o ofício deveria
ser passado em nome do filho mais velho de Hipólito, Bento Bandeira
de Melo [o neto], de apenas oito anos. A guarda do cargo ficaria com
a mãe, a quem caberia o poder de prover serventuário no ofício, até a
maior idade do agraciado, para ter de onde tirar o seu sustento ao
longo dos anos39.
A vitória de Bento Bandeira, ao cabo dos quarenta anos de disputa,
não representou uma mera façanha de apenas um homem em garantir
seus direitos via a bondade do seu príncipe. Os rastros deixados no
caminho não deixam dúvida de que, por dentro do Conselho
Ultramarino, seu irmão colaço, Feliciano Dourado, juntamente com o
corpo dos conselheiros, o tenham ajudado. A “armadura ministerial”,
como a denominou Faoro, que enfumaçava a “ordem monocrática” do
rei, sofreria “com os órgãos colegiados limitações drásticas, retardando as decisões,
orientando-as e distorcendo-as, ao sabor das suas deliberações”40.
Bastante sintomático, como vimos, foi o sumiço, no interior do
próprio Conselho, dos papéis enviados por Lopo Curado Garro,
incriminando Bento em sinistras simulações contra a Fazenda Real. Além
disso, o meticuloso e necessário acompanhamento do desenrolar do
pleito - saber das instâncias por onde tramitava o processo, levantar
questões precisas e nos momentos mais pertinentes -, só seria possível
com um ótimo procurador advogado e, obviamente, com dinheiro
suficiente para gastar em subornos com secretários e escrivães.
Entretanto, algo assim sairia por demais oneroso e, na situação em que
se encontrava a capitania da Paraíba, dinheiro era o que faltava.
Não fosse da forma habitual, de mal grado seriam acolhidos os
processos dos apressados. Assim aconteceu no indeferimento do pleito
da sentença de direito, dada em contrário aos interesses de Lopo Garro,
no Juízo da Coroa. Na alegação dos juízes, a sua condenação, por sub-
reptícia, dava-se por ter sido ele “mal aconselhado e, com menos acerto, [ter]
recorrido ao Conde de Óbidos que naquele tempo era vice-rei do Brasil, e sem lhe
declarar o estado em que estava o ofício lhe pediu a serventia e dele tomou-lhe posse...”41.

95
MOZART VERGETTI DE MENEZES

Neste sentido, o fato de Lopo Garro estar mal aconselhado sobre o


funcionamento dos mecanismos do sistema legal, foi algo lesivo aos
interesses de Cosme Marinho, seu genro. Para quem quisesse navegar
nos meandros da administração no Antigo Regime português, era
necessário contar com uma proteção política, ou, digamos assim, com
um reforço do direito.
Consolidada, portanto, a propriedade das escrivanias da Provedoria
da Fazenda, Alfândega e Almoxarifado nas mãos dos Bandeira de
Melo, fincou-se uma trajetória que, nascida em 1656, seguiu adiante,
numa saga de bentos e hipólitos, por quase século e meio, e cujo rol de
sucessões pode ser sintetizado dessa forma:

a) Bento Bandeira de Melo (? - morreu pelos anos de 1693-


94), nomeado pelo mestre de campo Francisco Barreto de
Menezes, em 1656;
b) Hipólito Bandeira de Melo (? - 1723), esteve cativo em
Salé por quatorze anos. Retornou em 1703, quando
assumiu a propriedade da escrivania42 ;
c) Bento Bandeira de Melo (1687 - 1769), escrivão desde
1708. Assumiu a propriedade em 1723 com a morte do
pai (b);
d) Hipólito Bandeira de Melo (? - 1764) estava à frente da
escrivania quando veio a falecer, com o pai (c) ainda em
vida;
e) Bento Bandeira de Melo (1753 - ?), escrivão desde 1774
no lugar do avô (c), alcançou a propriedade em 1778. Ficou
até a extinção, em definitivo, da Provedoria da Paraíba,
em 1798.
A Provedoria da Fazenda: os Dourados
Diferentemente da conturbada luta entre os Bandeira de Melo e os
Curado Garro pelo controle da escrivania, a transmissão da propriedade
do ofício de provedor, por dentro da família Dourado, mostrou-se
tranqüila. Mas essa tranqüilidade interna não eximiu o órgão dos
conflitos gerados na relação da gestão fazendária com a própria
sociedade paraibana. Desde as duas primeiras gestões da família à

96
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

frente da provedoria, até o longevo comando de Salvador Quaresma


Dourado no órgão, acusações de diversas ordens nunca deixaram de
subir à presença real. Inúmeras foram as estratégias montadas pela
família Quaresma Dourado e pelo seu grupo parental, para tirar
proveito da estrutura patrimonial da Fazenda real. Foram muitas
também as formas de debelar estas ações, quer através de outros agentes
da própria Coroa, como ouvidores ou governadores, quer através da
checagem de denúncias de pessoas, moradoras ou não da capitania,
lesadas ou inimigas. Neste sentido, a preocupação nesta secção será
visualizar, através de um mosaico de histórias lineares, a trajetória
administrativa de Salvador Dourado, com o objetivo de exemplificar
a dinâmica do ofício de provedor e do próprio órgão fazendário na
relação com a sociedade paraibana. Ou seja, assinalar os avanços e
recuos nos limites da sua jurisdição - com a criação da Ouvidoria
Geral - e os recursos, por vezes escusos, colocados em prática como
forma de atender as necessidades materiais mais imediatas dos oficiais
da Fazenda.
O Retraimento da Jurisdição: a Criação da Ouvidoria Geral
Salvador Dourado assumiu a propriedade da provedoria em 13
de fevereiro de 1682, com vinte e cinco anos de idade43. Na altura de
1684, para a sua infelicidade, desapareceu da cena política o seu tio,
Feliciano Dourado. Desde jovem, quando contava os anos para assumir
a provedoria, pôde Salvador Dourado conhecer o tio, conselheiro em
Lisboa, e certificar de perto a influência que este tinha no Conselho
Ultramarino.
De longa data, Salvador ouvira falar de como Feliciano Dourado
atendia aos apelos da sua parentela residente na capitania da Paraíba.
Não apenas através de pareceres favoráveis aos muitos pedidos de
seu grupo familiar para assumir o governo da capitania, como se deu
com Martins de Bulhões Muniz em 1666, nome que repetiria em 1670
e Manuel Muniz, em 167744. Da mesma forma, também não era
estranho para Salvador o jeito com que o tio conselheiro buscava
encobrir alguns crimes de seus primos que agiam na Paraíba. Era fato
notório na capitania que Feliciano Dourado não gostava de dar
continuidade às cartas acusatórias que chegavam ao Conselho

97
MOZART VERGETTI DE MENEZES

Ultramarino e que denunciavam seus amigos e familiares. Isso fica


claro quando, no ano de 1667, o governador da capitania, Luís Nunes
de Carvalho, denunciara alguns senhores de engenho e lavradores de
cana e outras pessoas principais da terra. 45 Segundo o governador, estas
pessoas estavam contrabandeando açúcar para o porto de Pernambuco
e mantendo as arrematações dos contratos do subsídio de açúcar e
dízimo da capitania bem abaixo do que se poderia alcançar, fustigando
com violência quem viesse a dar mais que a estimativa oficial. Era um
mecanismo engenhoso para garantir o controle dos impostos por
aqueles que deveriam pagar, reduzindo a arrecadação ao limite do
arrematado que cabia à Fazenda Real. Tal prática levava ao desespero
o governador Luis Carvalho. Inutilmente, o governador criticava a
concordância “de alguns ministros poderosos desta Corte, parentes destes homens,
principalmente Feliciano Dourado, do Conselho Ultramarino [que] se não vêem
estes papéis com a consideração que convém, [atendem] mais a falsidades que estes
homens mandam dizer para com eles dissimularem suas maldades”46.
Portanto, ao contar apenas com o apoio da parentela restrita à
capitania, desde a morte do tio, Salvador Dourado sabia que se tornaria
presa fácil nos embates políticos com membros inimigos da elite local
ou com os agentes mais graduados da administração imperial. Ciente
dos riscos que isso acarretava, procurou estabelecer contatos na Corte,
recrudescendo antigas amizades. Numa missiva ao então secretário do
Conselho Ultramarino, André Lopes de Lavre, em meados de 1684,
comentava com certa proximidade:
“Senhor meu, como vivo tão lembrado daquela amizade que quando
estive nesta Corte me contou tem vossa mercê com Feliciano Dourado,
meu tio, e do muito que me consta tem vossa mercê amparar a quem
solicita seus favores, tiro destas razões o motivo para a confiança de o
procurar(...).”47
Confiança e amparo, era o código que “introduzia benfeitor e beneficiado
numa economia de favores ... de gratidão e serviço”. Moeda corrente, a troca de
favores, enquanto norma estatuída, se manifestava entre amigos num
tipo de relação não necessariamente horizontal, mas, marcadamente,
no sentido aristotélico do termo, predominantemente desigual. “Para o polo
dominante (credor), se traduzia na disponibilidade de quem dava um benefício e

98
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

não exigia uma contrapartida expressa e/ou imediata e, do lado do polo dominado
(do devedor), estava associada às idéias de ‘respeito’, ‘serviço’, ‘atenção’, significando
a disponibilidade para prestar serviços futuros e incertos”48. Por isso mesmo,
ainda sem completar um ano no cargo, mas já envolto em uma situação
de confronto com um outro governador, Alexandre e Souza Azevedo,
Salvador Quaresma Dourado recorreu a Lopes de Lavre pedindo
que ele intercedesse a seu favor, pois ...
“... tenho neste Conselho meus requerimentos sobre os capitães-mores
desta capitania quererem se intrometer na jurisdição destes ofícios de
provedor da Fazenda Real de que sua majestade me fez mercê da
propriedade (...) Folgarei muito que vossa mercê, como meu amo, queira
ser servido tomar-lhe muito por sua conta para que fique eu devendo ao
patrocínio de vossa mercê todo o bom sucesso que nele tiver ...” 49
Não sabemos qual a atenção dada pelo secretário a esta carta,
correspondência pessoal e curiosamente largada (intencionalmente ou
não) entre os documentos do Conselho. O certo é que a reclamação
de Salvador procedia, já que Souza de Azevedo havia mandado alguns
soldados da Infantaria entrar nos armazéns do Forte Velho e da
Fortaleza do Cabedelo - espaços estes de responsabilidade dos
almoxarifes, mas controlados pelo provedor -, para tirar algumas peças
de artilharia que lhe interessavam, e levá-las para o seu navio50. Os
autos de investigação sobre o caso se estenderam até a saída do
governador, em meados de 1684. Sentindo-se ameaçado por esta
demora no processo, Salvador Dourado buscou apoio em Lopes de
Lavre. No decorrer do ano de 1685, contudo, na residência tirada
pelo ouvidor geral de Pernambuco sobre o governo de Alexandre e
Souza, concluiu-se pela limpeza de mãos do governador. Porém, como
denunciou em carta ao rei o juiz ordinário da Paraíba, Antônio de
Souza Figueiroa, ficou revelado que o provedor da Paraíba agira
corretamente, pois havia fortes indícios de prática de suborno,
promovida pelos procuradores do ex-governador51.
Este fato, se não levou à invalidação da residência do ex-governador
Alexandre e Souza, ao menos deu asas a Salvador Dourado, fazendo-
o acreditar que, a partir desse confronto com a autoridade máxima da
capitania, poderia agir impunemente, dentro ou fora da esfera de sua

99
MOZART VERGETTI DE MENEZES

jurisdição. Foi um mero engano, a julgar pelas diversas cartas enviadas


ao rei pelos moradores paraibanos, a respeito da necessidade da Paraíba
possuir um ouvidor letrado, dado o freqüente abuso de poder por
parte dos governantes e homens poderosos da terra52. Fazendo coro a essas
reivindicações, já se dizia há muito tempo, nas capitanias vizinhas, que a
Paraíba era um covil de malfeitores e homiziados53. Neste sentido, a gota
d’água para a criação da Ouvidoria Geral da Paraíba, pondo fim à
espera da população e à apreensão pelo aumento de despesas com a
nomeação de um novo escritório, veio por causa de uma denúncia de
usurpação notória da Fazenda Real. Desta feita, foi um morador da capitania,
o capitão Antônio Cardoso de Carvalho, que descortinou os excessos
praticados por Salvador Dourado em conluio com seu escrivão Pedro
Borges de Macedo, o Almoxarife Simão de Vasconcelos e mais dois
primos do provedor: Martinho de Bulhões, o moço, e Hipólito Bandeira
de Melo, futuro escrivão da Fazenda54.
Segundo o capitão Antônio de Carvalho, Salvador Dourado agia
conforme seu “capricho” e não assentado no regimento que lhe passara
Sua Majestade, “mostrando-se fervoroso em muitas causas e omisso demasiado em
outras”55.
Como já foi dito, Salvador Dourado acumulava a Provedoria dos
Defuntos e Ausentes - a qual lhe dava competência para atuar sobre os
“resíduos de deixas testamentárias, fazenda de órfãos, curatela de ausentes e tutela
de capelas e albergarias, desde que não fossem de administração eclesiástica, ou estivessem
sobre proteção direta do rei”56. Era um órgão que exigia do seu gestor um
trato especial com aqueles que solicitavam seus serviços. Pois, subtende-
se que a situação dos que entravam na necessidade de buscar o auxílio
da Provedoria dos Ausentes, era quase sempre vexatória. Mas não era
bem isso que Salvador Dourado fazia - afinal, quando deveria ser
diligente com o expediente das partes, praticava exatamente o contrário,
como alertava o capitão Antônio de Carvalho:
“tendo os pretendentes, aposta [o provedor] demasiado tempo sem reparar
em qualidade de pessoa.. E as petições as retém três, quatro dias e mais.
E alguma houve de três meses e depois para a maior parte sai com
despachos mais de capricho que de justiça, com que as partes [se] desgastam
e deixam suas pretensões, principalmente se são de cousa pouca.”57

100
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

Torna-se difícil supor que os bens abandonados pelas partes, mesmo


que sendo de pouca coisa, tivessem como destino os cofres da Fazenda.
Por certo se pode creditar à imbricada administração lusa a demora
com o andamento dos processos de peticionários58. Nesse caso, porém,
há que se considerar também a demora como um recurso utilizado para
engabelar inimigos e desafetos, como forma de levá-los à exaustão,
fazendo as coisas da administração parecerem eternas.
Entretanto, não era apenas nessa esfera que Salvador Dourado agia,
aproveitando a falta de ouvidor letrado na capitania. Atuando
impunemente e em conjunto com o seu escrivão, o provedor da
Fazenda fazia o que bem entendia na Alfândega paraibana. Assim, o
capitão Antônio de Carvalho continuava o seu rosário de acusações,
agora sobre o tratamento dispensado pelo provedor aos mestres dos
navios que aportavam na Paraíba. O capitão dizia que o provedor
pressionava os mestres “a lançar dobrado o dinheiro dos despachos”,
majorando o valor da “marca”, em mais de dois terços, embolsando a
sua parte e impossibilitando que os mestres pudessem emitir qualquer
recurso. Pois, caso assim quisessem, teriam que reclamar ao Tribunal
da Relação da Bahia59.
A distância deste tribunal não era o único motivo a desestimular a
voz dos mestres dos navios contra a extorsão dos agentes do fisco no
porto da Paraíba. Para Antônio de Carvalho, os navegadores também
tinham o seu preço no embuço. Neste caso, tanto os oficiais como os
mestres de navios se locupletavam “botando amizade” com o dinheiro
“das forças”, ou seja, com os oitenta réis arrecadados por cada caixa
de açúcar embarcada e que deveria servir para os reparos e construção
das fortalezas e pagamento das tropas60.
Apesar de Salvador Dourador agir fraudulentamente com a
Provedoria dos Ausentes, usar seu poder na Fazenda contra os mestres
dos navios e mesmo abusar com a consignação destinada ao pagamento
dos soldados 61 , não eram essas ações propriamente que mais
escandalizaram o capitão Antônio Cardoso. Na verdade, o motivo do
seu desconforto, e que o fizera concentrar toda a sua ira contra Salva-
dor, encontrava-se na forma humilhante com que eram tratados os
seus pares pelo temido provedor. Antônio Cardoso alegava que,
diferentemente de Salvador Dourado, seus parentes que o antecederam,

101
MOZART VERGETTI DE MENEZES

como acontecera com Alberto Dourado de Azevedo, sempre buscaram


tratar com complacência os fiadores das arrematações dos dízimos e
subsídio do açúcar, alargando os prazos e evitando que a obrigação do
pagamento do fiado levasse esses homens à ruína62. Mas o novo
provedor, pelo contrário, mostrava-se impiedoso fazendo seqüestro
nos bens dos fiadores, levando-os à ruína, quando não, à própria morte63.
Torna-se impossível saber se os valores das propinas cobradas aos
mestres dos navios estavam ou não majorados pela escrita do acusador,
ou se essas formas violentas de cobrança, aos fiadores, eram verdadeiras
- afinal, não houve impedimento algum a Salvador Dourado durante
toda a sua gestão. Mesmo assim, pode-se encontrar nestas passagens,
quer a auto-afirmação do exercício do provedor, caso se creditassem
serem as acusações verdadeiras, quer o poder de barganha que os coevos
acreditavam que um agente da Coroa, investido em um ofício de caráter
fiscal no ultramar, possuía. Com efeito, apesar de ambas as possibilidades
se sustentarem na premissa de que os atos de Salvador Dourado foram
um meio de penetração nas práticas daqueles que copiosamente
acumulavam o poder, temos que, em contrapartida, remediar o plano
de acusação do capitão Cardoso de Carvalho.
Como elemento claramente ligado à classe produtora da capitania,
o capitão Cardoso procurava fazer eco contra qualquer afirmação de
poder que viesse comprometer os interesses daqueles que queriam
transportar o açúcar livremente para Pernambuco e controlar o processo
de arrematação do subsídio do açúcar e dízimo da capitania, como
faziam os Bulhões antes da gestão do governador Luís Nunes. Isto
ficou claro quando um parecerista, a pedido do Conselho Ultramarino,
disse que essas queixas contra os agentes da Coroa eram provenientes
de pessoas “nobres da capitania da Paraíba que , afetadas mais por ódio que por
razão”, se mostravam contrárias a esta “proibição” do comércio com o
Recife, não faltando “violências nos seus recursos”64.
Mesmo sabendo das manhas da nobreza da terra, a Coroa não se
furtava de se informar das suas ações contra aqueles que ocupavam os
cargos nas capitanias. Em contrapartida, não deixava de encorajar os
próprios agentes a não perdoarem os recalcitrantes. Tal posicionamento
indicava que a Coroa mobilizava forças opostas para poder equilibrá-
las em proveito próprio. 65 Colocando-se as coisas desta maneira, e

102
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

contrariando o raciocínio do capitão Cardoso de Carvalho, é justo


reconhecer que o serviço do provedor era mais útil que nocivo aos interesses
da Coroa.
Desta feita, é claro que o provedor tinha plena consciência de que,
independentemente da proporção da força que tomasse, o Conselho
dificilmente se colocaria contrário às medidas de cobrança aos devedores
da Fazenda Real. Esta posição fora exacerbada pelo órgão, dois anos
após os fatos levantados por Cardoso de Carvalho, quando o fraco
governador da Paraíba, Antônio da Silva Barbosa, fora repreendido
ao tentar se desculpar ao rei por não ter dado execução às cobranças
das dívidas na capitania66. Atarefado, devido aos constantes conflitos
com os índios no interior da Paraíba, o governador mostrou-se
negligente com a gestão executiva e jurídica da capitania e, expondo
suas debilidades ao solicitar ouvidor letrado, pois sozinho não poderia por
freios aos paraibanos e tornar mais suave o seu governo 67, abriu caminho para
Salvador dourar o seu nome. Contudo, mesmo para os casos dessa
natureza, como a cobrança de dívidas à Fazenda, não seria prudente
deixar que os provedores ultrapassem determinados níveis de tolerância,
pois, alongando demais a corda, se correria o risco da completa perda
de limites.
Assim, além de corrupto e violento, Salvador Dourado ganhava a
fama de se exceder para além dos ditames das provedorias. Pouco
antes de Silva Barbosa assumir o poder, em 1684, o provedor tomou
ares de governador e passou a assentar praça de soldado a um criado
seu e a mais dois irmãos, Francisco Quaresma Dourado e Manuel
Quaresma Dourado. E, colocando-se acima do Tribunal da Relação
ou da Provedoria-mor, tratou de determinar que só aceitaria recursos
contra os seus procedimentos se eles fossem dirigidos diretamente ao
Conselho Ultramarino68.
Como resultado disso, o rosário de acusações e mais abusos, em
relação aos limites de jurisdição, se avolumou tanto no Conselho
Ultramarino que terminaram por contrariar a expectativa do provedor.
Era necessário colocar freios nas ações de Salvador Quaresma e, ao
mesmo tempo, em fazer cessar as práticas de crimes de malfeitores e
homiziados, com a presença da justiça. A criação da Ouvidoria Geral da

103
MOZART VERGETTI DE MENEZES

Paraíba se deu, enfim, na consulta ao rei, em 25 de janeiro de 168869.

O Retraimento da Jurisdição: Defuntos e Ausentes


A assunção da Ouvidoria Geral na Paraíba englobando, entre suas
comarcas, Itamaracá, Rio Grande e, mais tarde, também o Ceará,
promoveu uma mudança substancial na relação entre os poderes
institucionais existentes na capitania. Além da esperada transferência
das prerrogativas dos juízes ordinários para as mãos do ouvidor letrado,
outras disposições passaram a ampliar as atribuições da nova ouvidoria,
ocasionando perda significativa na jurisdição de Salvador Dourado.
Entre as perdas de prerrogativas do provedor da Fazenda, estava a
ambicionada Provedoria dos Defuntos e Ausentes, cobiçada menos
pelo seu ordenado do que pela possibilidade de enriquecimento dos seus
oficiais, já que, em época de epidemias, a morte não discriminava e
ceifava, também, muita gente de cabedal.
A notícia da recriação da Ouvidoria Geral da Paraíba provocou
uma certa excitação no tribunal da Mesa da Consciência e Ordens que
requereu, em 1688, a nomeação da Provedoria dos Defuntos e Ausentes
para a pessoa do ouvidor geral da Paraíba, Diogo Rangel de Castel
Branco, sob a alegação de que tal escolha estava restrita à sua jurisdição.
Ao chegar a petição do tribunal da Mesa da Consciência no
Conselho Ultramarino, os conselheiros trataram de lembrar ao rei um
despacho real datado de 19 de dezembro 1687, dado como resposta
a uma consulta sobre os maus procedimentos do provedor da Fazenda
da Ilha de Cabo Verde. A partir daquela data do despacho, com efeito,
ficou determinado que os ouvidores gerais fossem, também,
provedores dos Defuntos e Ausentes nas demais conquistas ultramarinas,
observando, entretanto, que o Desembargo do Paço consultaria os
ouvidores e que ao tempo das consultas mandaria dar parte ao Conselho
dos sujeitos que neles são propostos para que pudesse dizer qual seria
mais conveniente para exercitar o dito ofício de provedor70.
Baseados nesta prerrogativa, os conselheiros transformaram a petição
da Mesa em consulta e afirmaram, em seu parecer, serem
terminantemente contrários ao desmembramento dos ofícios. Segundo

104
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

o parecer, a união das provedorias era antiqüíssima e o provimento,


além de responder a uma necessidade econômica do investido, dado o
parco rendimento que representava cada uma das provedorias, era
feito através de uma só carta, sem contradição alguma de um ou do
outro tribunal. Não mexer na mercê de Salvador Dourado seria,
portanto, o momento ideal para o Conselho Ultramarino por fim a
qualquer questionamento de jurisdição por parte da Mesa da
Consciência71.
Mas o despacho real não foi favorável ao Conselho Ultramarino.
Desta forma, Salvador Dourado não foi apenas lesado em sua jurisdição,
como logrou perda significativa no seu ordenado. Dos cento e setenta
mil réis anuais recebidos pelo provedor da Paraíba, restaram-lhe setenta
mil. Acuado, Salvador Dourado interpôs recurso quatro meses depois,
em novembro de 1689, requerendo ao menos um abono pela perda.
Alegando a grande defasagem entre o ordenado pago na Paraíba em
relação ao de Pernambuco - estimava-se que o provedor da capitania
vizinha recebesse trezentos e cinqüenta mil réis -, requereu uma ordinária
de cem mil réis anuais. Como o valor repercutiu exagerado no Conselho,
inclusive com veto do procurador da Coroa, Salvador alcançou, apenas,
uma ordinária de trinta mil réis anuais72.
Entretanto, esta não foi a última vez que Salvador viu sua jurisdição
diminuída. Em 1693, mais uma parcela de suas prerrogativas foi
suprimida, com o Juízo dos Homens do Mar indo parar nas mãos do
Ouvidor Geral. É verdade que Salvador Dourado conseguiu segurar
os vinte cruzados (8$000 réis) de emolumentos anuais que o cargo lhe
possibilitava, agora acrescido ao ordenado. Mas nada impediu uma
má repercussão na sociedade paraibana com a notória perda de poder
e influência do provedor no Conselho Ultramarino e, por extensão,
onde mais importava, na sua localidade73.
Em resposta a isso, Salvador Dourado conseguiu, em 1697, se eleger
provedor da Casa de Misericórdia da Paraíba. Por representação real,
foi prestigiado, como era de estilo antigo em Recife e Rio de Janeiro,
com a prerrogativa de sentar nas solenidades públicas em cadeira de
espalmar, logo abaixo do governador e acima do ouvidor74. Tentou
ainda alcançar, em 1705, o hábito de Cristo e duas tenças como dote
para quem casasse com suas filhas, em satisfação dos serviços do seu

105
MOZART VERGETTI DE MENEZES

irmão, o capitão Francisco Quaresma Dourado. Numa época em que


o espólio de herança ainda se fazia oralmente, o provedor alegou que
o seu irmão lhe passara os direitos pelos serviços por ele praticados à
Coroa. Além do hábito de Cristo, Salvador Dourado conseguiu uma
tença de doze mil réis, que lhe foram pagos anualmente até a sua morte.
Para suas filhas, entretanto, nada foi garantido75.
Tirante, contudo, estas questões ligadas à simbologia da representação
social do ofício do provedor e às jurisdições reduzidas pela presença
da ouvidoria, outro problema para Salvador era administrar a falta de
dinheiro e renda e dar cabo do próprio trabalho de escrituração das
contas, que cresciam com o passar do tempo, complexificando o
manuseio dos livros. E esta foi a trajetória administrativa deste provedor
até sua morte no início dos anos trinta: ministrar uma receita minúscula
e duplamente dependente. Com efeito, se ora essa receita dependia
dos pequenos resultados da economia, sujeita às calamidades naturais,
como toda e qualquer economia tradicional, ora dependia dos incertos
envios dos vinte mil cruzados da dízima da Alfândega que se cobrava
por Pernambuco.
Sobrevivência em uma Capitania Deficitária
Parte das mazelas que comprometiam a economia paraibana, era
expressa nas repetidas cartas de moradores e autoridades dando conta
ao rei sobre as epidemias, secas, falta de escravos e engenhos de fogo
morto. Nessa situação, a festejada criação do um novo escritório, a
Ouvidoria Geral, repercutiu negativamente sobre os cofres da Fazenda.
Nem ao menos completara dois anos de existência e o ouvidor-geral
já sentia o primeiro atraso nos seus duzentos mil réis de ordenado.
Salvador Dourado até tentou uma saída negociável junto ao Conselho,
que seria dividir as despesas da Ouvidoria com as capitanias anexas à
comarca da Paraíba, Itamaracá e Rio Grande, mas não logrou êxito.76
Da mesma forma, foi mal inspirado quando tentou livrar a Fazenda
paraibana das responsabilidades com o bispado vizinho. Como
resultado, amargou o desconforto de ser excomungado pelo bispo de
Pernambuco, dado o atraso no envio dos trezentos mil réis anuais que
deveriam servir como complemento para o pagamento da côngrua
do referido padre e cabido da Sé de Olinda77. Portanto, garantir, os

106
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

ordenados dos filhos da folha executiva, militar e eclesiástica, além dos


pagamentos aos empreiteiros e mais trabalhadores da Fortaleza do
Cabedelo e das despesas extraordinárias para manutenção da Fazenda,
não era tarefa fácil.
Para os oficiais da Fazenda paraibana ao contrário do que acontecia
em outras paragens, os pros e percalços soavam mais como estorvos da
labuta do que como vantagens que a profissão poderia auferir. Os próprios
governadores da Paraíba reconheciam, como o fez João de Abreu
Castel Branco, em 1726, que a Fazenda Real paraibana não podia suprir
a todos os oficiais que se sentissem prejudicados pelas poucas chances
em conseguirem fazer render seus emolumentos e propinas78. Mas, se
o motivo e a finalidade da Fazenda das capitanias eram garantir a
sobrevivência e a reprodução material aos administradores, quer nas
suas repartições, amealhadas entre as capitanias do Norte, quer transferindo
riquezas para a Coroa, como, então, prover a tantos com uma receita
minúscula? Ao menos no plano individual, a prática de extorsão era
uma das maneiras de se resolver isso. Desde o início do mandato do
provedor Salvador Dourado, havia suspeita desse tipo de conduta
contra os mestres de navios, quando das cobranças nos despachos
para liberação das naus carregadas com açúcar nos portos da Paraíba.
Longe de acreditar que tal problema fosse exclusivo dos portos
paraibanos79, o certo é que este tipo de acusação sumiu após a criação
da Ouvidoria Geral. Todavia, outras reclamações passaram a chegar
ao Conselho Ultramarino, principalmente depois da criação do imposto
de dez por cento sobre os produtos importados, em 171180. Neste
caso, Salvador Dourado descobriu como agir na fissura da lei, ao se
aproveitar da falta de regimento para a Alfândega paraibana. Por isso
mesmo, para alguns mestres de navios, chegar ao porto da Paraíba
para comerciar ou arribar, por algum problema na embarcação, poderia
significar um motivo de insatisfação.
Para Salvador Dourado, entretanto, pouco importava a motivação
que levara o navio à visita ao porto. Acossado com as folhas de serviço
para saldar, o jeito era não desperdiçar nenhuma chance de garantir,
aos seus oficiais da Fazenda, os difíceis emolumentos. Portanto, cair nas
redes do porto paraibano era, para os mestres e capitães dos navios,
verem fisgados seus últimos vinténs nas gratificações aos oficiais.

107
MOZART VERGETTI DE MENEZES

Vítimas dessa política, assim aconteceu com os oito navios


pertencentes à “Mesa do Espírito Santo dos Homens de Negócio de Lisboa”.
Partindo de Portugal em 1723, com destino à Capitania de Pernambuco,
esses navios se perderam do “comboio de Sua Majestade” por conta do
mau tempo, indo parar na barra da capitania da Paraíba, “debaixo da
proteção de sua fortaleza”. Quando os capitães dos navios requereram a
Salvador Dourado carta de franquia para poderem sair da barra e
seguir viagem a Pernambuco, não apenas lhes foi negada a franquia,
como foram obrigados a atracar e dar entrada de todos os produtos
na Alfândega da capital. Procuradores e deputados da Mesa dos
Homens de Negócio se expressaram contrários ao comportamento
do provedor da Fazenda denunciando, também, a conivência e
participação direta do governador da capitania no fato81. A compreensão
que os deputados da Mesa dos Homens de Negócios pediam era a de
que o provedor Salvador Dourado levasse em conta e respeitasse as
matérias pertencentes às coisas náuticas. Segundo os deputados, a
concessão de franquia, que estava fundada no regimento da alfândega
da Corte e mais partes do Reino, admitia a liberdade de atracar a todos
os navios de qualquer qualidade que por ocasião fortuita entrarem da
barra para dentro constando que vão despachados para outro porto.
Assim, se havia um despacho régio em Pernambuco, que desde 12 de
novembro de 1692 concedia franquia para todos os navios não só
portugueses, mas ainda estrangeiros, deveria o porto da Paraíba se
reger por ele; “não só pela graduação em que se acha de maior comércio, mas
também porque quando nos Reinos e cidades faltam leis para decisão nos casos, se
sujeitam esses ao Reino vizinho”. Para o provedor da Fazenda paraibana,
entretanto, o que importava era “que os navios descarregassem, lotando cada
um deles no que quisessem e fazendo pagar a todos os despachos, pros e percalços ...
como se despachassem nova carga”82.
Mas não foram apenas esses homens que sofreram o infortúnio de
arribar ao porto da Paraíba. A mesma falta de sorte tiveram os senhores
do bergantim Santo Antônio e Almas, por ter Salvador Dourado mais
uma vez desrespeitado as ordens de concessão de franquias em
momento de socorro. Na alegação dos senhores, o bergantim, que
partira do Maranhão, em julho de 1721, com destino ao Rio de Ja-
neiro, mas com escala no Recife, onde deveria despachar a carga de

108
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

algodão que transportava, “como lhe sobreviesse uma rigorosa tormenta, e se


visse com água aberta e a verga do traquete [mastro] quebrada, se achou precisado
a tomar de arribada o porto da Paraíba”83. Após atracar o barco, o mestre
do bergantim, José Coelho Lopes, já em segurança, encaminhou o
pedido de franquia para o governador da capitania, que o remeteu a
Salvador Dourado. De posse do documento, entretanto, o provedor,
além de negar a franquia, “ainda constrangeu [o mestre do navio] a
descarregar o dito bergantim obrigando-o por força a assinar termo de entrada”84.
As reclamações se sucediam, sem que a Coroa colocasse freios nos
agentes do fisco paraibano. Todos os oficiais diziam possuir uma ordem
real garantindo a cobrança deste ou daquele emolumento ou propina.
A “malícia” consistia, segundo os navegadores, em fazer a cobrança na
véspera da partida da frota, impedindo que houvesse tempo para
qualquer recurso, pois na vexação pagavam e, só passado algum tempo, é
que pediam restituição85.
É certo que o problema com a insatisfação dos mestres, proprietários
de navios e sindicatos de comerciantes, deveria perdurar até o momento
em que a Coroa resolvesse assegurar um regimento para a Alfândega
da Paraíba. Sem ele, seria difícil, ou mesmo impossível, determinar se
Salvador Dourado agira ou não com honestidade. Desta forma,
fundado na fissura da lei, o oficial podia agir à revelia do esperneio dos
mestres dos navios, pois as alfândegas de Pernambuco, Bahia e Rio de
Janeiro ofereciam os regimentos por onde, casuisticamente, a Alfândega
paraibana podia atuar. Contraditoriamente, apesar de reconhecer o ato
escrito como o meio e fim do princípio administrativo - afinal, sempre
o estimulou e exigiu dos seus oficiais -, a Coroa faltava, em muitos
momentos, com a sua parte. A demora no envio de regimentos era
um exemplo.
Talvez a Coroa visse aí um mecanismo de arrefecimento das
insatisfações dos oficiais da Fazenda, na medida que exaltava as tensões
e discórdias destes com aqueles que sofriam diretamente suas ações.
Caso assim fosse, estaria em jogo um destino perigoso, mas ao mesmo
tempo bastante eficiente, pois mesmo que a mão pesada da ação fiscal
revelasse, em última instância, a presença real, a perda de controle sobre
os agentes, principalmente para os que detinham bens de raiz no local
onde exercitavam suas funções, era sempre uma evidência. Assim,

109
MOZART VERGETTI DE MENEZES

mesmo correndo este risco, a administração fazendária paraibana seguiu


numa mescla de ordem e desordem, em que a confusão dos livros, em
meio a registros e omissões, caracterizou a gestão de Salvador Dourado.
Os Livros de Registros: Abusos e Omissões
Até a criação do Erário Régio, em 1761, quando se assistiu à
obrigatoriedade do uso das partidas dobradas - “método que a prática
comercial espalhara por toda a contabilidade européia” -, as normas exigidas
para a escrituração com a contabilidade pública no interior do Reino ou
mesmo no Império português, não passavam apenas de uma
preocupação86. As transformações no ato de registrar, com o uso dos
algarismos arábicos, que se generalizou ao longo do século XVII por
todo o Império, se deram, primordialmente, por obra de uma
disseminação, em virtude da exigência empírica de se tornar mais simples
e ágil a prática contábil. Mas aconteceram, também, pelo esforço dos
oficiais da Casa dos Contos, em Lisboa, ao reconhecerem a necessidade
de aprimoramento técnico87.
Mesmo assim, a opção pelo empírico suplantou a técnica, no sentido
de privilegiar o costume, isto é, os estilos locais, tanto ao nível do próprio
ato da escrita, a forma do registro contábil, como dos suportes suficientes
para receberem esses escritos, os livros. Por isso, não se deve estranhar a
liberdade dada ao provedor da capitania da Paraíba, Salvador Dourado,
em 1713, de determinar que seis livros seriam “necessários para servirem a
arrecadação da Fazenda Real”88.
Pela quantidade de livros, percebe-se o que diferenciou tal
procedimento do avanço representado pelo uso do método de partidas
dobradas. Enquanto, na partida dobrada, as entradas acompanhavam pari
passu o registro da saída em um único livro, no outro método os registros
eram feitos aleatoriamente em livros diferentes, sem nenhuma referência
entre débito e crédito. Este procedimento gerava uma grande confusão
nos estoques dos armazéns, principalmente nos trens de munições, resultando
em alguma perda para a Fazenda, podendo acarretar o acúmulo de
alguns itens e a falta de outros89. Da mesma forma, podiam se acumular
informações sem registros de entrada e saída nos livros dos efeitos da
Fazenda Real, como acontecia quando os almoxarifes ou tesoureiros
não passavam recibos e, sem comprovantes, registravam, como se dizia

110
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

na época, de memória. Outras vezes, mesmo com recibos, era comum o


empilhamento de maneira avulsa, sem que houvesse a atenção em
transportar os dados para os livros. Nesses casos, era um tormento
fazer certos balanços. Foi o que ocorreu com a ordem dada pela Coroa,
em 1712, para que o governador enviasse uma relação detalhada do
movimento dos últimos dez anos90.
Foi uma mera ilusão da Coroa. Na resposta do governador João
Maia da Gama, dois anos depois, se sentia o estado da organização da
gestão de Salvador Dourado. Segundo o governador, não havia “livros
em que se passassem as letras, nem nos livros da Fazenda se [achavam] declaração
delas”. E alegava: ao constatar “a pouca e má forma que aqui havia nas coisas
da Fazenda... me vi perplexo e tive que puxar pelas terceiras vias que ficam em
poder [dos almoxarifes]”. Ao concluir, se dizia insatisfeito, por ter ciência
do que enviava “ainda não ser o que basta”. Deixava para outro momento
o envio de outras notícias, primeiro sobre certas despesas surpreendentes
“de que [até então] não tinha notícia”; e, segundo, no que não faltava uma
centelha de suspeita contra o provedor, sobre seu estranhamento por
estarem “os requerimentos dos oficiais da Fazenda com o contrário do que consta
dos ditos livros”91.
A falta de transparência nos atos e a desorganização dos livros não
poderia levar a outra interpretação a respeito daqueles que dependiam
diretamente da Fazenda para sobreviver, do que colocar em dúvida a
honestidade e limpeza de mãos do provedor. Os soldados da Infantaria,
por exemplo, cansados de esperar pelo seu fardamento e soldo em
dinheiro, que já entrava no quinto ano de atraso em 1718, pediam ao
rei que obrigasse ao provedor da Fazenda a apresentação dos registros
dos subsídios nos últimos quatro anos. A revolta dos soldados era
grande, pois sabiam que alguns soldados mais próximos do provedor
recebiam em dia os seus vencimentos. Em contraste com isso, a quase
totalidade dos que mantinham guarda na fortaleza do Cabedelo ou no
presídio da Bahia da Traição, vivia na iminência da mendicância, já que,
na falta de hospital e quartéis, eram obrigados a pagar para morarem
em casas. As respostas para estes fatos iam sempre na demonstração
de que a situação calamitosa da capitania impossibilitava fazer o
pagamento para todos os soldados. Todavia, o provedor tratava de
tirar daí a justificativa para comandar, através de ordens suas ou do

111
MOZART VERGETTI DE MENEZES

próprio governador da capitania, o direito de “mesmo sem ter tirado mostra,


dar a muitos soldados e oficiais dinheiro ... para se lhes descontar nos ditos socorros
quando se passar mostra deles”. O registro “dos pés das listas”, ou livro de
mostras, onde constavam os nomes daqueles soldados que haviam
recebido o pagamento ou o adiantamento, era feito de tal forma que,
às vezes, ficava impossível saber quem já havia recebido. Em um desses
registros percebe-se, em meio a uma enxurrada de nomes, o do
ajudante-supra Luís Quaresma Dourado, irmão de Salvador Dourado,
que recebeu cinqüenta e oito mil e oitocentos réis de adiantamento,
segundo valor mais alto do total do despendido em 171792.
Esta confusão nos pés das listas acarretava dois tipos de problemas
curiosos: primeiro, a possibilidade do soldado dizer que não havia
recebido e ter seu ordenado pago por mais de uma vez e, segundo,
pela desconfiança que esta prática levantava na população. Em relação
a este segundo ponto, como expressou o procurador da Fazenda Real,
num parecer dado a uma consulta em 1719, tanto o empréstimo
levantava “dúvida tão falível como esta cobrança é duvidosa”. Por isso, achava
melhor que “Vossa Majestade ordenasse se não faça pagamento algum, sem que o
possa chegar a todos”93. Talvez por estar acostumado com semelhantes
experiências em outras capitanias, pode-se ver, anos à frente, que a
preocupação do procurador procedia. Como o costume não orientava
passar recibos, cabendo apenas ao provedor e ao seu escrivão o total
controle do que era despendido, os dois podiam ajustar a adição levando
em conta apenas seus interesses particulares, tanto no adiantamento
como no pagamento do que ainda haveria de saldar.
Neste sentido, ou os filhos da folha se sujeitavam ao pagamento de
propinas para o provedor, para terem seus ordenados ou adiantamentos,
ou podiam ficar à mingua por vários anos. Isto foi denunciado pelo
padre Inácio Pereira de Azevedo, coadjutor da paróquia da Paraíba e
escrivão da provedoria da Casa de Misericórdia, que amargou três
anos sem côngrua, 1722-25, por ter destruído as intenções do filho
homônimo e bastardo de Salvador Dourado, também padre, de
permanecer na capelania da mesma Misericórdia94. Segundo Inácio
Azevedo, o esquema envolvia, além de Salvador -”homem soberbo, descortês
e absoluto” -, seu tesoureiro da décima, Jácome dos Santos - “homem
muito ambicioso e interesseiro” - e o ajudante Francisco Quaresma Dourado

112
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

- “filho bastardo do provedor”. Montados os nomes, a trama se desenvolvia


no pagamento de uma pequena parte do que se teria de receber dos
ordenados, ajustando-se a conta com o ajudante Francisco Dourado,
“que fingia ser procurador [dos oficiais, eclesiásticos e soldados], assinando
os recibos”95.
Certeza para uns, dúvida para outros, o certo é que a população da
praça da Paraíba desconfiava que, com apenas o ordenado de provedor,
em uma capitania sem recursos, dificilmente Salvador Dourado poderia
garantir a subsistência da enorme família que possuía, “de porta a dentro
e de porta a fora”, como reverberava o padre Inácio Pereira publicamente
nas suas homilias, afetando a moral do provedor96. O curioso, porém,
é que estas denúncias não provinham apenas do mundo alheio às contas
e somas da Fazenda. Por dentro do próprio órgão fazendário, os oficiais
tinham suas queixas. O próprio tesoureiro da dízima, Jácome dos Santos,
que executava o ofício de contador dos contos, dizia “não ter fé nas
contas que fazia”, pois tanto o provedor como seu escrivão, Bento
Bandeira de Melo, mexiam nelas escrevendo nos recibos como bem
entendiam97. Da mesma forma, o almoxarife Caetano Francisco Gomes
alegava que Salvador Dourado, além de guardar sobre “seu poder os
livros e mais papéis pertencentes ao Almoxarifado”, costumava “tirar dinheiro do
cofre amontoando com o pretexto de serem por conta dos seus ordenados sem estes
jamais serem ajustados”98.
Apesar dessas acusações, e considerando a posição que ocupava,
Salvador Dourado morreu na pobreza em 1733. No seqüestro dos
seus bens, feito provisoriamente, em virtude das suspeitas traçadas, se
percebe o pequeno espólio do provedor. Como herança, deixava apenas
três escravas para serem divididas com a viúva e duas filhas; o que não
provocou ao que parece, nenhum sentimento de revolta e inveja nos
seus filhos bastardos. Para vergonha de sua família, seu enterro teve
que ser feito com a “ajuda dos religiosos e mais pessoas eclesiásticas, pelo sufrágio
pelo amor de Deus” 99.
Com a morte de Salvador Dourado, sua família quis ainda manter
a propriedade do ofício sob seu controle. Feliciano Dourado, sobrinho
e genro do falecido, bem que tentou transferir o ofício para seu filho,
Salvador Antônio, ainda com sete anos de idade, mas a Coroa preferiu
intervir de maneira contundente. Como prescrevia a ordem real de 19

113
MOZART VERGETTI DE MENEZES

de janeiro de 1719, a qual determinava que “na ausência ou impedimento do


provedor da Fazenda Real servisse o escrivão dela,” a Coroa alçou Bento Bandeira
de Melo ao cargo100. Mas a gestão do novo provedor teve vôo curto:
não ultrapassando o ano de 1734, ele foi logo substituído pelo Ouvidor
Geral Jorge Salter de Mendonça. Começavam, então, novos rumos
para na Provedoria da Fazenda da Paraíba.

***
Notas
1
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 37. As siglas correspondem ao seguinte: AHU
- Arquivo Histórico Ultramarino (Portugal); ACL - Administração Central;
CU - Conselho Ultramarino; 014 - Série Brasil-Paraíba; Cx. - caixa; D -
documento. As propriedades de João Fernandes Vieira na Paraíba eram os
engenhos Inhobim, São Gabriel, Garjaú, Tibiri de Cima, Tibiri de Baixo,
Santo André e São João. Além destes, possuía mais três em Recife (na Várzea),
um em Jaboatão, dois em Goiana e Igarassu e mais dois com localização
ignorada. Cf. Vera Lúcia Costa Acioli, Jurisdição e conflito: a força política do
senhor de engenho (Recife: UFPE / Departamento de História, 1989), p. 151.
2
Em carta dirigida ao rei, em 1656, diziam os oficiais da câmara da Paraíba que
“tomando as armas juntamente com os moradores da capitania de Pernambuco e vendo que
(...) nem um nem outro poderiam reduzir o grande poder do inimigo, se deliberaram como
fiéis vassalos de V. Majestade de se retirarem para Pernambuco (...) queimaram e arrasaram
suas casas, engenhos e canaviais de açúcar...”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, D.
40.
3
O lugar de ouvidor geral da Paraíba é criado em 25 de janeiro de 1688, e nele é
provido o Bacharel Diogo Rangel de Castelo Branco. Cf. IHGP (Instituto
Histórico e Geográfico da Paraíba), Códice: 1816 - Ouvidoria, f. 2.
4
Cf. Cleonir Xavier de Albuquerque, A remuneração de serviços na guerra holandesa
(Recife: Impressa Universitária / UFPE, 1968), p. 119-132.
5
“O cargo público em sentido amplo, a comissão do rei, transforma o titular em portador de
autoridade. Confere-lhe a marca de nobreza, por um fenômeno de interpretação inversa de
valores. Como o emprego público era, ainda no século XVI, atributo do nobre de sangue
ou do Cortesão criado nas dobras do manto real, o exercício infunde o acatamento
aristocrático aos súditos”. Raimundo Faoro, Os donos do poder: formação do
patronato político brasileiro (8. ed., Rio de Janeiro: Globo, 1980), p. 175.
6
Alvará de 24 de Maio de 1647. Cf.: Irineu Ferreira Pinto, Datas e notas para a
História da Paraíba, v. 1 (2. ed., João Pessoa: Ed. Universitária. 1977), p. 62.

114
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

7
AHU_ACL_CU_014, Cx. 1, D. 63. Lopo Curado Garro formou o triunvirato
que governou a Paraíba de 1645 até 1655, juntamente com Francisco Gomes
Muniz e Jerônimo Cadena, até ser passado o governo a João Fernandes Vieira.
8
O Mestre de Campo General Francisco Barreto de Menezes aportou em
Pernambuco em 1648, a mando de D. João IV, e assumiu, das mãos de
Fernandes Vieira, o comando da insurreição. Cf. Antônio José Vitoriano Borges
da Fonseca, Nobilarquia Pernambucana (Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional,
1935), p. 191. As Capitanias do Norte eram: Pernambuco, que englobava a
comarca das Alagoas que só seria separada e tornada capitania após 1817,
como castigo pela revolução; Itamaracá; Paraíba; Rio Grande e Ceará.
9
Ordem Régia de 23 de abril de 1654. Cf. Fonseca, Nobilarquia Pernambucana, p.
191. “Indo Francisco Barreto por Mestre da Campo, governador de Pernambuco, levou
provisão, para com os mais Mestres de Campo, repartirem as terras que haviam deixado os
holandeses e proverem por uma vez os ofícios que se houvessem presentes”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
10
A propriedade do ofício de almoxarife da Fazenda paraibana foi passada, por
D. Pedro II, a Simão Farinha do Amaral, em 1684, após o falecimento do seu
pai, Júlio Farinha. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 130.
11
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 63.
12
Juntamente com João Fernandes Vieira, André Vidal de Negreiros foi um
dos homens mais ricos nas Capitanias do Norte. Governou o Estado do
Grão-Pará Maranhão, de maio de 1655 a setembro de 1656, e foi o segundo
governador de Pernambuco depois da restauração, onde cumpriu o triênio de
mandato 1657-1660. Cf. Pinto, Datas e notas para a História da Paraíba, p. 67-80.
13
Sobre os conflitos de jurisdição envolvendo esses personagens, ver: Acioli,
Jurisdição e Conflito, p. 74 -111.
14
Cf. Ângela Barreto Xavier e Antônio Manuel Hespanha, “As redes clientelares”,
in José Mattoso (dir.), História de Portugal, v. IV, Antônio Manuel Hespanha
(org.), O Antigo Regime 1621-1807 (Lisboa: Editorial Estampa, 1998), p. 339-
349. Tais considerações, em verdade, parecem configurar o universo de relações
sociais em que o poder se legitimou através de uma forma de dominação a que
Weber chamou de patrimonial. Nesta forma de dominação, a administração, ao
ser tratada como um assunto puramente pessoal do senhor e não permitir a
eclosão da distinção entre as esferas do público e do privado, levaria o cargo a
assumir a expressão privada do seu ocupante. Desta forma, o cargo seria
desejado tanto pela sua valoração simbólica - na medida em que o acesso ao
benefício se confundia com uma certa proximidade com o soberano -, como
pela expressão da reputação individual do poder, quando a racionalidade e o
valor profissional, elementos fundantes da burocracia, ficariam secundarizados
pelo valor das paixões e dos interesses pessoais. Cf. Max Weber, Economia e

115
MOZART VERGETTI DE MENEZES

sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva (Brasília. Editora


Universidade de Brasília, 1999), p. 253.
15
O provedor faleceu em 1669, AHU_ACL_CU_014, Cx.05, D. 275.
16
Isto não quer dizer necessariamente, que os beneficiados se sentiam plenamente
atendidos. Segundo Vera Acioli, na análise sobre os pedidos de mercês
remuneratórias doadas aos restauradores, “mesmo aqueles agraciados com mão
mais generosa por parte da Coroa, não consideraram seus serviços plenamente recompensados
já que freqüentemente replicavam firmando de novo seus direitos e insistindo por mercês
mais honrosas”. Cf. Acioli, Jurisdição e conflito, 52 . Ver também Albuquerque, A
remuneração de serviços na guerra holandesa, p. 91-103.
17
Fonseca, Nobilarquia Pernambucana, p. 191.
18
Irmãos colaços são filhos de mães diferentes, embora amamentados pela
mesma mulher. No traçado genealógico dessas famílias, vemos que Maria
Dourado de Bulhões e Feliciano Dourado eram filhos do primeiro casamento
de Gaspar Fernandes Dourado com Isabel Nunes de Bulhões. Quando Gaspar
Dourado ficou viúvo (com os filhos ainda crianças), casou-se pela segunda
vez com Clara Freitas de Azevedo, no convívio de quem veio a falecer.. Viúva,
Clara Azevedo contraiu matrimônio com Antônio Malheiros de Melo, donde
descende, como filho desse casamento, Bento Bandeira de Melo. Ou seja,
Feliciano e Bento eram irmãos colaços e cunhados de Luis Quaresma.
19
Fonseca, Nobilarquia Pernambucana, p. 184.
20
Antônio Henrique da Cunha Bueno & Carlos Eduardo de Almeida Barata,
Dicionário das Famílias Brasileiras (São Paulo: Litografia Tucano, s.d. ), p. 875.
21
Evaldo Cabral de Mello, A fronda dos mazombos: nobres contra mascates -
Pernambuco 1666-1715 (São Paulo: Companhia das Letras, 1995), p. 31.
22
A promoção de Bento se dá em 22 de maio de 1656 e a de Lopo Curado, em
3 de novembro de 1654. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 63.
23
O alvará real de 11 de agosto de 1667 proibiu que se cobrasse dos serventuários
mais que a terça parte que rendesse o ofício. Cf. Albuquerque, A remuneração de
serviços na guerra holandesa, p. 81.
24
“Lopo Curado Garro pedira o fôro de fidalgo, o hábito de Cristo com comenda de
200$000 e a capitania do forte do Cabedelo, além de dois hábitos de Cristo com 80$000
de tença para seus filhos e o ofício de escrivão da Fazenda de Pernambuco para casamento
de uma filha. Ao lhe ser concedido apenas o hábito de Santiago com pensão de 40$000 e
o ofício de escrivão da Paraíba..., fez petição de réplica ao rei. Nesta, acrescenta aos seus
32 anos de serviços os de sua tio Antônio Morais repetindo os pedidos feitos. O Conselho
opinando a respeito, sugeriu apenas o aumento do valor da comenda que lhe fôra concedida”.
Cf. Albuquerque, A remuneração dos serviços na guerra holandesa, 96. Ver também:
Consulta do Conselho Ultramarino de 10.12.1653. AHU, Códice 82, fls. 282
e 283.

116
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

25
Paulatinamente, a Fazenda foi se reconstituindo. Em 1655, por exemplo, o
mestre de campo João Fernandes Vieira, indo governar a Paraíba, solicitava a
D. João IV que os seus soldos vencidos e os que viessem a vencer, fossem
sendo pagos por Pernambuco, enquanto não houvesse rendimentos na
Fazenda da Paraíba. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 38. Vinte e seis anos
depois, em 1681, os capitães de infantaria e mais oficiais da milícia paraibana
requeriam que seus soldos fossem pagos dos sobejos da Fazenda Real da
Capitania da Paraíba. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.5, D. 113.
26
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 63.
27
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
28
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
29
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
30
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 63; e Cx.3, D. 204.
31
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 63; e Cx.3, D. 204.
32
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
33
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
34
“Governar significava nomear, o que constituía uma fonte substancial de poder e também
de renda, pois freqüentimente os cargos eram, por baixo do pano, literalmente comprados
pelos interessados não legalmente como na França, mas ilegalmente aos governadores”.
Mello, A fronda dos mazombos, p. 28.. Nas Ordenações Filipinas (Ord. Fil.., L. I,
t. XCVII, 3), “quando o titular não podia continuar a exercer seu posto, para que o
ofício não ficasse vago, o Governador ou outra autoridade podia, provisoriamente, concedê-
lo em serventia”. João Fragoso, “A formação da economia colonial no Rio de
Janeiro e de sua primeira elite senhorial (séc. XVI e XVII)”, in João Fragoso,
Maria Fernanda Bicalho e Fátima Govêa, O Antigo Regime nos trópicos (Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 2001), p. 56.
35
Hipólito Bandeira de Melo esteve cativo por quatorze anos e foi dado como
morto. Todavia, sua mãe conseguira, a partir da vitória do marido no pleito
contra Marinho, reaver os emolumentos ganhos pelo próprio Marinho quando
do seu exercício no cargo de escrivão. Este dinheiro serviu para o pagamento
do resgate de Hipólito, que retornará para a Paraíba em 1703, quando assumiu
a escrivania da Fazenda. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.
36
Nos últimos anos de vida, Bento Bandeira de Melo, já sem condições para
exercer o ofício, conseguira ainda prover alguns serventuários, pelo valor de
setenta mil réis anuais pagos a sua mulher Antônia Barbosa de Freitas, que foi
filha de um antigo lavrador de cana na Paraíba. Cf. AHU_ACL_CU_014,
Cx.3,D. 203.
37
AHU_ACL_CU_014, Cx.3,D. 203.
38
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204.

117
MOZART VERGETTI DE MENEZES

39
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 204. A magnificência do rei exemplificava- se
através dessas doações, onde a simbologia buscava expressar a gratidão aos
que devotavam seus serviços a Sua Majestade. Entretanto, não eram apenas as
viúvas de oficiais que tinham seus pleitos atendidos. A política de conceder
mercês, através do canal de correspondência com o soberano, via o envio de
petições e requerimentos, ultrapassava aos que formalmente detinham o
controle do saber formal. São por demais recorrentes, na documentação,
apelações de pessoas comuns: índios, negros, brancos pobres, inclusive
mulheres, demonstrando uma crescente redescoberta do ser súdito na
Colônia. Para um brasilianista, isto “sugere o argumento de que os não europeus não
eram tão desavisados assim da natureza mais particular do sistema legal e de seus mecanismos
de funcionamento, como tem sido aventado pela historiografia”. Cf.: Russell-Wood,
“Centro e periferia no mundo luso-brasileiro”, Revista Brasileira de História 18
(36) (São Paulo, ANPUH, 1998), 202 e 203. Um outro estudo sobre a dimensão
discusiva envolta nos requerimentos está em Pedro Cardim, Cortes e cultura
política no Portugal do Antigo Regime (Lisboa: Edição Cosmos, 1998).
40
Faoro, Os donos do poder, p. 175.
41
AHU_ACL_CU_014, Cx.3, D. 203.
42
AHU_ACL_CU_014, Cx.34, D. 2476. O papel exercido pela família Bandeira
de Melo (pelo menos até ao ingresso do primeiro Hipólito) na escrivania da
Fazenda é também relatado por Alden, como exemplo de controle de um
grupo familiar sobre um ofício na Colônia. Cf. Dauril Alden, Royal goververnment
in colonial Brazil: with special reference to the administration of the Marquis of
Lavradio, Viceroy, 1769-1779 (Berkeley & Los Angeles: University of California
Press, 1968), p. 296.
43
AHU_ACL_CU_014, Cx. 4, D. 275. Seus antecedentes foram: Luís Quaresma
(proprietário) > Alberto Dourado de Azevedo (serventuário, cunhado do
proprietário) > Salvador Quaresma Dourado (por herança, proprietário).
44
No caso do parecer sobre Manuel Muniz, reconhecia Feliciano Dourado que
apesar de ser “Manuel Muniz parente seu de grau conhecido mas que ele conselheiro
pelo que deve a obrigação do posto que exercita, como pelo juramento que tomou na
Chancelaria está mais obrigado ao serviço de V. Majestade ... informar dos sujeitos que
convém para o bom governo daquela pobre capitania, a qual necessita de um capitão mor
que seja homem de respeito, de verdadeiro valor e desinteressado”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 62; D. 70 e Cx2, D. 104. Ver, também,
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 128.
45
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 77. Luís Nunes de Carvalho, foi o primeiro
governador da Paraíba fora do grupo dos restauradores. Além disso, no seu
processo de nomeação para ir governar a Paraíba teve o infortúnio de concorrer
com Martinho Bulhões Muniz, restaurador e preferido de Feliciano Dourado,

118
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

seu parente. Fato este que, por si só, não devia trazer bons presságios ao novo
governador, antipatizando-o com os homens principais da terra. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 62.
46
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 75.
47
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D. 128.
48
Xavier & Hespanha, “As redes clientelares”, 340. Obs: Na citação, os verbos
que não se encontram em itálico, foram propositalmente por nós
transformados do presente, como se encontra originalmente, para o pretérito
imperfeito do indicativo.
49
AHU_ACL_CU_014, Cx 2, D. 128.
50
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 121.
51
Entre os envolvidos estava João do Rego Barros, ex -governador da Paraíba.
Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, D. 133. Acresce registrar também que, após
esta denúncia, Francisco do Rego Barros, filho de João do Rego Barros
(provedor em Pernambuco), que estava servindo de ouvidor na Paraíba,
suspende o juiz ordinário, Antônio de Souza Figueiroa, por problemas na
sua eleição para o cargo que ocupava. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 135.
52
Diziam os vereadores do senado da Câmara da cidade de Nossa Senhora das
Neves da Paraíba, em 1675, que o povo padecia de justiça no “judicial e contencioso
por não haver ouvidor letrado na capitania de Pernambuco e nas mais [capitanias] daquele
estado (...). E por terem só um ouvidor de capa e espada [isto é, secular, que tem emprego
civil, sem beca] e dista nomeado pelo Governador Geral do Estado, sem ser da mesma
capitania se fazem grandes incidências como de presente estavam experimentando”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx.1, D 91. Ver também os D. 135; 139; 142 e 144.
53
Acioli, Jurisdição e conflitos, p. 102.
54
Na consulta sobre o requerimento do capitão, opinava “o Conselho que pelos
capítulos que faz presente o requerente, fazer presente a vossa majestade o muito que
precisa de ouvidor letrado essa capitania, como tem apresentado em consulta desde 1675,
pelas muitas insolências, roubos e mortes que sucedem todos os dias naquela capitania de
que se queixa neste Conselho um Ouvidor Geral” para a Paraíba. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 142.
55
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 142.
56
Antônio Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan (Coimbra: Livraria
Almedina, 1994), p. 208.
57
Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 142.
58
Cf. Alden, Royal goververnment in colonial Brazil, 289.
59
“Nos despachos se pagam oitenta réis por caixa [de açúcar], aplicada as despesas e
justificações para o provedor e seu escrivão pagam duzentos e vinte réis. Pela marca deles,
que pode importar vinte ou trinta marcas, o provedor faz pagar cento e vinte e mais marcas

119
MOZART VERGETTI DE MENEZES

e ele e seu escrivão embolsam a parte deles (...) e como o recurso é longe, [os mestres] pagam
e calam”. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 142.
60
“(...) porque se um navio leva trezentas ou quatrocentas caixas de que há de pagar oitenta
réis [por] cada uma, botam amizade e lhe abatem a metade ou o que lhe parecer e fazem
termo de que leva o navio cento e vinte caixas, embolsando o que deveria servir para as
forças”. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 142. Grifo nosso.
61
Por sinal, noticiava-se na capitania que a falta de pagamento das tropas, pelo
provedor, tinha levado a alguns soldados a se amotinarem na cidade saindo,
na confusão, um soldado baleado por acidente, que veio a falecer tempos
depois. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 139.
62
“Sendo nesta capitania contratador dos dízimos Estevão Soares, durante os anos de
oitenta e hum e oitenta e dois, perdeu considerável Fazenda no último ano e foram seus
fiadores Manuel Lopes Pimentel e o capitão Carlos de Oliveira. O provedor que era [o
serventuário, Alberto Dourado de Azevedo] tendo segura a Fazenda Real e vendo que os
fiadores tinham que pagar pelo grande fiado mais de cinco mil cruzados, cobrou deles o que
foi possível, ficando encaminhado a se cobrar o mais no cargo do [futuro] provedor”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, D. 142.
63
“Entrando no cargo [Salvador Dourado] logo mandou prender os ditos fiadores na
enxovia e ali lhe fizeram vender muitos escravos de suas lavouras. Fizeram na fazenda do
capitão Carlos Oliveira seqüestro e lhe deram depositário. Deixou ao Almoxarife [Simão
de Vasconcelos] que então servia, ir com o capitão Carlos de Oliveira a Pernambuco a
remediar o que devia. Para o fazer, vendeu mais de vinte mil cruzados que se lhe haviam de
dar em fazendas de raiz por menos de cinco mil cruzados em pagamentos (...) Foram
aqueles dias com rigores de calma a Pernambuco (...) e deste abalo e aflição morreu em
breve dias o capitão Carlos de Oliveira, com que o provedor, parece, ficou satisfeito”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 2, D. 142.
64
O parecerista fora o ex-governador de Pernambuco João de Souza. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D 139.
65
Sobre a dubiedade nas ações da Coroa, como forma de garantir o exercício de
poder. Cf. Stuart B. Schwartz, Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial (São Paulo:
Perspectiva, 1979), p. 58.
66
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 154.
67
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 145; Em uma consulta datada de 15 de
novembro de 1685, sobre a reclamação que faziam os oficiais da câmara da
Paraíba sobre a negligência do governador, constava o parecer do ex-governador
de Pernambuco, João de Souza, onde afirmava que o “talento do capitão maior
Silva Barbosa não era o mais discursivo, porque no tempo em que fora seu súdito, o julgava
sempre mais apto dos empregos militares pelo seu valor, do que suficiente para os governos
políticos pela sua disposição”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D 139.
68
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 142.

120
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

69
Provisão passada a Diogo Rangel Castelo Branco, em 25 de janeiro de 1688.
IHGP (Instituto Histórico e Geográfico Paraibano), Códice 1816 - Ouvidoria,
f. 4.
70
A partir desta data, abria-se a possibilidade do acúmulo dos ofícios da Fazenda
pelo ouvidor geral, não mais de forma interina mas, reconhecidamente, com
um aparato legal. AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 162.
71
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 162.
72
AHU_ACL_CU_014, Cx.2,D. 163 e D. 177.
73
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 190.
74
Pinto, Datas e notas para a história da Paraíba, 89. Para Elias, tais etiquetas eram
necessárias, pois “o povo não acredita em um poder que, embora existindo de fato, não
apareça explicitamente na figura do seu possuidor. É preciso ver para crer”. Cf. Norbert
Elias, A sociedade de Corte (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001), p. 133.
75
AHU_ACL_CU_014, Cx.4, D. 275.
76
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 166.
77
AHU_ACL_CU_014, Cx.2, D. 166. O atraso no envio desse pagamento
ultrapassava, em 1688, cinco anos, já que o bispo não aceitava ter o seu
pagamento em açúcar.
78
Tratava, na oportunidade o governador, em dar um parecer sobre a solicitação
do escrivão da Abertura da Alfândega da Paraíba, Antônio Carneiro de
Albuquerque, que pedia um ordenado de 120$000 réis anuais, valor que recebia
o mesmo oficial em Pernambuco, fora os emolumentos; Antônio Albuquerque
acabou alcançando 80$000, visto não ter como “granjear” sua vida com outras
atividades - afinal, como alegava o oficial, dedicava-se integralmente ao serviço
mesmo com um emolumento irrisório. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.6, D.
530.
79
Temos, entretanto, para outras capitanias, como, por exemplo, a da Bahia,
apenas notícia da prática de contrabando, onde oficiais da administração
portuária se prestavam a facilitar o ingresso de mercadorias importadas, as
quais eram comercializadas livremente pelas ruas da capital. Cf. José Roberto
do Amaral Lapa, A Bahia e carreira da Índia (São Paulo: Hucitec/ Editora da
Unicamp, 2000), p. 229-252.
80
Ordem Real de 04 fev. 1711. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.6, D. 519.
81
“Deste procedimento na verdade injusto intentaram agravar os capitães e além de lhes
impedir o recurso os intimidou de sorte o capitão-mor da capitania para que se espoliarem
todos os que não se satisfizessem a dar entrada naquela Alfândega, descarregando nelas
as fazendas que levavam para Pernambuco sem atender a que foram àquele porto da
necessidade e caso fortuito do contratempo que experimentavam”. AHU_ACL_CU_014,
Cx.5, D. 423.

121
MOZART VERGETTI DE MENEZES

82
AHU_ACL_CU_014, Cx.5, D. 423. Segundo Amaral Lapa, para o caso de
solicitação de franquias em Salvador, havia muita esperteza dos mestres de
navios, pois costumavam burlar o regimento da Alfândega baiana, ingressando
no porto sem autorização, alegando que o navio estava aberto. Cf. Lapa, A
Bahia e a carreira da Índia, p. 10.
83
AHU_ACL_CU_014, Cx.6, D. 501. É muito provável que esta carga fosse
despachada junto com a produção da capitania de Pernambuco para a Europa.
Segundo Amaral Lapa, “é de se lembrar ainda que as balanças de comércio de Portugal
com seus domínios ultramarinos, dado o monopólio que se praticava, poucos elementos nos
dão para verificarmos o seu montante entre uma possessão e outra, mas apenas entre a
metrópole e estas e vice-versa”. Cf. Lapa, A Bahia e a carreira da Índia, p. 230. Sobre as
balanças de comércio, ver José Jobson de A. Arruda, O Brasil no comércio colonial
(São Paulo: Ática, 1980). É oportuno, também, ressaltar que alguns estudos
hoje em dia já privilegiam exatamente as trajetórias de vida de comerciantes
que atuavam entre as possessões no Império português, como é o caso do
trabalho de João L. R. Fragoso, Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia
na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830) (Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 1992). Apesar de inovarem quanto à descoberta de novos parâmetros
de desenvolvimento econômico, inclusive descortinando processos de
acumulação nas áreas fora do eixo Lisboa - Europa, deslocando a relação
preponderante do exterior da colônia para seu interior, estes estudos em nada
invalidam a dimensão do monopólio que se praticava pela metrópole. Ou
seja, não excluem “a compreensão global desse processo histórico particular [que] envolve
a captação [da] interação dialética entre a condição colonial articulada a metrópole e a
formação social escravista da colônia (...) condição colonial [que] não significa, contudo,
a exclusão permanente e definitiva da ação dos homens coloniais na busca de sua
autodeterminação”. Cf. José Jobson de Arruda, “O sentido da colônia: revisitando
a Crise do Antigo Sistema Colonial”, in José Tengarrinha (org.), História de
Portugal, 2. ed. (Bauru: Edusc; São Paulo: Unesp; Lisboa: Instituto Camões,
2000), p. 248.
84
AHU_ACL_CU_014, Cx.6, D. 501.
85
Sem solução para seu pleito, o mestre e o capitão da Charrua Nossa Senhora
e Almas, Manuel João e João Gonçalves Lima, clamaram em 1728 que o rei
obrigasse ao escrivão da Fazenda, Bento Bandeira de Melo (o neto) a devolver
os emolumentos pagos a ele na vistoria que havia feito ao navio; pois já os
havia pago a quem deveria, ao escrivão da Abertura da Alfândega e meirinho
dela. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 562; D. 572; D. 586; e D. 647.
86
Virgínia Rau, A Casa dos Contos (Coimbra: FLUC, 1951), p. 416 e p. 414.
87
“Ainda em 1633 os provedores da Fazenda em Lisboa declaram que ‘se não pode dar
crédito ao caderno que veio das ditas despesas da Índia por virem em algarismos’ e exigem

122
DOAÇÕES E CONTROLE DE CARGOS

que Goa remeta os livros originais, com os registros feitos segundo a norma tradicional dos
Contos: por extenso e em numeração romano peninsular”. Vitorino Magalhães
Godinho. “Finanças Públicas e estrutura do Estado”, in Joel Serrão (dir.),
Dicionário de História de Portugal (Porto: Livraria Figueirinhas, s.d.), p. 256.
88
Segundo o provedor eram seis: “a saber: um para se carregar nele ao almoxarife
todos os efeitos da Fazenda Real, outro para a saída deles, outro para se carregarem o dito
almoxarife os efeitos pertencentes às fortificações, outro para a saída deles, e outro para
se carregar o procedimento da dízima da alfândega ao tesoureiro dela e outro para se
carregarem os direitos dos contratos dos dízimos”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx.5,
D. 338. Sobre o registro contábil, durante o século XVII, se dizia nos Contos
que, das contas que davam os almoxarifes, pelo emaranhado dos registros
contábeis, seria impossível saber o que se gastava em cada ano separadamente,
“pois as despesas estão místicas”. Cf. Godinho. “Finanças Públicas e estrutura do
Estado”, p. 256.
89
Quanto às diferenças entre um procedimento e outro, ver os pertinentes
comentários de Dauril Alden, Royal goververnment in colonial Brazil, p. 289-290.
90
Na solicitação havia a exigência de se “enviar uma relação dos últimos dez anos de
todas as letras e efeitos que dessa capitania se enviaram ao Conselho Ultramarino (...)
contanto o dia, mês e ano em que se passaram, detalhando as folhas dos livros de receita
que se carregaram e por quem foram feitas e assinadas”. Cf. AHU_ACL_CU_014,
Cx.5, D. 341.
91
AHU_ACL_CU_014, Cx.5, D. 341.
92
AHU_ACL_CU_014, Cx.5, D. 366.
93
AHU_ACL_CU_014, Cx.5, D. 366.
94
Dizia o governador Pedro de Gusmão, “achei os irmãos da Mesa da Misericórdia
desta cidade com discórdia e desunião entre si o qual os reduziu o escrivão dela o padre
Inácio Pereira de Azevedo ... [ que ] cego de sua ambição ou apossado da inimizade com
o provedor da Fazenda de V. Majestade, quis ultrajá-lo com o poder do cargo de escrivão
da Misericórdia intentando expulsar de capelão da dita Misericórdia ao padre Salvador
Quaresma Dourado, filho do dito provedor da Fazenda de V. Majestade”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 650.
95
AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 614.
96
Segundo o governador Pedro de Gusmão, “foi tão público nesta cidade... o
escandaloso procedimento com que o padre Inácio P. de Azevedo se animou .. com o fim de
se introduzir na Casa de Misericórdia como capelão pela via da expulsão que fez fazer ao
padre Salvador Quaresma Dourado”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 650.
Num outro documento dizia o padre Azevedo que “é o dito [Salvador Dourado]
pobre, sem possuir bens algum ou propriedade de que se remedeie; e se vale da Fazenda Real
de Sua Majestade com muita largueza, por vezes muito continuada com o pretexto de que
o faz a conta dos seus ordenados com a confiança de que ninguém lhe toma as contas.

123
MOZART VERGETTI DE MENEZES

Sendo estes que não chegam para sustentar uma grande família de porta a dentro e de
porta a fora”. Cf. AHU_ACL_CU_014, Cx. 7, D. 614.
97
AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 701.
98
AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 710.
99
AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 696. Isto não o livrou nem das observações
do seu amigo, o governador Francisco Pedro de Mendonça Gurjão, para quem,
apesar de reconhecer a honestidade do falecido, constava que “no decurso de
cinqüenta e um para cinqüenta e dois anos em que serviu esta ocupação houvesse peita de
retroceder ao que era lícito (...) tirando algum dinheiro a conta do seu ordenado”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 692.
100
Bento Bandeira tomou posse no cargo, mesmo que a contragosto do
governador “pois [este] não reconhecia [nele] todos os requisitos”. Cf.
AHU_ACL_CU_014, Cx. 8, D. 692.

124
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO
POMBALINO E SEUS REFLEXOS NAS
CAPITANIAS DO NORTE
DA AMÉRICA PORTUGUESA
Ricardo Pinto de Medeiros

ntender o presente da questão indígena no Nordeste e dar


visibilidade a uma história pouco conhecida que reconheça a
importância dos povos indígenas na formação do povo
nordestino, é uma preocupação que tem crescido nos últimos anos,
em função, entre outros, do processo de reelaboração e reafirmação
de identidades étnicas vivida pelas populações indígenas
contemporâneas1. Neste sentido, o presente artigo pretende contribuir
com algumas informações sobre as mudanças ocorridas durante o
período pombalino com relação às populações indígenas na região;
acompanhadas de reflexões sobre a relação entre as políticas indígena
e indigenista neste processo.
A história dos povos indígenas na região que compreende atualmente
o Nordeste brasileiro, assim como os de toda a América portuguesa,
que em grande parte do século XVIII correspondia aos Estados do
Grão-Pará e Maranhão e do Brasil, foi profundamente marcada pelas
transformações advindas com as reformas propostas durante o
governo de D. José I (1750-1777), tendo como figura central do seu
governo o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, conde
de Oeiras (1759) e Marquês de Pombal (1770)2.
O período pombalino se caracterizou por uma série de mudanças
implementadas pela Coroa portuguesa para promover a agricultura e
o comércio e aumentar os laços da exploração colonial. Segundo
Maxwell:
“A política imperial de Pombal visava aproveitar as riquezas coloniais
e racionalizar e padronizar a administração, a organização militar e o
treinamento educacional sob a alçada do Estado; onde fosse necessário
para a defesa e o bom governo, as diferenças de raça e etnia não seriam

125
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

barreiras para se manter um cargo ou uma promoção, e a participação


local no governo era encorajada.” 3
Neste sentido, uma série de medidas são implantadas em relação
aos povos indígenas nos seus domínios na América. A idéia agora era
civilizar os índios, integrando-os na sociedade portuguesa, ao contrário
da política anterior de segregação, que havia caracterizado a
administração missionária, principalmente a jesuítica4.
As medidas são tomadas praticamente todas ao mesmo tempo, e
estão interligadas. Uma das primeiras é um alvará de catorze de abril
de 1755, que declara que os vassalos do Reino e da América que
casarem com os índios, não ficarão com infâmia alguma, antes se farão
dignos da atenção real e serão preferidos nas terras em que se
estabelecerem e para os lugares e ocupações que couberem na graduação
de suas pessoas. Proibia também que os vassalos casados com índias,
ou seus descendentes, fossem tratados com o nome de caboclos, ou
outro semelhante, que pudesse ser injurioso5.
Em seguida, vem a lei de seis de junho de 1755, proibindo a
escravidão indígena no Maranhão. Esta não só restituiu aos índios a
sua liberdade, como também os seus haveres, assim como mandou
levantar em vilas as aldeias que tivessem o competente número de
índios. No dia seguinte, foi decretado o alvará que tirava a administração
temporal dos missionários no Maranhão, passando-a para os
governadores, ministros, e para os principais dos índios6.
Dois anos depois, baseado no argumento de que os índios eram
incapazes de se auto-governar, é estabelecido no Pará, em três de maio
de 1757 o “Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e
Maranhão, enquanto Sua Magestade não mandar o contrário” pelo qual se
introduzia a figura do diretor, que deveria administrar os índios enquanto
estes não tivessem esta capacidade. Segundo este documento, o diretor
deveria ser dotado de bons costumes, zelo, prudência, verdade, ciência
da língua, e de todos os mais requisitos necessários para poder dirigir
com acerto os índios. O parágrafo terceiro do mencionado diretório
é bastante elucidativo com relação aos objetivos da nova política que
estava tentando ser implantada:
“Não se podendo negar que os índios deste governo e capitanias anexas

126
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

se conservam até agora na mesma barbaridade, como se vivessem nos


incultos sertões, em que nasceram, praticando os péssimos e abomináveis
costumes do paganismo, não só privados do verdadeiro conhecimento dos
adoráveis mistérios da nossa santa religião, mas até das mesmas
conveniências temporais, que só podem conseguir pelos meios da civilidade,
da cultura e do comércio: e sendo evidente que as paternais providências
do nosso augusto soberano se dirigem unicamente a cristianizar, e civilizar,
estes, até agora infelizes e miseráveis povos, para que, saindo da ignorância
e rusticidade a que se acham reduzidos, possam ser úteis a si, aos moradores
e ao Estado.” 7
Entre as medidas a serem adotadas estavam: a proibição das línguas
nativas e a obrigatoriedade da língua portuguesa; a proibição da nudez;
a obrigatoriedade de morar em casas separadas; o combate ao
alcoolismo, a obrigação de que os índios tivessem nome e sobrenome,
sendo escolhidos para tal, os nomes de famílias portuguesas, enfim,
toda uma série de medidas no sentido de anular a identidade étnica
dos povos indígenas.
Segundo Fátima Lopes, o diretório tinha, por objetivo, atender às
novas demandas da metrópole, que necessitava de súditos para
consolidação do seu domínio colonial, tanto nas áreas de fronteira,
quanto nas áreas já sob seu domínio, mas com uma população mal
distribuída, concentrada no litoral e rarefeita no interior e visava: a
desestruturação da economia, sociedade e culturas indígenas, para
garantir a imposição da cultura ocidental cristã e a dominação portuguesa
efetiva; o aproveitamento do trabalho e da terra indígenas, para garantir
o desenvolvimento da colônia; e a exploração da figura do índio como
vassalo do rei de Portugal, para garantir a efetiva posse das terras sob
o seu domínio8.
Em oito de maio 1758, a lei de liberdade de 1755 e o Diretório de
1757 são estendidos ao Estado do Brasil. Dez dias depois é criada, em
Pernambuco, uma versão adaptada do Diretório do Maranhão: a
“Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e lugares
eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas” 9.
Nesta adaptação, alguns capítulos são idênticos, no entanto, são
feitas algumas alterações. Entre estas, o incentivo à extração do gravatá

127
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

e à pecuária, a proibição de serem tratados ou se tratarem entre si


pelos termos cativo, caboclo e Tapuia e, de acordo com o parágrafo
dezoito: “não consentindo o uso de aguardente mais do que para o curativo, e
abolindo inteiramente o uso das juremas contrário aos bons costumes e nada útil,
antes prejudicialíssimo à saúde das gentes”10.
A “Direção” de Luis Diogo Lobo da Silva diferenciou-se do Diretório
em dois pontos: a forma de repartição das terras e da distribuição dos
índios. O diretório previa que podiam se ausentar para prestar serviços
metade dos índios produtivos de 13 a 50 anos. Pela direção apenas
um terço. A repartição das terras no diretório deveria ser feita segundo
leis de equidade e justiça e segundo a direção de acordo com a
graduação e postos que ocupam os moradores. As diferenças com
relação à repartição dos índios foram aceitas, mas quanto à distribuição
das terras não. É interessante observar que, no caso das aldeias do Rio
de Janeiro no período em análise, diferentemente do que aconteceu
em outras regiões, segundo Maria Regina C. Almeida, as terras das
aldeias não reverteram para o patrimônio comum das novas povoações
e os índios permaneceram nelas cultivando pequenas porções de terras
ou arrendando-as, mas fazendo questão de manter o patrimônio que
lhes havia sido coletivamente legado 11.
Em 14 de setembro de 1758, a Rainha enviou cartas ao governador
de Pernambuco determinando que se transformassem em vilas as
missões de Pernambuco e suas anexas administradas pelos jesuítas, que
deveriam ser recolhidos ao colégio de Olinda. No mesmo dia, ordena
por Alvará ao bispo de Pernambuco, que nas missões de sua jurisdição,
que eram administradas pelos jesuítas, fossem criadas vigararias colativas,
substituindo os missionários por clérigos regulares. Em fevereiro de
1759, a junta aprovou os documentos que deveriam orientar os novos
funcionários (Párocos, diretores e mestres) na criação das vilas, assim
como na sua administração e decidiu também que os cargos deveriam
ser ocupados por militares que continuariam a receber seu soldo, fardas
e munições. Em 19 de maio de 1759, o ouvidor Geral Bernardo Coelho
da Gama e Casco partiu para o Ceará para dar início à instalação das
novas vilas de índios. A ordem era para fazer a criação de vilas ou
lugares apenas nas sete aldeias jesuíticas. Levava material para dar início
ao funcionamento das sete novas câmaras: papel, penas, pesos e

128
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

medidas, balanças ferros de marcar gado, varas para os vereadores,


linhas para demarcação das terras, escrivaninha, toalha de mesa e cofre.
Levava também enxadas, foices e machados para o trabalho agrícola
dos índios aldeados. A criação das novas vilas obedecia sempre ao
mesmo ritual: publicação de cópias das leis de liberdade, edital de
convocação da população para assistirem ao ato de criação da vila,
instalação do pelourinho, demarcação do local para construção da casa
de Câmara e cadeia e eleição dos Camaristas que iriam administrar a
vila com o diretor e o vigário e a aclamação: “Viva o senhor rei Dom José,
Primeiro de Portugal, nosso senhor que a mandou criar”12.
Com a expulsão dos jesuítas, das sete aldeias por eles administradas
na região de Pernambuco e capitanias anexas, seis passam à condição
de vila, e uma à condição de lugar, e recebem nomes de lugares e vilas
portuguesas.

QUADRO 1

Aldeias Jesuítas transformadas em vilas e lugar pelo ouvidor Geral


Bernardo Coelho da Gama e Casco em 1759-1760

CA PITA N IA S A LD EIA S VILA S OU LUGA RES

Rio Gra nde Gua jirú Vila de E xtremoz do Norte

Rio Gra nde Gua ra íra s Vila de Arêz

Cea rá Ibia pa ba Vila Viçosa Rea l

Cea rá Ca uca ia Vila de Soure

Cea rá Pora nga ba Vila Nov a de Arronches

Cea rá Pa upina Vila Nov a de Messeja na

Luga r de Monte-Mor o Nov o


Cea rá Pa ia cú
da América

129
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

O lugar de Monte-Mor o Novo da América foi logo extinto para


se unir à Vila de Portalegre, criada em seguida, sendo o seu diretor e o
seu mestre enviados para Jacoca, na capitania da Paraíba, e o vigário
para Arêz13.
Para uma visão mais geral da localização das aldeias na região em
estudo, no momento de implantação das mudanças advindas com a
legislação indigenista pombalina, ver a Relação das aldeias que há no distrito
do governo de Pernambuco, e capitanias anexas, de diversas nações de índios[1760]14,
em anexo no final do artigo.
Após este primeiro momento, que se dirigiu especificamente às
aldeias administradas pelos jesuítas, a responsabilidade pela ereção das
vilas e povoados foi atribuída pelo governador de Pernambuco ao
juiz de fora, Miguel Carlos de Pina Castelo Branco que ficou responsável
por 23 aldeias nas capitanias do Ceará, Paraíba e Pernambuco e ao
ouvidor geral das Alagoas, Manuel de Gouveia Alvares, que ficou
responsável por 24 aldeias da região sul da Capitania de Pernambuco15,
onde estavam localizadas as missões dos franciscanos e dos capuchinhos
italianos, que também foram expulsos das suas missões e os seus bens
inventariados e vendidos, tendo o fruto da venda sido aplicado nas
vilas e povoações criadas.
Para a execução da tarefa de ereção de vilas em povoados o
governador enviou, pelo ouvidor geral das Alagoas e pelo juiz de fora
acima mencionados, uma carta circular em 26 de abril de 1761,
acompanhada de uma portaria da mesma data, aos capitães mores,
oficiais e habitantes das antigas aldeias. A portaria que acompanha a
carta circular fornece alguns detalhes sobre a organização da empresa
a ser realizada:
“Ordeno a todos, e a cada um em particular, que logo que pelo dito
Ministro lhe for pedido, tanto o referido auxílio militar, que se lhe fizer
necessário como o de outra qualquer qualidade que consiste em guias,
mantimentos, forragens, e cavalaria para a união dos habitadores de
algumas das antigas aldeias que não seja conveniente subsistirem, nem
possam florescer, e seu comboio e das pessoas que o acompanham lho
façam pronto, como se na realidade eu especialmente lhe pedisse sem que
para lho darem seja necessário mais que mandar-lhes a cópia desta

130
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

minha ordem, feita pelo seu Escrivão, e coberta com a sua rubrica para
por ela darem parte em todo o tempo que lhe for preciso depois da
execução da referida assistência de braço militar, ao seu Oficial maior:
advertindo que todo aquele que nela se houver com alguma frouxidão e
menos expedição do que confio no zelo com que servem a Sua Magestade
não só lho estranharei, porém procederei com o castigo que for justo, e aos
que prontamente assistirem na forma expedida, e ajudarem voluntarios
a proporção das suas possibilidades com as cabeças de gado, e mantimentos
precisos a união dos Índios nos trânsitos que fizerem para o referido
efeito a fim de se consolidarem os estabelecimentos a que se dirige o dito
Ministro.”16
É interessante observar que nos sertões da região em análise, além
das aldeias existentes, havia ainda grupos indígenas que não estavam
aldeados, vivendo ou tendo voltado a viver de “corso”, tendo sido
fundamental para a ação do ouvidor geral das Alagoas na parte que
lhe coube, o trabalho anteriormente realizado pelo sargento-mor
Jerônimo Mendes da Paz, personagem fundamental no processo de
implantação da ordem pombalina nos sertões do São Francisco.
Em 23 de dezembro de 1759, o governador de Pernambuco e
capitanias anexas, Luiz Lobo Diogo da Silva expede portaria ordenando
que os capitães mores dos distritos e capitães mores das aldeias, a
quem o sargento mor Jerônimo Mendes da Paz enviasse carta sua, e
relação da gente necessária, acompanhada da dita portaria, a enviassem
com toda brevidade ao lugar destinado, para se unirem com ele e
seguirem suas ordens17.
A instrução passada ao sargento mor Jerônimo Mendes da Paz
pelo governador, no dia seis de janeiro do ano seguinte, fornece
informações preciosas de como foi pensada a implantação das
modificações do período pombalino nos sertões de Pernambuco, a
partir da situação existente. Em primeiro lugar, critica-se o sistema
missionário de administração dos índios até então vigente e, em seguida,
menciona-se cartas recebidas do comandante do Ararobá e
representação dos seus moradores, sobre as hostilidades, roubos,
mortes e outros insultos que os índios Paraquió, unidos às nações
Pipipam, Xocó, Mangueza e Guegue, tendo estas duas últimas não

131
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

sido civilizadas, tinham cometido na ribeira do Moxotó e Buíque,


infestando as estradas e obrigando os moradores a deixarem as
fazendas.
Segundo as informações recebidas, os índios da nação Paraquio e
Pipipam haviam voltado a viver de corso, com mais vigor, por se
unirem aos Mangueza, Guegue e Xocó, com os quais haviam acertado
fazerem um levante contra os moradores das ribeiras do Moxotó e
Buíque. O resultado foi a prisão dos índios Paraquió criminosos, sendo
transferidos cento e sessenta e tanto menos culpados para a missão de
Nossa Senhora das Montanhas do Ararobá. Não foi possível reduzir
à paz as outras nações, que passavam de 400 arcos, tendo-se
determinado, em junta, que o sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz
fosse ao dito distrito acompanhado das milícias e índios que achasse
necessário, procurando línguas capazes de expor às ditas nações que
delas se pretendia a paz e sujeição à sua Magestade Fidelíssima. O
projeto seria repartir estas nações nas novas vilas a serem erigidas. Porém,
quando as nações se mostrassem rebeldes às modificações propostas,
a ordem ao sargento-mor é clara:
“Porém, quando as sobreditas nações se mostrem rebeldes às suas
persuasões, e mais deligências, que exercitará depois de ter metido em
prática todas as condicentes a fazê-las perceber as utilidades que se lhe
seguem, e veja que subsistem na primeira dureza, sem esperança de podê-
las domar, à razão, será preciso, que vossa mercê, nestes termos, use dos
meios da força, e poder, quanto for justo, para se evitarem as destruições,
e ruínas, que ameaça este gentio, poupando tudo quanto for possível o
caminho do rigor, e mortandade, sem que falte a segura-los, e a castigar
os motores da inobediencia em que se acham de sorte, que não padecendo
mortes, sofrão no lugar do delicto pena que que sirva de exemplo aos
mais, para se conterem na devida sujeição.”
Na mesma instrução também há a informação que os índios Carnijó
haviam interrompido a obediência que deviam ao seu missionário e
deixado a aldeia, principiando o corso, de que se podia seguir reunirem-
se às outras nações, devendo o sargento-mor os obrigar a voltar para
a mesma, castigando os responsáveis pelo seu retiro. Encontra-se
também a recomendação a respeito de que nos distritos onde ele iria

132
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

atuar, havia muitas aldeias compostas de poucos casais e as ordens


modernas não consentiam se formassem com menos de cento e
cinqüenta, que ele procurasse unir-lhe o competente número, situando
as aldeias em terras que facilitassem o adiantamento da agricultura18.
Logo em seguida às ordens recebidas, o sargento-mor escreve do
Ararobá ao Capitão Mor do Piancó Francisco de Oliveira, solicitando
brancos e índios para a empresa que estava iniciando:
“É preciso que vossa mercê dessa parte do Piancó faça por prontos até
trezentos homens capazes de guerra moços os mais robustos, acostumados
a entrar nos matos municiados de munições de guerra e balas e armados
das melhores armas e entre elles alguns índios dos mais fiéis e valorosos
que houverem nesse distrito armados de seus arcos e flechas quando não
tenham boas armas de fogo.”19
A participação de capitães mores índios nesta nova bandeira ao
sertão é intensa. O sargento-mor envia correspondência para várias
aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas, solicitando ajuda na
luta contra o gentio rebelado. A correspondência de Jerônimo Mendes
da Paz com capitães mores índios da capitania da Paraíba serve como
exemplo para entender a participação de indígenas no processo de
implantação da ordem pombalina no sertão nordestino.
Em carta de 02 de julho de 1760, o sargento-mor escreve do
Alojamento das Flores da Ribeira do Pajaú, no sertão da Capitania de
Pernambuco a Frutuoso Barbosa da Cunha, capitão mor dos índios
da nação Icozinho, localizada no sertão da capitania da Paraíba:
“E assim me parece dizer a vossa merce, e por esta ordenar-lhe que faça
logo voltar todos os soldados que se retiraram e fugiram vergonhosamente
da bandeira do Piancó e busque que até encontrar os Xocós, os Oguêz,
ou Pipipans, ou Humans, ou Caracuis, (...)que lhes não hei de fazer
mal; por que eu não venho mais que a reduzi-los por bem à obediência de
nosso rei, e pô-las em estado de eles gozarem das muitas felicidades que
lhe quer logrem todos os seus vassalos e muito principalmente os indios a
quem o nosso rei quer muito bem. Porem se eles não quiserem obedecer os
prenda a todos e os traga a minha presença nesta Ribeira do Pajaú.(...)
se recear que sejam muitos ajuntem-se com os Panatis, ou Pegas, ou com

133
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

20
a gente do rio de São Francisco, ou com qualquer outra bandeira.”
Dois dias depois, ordena também a Pedro Soares de Mendonça,
sargento-mor dos índios da mesma nação, que com sua gente auxiliem
no combate aos índios das nações Xocós, Oguês, Mangueses, Pipipans,
Umans e Caracuis, desde Santa Luzia e cabeceiras do Rio Piranhas, no
sertão da Capitania da Paraíba até o rio Pajau, no de Pernambuco, e
recomenda que os Icós soldados não cometam mortes, nem crueldades,
nem maltratem os presos, nem façam agravos aos moradores onde
passarem e nem causem prejuízos nos gados e lavouras21.
O processo de combate aos índios rebeldes no sertão de
Pernambuco foi acompanhado da redução dos índios não aldeados e
da transferência compulsória dos grupos aliados para as vilas que
estavam sendo erigidas nas aldeias mais populosas e da repartição de
índios pelos moradores e para trabalhar nas obras públicas como mão-
de-obra compulsória.
Em carta de seis de julho de 1760, Jerônimo Mendes da Paz relata
a entrada que mandou fazer aos índios silvestres, tendo mandado uma
bandeira aos Paraquiós com o auxílio dos Carnijós e que esta “colheu”
170 índios. Também informa que foram aprendidos alguns mangueses
pela bandeira do Piancó, composta pelos índios da nação Icozinhos,
Panatis e Oguês22.
Uma semana depois, escreve novamente ao governador relatando
a chegada de trinta índios Corema da missão do padre Frei Próspero.
Informa que no dia 07 de julho haviam chegado dezoito Tamanquiús
e seis Caracuís do Rio de São Francisco e dos índios que se tinha
“colhido” havia enviado alguns dos velhos e mulheres de volta ao sertão
para ver se convenciam os outros a descerem. Dos Manguenzes enviou
quinze ao comandante do Ararobá e catorze dos oguêz não enviou
imediatamente para tentar com eles reduzir os outros ou “colher” mais23.
Em carta do governador de Pernambuco para Jerônimo Mendes
da Paz, escrita em agosto de 1760, ficamos sabendo um pouco mais
sobre o destino dos índios que estavam sendo “colhidos” nas bandeiras
do sertão:
“Os cento e sessenta e nove índios paraquiós que chegaram a esta vila
remetidos da do Penedo, com um capitão e oito soldados da ordenança

134
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

que os conduziram como era composto o seu número de cento e vinte e


nove rapazes de um e outro sexo os reparti pelos moradores que os
procuraram dos mais capazes com obrigação de os instruírem, educarem
e ensinarem os rapazes a ofícios, ficando obrigados a entrega-los todas as
vezes que deles lhes pedisse conta este governo, ao qual os apresentarão de
seis em seis meses, para examinar se satisfazem ao contrato que
prometeram e os quarenta adultos que ficaram capazes de trabalho, os
mandei dar para o das fortificações pondo correntes para maior segurança
dos oito que se descobriram principais cabeças da sua inobediência, e
fizera o mesmo aos trinta e dois que restavam, se os houvesse para se lhes
tirarem, porém a falta delas me obrigou enquanto se faziam a traze-los
no dito trabalho debaixo de guarda as quais os conduziam para ele e à
noite recolhiam a fortaleza e não obstante as recomendações com que lhes
havia ordenado se deviam haver nesta diligência, a executaram tão mal
que em poucos dias deixaram fugir os trinta e dois” 24
Em nova carta escrita da Povoação de Belém de São Francisco em
setembro do mesmo ano ao governador de Pernambuco, o sargento-
mor Jerônimo Mendes da Paz relata que enviou bandeira à serra dos
Umans e tentou também enviar mensageiros para persuadi-los a
reduzirem-se. Informa também a chegada do capitão-mor Francisco
Gomes de Sá com umas presas que havia feito em uma grande maloca
dos Ohês que tinha como governador um índio chamado Antonio
Preto – Sargento-mor da missão do Brejo que há anos havia fugido e
que foi morto no conflito. Conseguiram prender 17 mulheres e crianças
e os índios fugiram para missão do Brejo. As índias foram bem cuidadas
e instruídas para voltarem ao mato e persuadir os outros a se aldearem.
Com presentes os índios foram sendo atraídos à missão do Brejo e lá
foram presos e conduzidos “em paz” até a missão do Axará. Depois
os culpados dos levantes foram presos e enviados ao comandante do
Ararobá e os outros soltos25.
Quanto às transferências e reduções realizadas na região do sertão
do São Francisco, merece atenção especial o ocorrido com relação à
vila de Assunção, que foi criada pelo sargento mor na Ilha da Varge e
mudada pelo ouvidor geral das Alagoas para a Ilha do Pambu, onde
foi instalada definitivamente, percebendo-se, na análise da documentação
pesquisada, que houve um conflito entre os mesmos. Percebem-se

135
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

também os diversos interesses envolvidos na posse das terras das antigas


aldeias evacuadas, por parte dos sesmeiros, entre eles, alguns ligados à
Casa da Torre, da Capitania da Bahia.
Em carta a Jerônimo Mendes da Paz, de 08 de maio de 1761 o
governador de Pernambuco, aprova a transferência feita dos índios
Oes e Xocós da Ilha do Pambú e outras nações do mato para a da
Assunção e a união que pretendia fazer dos índios do Aracapá e outros
para a ilha do Iripua. Sobre os índios Tamaquios da missão do Pontal
se unirem à povoação de Santa Maria ordena:
“quando nessa ache alguma rebeldia , o meio mais eficaz segundo entendo
é prender os cabeças e remete-los para os por em Fernando {de Noronha],
a fim de que com este exemplo, se moderem os mais abstendo-se de
semelhantes intentos, quando não haja inconveniente de os unir a outra
nação , que não seja a Karery, com que os ditos missionários lhes tem
cultivado esta oposição”26
Em 13 de maio de 1761, o governador de Pernambuco escreve ao
governador interino do Estado Thomas Ruby de Barros Barreto
informando que das dez ou doze malocas e índios de corso que havia,
fez duas povoações nas ilhas de Assunção e do Irapuá, chamada de
Santa Maria, no sertão do rio de São Francisco27.
A Relação das aldeias que há no distrito do governo de PE, Paraíba
e mais capitanias anexas, de diversas nações de índios, existente em
códice da Biblioteca Nacional, indica quais foram as aldeias transferidas
por Jerônimo Mendes da Paz para a criação das duas vilas:
“Freguesia de Rodelas – Missão Nova de S. Francisco do Brejo, N.S.
do Ó, N.S. de Belém, Beato Serafim, N.S. da Conceição (Estas cinco
aldeias se acham reduzidas pelo sargento mor Jerônimo Mendes da Paz
a ilha de Assunção chamada antigamente Varge) S. Francisco, S.
Felix, S. Antonio, N. S. da Piedade, n.s. do Pilar, n.s. dos Remédios,
Sr. Santo Cristo, ( o dito sargento mor infronte reduziu estas sete
aldeias a ilha de S.Maria chamada antigamente Arapuá).”28
Pela carta do governador de Pernambuco ao sargento mor em
junho de 1761, ficamos sabendo que as casas dos índios da antiga
aldeia do Pambu foram desmanchadas e as madeiras e materiais úteis

136
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

conduzidos para a Ilha da Assunção29.


Em setembro do mesmo ano, o governador escreve ao sargento
mor reconhecendo que toda a extensão da Ilha do Pambú era precisa
aos moradores da Vila de Santa Maria, e que os pretextos de patrimônio
da Igreja de Cabrabó, que na primeira se intentava fazer, não se deviam
prevalecer ao justo interesse, e utilidade dos Índios, que Sua Magestade
Fidelíssima mandava atender com preferência: O mesmo militava a
respeito de todas as mais Ilhas e territórios que o dito Governo assinou
para termos das referidas Vilas ficando as do Sorobabé e Pontal para
indenizar os prejudicados que não tiverem sesmarias nas que se lhes
tomaram, e no que respeita à Casa da Torre não as tendo abertas e
povoados por si, e seus feitores, segundo as últimas ordens, entendia
não terem direito algum para se lhes dar por este Governo equivalente,
em outros iguais sítios, ou diferentes sem que Sua Magestade Fidelíssima
o determinasse. Solicita ainda que enviasse relação com quantidade,
qualidade e quantia necessária para a compra de ferramentas para
agricultura nas duas vilas que foram estabelecidas e informa que o
dinheiro sairia dos seqüestros praticados30.
Pela carta enviada pelo governador de Pernambuco ao Ouvidor
Geral das Alagoas, ficamos sabendo que o mesmo havia ido às novas
Vilas de Santa Maria e da Assunção, não se esquecendo da formalidade
de lhes assinar termo, patrimônio para as Câmaras, pastos e
logradouros, providenciando mestres para ensinar os rapazes a ler e
escrever, além de proceder à eleição dos camaristas e nomeações dos
Oficiais, para os quais o governador afirmou que mandaria as Provisões
dos seus respectivos Ofícios, na conformidade do Decreto de 14 de
Setembro de 1758. O governador afirma ainda que foi acertada a
determinação de fazer despejar o rendeiro da Ilha do Pambú, e adjucá-
la, por inteiro aos moradores da Ilha de Santa Maria. Sobre a união da
antiga Missão de São Braz, Xocoz e Alagoa Comprida e Pão de Açúcar
às Fazendas do Colégio pela comodidade de lhes ficar servindo de
Igreja a Capela que nas ditas fazendas havia, lhe parecia não devia
servir de obstáculo a terra necessária para se situarem, por terem estas
terras super abundantes a repartirem com eles31.
O interesse sobre a posse das terras da Ilha do Pambu e os conflitos
dele decorrentes fica claro nas cartas do governador de Pernambuco

137
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

ao Ouvidor das Alagoas de 14 e 16 de dezembro de 1761. Na primeira,


informa que, pelas cartas que havia recebido de Jeronimo Mendes da
Paz, e as que escreveu o Vigário do Cabrabó Zacharias Diniz à Sua
Excelência Reverendíssima, estes não se achavam satisfeitos com a
decisão de mandar evacuar a ilha do Pambú32. Na segunda carta, afirma
que a a resolução mais acertada é logo fazer transferir todos os Índios
da Povoação da Assunção para a do Pambú, e nela estabelecer a Vila
que se erigiu na primeira, não obstante estarem na Ilha da Assumpção
feitas as casas de acomodação dos Índios e derrubadas aquelas em
que viviam na do Pambú, por ser mais conveniente a subsistência do
estabelecimento perder o trabalho das primeiras e sacrificar o necessário
para o reparo das segundas que renunciar as utilidades que se seguem
do aumento, abundância e cômodo dos Índios na mudança que lhe
parecia indispensável nas referidas circunstâncias. Quanto à resistência
dos índios da aldeia da Alagoa Comprida em se unirem aos que assistem
nas fazendas que foram dos Jesuítas, orienta proceder como tem
praticado o Doutor Juiz de Fora:
“que vem a ser depois da experiência mostrar não cederem aos remédios
brandos, usar dos mais ativos, prendendo-lhe os cabeças e remetendo-mos
com Sumários quem com esta receita temos tido igual ou muito maior
dureza nos Pegas e Apodis que sendo dos mais bárbaros deste continente,
se acham com a prizão dos que os fomentavam a não largarem os sítios
em que residiam, obedientes e ativos trabalhadores nas Vilas a que se
uniram por força das comodidades e vantagens que se lhes seguem destas
novas assistências e observância das Reais Ordens, e precisão de se
separarem daquele distrito em que as não podiam lograr”. 33
O quadro a seguir, elaborado a partir de uma “Relação dos novos
estabelecimentos das vilas e lugares dos índios do governo de Pernambuco da parte
do sul, executados por Manuel de Gouveia Álvares, cavaleiro professo na Ordem de
Cristo, ouvidor geral da comarca de Alagoas” de 1764, existente na
documentação avulsa relativa à capitania de Pernambuco no Arquivo
Histórico Ultramarino, nos fornece uma visão das transferências e
reduções realizadas pelo dito ouvidor, com o auxílio inicial de Jerônimo
Mendes da Paz34.

138
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

QUADRO 2
Vilas e lugares de índios criados pelo Ouvidor das Alagoas
Manuel de Gouveia Alvares

A LD EIA S
VILA / EXISTEN TES
LOCA L FO G O S A LMA S DA TA
LUGA R OU
A GREGA DA S

Coripós,
Vila da Ilha de Inha muns, Sã o
Sertã o do
Sa nta Ma ria Felix, Ara ca pá ,
Sã o 257 668 1761
(a ntiga Ara ripe, Ponta l e
Fra ncisco
Ara puá ) índios Uma ns
tra zidos do ma to

Vila da Ilha de
Sertã o do Axa rá , Va rge,
Assunçã o
Sã o Soroba bé, Brejo 256 713 1761
(a ntiga
Fra ncisco do Ga ma
Pa mbú)

Luga r de
Sã o Bra z, Ala goa
Porto Rea l
Comprida e 407
(fa zenda
- índios da 113 ou 1762
Ur ubu Mirim
Pa lmeira e olhos 470
que foi dos
de á gua dispersos
Jesuíta s)

Missã o de N. S.
Sertã o do Vila de da s Monta nha s
- 722 1762
Ara robá Cimbres (a ldeia do
Ara robá )

Sertã o do Luga r de
Comuna ti 130 410 1762
Ara robá Água s Bela s

Beira Luga r
Una - 293 1763
Ma r Ba rreiros

Ur ucu, Sa nto
Ama ro, Ma ca co e
índios que
v iv ia m dispersos
- Vi l a At a l a i a na s pa lhoça s da 229 924 1764
Ga meleira ,
Pa lmeira ,
Ma incó,
Sa ba la ngá

139
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

Na parte que coube ao juiz de fora Miguel Carlos Caldeira de Pina


Castelo Branco, observa-se o mesmo processo de redução e
transferência compulsórias. Na criação da vila de Portoalegre no Rio
Grande, a partir da antiga Missão do Apodi, a transferência compulsória
dos índios é feita com financiamento dos moradores, que queriam se
livrar da sua vizinhança e apoderar-se das suas terras. Para esta vila
também foram transferidos os Paiacú de Monte-mor o novo, no Ceará.
Os Pega do sertão da capitania da Paraíba também são transferidos
compulsoriamente para a vila de São José do Rio Grande, antiga Missão
do Mipibú, de onde fogem e são recapturados.
Em julho de 1761, o governador de Pernambuco escreve ao
Secretário de Marinha e Ultramar informando que sabendo da pouca
utilidade que tinham as terras das aldeias dos Pega, foi investigar e
constatou que as terras eram impróprias para a agricultura, mas boas
para o gado. A povoação possuía pouco mais de uma dúzia de casas
de palha sem igreja. Por esta razão, resolveu unir os Pega aos de Mipibú,
porém não consultou os índios sobre a mudança de lugar da sua aldeia,
contrariando as normas do Diretório dos Índios. Propôs aos índios
irem para o Apodi, mas eles alegaram que eram inimigos dos vizinhos
de lá. A estratégia para convencer os índios para irem para Mipibú foi
publicar que queria lhes passar mostra. No dia combinado os Pega
compareceram com algumas espingardas e todos de arco e flecha. À
medida que os índios iam se alistando seus arcos e flechas iam sendo
recolhidos com o argumento que aquelas armas eram reprovadas pelo
rei que só queria que os seus soldados usassem espingardas. Em seguida
os colocou em marcha para a nova localidade no Mipibú. Depois os
bens dos Pega foram inventariados, a serra em que viviam e o terreno
de suas roças foram arrendados e os seus animais vendidos, devendo
o dinheiro ser empregado na construção de novas casas para os mesmos.
Informa também que os índios da nação Icozinho eram de agrado se
unir aos do Apodi e que havia juntado a nação dos Caboré também
naquela vila do Apodi e pretendia juntar a aldeia do Panati à do
Miranda.Um mês depois, em carta escrita ao dito secretário, o referido
governador informa que os Pega aldeados no Mipibu, fugiram
motivados pelos seus principais, mas foram alcançados em
Mamanguape e presos35.

140
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

Pelo termo oriundo da junta realizada em 24 de agosto de 1761 no


Palácio Episcopal da Soledade em Recife, com a presença do Bispo
da diocese, do governador e do juiz de fora, ficamos informados que
o dito juiz havia mudado:
“as nações Pegas e Icozinhos, aqueles para a aldeia de Mipibu e estes
para a do Apodi, aonde tinha ajuntado e aldeado o resto que hoje
existia da nação dos Caburés, e vários casais, que residiam nas serras e
fazendas dos sertões do Piancó e Açu, e porque querendo erigir em vila
a dita povoação do Apodi, foi informado pelo seu diretor José Gonçalves
da Silva não havia terra capaz de plantas, que se repartisse a todos os
moradores, e lhe constou que dentro do espaço de 12 léguas há a serra
chamada dos Martins, extensa, fertilíssima, de grande negociação, e
muitos habitantes, os quais, congregados com os índios do Apodi,
constituirão talvez a maior vila deste governo depois da sua capital,
julgava seria de grande conveniência a translação da vila para a dita
serra, dando-se ao sesmeiro desta em troca todas as terras do referido
lugar do Apodi, ou parte delas, (...), transferindo-se as imagens da
Paróquia para a Igreja do Apodi, e as desta para uma capela que há
na serra. Aonde com a finta dos fregueses da dita paróquia para a sua
matriz, se constituiria a da futura vila”.
O juiz também havia ponderado que a Casa da Torre pretenderia
apossar-se das terras dos índios Panatis, quando estes fossem unidos à
missão do Miranda, na capitania do Ceará, porque as havendo dado
para a habitação dos ditos índios, julgaria que as deixando estes, lhe
deveriam ser restituídas, como tem intentado em casos semelhantes,
no rio de São Francisco, mas como a dita Casa havia feito a doação
das ditas terras não a podia revogar, nem tomar a si o que uma vez
deixou de ser seu. A junta resolveu a transferência da aldeia do Apodi
para a Serra dos Martins, assentando que para os trânsitos dos índios
de umas aldeias para outras, se fintem os moradores que tiverem
conveniências em que lhes separem aqueles das vizinhanças das suas
fazendas. Em 27 de setembro do mesmo ano, os moradores da dita
serra escrevem uma petição ao governador solicitando que a
transferência não seja feita, no entanto, não são inicialmente atendidos.
Finalmente, após vários entendimentos, os índios da missão do Apodi

141
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

foram transferidos para a Serra do Regente, onde foi criada a vila de


Portalegre36.
Não foi possível acompanhar todas as transferências, reduções e
ereção de vilas e povoados realizadas na parte norte da capitania de
Pernambuco e suas anexas que foi confiada inicialmente ao juiz de
fora Miguel Carlos Caldeira de Pina Castelo Branco. No entanto, através
dos autos de uma devassa sobre as vilas de índios, posterior a 1763,
identificamos algumas delas na capitania da Paraíba: os índios Fagundes
da Povoação do Brejo do sertão do Cariri de Fora foram transferidos
para a Baía de São Miguel, antiga Baía da Traição e os índios da aldeia
da Campina Grande, para Monte-mor-o novo37. Segundo, Fátima
Lopes, na criação de Vila Flor, na Capitania do Rio Grande, também
são agregadas as aldeias de Macacau, Tapissurema e Utinga, esta última
da capitania da Paraíba38.
O mapa geral de todas as vilas e lugares que se tem erigido de 20 de maio de
1759 até o último de agosto de 1763 das antigas aldeias do gov.de PE e suas
capitanias anexas, apresenta as seguintes informações, sobre a ação do
Juiz de Fora na parte que lhe coube. . Na capitania do Rio Grande
foram fundadas: Vila de Portalegre em 08 de dezembro de 1761; Vila
de São José do Rio Grande, em 20 de fevereiro de 1762 e Vila Flor
em 10 de outubro de 1762.Na capitania da Paraíba foram criadas as
seguintes vilas e lugares, a partir de antigos aldeamentos indígenas: Vila
da Baía de São Miguel, em 28 de novembro de 1762; Vila de
Montemor, em 08 de dezembro de 1762, Vila de Nossa Senhora do
Pilar, em 05 de janeiro de 1763 e dois sem nome e sem data : um de
língua geral a que se uniu os Panati e outro de Aratahuy a que se uniu a
do Ciry. Na capitania de Pernambuco foram fundadas pelo dito
ouvidor duas povoações, das quais não constam nome e data de
criação.Além destas, para a capitania do Ceará, são mencionadas duas
vilas erigidas pelo dr. ouvidor do Ceará Vitorino Soares Barbosa39.
Algumas destas vilas podem ser vistas na Carta topográfica aonde se
compreendem as capitanias de que se compõem ao presente o Governo de Pernambuco,
datada de 31 de março de 1766 e em anexo no final do artigo40.
Um dos elementos significativos observados na documentação
pesquisada é que o cargo de capitão-mor nas vilas instituídas,

142
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

aparentemente é sempre ocupado por índios, ao contrário dos


diretores, que são sempre brancos. A análise realizada por Patrícia
Sampaio para a região Amazônica, indica o mesmo padrão, o que,
apesar das diferenças regionais, pode ser interpretado, conforme
reflexão baseada na leitura da mesma, como uma forma de negociação
política entre as lideranças indígenas e o poder colonial, reforçando-se
a idéia da implantação da legislação pombalina como um produto da
interação entre as políticas indígenas e indigenistas41.
Segundo Rita Heloísa de Almeida, para o Estado Monárquico, em
Portugal, conceder patentes militares a índios responde à máxima do
“estabelecimento de alianças políticas com as populações que habitavam as terras
conquistadas, instaurando um pacto de favores e lealdade que alicerçava a soberania”42.
A preocupação em considerar as lideranças indígenas pode ser
percebida na atitude tomada pelo governador de Pernambuco, que
antes de enviar o ouvidor geral para as sete aldeias administradas pelos
jesuítas nas capitanias do Ceará e Rio Grande, que deveriam ser erigidas
em vilas, enviou correspondência aos seus principais para
comparecerem ao Recife.
Em ofício do dito governador de Pernambuco ao secretário de
estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte Real,
de 13 de junho de 1759 é possível perceber alguns detalhes da visita
destes principais ao Recife e qual a visão política e estratégica que o
governador tinha ao convidá-los e o porquê do tratamento dado aos
mesmos. Na primeira correspondência informa que os convidou: “pelo
fundamento de pessoalmente lhes destruir algumas sinistras impressões que receava
lhes pudessem dar com que obstassem aos ditos estabelecimentos” Informa ainda
que logo que receberam as cartas se puseram à caminho por mais de
300 léguas: “acompanhados não só dos dois, ou três mais inteligentes, que lhes
pedia de cada uma, mas da maior parte dos oficiais que voluntariamente os quiseram
seguir”. Os índios chegaram no dia 29 de maio de 1759, e eram mais de
cem. O governador relata que decide convidar os mestres de campo
da Serra da Ibiapaba e da Parangaba (posteriormente Arronches) para
jantar no dia do aniversário do rei:
“Convidei a D. Felipe de Sousa e Castro, mestre de campo da Serra da
Ibiapaba, hoje Vila Viçosa Real para jantar comigo, tanto por ser o

143
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

principal chefe a quem sete ou oito mil almas que domina, respeitam com
inteira obediência, como por se achar condecorado com o hábito de S.
Iago, e o mesmo pratiquei com o da Parangaba, João Soares Algodão
por motivos de igual qualidade, ainda que não de tanta força por ser
menos numerosa a aldeia, que governa, aos quais dei a cada um, um
vestido, e para a mulher do primeiro um corte de seda (...)tudo por me
parecer justo distingui-los e contenta-los afim de que os outros lhes
conservassem respeito, e os povos, vendo que eu lhe atendia, os tratassem
com decência: maiormente quando ambos tem comprovado em todas as
ocasiões que se tem oferecido do Real Serviço per si, e seus antecessores,
ações qualificadas de valor e exemplares mais fortes da fidelidade.”43
Os conflitos de interesse entre as liderenças indígenas e a nova ordem
que se queria implantar, ficam claros durante a estadia no Recife. O
mestre de Campo da Serra da Ibiapaba, reinvidica direitos de cobrança
de impostos e posse de terra. É interessante observar que o governador
não cede na questão da cobrança dos impostos, mas permite uma
distribuição especial das terras, o que é um exemplo interessante da
interação entre as políticas indígena e indigenista no momento em
questão:
“O dito mestre de campo D. Felipe de Souza se houve com tal bizarria
, que na minha presença, cedeu toda a civilidade, que lhe provinha das
potaba, que cobrava como principal da Ibiapaba, as quais consistiam
em meia pataca que lhes passava cada índio, que saía a comboiar gados
por todo este continente, sem que fosse preciso mais, que dizer-lhe que não
era justo, que ele percebesse contribuições daquelas mesmas pessoas, de
quem El Rey Nosso Senhor como legítimo soberano os podia cobrar, e
não levava. O mesmo me representou que para sustentar com decoro
correspondente ao posto, e honras com que Sua Magestade Fidelíssima
o havia distinguido, se lhe fazia preciso o dito senhor lhe conservasse uma
fazenda de gado, que possuía com duzentas cabeças e lhe desse terra
para estabeleceu outra afim de que pela utilidade de ambas se pudesse
decentemente entreter e a sua família sem extorquir dos seus súditos
porção alguma de que se prevalecesse, por não querer nesta parte incorrer
na justa indignação do mesmo senhor vista a honra que lhe fazia em
determinar fossem tratados com os mais portugueses, e segundo as

144
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

graduações dos seus postos. Confesso a Vossa Excelência que esta rogativa
me pareceu tão justa, unida a reflexão da muita terra que há na Serra
da Ibiapaba, que me não pude dispensar de avisar ao Ouvidor Geral a
que lha desse, além da porção, que lhe toca pelo diretório(...)Outros acho
que me pediram o mesmo a respeito de menores porções de terra que
compraram com o seu trabalho, em que faziam as suas plantas e
entretinham algumas cabeças de gado, que ganharam nos serviços que
fizeram entre os brancos e como entendi, que pelo benefício da cultura
não deviam ser de pior condição, antes era justo premiar a atividade de
a fazerem, (...) ordenei ao dr. Ministro, que além das que tivessem bem
fabricadas, e povoadas lhes desse as que lhe tocam pelo Diretório, querendo-
as, e sendo-lhes precisas em quanto o mesmo sr. não mandar o contrário.”44
A rebeldia destes capitães mores pode ser percebida na carta do
governador de Pernambuco ao diretor da Aldeia do Panati, no sertão
da capitania da Paraíba em 04 de junho de 1761:
“fico no conhecimento da pouca obediência e grande desarranjo em que se
acham os índios desta missão, pela desordem em que estavam criados e
mau procedimento do capitão-mor, e outros oficiais seus parciais, e como
as circunstancias que pondera a respeito das conseqüências que receia, se
originam de prender os cabeças do referido desmancho, atendendo ao
estado presente em que se acham, podem servir de obstáculo a fazer-se
diligência descoberta, se faz necessário usar do caminho da indústria
para se alcançar a separação dos perturbadores, o que se facilita,
mandando a V.M. o dito capitão mor e mais os motores do seu séqüito
a esta praça com carta de recomendação em que diga são os primeiros
para os empregos e como tais vem dar juramento de suas patentes e
instruir-se das novas ordens de Sua Majestade Fidelíssima, para saber
o que há de praticar com acerto, sem que na dita carta inclua outra
alguma circunstância de que possa presumir se procura proceder contra
eles, ou deixa V.M. de se interessar verdadeiramente a seu respeito.
Para que eles não repugnem a este meio lhes lembrará que a criação das
ditas vilas que se formarem tem procedido virem receber as ditas instruções
os cabos mais distintos delas, como praticou D. Felipe de Souza Mestre
de Campo da Ibiapaba, hoje Vila Viçosa Real, Algodão e todos os
mais, o que lhe não pode deixar de ser manifesto, da mesma sorte, que a

145
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

atenção que tive com eles de os socorrer, para as despesas do caminho,


quando se retiraram.” 45
Um indicador da importância militar dos capitães mores índios é a
nomeação de novos chefes para as aldeias do São Francisco e criação
de companhias militares nas vilas e povoações por Jerônimo Mendes
da Paz. Em carta de 17 de outubro de 1760 o dito sargento mor relata
os conflitos decorridos pela junção de várias nações dispersas pelas
pequenas aldeias em uma só povoação. Foi nomeado para cabo superior
de todas as nações o capitão mor Pedro Fonseca de Souza que antes
era capitão-mor do Pambú, das nações dos Kariris. Para sargento-
mor foi nomeado Aleixo da Cunha, da nação Porcá, que tinha sido
sargento-mor da aldeia de Rodelas. Expôs ainda que as companhias
deviam constar 50 homens ao menos: que dos cariris e habitantes do
Pambú podiam fazer uma; que da nação dos Porcás, Pancararus e
Caruaz que hoje estão tão baralhadas as aldeias do Sorobabé, Axará e
esta da Vargem devia fazer duas companhias para acomodar os cabos
de todas as três, porém não tinha gente mais que para uma, e para
remediar esta falta lhes agregaria em duas esquadras os índios
novamente reduzidos46.
Um outro exemplo da presença indígena nos cargos de capitão-
mor, no momento das transformações do Diretório pode ser visto
na correspondência do governador de Pernambuco ao capitão mor
da aldeia de Mipibu Leandro de Souza:
“Espero que Vossa Mercê se regule de modo que não só se mostre eficaz
observador das ordens de Sua Magestade Fidelíssima, o diretório, porém
obediente ao diretor, e pronto no cuidado de animar os seus índios a
obedecerem lhe e a concorrerem com inteira vontade a adiantarem as
suas lavouras.”47

Considerações Finais
Para ilustrar como se deu a recepção e aplicação destas novas leis e
os diversos interesses envolvidos, é interessante observar que, no
período entre fins das missões e criação das vilas, surgem rumores de
levantes entre os índios, como por exemplo na aldeia de Guajirú, na
Capitania do Rio Grande e Baía da Traição, na Paraíba. O resultado de

146
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

ambas as devassas apontaram um conluio das autoridades locais para


confundir a instalação das vilas, o que provocou, no caso do Rio
Grande, a prisão do seu capitão-mor e do tabelião público e, na Paraíba,
do Ouvidor Geral.
O processo de transformação das aldeias em vilas é acompanhado
de vários conflitos sobre jurisdição, principalmente envolvendo a
questão da cobrança dos impostos e acesso à mão-de-obra, entre os
vereadores das câmaras da sede das capitanias e as vilas criadas no seu
entorno, que reduziram drasticamente o seu território de atuação. Isto
é visível tanto no que diz respeito ao senado da câmara de Natal quanto
da Paraíba48.
Ainda, em 1766, a Câmara da Paraíba, em ofício de 21 de julho de
1766 ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, reclama a
diminuição de dízimo e a falta de mão-de-obra e informa não possuir
registro das quatro vilas criadas pelo bacharel Miguel Carlos de Caldas
Pina Castelo Branco nas imediações da cidade, por ordem do
governador de Pernambuco em carta de 14 de setembro de 175849.
A implantação da nova legislação indigenista na Capitania de
Pernambuco e suas anexas (Paraíba, Rio Grande e Ceará naquele
momento), e os conflitos e adaptações a ela, é um processo bastante
complexo e pouco trabalhado pela historiografia na região até o
momento, variando bastante segundo as conjunturas locais, que eram
condicionadas pelo equilíbrio precário de forças existente entre
populações e lideranças indígenas, moradores e agentes coloniais. Há
uma nítida diferença entre o ocorrido nas aldeias mais populosas que
foram transformadas automaticamente em vilas e os grupos dispersos
e não aldeados do sertão, que são violentamente reduzidos.
Apesar do emaranhado de informações, provenientes das diversas
esferas de ação dos agentes coloniais, tanto no que diz respeito ao
espaço de jurisdição, quanto à maior ou menor proximidade e
dependência do poder metropolitano, é possível perceber algumas
características comuns ao processo de implantação do novo modelo
de relação com os índios na região em estudo. Entre estes merecem
destaque a redução de índios “silvestres” e a transferência e fusão de
aldeias, para atingir o mínimo de 150 casais estabelecido pelo Diretório,

147
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

que gerou muitos conflitos, pois os índios relutavam em deixar os seus


locais de origem, e o confisco dos bens das missões religiosas e sua
distribuição pelos índios e diretores, o que acabou contribuindo no
processo de cooptação das lideranças indígenas e aumento das
desigualdades entre os índios.

***
Anexo 1

RELAÇÃO DAS ALDEIAS QUE HÁ NO DISTRITO DO


GOVERNO DE PERNAMBUCO, E CAPITANIAS ANEXAS,
DE DIVERSAS NAÇÕES DE ÍNDIOS [1760]
Aldeias da capitania de Pernambuco,
do distrito de sua provedoria

Vila do Recife
Aldeia de Nossa Senhora da Escada, cita na freguesia de Ipojuca, de índios de
língua geral. Missionário religioso da Congregação do Oratório. [1]
Vila de Igarassú
Aldeia do Limoeiro, cita na freguesia de santo Antônio de Tracunhaém, de
índios de língua geral. Missionário religioso da dita congregação. [2]
Vila de Goiana
Aldeia do Aratagui, cita na freguesia da Tacoara, junto ao Rio chamado Papoca
de Baixo, invocação a Nossa Senhora da Assunção, é de índios da língua geral.
Missionário religioso dito acima.[3]
Aldeia do Ciry , cita ao pé do rio assim chamado na freguesia de São Lourenço de
Tejucupapo, invocação São Miguel, índios de língua geral. Missionário religioso
do Carmo da Obervância. [4]
Vila de Serinhaém
Aldeia de Una, cita na mesma freguesia, invocação São Miguel, índios de língua
geral. Missionário religioso dito acima. [5]
Vila das Alagoas
Aldeia de Santo Amaro, que é a sua invocação, índios da língua geral. Missionário
franciscano. [6]

148
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

Aldeia da Gamelera, cita no distrito do Palmar, invocação Nossa Senhora das


Brotas , têm duas nações de índios Uruaé, Curiris. Missionário, clérigo, o capelão
do Palmar. [7]
Aldeia do Urucú, cita na freguesia da Alagoa do Norte, invocação Nossa Senhora
da Conceição, índios da língua geral. [8]
Vila do Penedo
Aldeia de São Braz ,invocação Nossa Senhora do Ó, índios da íngua geral,
nações Kareriz, e Projez. Missionário [9]
Aldeia da Alagoa Comprida, invocação São Sebastião. Índios Carapatioz.
Missionário. [10]
Aldeia do Pão de Açúcar, invocação Nossa Senhora da Conceição. Índios da
língua geral. Nação Xocós. Missionário, clérigo. [11]
Aldeia da Alagoa da Serra do Comunaty, invocação de Nossa Senhora da
Conceição. Índios de língua geral. Nação Carijós. Missionário clérigo. [12]
Freguesia do Ararobá
Aldeia de Nossa Senhora das Montanhas, índios Xucurus. Missionário religioso
da Congregação do Oratório [13]
Aldeia dos Carnijós, cita na Ribeira do Panema, no lugar da Alagoa. Índios
Carnijos. Missionário clérigo. [14]
Aldeia do macaco, índios Paraquiós. Missionário [15]
Freguesia do Rodelas
Aldeia da Missão Nova de São Francisco do Brejo, cita na Ribeira do Pajaú.
Nações de vários índios. Missionário religioso franciscano. [16]
Aldeia de Nossa Senhora do Ó. Cita na ilha do Sorobabel, índios das nações
Porcáz e Brancararus . Missionário religioso franciscano. [17]
Aldeia de Nossa Senhora de Belém, cita na ilha do Axará, índios das nações
Porcáz e Brancararuz. Missionário barbono.[18]
Aldeia do Beato Serafim, cita na ilha da Vargea índios das nações acima.
Missionário religioso barbadinho. [19]
Aldeia de Nossa Senhora da Conceição, cita na ilha do Pambú , índios Kaririz.
Missionário dito acima. [20]
Aldeia de São Francisco, cita na ilha do Aracapá, nações de índios Kareriz.
Missionário barbono [21]
Aldeia de São Félix , cita na ilha do Cavalo, índios Kariris, missionário barbadinho.
[22]

149
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

Aldeia de Santo Antônio, cita na ilha do Arapuá índios da nação dita. Missionário
barbono. [23]
Aldeia de Nossa Senhora da Piedade, cita na ilha do Inhanhum. Índios Kaririz.
Missionário franciscano. [24]
Aldeia de Nossa Senhora do Pillar, cita na ilha dos Coripós, nação dos Coripós,
missionário religioso franciscano. [25]
Aldeia de Nossa Senhora dos Remédios, cita na ilha do Pontal, índios da nação
Tamaquis. Missionário religioso franciscano. [26]
Aldeia do Senhor Santo Christo no Araripe, índios da nação Ichuz. Missionário
e religioso barbadinho. [27]
Rio Grande do Sul
Aldeia do Aricobé, invocação de Nossa Senhora da Conceição. Índios da língua
geral chamados Aricobés. Missionário religioso franciscano da Bahia [28]
Capitania da Paraíba
Distrito da Cidade
Aldeia da Jacoca, invocação de Nossa Senhora da Conceição. Índios de língua
geral. Missionário religioso de São Bento. [1]
Aldeia da Utinga, invocação Nossa Senhora de Nazaré. Índios de língua geral.
Missionário religioso dito acima. [2]
Mamanguape
Aldeia da Baía da Traição, invocação São Miguel. Índios da língua geral.
Missionário religioso do Carmo da Reforma. [3]
Aldeia da Preguiça, invocação Nossa Senhora dos Prazeres. Índios da língua
geral. Missionário religioso do Carmo da Reforma. [4]
Aldeia da Boa Vista, invocação Santa Teresa e Santo Antônio, índios da nação
Canindés, e Sucurus, missionário religioso de Santa Teresa [5]
Taipú
Aldeia dos Kariris, invocação Nossa Senhora do Pilar, índios Religioso
capuchinho missionário. [6]
Cariris
Aldeia da Campina Grande, invocação São João, índios da Nação Cavalcantes.
Missionário clérigo. [7]
Aldeia do Brejo, invocação Nossa Senhora da Conceição. Índios da Nação
Fagundes. Missionário religioso capuchinho. [8]

150
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

Piancó
Aldeia dos Panatis, invocação São José, índios da nação Missionário
religioso de Santa Teresa. [9]
Aldeia do Corema, invocação Nossa Senhora do Rosário. Índios da nação
Missionário religioso capuchinho. [10]
Piranhas
Aldeia do Pega, índios da nação . Missionário. [11]
Rio do Peixe
Aldeia do Icó Pequeno índios da nação Missionário. [12]
Capitania do Rio Grande
Aldeia do Apodi, invocação São João Batista. Índios da nação Payacus. Missionário
religioso de Santa Teresa. [1]
Aldeia do Mipibu, invocação Santa Anna, índios da língua geral. Missionário
religioso capuchinho. [2]
Aldeia do Gramacio, invocação Nossa Senhora do Carmo. Índios de língua
geral. Missionário religioso do Carmo da Reforma. [3]
Aldeia do Guajarú, invocação São Miguel. Índios da língua geral, e nação Payacus.
Missionário Jesuíta.Hoje vila de Extremoz do Norte, vigário o reverendo padre
Antônio de Souza Magalhães, diretor Antonio de Barros Passos, e mestre
Antônio de Barros Passos [4]

Aldeia das Guarairas, invocação São João Batista. Índios de língua geral.
Missionário Jesuíta. Hoje vila de Arêz. Vigário reverendo padre Pantalião da
Costa. Diretor Domingos Jaques da Costa, e mestre Luiz Pereira Caldas. [5]
Capitania do Ceará Grande
Aldeia dos Tramambés, cita a beira do mar no distrito da mesma ribeira do
Acaracú, invocação Nossa Senhora da Conceição, índios Tramambez. Missionário
Clérigo [1]
Aldeia da Palma, cita na ribeira do Quixeramobim, termo da vila de dos Aquiraz,
invocação Nossa Senhora da Palma. Índios das nações Canindés e Jenipapos.
Missionário Clérigo [2]
Aldeia da Telha, cita na Ribeira do Quixelou, distrito da Vila de Icó, invocação
Santa Anna, índios das nações – Quixelôs,Quichiriú, Jucá, Candadú e
Cariú.Missionário Clérigo [3]

151
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

Aldeia do Miranda, cita nos Kariris Novos, distrito da Vila de Icó, invocação
Nossa Senhora da Penha de França, índios das nações Quicheriú, Cariú, Caruasú,
Calabaça e Icozinho. Missionário R. Capuchinho.[4]
Aldeia da Serra da Ibiapaba, cita em cima da dita serra, distrito da ribeira do
Acaracú, invocação Nossa Senhora da Assunção. Índios das quatro nações, a
primeira e principal da língua geral chamados Tabajaras, e as três chamados
Acaracú, Irariú e Anasssez. Missionário Jesuíta. Hoje vila Viçosa Real. Vigário o
Reverendo Padre Luiz do Rego Barros, diretor Diogo Rodrigues Correa, e mestre
Albano de Freitas [5]
Aldeia da Caucaia, cita no distrito da vila de Fortaleza, ribeira do Ceará, invocação
Nossa Senhora dos Prazeres, índios de língua geral. Hoje vila de Soure.Vigário
o reverendo Padre Inácio Ribeiro Maia, Diretor José Pereira da Costa e Mestre
Manoel Félix de Azevedo. [6]
Aldeia da Parangaba, cita no distrito da mesma vila, e ribeira, invocação o Senhor
Bom Jesus, índios da língua geral, e da nação Anassez. Hoje Vila Nova de
Arronches. Vigário o Reverendo Padre Antônio Coelho do Amaral. Diretor
Manuel de Oliveira Lemos, e Mestre João Dias da Conceição [7]
Aldeia do Paupina, cita no distrito da mesma vila, invocação Nossa Senhora da
Conceição , índios da língua geral. Missionário Jesuíta. Hoje vila de Messejana.
Vigário o reverendo padre Manuel Pegado de Siqueira. Diretor José de Freitas
das Neves e Mestre Elias de Souza Paes.[8]
Aldeia do Paiacú, no distrito da vila do Aquiraz, invocação Nossa Senhora da
Conceição. Índios da nação Paiacús. Missionário Jesuíta. Hoje lugar de Monte-
Mor o novo da América, vigário o Reverendo Padre Agostinho Pacheco, Diretor
Duarte Tavares do Rego e Mestre Inácio da Assunção. [9]

152
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

Anexo 2

Figura 1 - Detalhe da Carta topográfica aonde se compreendem as capitanias de que se


compõem ao presente o Governo de Pernambuco; oferecida ao Ilmo e Exmo Sr. Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima, Ministro e
Secretário de Estado da Marinha e Conquistas. Por José Gonçalves da Fonseca, Recife de
Pernambuco, 31 de março de 1766.
Gabinete de Estudos de Arqueologia e Engenharia Militar - Lisboa.

153
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

Notas
1
Para um maior apronfudamento sobre o processo de etnogênese no Nordeste
contemporâneo, ver João Pacheco de Oliveira, “Uma etnologia dos ‘indios
misturados’? Situação Colonial, territorialização e fluxos culturais”, in João
Pacheco de Oliveira, org., A viagem da volta: etnicidade, política e reelaboração
cultural no Nordeste indígena (Rio de Janeiro: Contracapa, 1999), p. 11-39.
José Maurício Andion Arruti, “Morte e vida do Nordeste indígena: a emergência
étnica como fenômeno histórico regional”, Estudos Históricos, v. 8, n. 15 (Rio
de Janeiro, CPDOC-FGV, 1995), p. 57-94.
2
Há uma imensa bibliografia sobre este personagem e período da história
portuguesa, bastante criticado por uns e louvado por outros. Entre as obras
consultadas para este trabalho, mereceram atenção especial, pela sua abordagem
mais recente e específica em relação às conseqüências para a história político-
administrativa do Brasil: Charles R. Boxer, “A ditadura pombalina e suas
conseqüências (1755-1825)”, in Charles R. Boxer, O Império Colonial Português:
textos de cultura portuguesa (Lisboa: Edições 70, 1977); André Mansui-Diniz
Silva, “Portugal e o Brasil: a reorganização do império, 1750-1808”, in Leslie
Bethell, org., História da América Latina - vol. I (São Paulo: Edusp, 1988);
Kenneth Maxwell, Marquês de Pombal: paradoxo do iluminismo (Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1996); Francisco Calazans Falcon, “Pombal e o Brasil”, in José
Tengarrinha, org., História de Portugal (Bauru: Edusc; São Paulo: Editora da
Unesp; Lisboa: Instituto Camões, 2001).
3
Maxwell, Marquês de Pombal, p. 139.
4
Para um visão geral sobre a influência destas leis para os índios ver: Rita Heloísa
de Almeida, O Diretório dos Índios: Um projeto de “civilização” dos índios do
século XVIII (Brasília: Editora da UnB, 1997); e Beatriz Perrone-Moisés,
“Índios livres e índios escravos: os princípios da legislação indigenista do
período colonial”, in Manuela C. Cunha, org., História dos índios no Brasil (São
Paulo: Companhia das Letras, 1992). Análises mais pontuais sobre regiões
específicas podem ser encontradas em Barickman, B.J. “Tame indians, Wild
Heathens, and settlers in southern Bahia in the late eighteenth and early
nineteenth centuries”. The Americas, v. 51, n. 3, p. 325-368, january 1995;
Patrícia Maria Melo Sampaio, Espelhos partidos: etnia, legislação e desigualdade
na colônia - Sertões do Grão-Pará, c. 1755-c.1823 (Niterói: Universidade Federal
Fluminense, Tese de Doutorado, 2001); Suely Maris Saldanha, Fronteiras dos
Sertões: conflitos e resistência indígena em Pernambuco na época de Pombal
(Recife: Universidade Federal de Pernambuco, Dissertação de Mestrado, 2002);
Regina Celestino de Almeida, Metamorfoses indígenas:identidade e cultura nas aldeias
coloniais do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003); Isabelle

154
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

Braz Peixoto da Silva, Vilas de índios no Ceará Grande: dinâmicas locais sob o
diretório pombalino (Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Unicamp, Tese de Doutorado, 2003); Idalina Maria da Cruz Pires, Resistência
indígena nos sertões nordestinos no pós-conquista territorial: legislação, conflito e
negociação nas vilas pombalinas, 1757-1823 (Recife: Programa de Pós-
Graduação em História da UFPE, Tese de Doutorado, 2004); Fátima Martins
Lopes, Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o
diretório pombalino no século XVIII (Recife: Programa de Pós-Graduação
em História da UFPE, Tese de Doutorado, 2005).
5
Lêda Maria Cardoso Naud, “Documentos sobre o índio brasileiro”, Revista de
Informação Legislativa, Brasília, v. 8, n. 29, 1971, p. 255.
6
Francisco Augusto Pereira da Costa, Anais Pernambucanos, vol. 5 (Recife:
FUNDARPE, 1983), p. 8.
7
Naud, “Documentos sobre o índio brasileiro”, p. 263.
8
Lopes, Em nome da liberdade, p. 85-89
9
“Direção com que interinamente se devem regular os índios das novas vilas e
lugares eretos nas aldeias da capitania de Pernambuco e suas anexas”, Revista
do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, n. XLVI, 1883, p. 121-171.
10
“Direção com que interinamente se devem regular os índios...”, p. 129.
11
Lopes, Em nome da liberdade, p. 82-83. Almeida, Metomorfoses indígenas, p. 170-
171.
12
Lopes, Em nome da liberdade, p. 100-124.
13
Relação das aldeias que há no distrito do governo de Pernambuco, Paraíba e
mais capitanias anexas, de diversas nações de índios[1761] In: Livro Composto,
principalmente de cartas, portarias e Mapas versando sobre vários assuntos,
relacionados com a administração de Pernambuco e das capitanias anexas.
Recife, 1760-1762. BN (Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro), códice: I -
12,3,35, f. 56-64.
14
Relação das aldeias que há no distrito do governo de Pernambuco, e capitanias
anexas, de diversas nações de índios In: Devassa que mandou proceder o
governador e capitão-general de Pernambuco, acerca do assalto que o gentio
bravo, Pipaens (Pipipans) e Paraquiós, fizeram na ribeira de Moxotó no dia 28
de Agosto de 1759, e do qual resultaram algumas mortes. Arquivo Histórico
Ultramarino_ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod. 1919, f 298-
304.
15
Ano de 1761 - Relação das aldeias a que vai o dr. ouvidor geral da comarca das
Alagoas, Manuel de Gouveia Álvares, por ordem de S. Magestade Fidelíssima,
dar nova forma de vilas, e lugares, reduzindo-as ao número competente, e
estabelecendo-lhe o regime, e polícia que as leis, e bulas pontificiais transcrevem,
e reconheceu a inata piedade do mesmo senhor, ser indispensável para se

155
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

acabarem de cristianizar os seus habitantes, e florescerem como se procura,


com o meio mais apto a brindar os índios silvestres que residiam no mato,
despidos das luzes do Evangelho, a unirem-se as mesmas, e cessarem as
irregularidades com que até agora eram dirigidas, de que se seguia o horror
com que as desamparavam e se perpetuavam no paganismo e Relação das
aldeias a que vai o Dr. Juiz de Fora Miguel Carlos caldeira de Pina Castelo
Branco, por ordem de S. Magestade Fidelíssima, dar nova forma de vilas, e
lugares, (...) , ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 322-
337.
16
Portaria ao mesmo fim dirigida. Recife, 26 abr. 1761. BN - I - 12,3,35, f.29v-30.
17
Portaria do governador general de Pernambuco e suas capitanias anexas, de 23
de dezembro de 1759 ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod. 1919,
f.65-65v .
18
Instrução do governador general de Pernambuco Luiz Diogo Lobo da Silva a
Jerônimo Mendes da Paz. Recife, 6 jan. 1760, ACL_CU_LIVROS DE
PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 65v-72.
19
Carta de Jerônimo Mendes da Paz para o capitão mor do Piancó Francisco de
Oliveira Ledo. Ararobá, 19 fev. 1760, ACL_CU_LIVROS DE
PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 100-100v.
20
Carta de Jerônimo Mendes da Paz para Frutuoso Barbosa da Cunha Capitão
Mor dos índios da nação Icozinho. Alojamento das Flores da Ribeira do
Pajaú, 2 de julho de 1760, ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod.
1919, f. 115.
21
Copia da ordem passada por Jerônimo Mendes da Paz a Pedro Soares de
Mendonça sargento Mor dos indios da nação Icozinho da Aldeia de Santa
Luzia. Alojamento das Flores, 4 de julho de 1760, ACL_CU_LIVROS DE
PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 116.
22
Carta do Sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz ao governador e capitão
geral de Pernambuco. Alojamento das Flores Ribeira do Pajaú. 6 jul. 1760
ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 89-92v.
23
Carta do Sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz ao governador e capitão
general de Pernambuco Alojamento da Serra Talhada da Ribeira do Pajaú. 13
jul. 1760. ACL_CU_LIVROS DE PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 93-93v.
24
Carta do governador de Pernambuco Luís Diogo Lobo da Silva para Jerônimo
Mendes da Paz. Recife, agosto de 1760. ACL_CU_LIVROS DE
PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 119.
25
Carta do Sargento-mor Jerônimo Mendes da Paz ao governador de Pernambuco
Povoação de Belem de S. Francisco. 9 set. 1760, ACL_CU_LIVROS DE
PERNAMBUCO, Cod. 1919, f. 133-145.

156
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

26
Carta do gov de PE ao sargento mor Jerônimo Mendes, sobre se lhe aprovar
o meio por que uniu a Ilha de Assunção os do Pambú, e mais nações do
mato, e outros para a Ilha do Aracapá e mais particulares em que entram os
vários procedimentos dos missionários do Rio de São Francisco. 8 mai. 1761
BN - I - 12,3,35, f. 33-35v.
27
Carta do governador de PE LDLS ao gov interino do Estado Thomas Ruby
de Barros Barreto sobre vários particulares a respeito dos novos
estabelecimentos a que anda o sargento-mor Jerônimo Mendes entre os quais
é o de pedir mande ordem que os índios que se acharem refugiados nas
missões daquele Estado sejam recolhidos logo à Ilha de Assunção e S. Maria.
13 mai. 1761. BN cd I-12,3,35 , f.35v-36v.
28
Relação das aldeias que há no distrito do governo de PE, Paraíba e mais
capitanias anexas, de diversas nações de índios [1761]. BN - I - 12,3,35, f.56-
64.
29
Carta do governador de Pernambuco ao sargento-mor Jerônimo Mendes da
Paz sobre varias matérias a respeito dos estabelecimentos. 24 jun. 1761 BN -
I - 12,3,35, f.70-73.
30
Carta do governador de Pernambuco ao Sargento Mor Jeronimo Mendes,
sobre se lhe dar parte do acerto que se houve ao Ouvidor das Alagoas nos
estabelecimentos das novas Vilas; cautelas com que se houve a favor dos
índios na Ilha de Pambú em rescindir a arrematação que dela se havia feito a
particulares e o mais declarado. Recife, 1° set. 1761. BN - I - 12,3,35, f.130-131.
31
Carta do governador de Pernambuco ao dr. Ouvidor geral das Alagoas sobre
os vários particulares a respeito dos novos estabelecimentos. Recife, 1° nov.
1761 BN - I - 12,3,35, f.126-129v.
32
BN f. 145/146 - Carta do governador de Pernambuco Luis Diogo Lobo da
Silva ao doutor Ouvidor das Alagoas Manoel de Govea Alvares, sobre lhe
pedir o seu parecer para se mudar a vila da Ilha de Assunção para a povoação
do Pambu pelos referidos declarados. Recife, 14 dez. 1761. BN - I - 12,3,35,
f.145-146.
33
BN f. 147v-149v Carta do governador de Pernambuco Luiz Diogo Lobo da
Silva ao dr. Ouvidor das Alagoas Manoel de Gouvea Alvares sobre várias
matérias a respeito dos novos estabelecimentos. Recife, 16 dez. 1761 BN - I -
12,3,35, f.147v-149v.
34
Relação dos novos estabelecimentos das vilas e lugares dos índios do governo
de Pernambuco da parte do sul, executados por Manuel de Gouveia Álvares,
cavaleiro professo na Ordem de Cristo, ouvidor geral da comarca de Alagoas.
Alagoas, 12 set. 1764. AHU_ACL_CU_015, Cx. 100, D. 7810 (7811).
35
IHGB (Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro) códice 1.1.14 -
Correspondência do Governador de Pernambuco - 1753-1770.Cartas do

157
RICARDO PINTO DE MEDEIROS

governador de Pernambuco a Francisco Xavier Mendonça Furtado em 15 jul.


1761, p. 277v-284v, e 09 ago. 1761, 284v-285v.
36
Termo sobre o que há de seguir o dr. Juiz de Fora Miguel Carlos Caldeira de
Pina Castelo Branco a respeito dos novos estabelecimentos e o mais que neles
se contém. Recife, 24 ago. 1761. Petição dos moradores da serra dos Martins
para que se não mude para ela a missão do Apodi e despacho nela proferido.
27 set. 1761. BN - I - 12,3,35, f 87-88 e 102-103. Lopes, Em nome da liberdade,
141-144.
37
Processo dos autos de devassa sobre as vilas de índios. [post. 10 de fevereiro
de1763] AHU_ACL_CU_015, Cx. 99, D. 7735.
38
Lopes, Em nome da liberdade, 159.
39
Livro Composto, principalmente de cartas, portarias e Mapas versando sobre
vários assuntos, relacionados com a administração de Pernambuco e das
capitanias anexas. Recife, 1760-1762. Biblioteca Nacional - Códice: I - 12,3,35.
40
Carta topográfica aonde se compreendem as capitanias de que se compõem ao
presente o Governo de Pernambuco; oferecida ao Ilmo e Exmo Sr. Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, do Conselho de Sua Majestade Fidelíssima,
Ministro e Secretário de Estado da Marinha e Conquistas. Por José Gonçalves
da Fonseca, Recife de Pernambuco, 31 de março de 1766. Gabinete de Estudos
de Arqueologia e Engenharia Militar, Lisboa.
41
Sampaio, Espelhos partidos.
42
Almeida, O Diretório dos Índios, p. 255.
43
Ofício do governador da capitania de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva,
ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte
Real, informando que os principais das aldeias reduzidas em vilas, estiveram
em sua companhia, para tomarem as instruções devidas. Recife, 13 jun. 1759.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 91, D. 7284.
44
Ofício do governador da capitania de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva,
ao secretário de estado da Marinha e Ultramar, Tomé Joaquim da Costa Corte
Real, informando que os principais das aldeias reduzidas em vilas, estiveram
em sua companhia, para tomarem as instruções devidas. Recife, 13 jun. 1759.
AHU_ACL_CU_015, Cx. 91, D. 7284.
45
Carta do governador de Pernambuco Luiz Diogo Lobo da Silva ao sr. Manoel
Álvares Vianna diretor da Aldeia do Panati.Recife, 4 jun. 1761. BN - I - 12,3,35,
f.65-66v.
46
Carta de Jerônimo Mendes da Paz ao governador de Pernambuco. Ilha de
Assunção da varge do R. de São Francisco. 17 out. 1760. ACL_CU_LIVROS
DE PERNAMBUCO, Cod. 1919, f p. 293-294.
47
Carta do governador de Pernambuco ao capitão Mor da aldeia do Mipibu
Leandro de Souza sobre se lhe haver prometido continue no dito posto e se

158
POLÍTICA INDIGENISTA DO PERÍODO POMBALINO

esperar dele o desempenhe com o acerto que deve. Recife, 29 dez. 1760. BN -
I - 12,3,35, f.8-8v.
48
Ver por exemplo: Ofício do [governador da capitania de Pernambuco], Luís
Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de estado da Marinha e Ultramar], Francisco
Xavier de Mendonça Furtado, sobre os procedimentos dos ouvidores da
Paraíba e de Pernambuco, João Rodrigues Colaço e Bernardo Coelho da Gama
Casco, e os efeitos pouco benéficos que podem resultar aos índios. Recife, 29
nov. 1762. AHU_ACL_CU_015, Cx. 99, D. 7721; Ofício do [governador da
capitania de Pernambuco], Luís Diogo Lobo da Silva, ao [secretário de estado
do Reino e Mercês], conde de Oeiras, [Sebastião José de Carvalho e Melo],
sobre uma devassa que mandou tirar referente às atitudes do ouvidor da
capitania da Paraíba, João Rodrigues Colaço, que tem procurado destruir os
novos estabelecimentos [dos índios] e tentado entrar em conflito com o dito
governo.Recife, 15/04/1763.AHU_ACL_CU_015, Cx. 99, D. 7756; Ofício do
governador da capitania de Pernambuco, Luís Diogo Lobo da Silva, ao secretário
de estado da Marinha e Ultramar, Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
sobre as práticas do ouvidor desta capitania, Bernardo Coelho da Gama Casco,
em concordância com as atitudes caluniosas do ouvidor da Paraíba, João
Rodrigues Colaço, contra este governo, e as ofensas espalhadas contra as ordens
para se fazer o estabelecimento dos índios., Recife , 18 abr. 1763. AHU_ACL_
CU_015, Cx. 99, D. 7765. Ofício do governador da capitania de Pernambuco,
Luís Diogo Lobo da Silva, ao secretário de estado da Marinha e Ultramar,
Francisco Xavier de Mendonça Furtado, sobre a falta de cuidado do ouvidor
da Paraíba, João Rodrigues Colaço, ao tirar a devassa das desordens ocorridas
no Açu e o temor dos índios devido ao seu procedimento dissimulado
tentando destruir os estabelecimentos criados. Recife, 19 abr. 1763. AHU_ACL_
CU_015, Cx. 99, D. 7766.
49
Ofício dos oficiais da Câmara da cidade da Paraíba, ao [secretário de estado da
Marinha e Ultramar], Francisco Xavier de Mendonça Furtado, informando ter
ficado a cidade com limitada jurisdição com o estabelecimento de novas vilas
na capitania, em imitação ao ocorrido em São José do Rio Negro, estado do
Maranhão, para republicar os índios. Paraíba, 21 jul. 1766. AHU_ACL_
CU_014, Cx. 23, D. 1800.

159
160
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS
FRANCISCANOS”: QUESTÕES SOBRE
PINTURA, ALEGORIA BARROCA E
PRODUÇÃO ARTÍSTICA1
Carla Mary S. Oliveira

“Pictoribus atque poetis, quod libet audendi semper fuit potestas.” 2


Horacio, Arte Poetica.

s franciscanos tiveram grande importância durante o processo


de conquista e instalação da Capitania da Paraíba, ainda em
fins do século XVI. Atuaram na catequese do gentio de forma
ostensiva, em diversos aldeamentos do litoral e do sertão, disputando
espaços e influência com jesuítas e beneditinos, ao mesmo tempo em
que aprimoravam seu convento na sede da capitania.
A primeira versão do Convento de Santo Antônio da Paraíba era
apenas um singelo prédio de taipa, cuja construção foi iniciada em
1589, mas já nos primeiros anos do século XVII os frades começaram
a ampliá-lo, substituindo as toscas paredes originais por alvenaria de
pedra calcária retirada do próprio sítio pertencente à ordem seráfica.
A obra estendeu-se por quase dois séculos, e seu ápice foi a decoração
interna do templo principal 3 , ornado com luxuosos azulejos
portugueses nas paredes e pinturas trompe l’oeil no forro da nave.
Centro nevrálgico da atuação franciscana ao norte de Pernambuco
e na conquista dos sertões no período colonial, o conjunto franciscano
de João Pessoa possui alegorias extremamente significativas para a
compreensão da imagem que a congregação construía acerca de si e
de sua atuação naquele mundo ainda inóspito e selvagem dos trópicos
tupiniquins entre o final do século XVI e o século XVIII.
Muito já se escreveu sobre o conjunto arquitetônico do Convento
de Santo Antônio da Paraíba. Germain Bazin considerou sua fachada
de inspiração Rococó a mais perfeita dentre as construções franciscanas
do Nordeste brasileiro, quando a conheceu ainda em meados do século
passado, ao fazer a pesquisa para sua tese de doutoramento4. Quase

161
CARLA MARY S. OLIVEIRA

duas, em viagem pelo litoral nordestino, Mário de Andrade encantou-


se com a majestosidade encravada na ainda rústica e pouco conhecida
Paraíba:
“Chego no pátio do convento de S. Francisco e paro assombrado. (...)
Do Nordeste à Bahia não existe exterior de igreja mais bonito nem
mais original que este. E mesmo creio que é a igreja mais graciosa do
Brasil - uma gostosura que nem mesmo as sublimes mineirices do
Aleijadinho vencem em graciosidade. Não tem dúvida que as obras de
Aleijadinho são de muito maior importância estética, histórica, nacional
e mesmo as duas S. Francisco de Ouro Preto e S. João Del Rei serão
mais belas, porém esta da Paraíba é graça pura, é moça bonita, é
periquito, é uma bonina. Sorri.
O interior é irregular e já está bem estragado por consertos e substituições.
Assim mesmo possui um púlpito, jóia de proporção e desenho. As pinturas
também são excelentes. (...)
Os azulejos são dos mais ricos que já vi, suntuosos. O pátio exterior é
murado por eles também e mostra nichos com cenas da Paixão ainda em
azulejos magnificamente desenhados e que assim, emoldurados pelos nichos
e distantes uns dos outros, a gente pode isolar, contemplar e gozar bem.
Na frente de tudo o cruzeiro é um monólito formidável. Estou assombrado.
Paraíba possui um dos monumentos arquitetônicos mais perfeitos do
Brasil. Eu não sabia... Poucos sabem...”5
Harmonia, formosura, graciosidade, grandiosidade: qualidades que
foram atribuídas, ao longo dos séculos, à construção de pedra e cal
dos franciscanos na Paraíba. É certo que até hoje ela emociona quem
chega aos pés do cruzeiro monumental, à entrada do adro. Que dizer,
então, da impressão que causava àqueles que só a conheceram ainda
em projeto? Elias Herckmans, governador holandês designado pela
Companhia das Índias Ocidentais para a Capitania da Paraíba em 1639,
descreve brevemente o convento franciscano - ainda na primeira fase
das obras de ampliação - como “o maior e mais belo [da cidade]; está cercado
de um muro, e por dentro foi construído mui regularmente” 6.
Sendo obra de quase duzentos anos de labuta, suor, perseverança e,
obviamente, opressão e controle - de corpos, vontades e mentes -, o
conjunto franciscano de João Pessoa reúne todos os cânones

162
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

arquitetônicos que a ordem mendicante foi sistematizando nos trópicos


do Nordeste brasileiro ao longo dos séculos XVII e XVIII. Tem unidade
com seus congêneres de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia, como
destacou Glauco Campello7, mas também é o resultado da cristalização
física de um discurso espiritual que se reinventava constantemente desde
a Itália medieval. Assim, soluções que se repetem em Cairu, Paraguaçu,
Ipojuca, Penedo, Igarassu e Paraíba delimitam, com seus adros, arcos e
paredes, sacadas, janelas e claustros, não só espaços, mas também usos
do corpo e atitudes cotidianas de pagãos ainda a converter, fiéis, noviços
e frades.

Figura 1 - Convento de Santo Antônio da Paraíba, com destaque


para a fachada em estilo Rococó e o adro delimitado pelo cruzeiro
monumental, formando um repoussoir8 natural.
Foto: Carla Mary S. Oliveira (2006).

Numa construção franciscana, vários elementos alegóricos vão se


repetindo, quase sempre recorrentemente aludindo à Paixão. Isso não
se dá de forma diferente em Santo Antônio da Paraíba, com seu frontão
decorado com o brasão da ordem, os nichos de azulejos do adro e
alguns outros detalhes decorativos como, por exemplo, cravos cruzados

163
CARLA MARY S. OLIVEIRA

sobre uma coroa de espinhos entalhada em pedra calcária num dos


arcos internos da galilé, que dava acesso à antiga capela de Nossa
Senhora das Dores, mandada erigir entre 1766 e 1768 pelo guardião,
Frei Fernando de Santo Antônio9.
Adentrando o prédio, contudo, três conjuntos de imagens se
impõem de imediato, todos decorando a nave principal da Igreja de S.
Francisco: ao rés-do-chão, o longo silhar de delicados e luxuosos azulejos
portugueses contando a saga de S. José do Egito; no forro da nave, a
pintura trompe l’oeil, profusamente colorida e também plena de
significados; e, por fim, no forro do altar-mor, vinte cenas da vida de
Santo Antônio de Pádua.
Com origem no grego, de allós, “outro”, e agourein, “falar”, o conceito
de alegoria pode ser resumido, no campo da História da Arte, como
uma forma metafórica de se expressar um conjunto de idéias,
pensamentos ou conceitos morais através de imagens, ou seja, como
um outro modo de se falar algo, ocultando seu sentido através de elementos
visuais cujo significado intrínseco não é conhecido de imediato e serve,
portanto, para camuflar a mensagem principal, permitindo sua leitura
apenas por um seleto grupo de iniciados. No Barroco, a forma eleita
preferencialmente para seu exercício foi a pintura, e no mundo
português sua presença estendeu-se também à azulejaria e à decoração
escultórica dos templos, especialmente no Brasil colonial.
O forro monumental:
as alegorias sobre a vida de S. Francisco e os franciscanos
A gigantesca pintura10 de 312 metros quadrados no forro da nave
principal da Igreja do Convento de Santo Antônio da Paraíba motiva,
há pouco mais de cinqüenta anos, disputas e refregas entre especialistas
quanto à sua autoria: o Cônego Florentino Barbosa, primeiro paraibano
a estudar o Barroco local de forma sistemática, acreditava ser o
bracarense José Soares de Araújo o seu artífice11; José Luiz da Motta
Menezes12 , Carlos Ott13 e Antonio Luiz D’Araújo14 afirmaram ter
sido José Joaquim da Rocha, personagem fulcral e fundador da Escola
Baiana de Pintura do século XVIII, o autor do teto; já Octacílio
Nóbrega de Queiroz15 lançou a hipótese de o forro ter sido ornado,
na verdade, por José Teófilo de Jesus, discípulo e protegido de Rocha

164
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

que entre 1794 e 1801 (ou 1807) estudou em Lisboa e Roma às expensas
do seu mestre16, hipótese pouco provável, tendo em vista a data
estimada para a feitura do forro, localizada entre 1765 e 1770. Por fim,
Glauce Burity foi a primeira a destacar, ainda nos anos 80 do século
passado, que o Livro dos Guardiães do Convento de Santo Antônio da Paraíba
cita, nos registros do período em que teria sido decorado o forro,
apenas o nome de José Ribeiro, pintor dum painel “das grandezas e
excelências da ordem”17 que, para a pesquisadora, só pode ser o forro da
nave da Igreja de S. Francisco18. Já Benedito Toledo preferiu não atribuir
autoria à pintura, ressaltando sua singularidade quanto aos efeitos
ilusionistas19.
A existência dessas várias hipóteses sobre a autoria do forro da
nave só reforça o entendimento de que precisar quem o pintou não é
detalhe imprescindível à análise de suas imagens, apesar de poder ajudar
a elucidar alguns aspectos alegóricos e simbólicos presentes na obra. É
possível abordar essas imagens no mesmo patamar, por exemplo, em
que são estudadas as inúmeras e anônimas cenas da iconografia religiosa
medieval européia. Ali, na nave principal da igreja conventual, o que
emerge do discurso visual é a necessidade de manter o ritual, de reforçar
o dogma, de insuflar os ânimos através da Fé: não há, necessariamente,
precisão de se saber quem fez as imagens, já que é aquilo que elas
representam o que realmente importa. Vale aqui lembrar que
normalmente a decoração interna das igrejas conventuais, no Brasil
colonial, demandava o trabalho de gerações sucessivas de religiosos,
que tentavam estabelecer relações entre as diferentes fases da construção,
fosse através de um planejamento prévio, fosse através de adaptações
sucessivas de um conceito geral que norteava o repertório iconográfico
de cada ordem ou congregação.
Um dos primeiros dilemas com que o historiador se depara, ao
analisar qualquer tipo de iconografia, certamente é aquele identificado
por Panofsky ainda na década de 40 do século XX: a imagem deve ser
considerada como um monumento ou como um documento?20 Esse
impasse permeia qualquer trabalho que pretenda discutir mais a fundo
as implicações simbólicas da produção artística barroca no Novo
Mundo. A falta de documentação e registros feitos pelos artistas -
como crônicas ou diários - ou mesmo a destruição de documentos

165
CARLA MARY S. OLIVEIRA

oficiais muitas vezes impedem uma identificação segura da autoria de


certas obras, como é o caso da Glorificação, e faz com que detalhes que
poderiam elucidar aspectos relativos à conjuntura de sua produção -
como o modo como se deu sua encomenda ou pagamento, por
exemplo - não possam ser totalmente esclarecidos:
“Muito mais difícil de afastar preconceituosamente (mas também muito
mais difícil e laboriosa de se praticar) é a reconstrução analítica da
intrincada rede de relações microscópicas que cada produto artístico,
mesmo o mais elementar, pressupõe. Um exame combinado das escolhas
artísticas, dos módulos iconográficos e das relações com a clientela são
freqüentemente necessários, (...) mesmo para aquela operação histórica
preliminar que é a datação. A meta, infinitamente mais ambiciosa, de
uma história social da expressão artística, só poderá ser atingida mediante
a intensificação destas análises - não através de sumários paralelismos,
mais ou menos forçados, entre séries de fenômenos artísticos e séries de
fenômenos econômico-sociais.” 21
Não se pode esquecer, também, que desde o Renascimento era
comum, no mundo cristão, a disseminação de gravuras reproduzindo
pinturas com temas religiosos de grandes mestres europeus, imagens
que, em alguns casos, chegavam mesmo a ser copiadas quase
identicamente por artistas de diferentes ofícios, em locais os mais
distantes... 22 Não se pode, assim, nem mesmo desconsiderar a
possibilidade de a Glorificação ter sido inspirada por uma pintura de
um mestre mais conhecido e já consagrado - ao menos no mercado
do litoral das Capitanias do Norte.
Na verdade, a Glorificação seria o ápice de um discurso visual que
teve, ao longo da construção do Convento de Santo Antônio da Paraíba
e de sua decoração interna, diferentes intérpretes. Por isso mesmo, a
pintura mantém um diálogo interessante com outras imagens presentes
na nave da igreja: ao representar a glória do santo italiano, da Santíssima
Trindade e da Virgem Maria junto a santos mártires da ordem, repete
o sentido de exemplo edificante das cenas da vida de Santo Antônio
presentes no forro do altar-mor, mandado pintar entre 1753 e 1755
pelo Frei Manuel das Chagas, guardião do convento23. Do mesmo
modo, o silhar de azulejos portugueses do rés-do-chão, fabricado nas

166
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

oficinas lisboetas provavelmente até fins da década de 30 do século


XVIII24 - ao menos cerca de trinta anos antes da feitura do forro,
portanto - também reforça a idéia da vida santa como exemplo a ser
seguido, mesmo que ela represente privações e inúmeras dificuldades,
como a de S. José do Egito.
Percebe-se, desse modo, um dos principais objetivos das imagens
presentes na decoração da Igreja de S. Francisco: servir de exemplo
aos fiéis. O outro, mais diretamente ligado às decisões e ao espírito do
Concílio de Trento, realizado ainda no século XVI, era ensinar a esses
mesmos fiéis “que os santos, reinando juntamente com Cristo, oferecem a Deus
suas orações em prol dos homens”25. Por isso mesmo, o forro em trompe l’oeil
destaca-se, não só pelo tema, mas também por sua intensidade, ao
criar a ilusão de que o Paraíso se mostra, por um instante, ao vislumbre
dos homens. As quatro passagens essenciais da vida de S. Francisco
são mostradas em medalhões que circundam a cena principal, e todas
as representações ali presentes são carregadas de extrema
dramaticidade.
A primeira dessas cenas, junto ao arco do altar-mor, mostra o
nascimento do santo italiano, num ambiente que tenta criar vínculos
com a manjedoura de Jesus. O menino é mostrado calmo, com uma
auréola de raios em volta da cabeça, deitado sobre o feno, aos pés da
mãe exausta e já de cabelos um pouco grisalhos. Três outras mulheres
participam do episódio: uma jovem de mangas arregaçadas, que parece
estar saindo do estábulo para buscar auxílio ou dar a notícia do parto
a alguém, uma senhora que apóia a mãe pelas costas, e outra jovem,
ajoelhada, que procura proteger o recém-nascido. O local rústico é
representação extremamente alegórica e muito pouco provável para o
nascimento de Giovanni Bernardone, filho de Pietro, rico mercador de
tecidos da cidade de Assis e que, por volta dos 25 ou 26 anos, em
1206, abandonou a vida mundana, renunciando aos bens paternos e,
três anos depois, se reuniu a um grupo de amigos para dedicar-se à
vida missionária26.

167
CARLA MARY S. OLIVEIRA

Figura 2 - Cena do nascimento de São Francisco. Detalhe do forro junto ao arco


cruzeiro do altar-mor, nave principal da igreja do Convento de Santo Antônio da
Paraíba. Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (1999).

Aliás, é justamente o episódio da renúncia à riqueza do pai e à vida


fútil e sem fé dos salões e tavernas da Úmbria que aparece retratado
no segundo medalhão, sobre o púlpito: nele se vê, por trás do santo
ajoelhado, seu pai tentando dissuadi-lo, com gestos largos, de tal
empreitada. O terceiro mostra o momento em que S. Francisco recebe
os estigmas de Cristo, cerca de dois anos antes de sua morte, ocorrida
em 1226.

168
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

Figura 3 - Cena da renúncia às riquezas. Detalhe do forro sobre o púlpito, nave


principal da igreja do Convento de Santo Antônio da Paraíba.
Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (1999).

Figura 4 - Cena da estigmatização. Detalhe do forro sobre o coro, nave principal


da igreja do Convento de Santo Antônio da Paraíba.
Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (2006).

169
CARLA MARY S. OLIVEIRA

O quarto e último desses medalhões, próximo à entrada da Capela


Dourada, traz a representação do momento em que o primeiro túmulo
do frade foi aberto, em 1230, para trasladarem-se seus restos mortais
para a Basílica de Assis, e seu corpo foi encontrado intacto, prova
definitiva de sua santidade. Um detalhe interessante dessa representação
é que o santo aparece de pé, apesar de ter sido sepultado deitado.

Figura 5 - Cena da exumação das relíquias. Detalhe do forro próximo ao arco


cruzeiro da Capela Dourada, nave principal da igreja do Convento de Santo
Antônio da Paraíba. Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (1999).

Sobre cada um desses medalhões secundários há o desenho, em


perspectiva, de um arco de pedra contendo, em seu fecho, uma cartela
com um símbolo alegórico ligado à cena delimitada pela estrutura: na
do nascimento, uma estrela de sete pontas, uma possível referência à
simbologia das parábolas em que Jesus cita o número sete (e seus
múltiplos) como algo ligado ao infinito, talvez uma alusão à
predestinação de S. Francisco para a pregação do evangelho; na da
renúncia à riqueza, um ramo de lírio florido, simbolizando a pureza e
castidade do santo; na dos estigmas, um sol sorridente, numa alusão
ao próprio Jesus - e à iluminação de suas palavras e ensinamentos - e à
ligação de S. Francisco com o sofrimento de Cristo; por fim, no da
exumação de suas relíquias, um ramo de folhas de acanto, simbolizando

170
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

a ressurreição para a qual o corpo de Francisco estava pronto, por


ainda estar perfeito e intocado pela putrefação, anos após sua morte.
No medalhão central, aparecem a Santíssima Trindade e a Virgem
Maria, que carrega um estandarte com o emblema da ordem
mendicante e um ramo florido de lírio. O grupo derrama suas bênçãos
sobre S. Francisco que, por sua vez, irradia sua luminosa essência para
quatro santos franciscanos que atuaram nos quatro continentes em que
havia ação missionária seráfica: Santo Antônio de Pádua27 na Europa,
São Francisco Solano28 na América, um dos mártires do Marrocos29
na África, e um dos mártires do Japão30 na Ásia. Ao lado dos mártires,
personagens alegóricas do sexo feminino representando esses
continentes31.
A visão que a congregação tinha a seu respeito, a respeito de seu
papel no mundo, surge num detalhe da cena: os santos que ladeiam as
alegorias americana e africana observam-nas como se fosse necessário
vigiá-las na presença de Deus, controlá-las frente à santidade. Ao
contrário, os que ladeiam as alegorias da Europa e da Ásia simplesmente
as apresentam, sem preocupar-se em cercear suas ações, ainda que por
meio do olhar. Além disso, o missionário da Ásia segura uma coluna,
ao invés de um crucifixo, como fazem os outros três frades. Parece ser
uma alusão à origem oriental do cristianismo, o que colocaria a Ásia
como pilar histórico da fé cristã.
Outros exemplos de conduta desejável para os fiéis, noviços e frades
que freqüentavam a o templo também aparecem em quatro pequenos
medalhões existentes nos cantos da pintura do forro: querubins que
carregam cruzes e também objetos que devem fazer parte das orações
e penitências. Junto ao altar-mor, o anjo ao lado esquerdo traz na mão
um cilício32, enquanto o do lado direito segura um chicote. Sobre o
coro, o terceiro querubim porta um livro de orações, e o quarto, um
terço. A necessidade de expiação dos pecados e das tentações da carne
e do espírito é, portanto, lembrada objetivamente aos espectadores
daquelas imagens.

171
CARLA MARY S. OLIVEIRA

Figura 6 - Medalhão
central de Glorificação
dos Santos Franciscanos
ou Glorificação de São
Francisco, pintura do
forro da nave principal
da igreja do Convento
de Santo Antônio da
Paraíba. Madeira
policromada, autoria
incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S.
Oliveira (1999).

172
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

Figura 7 - Querubim com cilício. Detalhe do forro, nave principal da igreja do


Convento de Santo Antônio da Paraíba.
Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (2006).

Figura 8 - Querubim com terço. Detalhe do forro, nave principal da igreja do


Convento de Santo Antônio da Paraíba.
Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (2006).

173
CARLA MARY S. OLIVEIRA

Entre esses querubins e as cenas da vida de S. Francisco aparecem


também quatro serafins músicos, tocando trombetas, um em cada
extremidade do forro. De seus instrumentos brotam fitas brancas com
frases em latim, alusivas tanto ao santo italiano quanto à sua relação
com a vida de Cristo. Junto à cena da natividade se lê “Jesu dulcis memoria”
(“doce lembrança de Jesus”) e “et macula non est in te” (“e em ti não há
mácula”). Já sobre o Coro, junto à cena da estigmatização, as trombetas
anunciam “Terra inqua haec Religio Stat, terra sancta est” (“é santa a Terra
em que esta religião está”) e “Stigmata Dii Jesu in corpore meo porto” (“trago
em meu corpo os estigmas de Jesus”). Talvez a frase mais significativa
para auxiliar a compreensão da auto-imagem dos franciscanos seja
justamente a terceira: é a presença da ordem seráfica na Paraíba que
faz com que, desde a fundação da Capitania, aquela seja uma terra de
Deus, tocada pela Fé católica e por isso mesmo, tornada santa.

Figura 9 - Detalhe do forro sobre o coro, nave principal da igreja


do Convento de Santo Antônio da Paraíba.
Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Foto de Carla Mary S. Oliveira (2006).

174
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

Outras personagens secundárias - mas nem por isso menos


significativas - se destacam no forro da nave: são doze bispos sentados
sobre a balaustrada do templo imaginário que se abre para os céus.
Em alguns casos, a pose que fazem chega a ser desleixadamente casual:
haveria aí alguma crítica velada da ordem seráfica à pompa e
circunstância da Igreja? É sabido que desde suas origens os franciscanos
enfrentaram problemas com a Santa Sé: primeiro, para o próprio
reconhecimento da ordem e, depois da morte de seu fundador, em
várias ocasiões diferentes, por divergências relativas à regra da ordem
ou conflitos ligados às esferas de poder e influência política de outras
ordens missionárias nos corredores do Vaticano. De qualquer modo, a
hierarquia dos bispos - e do poder interno da própria Igreja Romana
- é ali mostrada de forma um tanto jocosa, com quatro bispos
diocesanos, quatro cardeais e quatro papas, todos sentados com as
pernas dependuradas no vazio, numa posição pouco usual para as
funções episcopais. O número doze também não é gratuito: trata-se
de alusão praticamente explícita aos apóstolos e sua ação missionária
após a ressurreição de Cristo. O que se pode perguntar é se aquelas
imagens não estão, na verdade, contestando a ação missionária da
estrutura eclesiástica...

Figuras 10 e 11 - Cardeal e Papa. Detalhes do forro, nave principal da igreja do


Convento de Santo Antônio da Paraíba.
Madeira policromada, autoria incerta, c. 1765.
Fotos de Carla Mary S. Oliveira (2006 e 1999).

175
CARLA MARY S. OLIVEIRA

Ora, se toda a arte barroca “é animada por um espírito de propaganda”,


como afirma Giulio Carlo Argan33, já que a linguagem alegórica reduz
conceitos a imagens, atribuindo-lhes uma força demonstrativa que atinge
diretamente a sensibilidade do espectador e, mais ainda, se para a Igreja
Romana “o principal objetivo da imagem é induzir no fiel o estado de ânimo e a
atitude modesta e humilde que ele deve assumir para dirigir-se a Deus” 34, qual o
sentido, então, daqueles bispos jocosos? A ferramenta doutrinatória da
imagem é torcida nas cenas secundárias, ali na Glorificação, de maneira
quase imperceptível, para o campo diametralmente oposto da crítica à
própria Igreja: é como se os franciscanos da Paraíba quisessem mostrar
sua superioridade através da ridicularização da hierarquia eclesiástica
de Roma.
Considerações finais (?) sobre produção da arte:
a Glorificação como obra periférica do Barroco colonial

A relação entre “centro” e “periferia” emerge, cotidianamente, como


um tema instigante e polêmico: qualquer que seja o campo histórico
abordado, invariavelmente a discussão passa pelo emaranhado de
relações e sobreposições construídas entre essas duas instâncias e as
influências - ou quase imposições - desse “centro” sobre essa “periferia”.
Ou seja, a tendência usual é compreenderem-se essas relações a partir
de uma pressuposta desigualdade hierárquica, com o “centro”
funcionando ao mesmo tempo como pólo irradiador de vontades e
poderes - simbólicos ou objetivos - e como eixo organizador para o
qual convergem os padrões aceitos como válidos em sua “periferia”.
No entanto, no universo específico da História da Arte, Carlo
Ginzburg mostrou como esse tipo de visão pode ser perigosamente
tendencioso e reducionista, levando a um juízo depreciativo acerca da
produção artística surgida na “periferia”, por subordiná-la a padrões
estéticos e de discurso que podem lhe ser, muitas vezes, desconhecidos,
extremamente distantes ou mesmo completamente conflitantes com a
cultura local35.
Se o alcance das questões teóricas levantadas por Ginzburg em sua
análise sobre a arte italiana renascentista for ampliado para o Barroco,
se ele for entendido como um estilo internacional intrinsecamente

176
A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

recortado pelas relações entre “centro” e “periferia”, não esquecendo


todas as dobras, redobras e desdobramentos dessas relações, analisar
a Glorificação como obra de arte torna-se algo bem mais complexo.
Em primeiro lugar, ao seguir a proposta de Ginzburg é preciso
identificar qual o grau de distanciamento entre a “periferia” da Paraíba
em relação ao “centro” de produção de Arte naquela segunda metade
do século XVIII e, mais ainda, definir que “centro” era esse: estava ele
localizado na própria Colônia ou no além-mar?
Seria interessante pensar a pintura barroca setecentista no Brasil como
algo uniforme, mas já foi exaustivamente demonstrado que isto não é
possível: basta levarem-se em conta as diferenças evidentes entre as
escolas mineira e baiana, por exemplo. Mais ainda, a própria Colônia
se constitui em “periferia” se considerada em relação a Portugal que,
por sua vez, também é “periferia” para o Barroco italiano. Não são
essas as poliperiferias de Ginzburg? Seguindo esse raciocínio, creio que
foram mesmo se sobrepondo “periferias” no que diz respeito à
produção pictórica barroca no Brasil, ou seja, é claro que nesse sentido
a Glorificação se trata de obra “periférica”, até mesmo considerando-se
as perspectivas econômica e cultural da Paraíba do final do setecentos,
no entanto, tentar identificar, mesmo que brevemente, a que “centro”
se refere a Glorificação pode trazer pistas não somente quanto às questões
ligadas a sua autoria, mas também levantar interessantes possibilidades
de análise sobre os porquês de certas alegorias presentes em sua
composição.
Em primeiro lugar, o modo como são abordados os doze bispos,
sem a esperada deferência, só se tornou possível justamente pelo fato
de a pintura ter sido feita na “periferia”, apesar da existência das severas
disposições tridentinas que construíam “uma tipologia hierárquica distinguindo
e prescrevendo soluções e preceitos particulares consoante a igreja fosse catedral,
colegiada, paroquial, sufragânea ou monástica e o oratório fosse ou não destinado à
celebração da missa” 36. Desse modo, mesmo numa outra localidade, mais
próxima ao “centro” metropolitano, como Recife ou Salvador, a crítica
jocosa dos franciscanos da Paraíba seria inviabilizada.
Em segundo lugar, evidentemente a pintura foi feita, sob
encomenda, por um artista levado à Paraíba apenas para esta
empreitada, visto não existir outra obra de semelhante estilo ou que

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CARLA MARY S. OLIVEIRA

mostre com ela laços de autoria em outras igrejas da Capitania ou


mesmo no próprio Convento de Santo Antônio. Trata-se da tipologia
“dos artistas que se deslocam do centro para áreas que, mais que periféricas, se
poderiam chamar subordinadas” 37.
Assim, resta perguntar: seria a Glorificação obra de pintor iniciante,
como o era José Joaquim da Rocha por volta de 1765, quando se
calcula que ele regressava de viagem de estudos à Europa? Teria o
convento paraibano verba suficiente para custear um artista com este
tipo de formação? Ou seria o forro uma pintura feita mesmo pelo
quase anônimo José Ribeiro, citado brevemente no Livro dos Guardiães?
Nos dois casos, os padrões estão entre aqueles identificados por
Ginzburg: ou se trata de artista importado, já com um repertório visual
definido em suas incursões ao “centro”, mas que se dá a liberdade de
desrespeitar alguns cânones, misturando arcaísmos e inovação38; ou se
trata de artista menor, que aceita a empreitada fazendo-a ao gosto do
mecenas-consumidor39 e, talvez, até copiando um modelo pré-definido
do tema a ser retratado.
Como o próprio Ginzburg destaca, “Não é certamente uma novidade
afirmar que as imagens podem ser instrumento de persuasão e de domínio na relação,
nunca pacífica, entre centro e periferia” 40. Nesse sentido, constituindo-se em
discurso visual, as imagens do forro da igreja principal do Convento
de Santo Antônio da Paraíba podem, também, ser analisadas como
ferramentas barrocas de “ordenação do mundo”, utilizadas na ação
junto aos fiéis da sede da Capitania. Elas podem, assim, ser vistas
como um sistema simbólico de poderes e saberes que refletia e
reproduzia a estrutura colonial em exemplos edificantes a serem
respeitados e seguidos por colonos, escravos e gentio, postura
extremamente consoante aos desígnios tridentinos do Decreto sobre a
invocação, a veneração e as Relíquias dos Santos, e as sagradas Imagens, editado
em dezembro de 1563.
Mas fica aqui ainda a mesma dúvida que Ginzburg levanta quanto à
arte italiana: fala-se de policentrismo ou de poliperiferia, quando o tema é a
arte barroca no Brasil Colonial?

***

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A “GLORIFICAÇÃO DOS SANTOS FRANCISCANOS”

Notas
1
Este trabalho foi apresentado, numa versão preliminar e reduzida, sob o título
“Alegoria barroca: poder e persuasão através das imagens na Igreja de São
Francisco (João Pessoa - PB)”, no IV Congresso Internacional do Barroco Ibero-
Americano: Território, Arte e Sociedade, realizado na cidade de Ouro Preto (MG),
entre os dias 31 de outubro e 3 de novembro de 2006. Agradeço a Cristiano
Amarante, ex-guia do Centro Cultural São Francisco, profundo conhecedor
daquele monumento, pelo muito que aprendi com ele acerca da simbologia e
liturgia franciscanas nas diversas vezes em que visitei o Convento de Santo
Antônio da Paraíba com meus alunos entre 2000 e 2006. Insights preciosos
surgiram a partir de suas divagações e explicações sobre detalhes da pintura do
teto da nave nessas visitas. Agradeço também às Irmãs Isabel Sofia e Valéria
Rezende, da Congregação de Nossa Senhora, amigas que me tiraram dúvidas
em relação aos paramentos religiosos de bispos, cardeais e papas e,
especialmente, aos usos e práticas conventuais coloniais quanto à penitência e
à autoflagelação.
2
“Aos pintores e poetas o poder de ousar sempre foi justo”.
3
Apesar de o orago da Igreja ser, comprovadamente, Santo Antônio de Pádua,
já que são cenas da vida e dos milagres do frade português que ilustram o teto
do altar-mor, a população pessoense, desde há muito, denomina a Igreja
como “de São Francisco”. Possivelmente isso ocorreu pelo fato de as cenas
alusivas aos milagres de Santo Antônio terem sido encobertas por tinta azul
numa desastrosa reforma que substituiu o altar-mor barroco carcomido pelos
cupins por outro, de feições neoclássicas, na primeira década do século XX e
cujo equívoco só foi corrigido na restauração do prédio pelo IPHAN, concluída
em 1989. Em 1935, o Cônego Florentino Barbosa ainda se referia à Igreja
como “de Santo Antônio” e citava, com pesar, a reforma do altar-mor e a
pintura sobre as imagens do forro, em artigo publicado na revista do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano. O Convento, no entanto, sempre foi
conhecido por sua invocação original. Talvez essa “escolha” dos habitantes
locais também se explique justamente pela pintura do forro da nave, que
sempre se manteve em boas condições de conservação e onde S. Francisco de
Assis tem lugar de destaque não só no medalhão central, assim como nos
quatro medalhões menores que mostram episódios marcantes da vida do
fundador da ordem seráfica. Cônego Florentino Barbosa, “O Convento de
São Francisco”, Revista do Instituto Histórico e Geographico Parahybano, n. 8 (João
Pessoa: IHGP, 1935), p. 14.
4
Germain Bazin, A arquitetura religiosa barroca no Brasil - Vol. 1, tradução de
Glória Lúcia Nunes (Rio de Janeiro: Record, 1983), p. 149.

179
CARLA MARY S. OLIVEIRA

5
Mário de Andrade, O turista aprendiz (São Paulo: Duas Cidades/ CSST-SP,
1976), p. 313-314.
6
Elias Herckmans, “Descrição geral da Capitania da Paraíba” [1639], in José
Antônio Gonsalves de Mello, org., Fontes para a História do Brasil holandês,
Volume II: A administração da conquista (2. ed., Recife: Companhia Editora
de Pernambuco, 2004), p. 65.
7
Glauco de Oliveira Campello, “Construções franciscanas no Nordeste”, in: O
brilho da simplicidade: dois estudos sobre arquitetura religiosa no Brasil colonial
(Rio de Janeiro: Casa da Palavra/ Departamento Nacional do Livro, 2001), p.
33-91.
8
Elemento de primeiro plano em uma pintura, desenho ou gravura, de tons
mais fortes, que tem o objetivo de destacar outro elemento da composição ou
produzir, através do contraste, um efeito de profundidade.
9
Fr. Venâncio Willeke (introdução e notas), “Livro dos guardiães do Convento
de Santo Antônio da Paraíba (1589-1885)”, Stvdia, n. 19 (Lisboa: Centro de
Estudos Históricos Ultramarinos, dez. 1966), p. 192.
10
À qual se atribui, atualmente, o título de “Glorificação dos Santos Franciscanos”
ou “Glorificação de São Francisco”.
11
Cônego Florentino Barbosa, Monumentos históricos e artísticos da Paraíba (João
Pessoa: A União Editora, 1953), p. 46.
12
José Luiz da Mota Menezes, “O convento franciscano de Santo Antônio
(João Pessoa - PB)”, Revista Universitas, n. 17 (Salvador: Universidade Federal
da Bahia, 1977), p. 67.
13
Carlos Ott, Pequena história das artes plásticas na Bahia entre 1550-1900 (Salvador:
Alva, 1989), p. 20.
14
Antonio Luiz D’Araújo, Arte no Brasil colonial (Rio de Janeiro: Revan, 2000),
p. 110.
15
Octacílio Nóbrega de Queiróz, “Um enigma barroco sobre o autor do painel
da Igreja de S. Francisco”, Correio da Paraíba, João Pessoa, 13 mai. 1973.
16
Carlos Ott, “José Joaquim da Rocha”, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, n.15 (Rio de Janeiro: SPHAN, 1961), p. 95. Clarival do Prado
Valladares, “O ecumenismo na pintura religiosa brasileira dos setecentos”,
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 17 (Rio de Janeiro: SPHAN,
1969), p. 193; D’Araújo, Arte no Brasil colonial, p. 112.
17
Willeke, “Livro dos guardiães”, p. 191.
18
Glauce Maria Navarro Burity, A presença dos franciscanos na Paraíba através do
Convento de Santo Antônio (Rio de Janeiro: Bloch Editores, 1988), p. 81.
19
Benedito Lima de Toledo, “Do século XVI ao início do século XIX:
maneirismo, barroco e rococó”, in: Walter Zanini, org., História geral da arte no
Brasil - Vol. I (São Paulo: Instituto Walter Moreira Salles, 1983), p. 147.

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