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Sobre a obra:
Sobre nós:
Introdução
3. O pecado envergonhado
9. Oremos
Conclusões
Notas
~
Introdução
VOLTANDO AO ÉDEN
[
Um ale mão produz e m mé dia o dobro das fe ze s de
um francê s. Hipe ratividade da função inte stinal e m
de trime nto da ce re bral, o que de monstra sua
infe rioridade fisiológica. No te mpo das invasõe s
bárbaras, as hordas ge rmânicas conste lavam o
pe rcurso com monte s de sarrazoados de maté ria
fe cal. Por outro lado, me smo nos sé culos passados,
um viajante francê s logo compre e ndia se havia
transposto a fronte ira alsaciana pe lo volume anormal
dos e xcre me ntos abandonados ao longo das e stradas.
E não some nte : é típica do ale mão a bromidose , ou
se ja, o odor re pugnante do suor, e e stá provado que
a urina de um ale mão conté m 20 por ce nto de azoto,
ao passo que a das outras raças, some nte 15. O
ale mão vive e m um e stado de pe rpé tuo transtorno
inte stinal, re sultante do e xce sso de ce rve ja e daque las
salsichas de porco com as quais se e mpanturra4.
Cometi o pior dos pecados que um homem pode cometer. Não fui feliz.
Jorge Luis Borges
UMA RUPTURA?
[
“Amarás o Se nhor te u De us, com todo te u coração,
com toda tua alma e com todo o te u e nte ndime nto!
Esse é o maior e o prime iro mandame nto. Ora, o
se gundo lhe é se me lhante : amarás te u próximo como
a ti me smo. Toda Le i e os Profe tas de pe nde m de sse s
dois mandame ntos”.
(Mate us 22:37-40)
]
[
Não me move , me u De us, para que re r-Te
O cé u que me te ns prome tido,
Ne m me move o infe rno tão te mido
Para de ixar por isso de ofe nde r-Te .
Tu me move s, Se nhor, move -me ve r-Te
Cravado e m uma Cruz e e scarne cido,
Move -me ve r te u Corpo tão fe rido,
Move m-me tuas afrontas e tua morte .
[
Mal se cre to
[
Mal se cre to
Não choro,
Me u se gre do é que sou rapaz e sforçado,
Fico parado, calado, quie to,
Não corro, não choro, não conve rso,
Massacro me u me do,
Mascaro minha dor,
Já se i sofre r.
Não pre ciso de ge nte que me orie nte ,
Se você me pe rgunta
Como vai?
Re spondo se mpre igual,
Tudo le gal,
Mas quando você vai e mbora,
Movo me u rosto no e spe lho,
Minha alma chora.
Ve jo o Rio de Jane iro
Comovo, não salvo, não mudo
Me u sujo olho ve rme lho,
Não fico calado, não fico parado, não fico quie to,
Corro, choro, conve rso,
E tudo mais jogo num ve rso
Intitulado
Mal se cre to.
]
DE NOVO, A BÍBLIA
Um dos Evange lhos mais bonitos, o de Lucas, conta parábolas
se guidas no capítulo 15. É uma re sposta de Je sus ao
que stioname nto de farise us e e scribas. Farise us e e scribas
re pre se ntam o cumprime nto e strito da le i, a busca da salvação
pe la fide lidade lite ral ao te xto. As me táforas de Je sus indicam um
caminho distante de ste : a mise ricórdia de ve se impor ao te xto.
Isso e ra bastante inovador no campo da Le i como os farise us a
liam.
O te xto que mais me inte re ssa agora come ça no ve rsículo 11
de sse capítulo. A parábola ficou conhe cida como a do “filho
pródigo”. Um home m tinha dois filhos. O mais novo pe diu,
ante cipadame nte , sua he rança. Na Bíblia, o filho mais novo quase
se mpre é o foco da ação, como e m Caim e Abe l, Esaú e Jacó. O
mais novo pe gou se u dinhe iro e partiu para um lugar distante . Lá,
se duzido por amigos fáce is que a fortuna atraía, gastou tudo.
Passou a se r conhe cido como aque le que e sbanja, o filho pródigo.
Para Dante , que m nada dá ou tudo dá é igualme nte culpado.
O autor da Divina comédia conde na ambos ao me smo lugar do
Infe rno. Se r pródigo é um pe cado, tal como se r avare nto.
Esbanjar tudo ou poupar tudo são de fe itos morais para e ste
unive rso. O filho pródigo gastou toda a he rança e se arre pe nde u.
Um dia, premido pe la fome, o mais novo desejou voltar para a
casa do pai. Sua reflexão mais amarga ocorreu quando foi
obrigado a cuidar de porcos, certamente uma das ocupações mais
impuras na cabeça de um judeu. Lá, em um chiqueiro imundo, e le
chegou a desejar comer o que se dava aos porcos, mas nem isso
conseguia. Imaginou que os empregados do pai comiam pão à
vontade, e e le estava ali, no fundo do poço da indignidade. Aqui as
primeiras lições do texto: não confie em amigos dados pe la
abundância e não gaste tudo o que tem inutilmente. Mas são lições
menores no objetivo dessa parábola.
O filho pródigo, pobre e arre pe ndido, re torna para a casa do
pai, na e spe rança de , ao me nos, se r admitido e ntre os
e mpre gados da família. Ao se aproximar da casa pate rna, foi
visto pe lo pai, que se e nche u de compaixão. O pai orde na aos
criados que tragam a me lhor roupa, que tragam um ane l
pre cioso e uma sandália boa. Mais, o bondoso ancião e stabe le ce
que se mate um novilho be m gordo e que haja uma fe sta pe lo
re torno do filho. Aqui outra lição importante : a le i, aque la que os
farise us de fe ndiam, pe rmitia ao pai re pudiar o filho pródigo,
porque já re ce be ra sua parte na he rança e se portara com
indignidade . A le i apoiava o pai se quise sse maltratar se u filho.
Se ria justo, no se ntido da justiça formal, dize r ao filho que não se
aproximasse . O pai usou de mise ricórdia e compaixão porque o
filho tinha se arre pe ndido. A frase do filho pródigo e nte rne ce u o
coração do pai: “Pai, pe que i contra De us e contra ti. Já não
me re ço se r chamado te u filho” (Lucas 15:21). O pai, que tinha a
le i ao se u lado, usou ape nas de amor. Por isso Lucas é chamado
o Evange lho do Amor.
A lição principal do te xto é o domínio da mise ricórdia sobre a
le i, do amor sobre o te xto, da compaixão sobre a justiça. Era a
ê nfase de Je sus e m uma tradição judaica do e spírito sobre a
norma, mas que combatia outra tradição judaica que e ra a opção
farisaica: o te xto é maior do que tudo. Je sus insistia que o
sábado tinha sido fe ito para o home m, e não o home m para o
sábado. Em outras palavras: a norma só e xiste se me le var a
De us e a Se u amor, se e la atrapalhar, de ve se r ignorada.
Pode ríamos inte rrompe r aqui e ssa be la narrativa. Poré m,
para me u obje tivo ne ste capítulo, o que ve m a se guir é o mais
importante . Trata-se da inve ja e m família, do re sse ntime nto que
a virtude pode de monstrar.
Entra e m ce na o filho mais ve lho. É dito que e le e stava no
campo, ou se ja, continuava a trabalhar para o pai de forma
constante e fie l. Ao se aproximar da casa, ouve a música da fe sta
e pe rgunta a um e mpre gado do que se trata. É informado da
volta do irmão e da fe sta dada por orde m do pai. Então, o ze loso
irmão mais ve lho, trabalhador constante e de dicado, fica com
raiva e não de se ja participar da fe sta. Sua indignação é a
indignação da virtude . Como já foi dito, isso de ve se r dourado e
modificado pe la consciê ncia. O mais ve lho te ve inve ja da fe licidade
do mais novo e inve ja do amor que o pai lhe de dicava. Mas, e m
ve z de ape nas re conhe ce r e sse profundo re sse ntime nto inve joso,
e le se disfarça de virtude .
A fala do mais ve lho é um e xe mplo clássico. Ele não diz ao
pai que inve ja o amor ao mais novo. Ele não fala que e stá
magoado por isso. Se u re sse ntime nto busca a virtude :
[
Eu trabalho para ti há tantos anos, jamais de sobe de ci
a qualque r orde m tua, e nunca me de ste s um cabrito
para e u fe ste jar com me us amigos. Mas quando
che gou e ste te u filho que e sbanjou te us be ns, com as
prostitutas, matas para e le um novilho gordo”.
(Lucas 15: 29-30)
]
TEM JEITO?
A inve ja é chamada de “olho grande ” ou “olho gordo”, na fala
popular. Pare ce guardar re lação com o se ntido do ve r de mais o
que não se de ve , o se ntido da visão míope sobre a qual já fale i.
Os olhos do inve joso são a jane la do se u re sse ntime nto. Caim
olha com inve ja para o agrado que De us manife stou sobre a
ofe rta de Abe l. Cássio, na tragé dia shake spe ariana Otelo, o mouro
de Veneza, olha com inve joso rancor a promoção de outro que não
e le . Cássio inve ja a posição do outro, inve ja se u che fe Ote lo,
inve ja tudo a se u re dor. Cássio olha para aquilo que não de ve .
Se ndo mal do olho, vários amule tos contra a inve ja
apre se ntam o símbolo da visão. É o caso do olho gre go ou turco.
É o caso, també m, de uma planta aqui da Amé rica, o huayuro
(Ormosia coccinea), que se asse me lha a um olho. O pode r
purificador do sal grosso també m é antigo re mé dio para de purar
as e ne rgias inve josas que nos assolam. A figa, e le me nto fálico, é
utilizada para que brar a força do inve joso. Pe rfume s, como
alfaze ma, pode m te r e sse pode r. Na bainha do ve stido da noiva
pode m se r colocados dive rsos obje tos para prote gê -la da inve ja.
Um vaso com se te e rvas pode rosas (guiné , arruda, e spada/lança
de São Jorge , pime nta, comigo-ningué m-pode , manje ricão,
ale crim) de ve e star e m um ambie nte onde os olhos dos inve josos
possam cair. Se uma das e rvas morre r, é sinal de que absorve u a
e ne rgia inve josa. Claro que , se ndo plantas de dife re nte s
capacidade s de re sistir à água e à se ca, e stando juntas, uma irá
morre r, ne ce ssariame nte . Há muitos outros re cursos para
e spantar a inve ja alhe ia. A inve ja é unive rsal, mas o alvo da inve ja
pode se de fe nde r. Por que tantos amule tos contra a inve ja? Por
que pare ce se r o mal mais difundido? Há mais amule tos contra a
inve ja do que contra o e stupro ou o roubo. A inve ja se ria mais
grave ?
Talve z a re sposta e ste ja na e strutura da inve ja. Como já visto,
ningué m é inve joso, ou, ao me nos, ningué m se conside ra inve joso.
Na e xata inve rsão comple me ntar de ssa ide ia, todos somos alvos
de inve ja. Suponha o indivíduo com que m a nature za foi avara e m
conce de r be ne fícios físicos e inte le ctuais. Suponha que o me smo
indivíduo se ja care nte de be ns, de graça pe ssoal, de traços
positivos. Componha o quadro do se u Quasímodo, o corcunda de
Notre Dame . Te nha ce rte za: e le se se nte inve jado. Talve z se ja a
última de fe sa de todo se r humano: se r inve jado. Algué m que não
te m ne m se que r algo a se r inve jado, re alme nte e stá no fim da
pirâmide alime ntar humana. Mais de uma ve z, ao ouvir algué m se
anunciar alvo de muita inve ja, te nho o impulso inte rno de
pe rguntar: “Mas do quê ?” Não faço a pe rgunta, não se ria
e le gante . Balanço a cabe ça e te nho uma clássica re ação bovina:
hummmm… Se o de stino e a nature za já re tiraram tudo de algué m,
por que e u de ve ria re tirar a última cre nça de valor de la?
Be m, tirando você , que me lê , e e u, que e scre vo, o re sto do
mundo é inve joso. Por que as outras pe ssoas que não nós são
assim? Come çamos nossa análise sobre orgulho e inve ja. São
pe cados comparativos. Se mpre have rá algué m acima ou abaixo
de mim, a e stimular me u orgulho de supe rioridade ou o rancor
da inve ja. Você se acha fe io? Cre ia, e m alguma alde ia das
montanhas chine sas há algué m pior. Você se acha pobre ? Have rá
algué m com me nos. Se u raciocínio é le nto? Há ge nte ainda mais
le rda. Se u de se mpe nho se xual é pífio. Não pre cisa sair do se u
condomínio para algo mais ine xpre ssivo ainda. Se mpre há
pe ssoas piore s, mais fráge is, me nos dotadas física e
inte le ctualme nte . Me u orgulho pode se r sobe rano.
Me sma re fle xão se rve para a inve ja. Se mpre há algué m
acima. Como não notar isso? Como não pe rce be r os muitos
se re s acima de mim e m qualque r conce ito que e u imagine ? Você
pode se r o mais be m-suce dido da sua família. Sua be le za pode
impre ssionar na re união de condomínio. Se u guarda-roupa pode
te r pe ças acima da mé dia da re partição. Mas amplie isso para o
padrão municipal, e stadual, nacional, unive rsal. Em algum
mome nto, você cairá no ranking. Claro que você sabe se r mais
importante se r supe rior ao se u cole ga do que à humanidade ,
mas há algué m a inve jar se mpre .
Esse é um jogo comple xo. Minha ide ntidade de pe nde da
comparação. Se i que m sou e m re lação aos outros. Se tive sse
nascido isolado no unive rso, jamais te ria algum adje tivo claro para
mim: alto, baixo, gordo, magro, inte lige nte ou burro. Todos são
adje tivos posicionais, ou se ja, de pe nde m dos outros e da
comparação que e stabe le ço. Por que digo isso? Porque orgulho e
inve ja nasce m da nossa ide ntidade e da dificuldade e m
e stabe le ce r e ssa comparação.
Ence rro pe rguntando se te m je ito, ou se ja, se é possíve l não
se r inve joso ou orgulhoso. Acho que não. No e xtre mo, algué m que
disse sse que e stá fe liz por não se r orgulhoso, no fundo e stá
dize ndo do se u orgulho de se r humilde . Se não te nho inve ja de
nada, provave lme nte já fiz a transição para o país da morte , pois
vive r, e m parte , é inve jar. Mortos não inve jam, mas ainda pode m
se r inve jados.
Não te m je ito me smo. Mas não se de se spe re . Existe uma
re fle xão que nos torna mais amigos da sabe doria (já que sábio,
de ve rdade , nunca ficare mos). A inve ja e o orgulho são naturais
na vida social, mas são e quivocados. Posso pe nsar que o e quívoco
e ste ja no campo re ligioso. Ganhe i de De us dons para se rvir aos
outros e cumprir o plano divino. O que te nho ou não faz parte de
uma arquite tura te ológica. Se muito re ce bi, muito se rá cobrado.
Se outro re ce be u mais ou me nos do que e u, o divino autor te ria
e scrito e sse s rote iros. A mim cabe atuar no palco dado, no
máximo do me u e sforço. Essa é , e m parte , a parábola dos
tale ntos e das minas, contida e m Mate us 25 e Lucas 19,
re spe ctivame nte . O traço ce ntral da parábola é que um se nhor
de u uma quantia X a um, me nos a outro e ainda me nos a um
te rce iro. Os que re ce be ram mais multiplicaram com
inve stime ntos e cuidados. O que pouco re ce be u e nte rrou se u
tale nto e nada multiplicou. Há muitas possibilidade s de le r e sse
te xto. Uma de las é que cada um re ce be um quinhão ne ssa
he rança divina e a cada um cabe multiplicar isso. Assim, tale ntos
a mais ou a me nos (conside rando que a palavra tale nto de nomina
uma me dida de rique za no mundo antigo e para nós é uma
palavra que significa dom) ape nas significam cobranças a mais ou
a me nos. Como diz De us a Jó, que m se ríamos nós para
e nte nde r as tramas do de stino e da obra de De us?
O re ligioso pode se ntir e sse conforto. Há um plano, e inve jar
que m re ce be u papé is maiore s ou orgulhar-se de te r uma
importância mais e xpre ssiva é uma bobage m e uma ousadia
profana. Tudo e stá dado e De us faz tudo te r se ntido. Está
afastado o absurdo da e xistê ncia e a dor da de sigualdade . Afinal,
a mais ou a me nos, que m pode se comparar ao Altíssimo? A
magnitude de De us torna a todos nós, igualme nte , poe ira
cósmica, amada pe lo Todo-pode roso, mas poe ira.
O não re ligioso te m me nos de sse conforto. Mas cabe ria aqui
uma re fle xão um pouco filosófica e um pouco psicanalítica. Se r
orgulhoso ou inve joso é me dir a si pe lo me tro alhe io. É uma
impossibilidade té cnica, já que o outro pouco ou nada diz de mim.
Sabe r se sou bom porque o outro é me lhor ou pior ate nde pouco
a mim e ape nas busca, e m uma proje ção e stranha, o que e u
pe nso e o quanto e u me ço ao outro. A inve ja e o orgulho são
tipos distintos, mas similare s de e stupide z, já que não le vam ao
autoconhe cime nto socrático ne m e stabe le ce m uma re fle xão
crítica.
Essa é outra mane ira de dize r que se ntir-se che io de orgulho
ou transido de inve ja pode m se r unive rsais e ine vitáve is, mas que
com e ssa consciê ncia, ao me nos, e xiste a possibilidade de
e nfre ntar tais coisas. Sim, pois a sabe doria nunca se rá ple na e a
iluminação se mpre comportará fre stas. Assim, cabe mais te r
consciê ncia dos nossos limite s e le r o que que re mos dize r quando
nos se ntimos supe riore s ou infe riore s a algué m.
Há poucas pe ssoas capaze s de faze r isso. Há poucos se re s
com olhos voltados para si. É a pe rgunta pe rmane nte de Sócrate s
e m O Banquete. O que você e nte nde por isso? Quais são se us
parâme tros? Como você te m ou não consciê ncia de sse s
conce itos? Como se us particulare s dialogam com os unive rsais?
Quais as pe rguntas ce ntrais que você e vita? Quais são suas
contradiçõe s? Quais as re spostas que você não pode e ncontrar?
Quais as que re alme nte são as suas re spostas? Sócrate s pare cia
te r e sse dom de faze r as pe rguntas corre tas. Orgulho-me muito
de e nte nde r sua busca comple xa e te nho uma bruta inve ja da
capacidade socrática. Ops, de volta ao divã.
Capítulo 4
~
S exo, com ida e o im pé rio do prazer
“Não vos recuseis um ao outro, a não ser de comum acordo e por algum
tempo, para vos entregardes à oração. Voltai depois à convivência
normal, para que Satanás não vos tente, por vossa falta de domínio
próprio.”
1Coríntios 7:5
[
A proposta da imutabilidade é mais do que
inde corosa: e la viole nta um indivíduo. Ela propõe que
continue mos a faze r o que foi fe ito no passado (p.
39).
HOUVE UM CULPADO?
O Cristianismo é uma re ligião muito moral. He rdou do
Judaísmo muitos inte rditos e , e m algumas ve rte nte s, acre sce ntou
outros, como a proibição do divórcio. Quase tudo que é bom é
pe cado. O impe rativo cate górico se xual foi circunscrito ao
casame nto. A castidade foi e le vada, ao contrário da matriz
judaica, à cate goria de virtude supe rior. A carne corrompe e o
se xo conspurca.
Tradicionalme nte , a raiz de ssa postura é atribuída a Paulo.
Difícil avaliar a e xte nsão da influê ncia de Paulo de Tarso. O
Cristianismo, às ve ze s, pare ce se r mais obra de Paulo do que de
Je sus. O prime iro home m a e scre ve r te xtos comple tos sobre a
e xpe riê ncia cristã foi Paulo. Suas cartas ante ce de m,
cronologicame nte , aos Evange lhos. Se u domínio do gre go, suas
viage ns, sua oposição aos limite s da ide ia de povo e scolhido que
alguns líde re s como Tiago tinham, acabou se ndo imposto como a
ve rte nte vitoriosa do Cristianismo.
Paulo nunca se casou. Isso não e ra comum e ntre jude us. Já
vimos que a orde m do Gê ne sis (cre sce r e multiplicar-se ) e ra lida
como um mandame nto. Se r solte iro não e ra um valor na é poca
paulina. Ele fala de um e spinho na carne , algo que o incomoda,
algo que o impe de de ficar orgulhoso (2Coríntios 12:7). Paulo
re come nda a castidade . Te ria re lação com se u e spinho na carne ?
Um de fe ito físico? Um gosto se xual fora do padrão? Nunca
sabe re mos. Mas e sse home m solte iro e com e spinho na carne
ditou as grande s re gras do nasce nte Cristianismo.
Je sus andara com prostitutas e come ra na casa de
publicanos. Para a mulhe r adúlte ra, diz que ningué m pode julgar
alé m de De us. Como Paulo te ria convivido com o Me stre que
idolatrava, mas que , de fato, nunca e ncontrou? Te ria achado
Je sus pare cido com a irre quie ta comunidade de Corinto? O Je sus
re al, e não o Cristo da fé , te ria incomodado o Paulo re al?
Nunca sabe re mos, mas quase todas as pe ssoas apontaram
Paulo como a raiz do pe nsame nto se xual cristão. Claro que ,
de pois, Agostinho e tantos outros doutore s contribuíram bastante .
O pape l de Paulo de Tarso é suficie nte para o mau humor de
Nie tzsche para com e le . Mulhe re s de cabe ças cobe rtas e boca
calada; home ns que , se pude re m, de ve m e vitar casame nto;
indignação com as alte rnativas se xuais dos coríntios…
Quando os romanos cortaram sua cabe ça na posta Óstia, diz
a tradição que e la pulou várias ve ze s. O corpo que dou-se imóve l.
Me táfora inte re ssante : se parar cabe ça do corpo, e sse é o grande
le gado paulino até e m sua morte .
AINDA O CORPO
8/7
Epicuro e Lucré cio foram os últimos re pre se ntante s da
tradição he donista gre ga. Ela foi se ndo le ntame nte riscada do
mapa até de sapare ce r comple tame nte na antiguidade tardia. O
próprio impe rador Juliano justificava, no quarto sé culo, o
de sapare cime nto dos e scritos de Epicuro como e fe ito da
inte rve nção dire ta dos de use s. Santo Agostinho, por outro lado,
e m uma carta do ano de 410, afirmava que e stoicos e e picuristas
não fariam mais parte da e scola de re tórica. Esse s são sinais do
apagame nto do e picurismo no mundo antigo. Com e le ,
de sapare ce o he donismo gre go.
MEDICALIZAÇÃO DA DOR
Ce nto e cinque nta anos de psicologia mé dica varre ram da
nossa me mória cultural e ssa e xpe riê ncia e m que a dor te m um
significado positivo para que m a se nte . Sobrou-nos ape nas o
aspe cto ne gativo, de sinte grativo, da dor. Ne sse se ntido, Arie l
Glucklich fala de uma amné sia cultural cole tiva e m re lação à dor
re ligiosa. A dor tornou-se uma se nsação privada, muda,
incomunicáve l, não compartilháve l. No e ntanto, sabe mos que a
dor não é tão simple s. A dor física de um pacie nte te rminal ou a
de uma vítima de um acide nte é comple tame nte dife re nte , por
e xe mplo, da dor buscada voluntariame nte pe los praticante s da
automutilação.
Glucklich re coloca a que stão: por que as pe ssoas re ligiosas se
autoflage lam? Qual o e fe ito de sse tipo de dor na pe ssoa? A dor
re ligiosa pare ce pe rmitir uma alte ração do e stado de consciê ncia
e uma alte ração e mocional que faz com que a pe ssoa se sinta
parte de uma cole tividade mais ampla, ou te ndo ace sso a um
e stado mais profundo da e xistê ncia. A dor sagrada, por e xe mplo,
te ria função inte grativa. Fortale ce ria os laços com a divindade e
com uma comunidade . Essa força inte grativa e stava
apare nte me nte pe rdida.
Dos Padre s do De se rto ao Marquê s de Sade , o proble ma da
dor foi inte nsame nte de batido. Hoje e m dia, tanto na áre a
mé dica quanto no âmbito me tafísico, é e stranhame nte pouco
discutida. Esse de sinte re sse pare ce te r alguma re lação com a
amné sia da dor sagrada e com a me dicalização da dor.
Com a inve nção da ane ste sia, e m 1840, o proce sso da
me dicalização da dor foi de se ncade ado, mas não se m
re sistê ncias. Como re sultado de sse proce sso, a pe ssoa que se nte
qualque r tipo de dor, manife sta ape nas sintomas. A dor não te m
ne nhum significado para e las. Como consumidora de se rviços
mé dicos e psicológicos, o pacie nte de ve le var sua dor para se r
“lida” e inte rpre tada por um e spe cialista. A ide ia de que a vida
indolor é um dire ito fundame ntal come ça a se impor como um
ide al (com a re ssalva de que de pe nde da qualidade dos se rviços
mé dicos e das condiçõe s de compra de sse se rviço pe lo pacie nte ).
Em um livro cé le bre , Ste phanie Snow mostrou como a
re ligião — mais e spe cificame nte , o Cristianismo — contribuiu para
re tardar a ace itação do uso de ane ste sia para aliviar a dor e o
sofrime nto dos pacie nte s. Na introdução do livro, e la afirma: “Na
te ologia cristã, a dor e ntrou no mundo após a de sobe diê ncia de
Eva no Jardim do Éde n e pe rmane ce u ce ntral para a
humanidade .” Em uma e strutura cristã, o sofrime nto durante o
parto, por e xe mplo, e ra conside rado um le mbre te ne ce ssário e
pe rmane nte do pe cado de Eva. A citação bíblica “Multiplicare i
grande me nte a sua dor na gravide z; com sofrime nto você dará à
luz filhos” (Gê ne sis 3:16), e ra usada como um argume nto para
que o uso de é te r ou clorofórmio fosse m proibidos no parto. Era
comum se acre ditar que e vitar a dor e ra agir contra a vontade de
De us, e isso te ria impe dido a ime diata ace itação da ane ste sia. A
Virge m Maria e ra o mode lo positivo: não te ria sofrido ne nhuma
dor física. A me nsage m e ra clara: a dor e stava na alma,
re sultado do pe cado e da culpa.
O adve nto da ane ste sia, ve nce ndo as re sistê ncias re ligiosas,
pe rmitiu que a dor fosse re avaliada e passasse a se r assunto
mé dico, um assunto que tinha mais a ve r com o corpo do que
com a pe ssoa e m um se ntido mais amplo.
O sofrime nto, e ntre tanto, é me nos uma se nsação qualque r
do que uma re ação e mocional a um se m núme ro de coisas não
ne ce ssariame nte dolorosas. O sofrime nto pe la pe rda de uma
pe ssoa que rida, por e xe mplo, não é provocado por uma se nsação
física, é uma re ação e mocional. Embora saibamos hoje , mais do
que nunca, sobre os me canismos ne urológicos da transmissão e
da pe rce pção da dor, me smo a dor como se nsação (“o dano e m
um te cido”), te m uma dime nsão significativa que não se de ixa
re duzir ao me rame nte “físico”. Ne sse se ntido, e la pode até se r,
como ve re mos a se guir, uma solução para o sofrime nto, quando
usada como analgé sico psicológico para aliviar a ansie dade , a
culpa e até me smo a de pre ssão. Mas um fato é ine gáve l: a dor,
de algum modo, re cupe rou se u valor e se u se ntido “gótico”. Talve z
isso e xplique o pape l fundame ntal que a dor re pre se nta na vida
conte mporâne a.
A cre sce nte ace itação social de algumas das chamadas arte s
corporais e stá apagando le ntame nte a linha que se para o que
pode ríamos chamar de e xpre ssão pe ssoal e as patologias clínicas
que e stavam tradicionalme nte associadas à produção de dor. O
sadomasoquismo, o piercing, a tatuage m, os rituais de marcas
se xuais, as pe rformance s de sangue , as modificaçõe s corporais
de vários tipos se tornaram parte da cultura conte mporâne a. Um
re nascime nto do inte re sse pe lo unive rso gótico é cre sce nte .
Histórias de vampiros, rituais de sangue , automutilação tornaram-
se obje tos de consumo cole tivo tanto nas arte s re cre ativas como
na dita Grande Arte . A linha fina e ntre moda e compulsão e stá
cada ve z me nos pe rce ptíve l. Curiosidade , e xpe rime ntação ou
distúrbios psiquiátricos tornaram-se indisce rníve is. Como se pode
hoje crite riosame nte se parar o re cre ativo do compulsivo?
Ao contrário do que se imagina, o mundo conte mporâne o, na
sua apare nte disparidade e multiplicidade irre dutíve is, manife sta
uma irre fre áve l te ndê ncia ascé tica. A dor sagrada ou a dor a
se rviço de fins supe riore s e stá mais viva que nunca no mundo
conte mporâne o. Basta obse rvar os e xe rcícios físicos e xte nuante s,
os e ve ntos e sportivos, as acade mias de ginástica, as die tas
radicais, os ritos de iniciação, militare s ou e studantis. A dor
pare ce contribuir, ainda que de modo e nigmático, mais para
re solve r do que para ge rar proble mas.
Tome mos, por e xe mplo, a automutilação. Ela e stá mais do
que pre se nte nos variados se gme ntos da vida conte mporâne a. O
te ma, de sde os anos 1980, ve m chamando a ate nção de
e spe cialistas e da mídia. O caso de Jill, citado por Glucklich, é um
e xe mplo intrigante . Jill é uma adole sce nte de uma família
e quilibrada de Chicago, que , ape sar de be m-suce dida, vivia e m
constante e stre sse , pre ocupada de mais e m agradar os outros.
Aos quatorze anos, fe z uma de scobe rta surpre e nde nte : se
cortasse alguma parte do se u corpo e obse rvasse se u sangue
corre r, fazia de sapare ce r, pe lo me nos por algum te mpo, se u
insuportáve l sofrime nto psíquico.
“‘Eu e stava no banhe iro”, conta e la, “e havia lá cortador de
pape l de pare de . Eu e stava tão ansiosa que não conse guia me
conce ntrar e m nada, pe gue i e ntão o cortador e come ce i a cortar
minha pe rna e fique i e xcitada ao ve r me u sangue . Era bom ve r
me u sangue saindo e nquanto minha outra dor saía també m
junto”. Jill passou e ntão a cortar-se e m lugare s re se rvados,
usando não ape nas lâminas de barbe ar, mas outros obje tos
cortante s, como cacos de vidro e agulhas, e m re giõe s do corpo
me nos visíve is. Ela passou a se r ape nas um núme ro da e statística
de uma nova e pide mia e ntre adole sce nte s. A e pide mia que o
psiquiatra Armando Favazza chama de “corpos sob ce rco” (bodies
under siege). Favazza e stima que o núme ro (no final dos anos 1990)
de “cortadore s” e ra de 750 por cada 100 mil norte -ame ricanos,
e m um total de dois milhõe s, mas e le adianta que o núme ro re al
pode se r be m maior.
Qual é a e xplicação para e sse fe nôme no? Em se u livro
sobre o assunto, Glucklich propõe uma que stão intrigante e
fe cunda: se ria possíve l e nte nde r a automutilação
conte mporâne a a partir da flage lação sagrada de santos e
místicos? Nos dois casos, a dificuldade é e nte nde r como uma
dor que normalme nte é e vitada se torna boa e que rida? Como
a dor “má” se torna dor “boa”? Não se e nte nde isso
ple name nte e m te rmos me rame nte de sinte grativos. Dize r que
é um comportame nto autode strutivo é insuficie nte . A solução
de ve ria se r buscada do lado positivo da alte ração da
consciê ncia e da ide ntidade . Mas e ssa alte ração só é possíve l
e m um conte xto e m que a dor é e xpe rime ntada com
significado e valor.
Os automutiladore s conte mporâne os muitas ve ze s falam
como se fosse m mártire s; são “re ligiosos se m te ologia”, como diz
Glucklich.
O te rmo mais fre que nte usado por e le s para justificar o que
faze m é o pode r. “Se outra pe ssoa e stá me machucando”, diz
outra garota, “ou me faze ndo sangrar, e u pe go o instrume nto, e
e u me sma me faço sangrar; assumo o controle ”. Muitas
dife re nças os se param, mas só uma coisa une os
automutiladore s conte mporâne os: o se ntime nto de que são
vítimas de ausê ncia de pode r, o se ntime nto de que são
dominados e controlados por uma vontade anônima e alhe ia.
No sacrifício conte mporâne o, cortar é a mane ira de
subme te r alguma coisa infe rior a um fim supe rior. Ne sse se ntido,
quando re tiramos uma parte infe ctada do nosso corpo, te ntamos
e liminar a doe nça, alte rar nosso corpo e m favor de algo supe rior,
a saúde . Garotas e mártire s cortam-se porque de scobriram um
me io de alte rar a pe rce pção que e le s tê m sobre si me smos, um
me io de produzir um se ntime nto de pode r pe ssoal, e de e ntrar
e m uma re lação ide ntificatória com algo de orde m supe rior. A
dor, e m suma, dá alime nto simbólico a um e u faminto.
Se m a e strutura te ológica que suste nta a dor sagrada, as
e xpe riê ncias conte mporâne as voluntárias com a dor pare ce m
re ssoar no vazio. Elas produze m ce rtame nte um alívio de outra
dor, o sofrime nto de impotê ncia, de ausê ncia de pode r, mas a
instância supe rior ao qual ace de m pare ce se r um lugar vazio.
Sabe mos, no e ntanto, que e la forne ce um tipo e spe cífico de
praze r, o alívio da dor. Um praze r ne gativo, um traço distintivo da
vida conte mporâne a.
O que parece claro na vida de santos e mártires — um
contexto cultural que oferece crenças, emoções e valores para que
essas re lações violentas com o corpo sejam possíve is — é obscuro
na contemporane idade. O uso da dor para produzir estados
específicos de consciência e fazer nascer uma nova identidade
aponta para fenômenos psicológicos e re ligiosos definidos
culturalmente onde indivíduo e cultura se encontram.
8/7
As práticas ascé ticas e as e xpe riê ncias e xtáticas com a dor
na Idade Mé dia aproximam-se paradoxalme nte das e xpe riê ncias
com o praze r. Se ria o caso de pe rguntar, como já o fize ram, se a
filosofia da me scla de praze r com dor do Marquê s de Sade não
colocaria e m xe que a filosofia de Epicuro. Este , como vimos,
conce be o praze r como a ausê ncia de dor. Mas o mundo
conte mporâne o e staria disposto a ace itar um praze r não
misturado com dor? Epicuro ce rtame nte diria que o Marquê s de
Sade não ofe re ce um praze r que pode constituir uma Vida Boa.
Mas talve z hoje se ja difícil pe nsar um grande praze r humano que
não produza dor, ou se ja inte nsificado por e la. A de finição de
praze r como “ausê ncia de dor” de Epicuro não pare ce ria re alista
e atrae nte para o mundo de hoje . A se nsibilidade atual pre cisa
se r pe rturbada e fe rida para julgar que alguma coisa é digna do
se u inte re sse .
Capítulo 6
~
S etenta vezes sete
Crer emDeus nos dispensa de crer emqualquer outra coisa — o que supõe
uma vantageminestimável. Sempre invejei quemcria nele, ainda que crer-se
Deus me pareça mais fácil que crer emDeus.
Cioran, Aveux et Anathèmes
[
Ó De us, te m pie dade de mim, conforme a tua
mise ricórdia; no te u grande amor cance la me u
pe cado. Lava-me de toda minha culpa, e purifica-me
do me u pe cado. Re conhe ço a minha iniquidade e me u
pe cado e stá se mpre diante de mim” (Sl 51 , 1-5).
[
[
O Se nhor é me u pastor, nada me falta. Ele me faz
de scansar e m ve rde s prados, a águas tranquilas me
conduz. Re staura minhas forças, guia-me pe lo
caminho re to, por amor do se u nome . Se e u tive r de
andar no vale e scuro, não te me re i mal ne nhum, pois
comigo e stás. O te u bastão e o te u cajado me dão
se gurança. Diante de mim pre paras uma me sa aos
olhos dos me us inimigos; unge s com óle o minha
cabe ça, me u cálice transborda. Fe licidade e graça
vão me acompanhar todos os dias da minha vida e
vou morar na casa do Se nhor por muitíssimos anos”
(Sl 23, 1-6).
[
[
“Por isso, e u vos digo: todo pe cado e toda blasfê mia
se rão pe rdoados; mas a blasfê mia contra o Espírito
Santo não se rá pe rdoada. Me smo se algué m falar
uma palavra contra o Espírito Santo, não se rá
pe rdoado, ne m ne sse mundo, ne m no mundo que há
de vir”.
(Mate us 12:31-32)
[
A birra, o pe cado contra a graça inspiradora do Espírito
Santo, fica assim tornado pe cado he diondo e impre scritíve l; se m
pe rdão. Esse pe cado irre missíve l é a re je ição da graça de De us,
apre se ntada aos home ns constante me nte , insinuada a se us
ouvidos, mostrada a se us olhos. Essa te imosia é um pe cado
insupe ráve l.
Todos e rram. Todos cae m. Até Jó, mode lo de paciê ncia já
citado, te m um mome nto de de se spe ro contra De us. O santo e
pacie nte Jó e nfre ntou be m a morte de todos os filhos. Não se
re be lou quando todos os se us be ns foram roubados. Nada
disse quando se u corpo come çou a apodre ce r e m vida. Re sistiu
a discursos irritante s de , digamos, amigos. Por fim ve io sua
e sposa també m re clamar. Talve z a gota d’água te nha sido um
último amigo, de fe nsor absoluto dos planos de De us, Eliú. Jó
e nfre ntou morte de filhos, pe rda de be ns, insolê ncia de trê s
amigos, pe ste corporal e até a e sposa irritada, mas um
moralista no me io de tudo isso, algué m que ainda ve m falar e
insistir na be le za dos planos de De us naque la situação. Ne ste
mome nto Jó pe rde sua prove rbial paciê ncia. De us conve rsa
pe ssoalme nte com Jó e o re pre e nde . De pois de uma dura
inte rpe lação do Altíssimo sobre o infe liz Jó, e le baixa sua já
cansada cabe ça e re conhe ce : “acuso-me a mim me smo e me
arre pe ndo, no pó e na cinza” (Jó 42:6).
Um não re ligioso pe nsará que e ssa humilhação do
arre pe ndime nto é um e xe rcício de pode r de De us. Para a
te ologia do livro de Jó, o te ste (morte , pe rda de be ns, doe nças)
traduz uma re organização de nossas prioridade s, uma
pre paração para o que re alme nte importa e uma disciplina para
nosso orgulho. Mais do que uma punição, o sofrime nto se ria uma
e ducação. Após todo o sofrime nto, Jó diz algo muito inte re ssante :
“Eu te conhe cia só por ouvir dize r, mas, agora, ve jo-te com me us
olhos” (Jó 42:5). Aprofundando e ssa Te ologia, o me nos
importante na vida de Jó é a posse de be ns mate riais ou de
saúde . O me nos importante é pe rde r tais coisas ou ganhá-las de
novo ao final. O mais importante é de scobrir, ne sse e xe rcício de
humildade , que e u nada controlo de fato do de stino ou do
unive rso, que a sabe doria e stá e m re conhe ce r De us e m tudo. O
arre pe ndime nto e o pe rdão não se riam humilhaçõe s diante de
uma autoridade ou algué m mais forte , mas o re e ncontro da
orde m das coisas e ntre Criador e criaturas.
Toda paixão ou submissão, ne ssa pe rspe ctiva, é e scravidão.
Subme te r-me ce game nte a um Estado, a um partido, a be ns
mate riais, a paixõe s físicas, a vícios: tudo isso diminui minha
libe rdade . Essas e ntre gas me re duze m a re laçõe s horizontais
e ntre criatura e criatura. Quando me e ntre go a algo assim, de ixo
de se r livre , e ncolho moralme nte , pioro pe ssoalme nte e me
afasto da sabe doria. Tudo no mundo e scraviza.
A única coisa que libe rta é a submissão a De us. Por quê ?
Porque De us me fe z, na fé re ligiosa judaico-cristã-islâmica a sua
image m e se me lhança. Sou da me sma substância de De us.
Entre gar-me a Ele não é ne gar minha libe rdade , mas e ncontrá-la
de ve rdade e para se mpre . A e ntre ga a De us libe rta. A submissão
ao Criador traz mais libe rdade .
Assim, o pe dido de pe rdão, e m ve z de humilhar, de fato, me
conduz de volta ao caminho corre to e natural. Some nte sou de
fato livre e digno quando ace ito a total e absoluta transce ndê ncia
de De us sobre me u mundo. Essa é a libe rdade de Jó e a grande
lição do se u livro. Diluir-me na ime nsidão de De us é , e nfim,
e ncontrar-me . Re cupe rar me us be ns e minha saúde , me us filhos
e uma vida longa (e le vive u 144 anos de pois de sse s e pisódios) são
bônus se cundários para almas um pouco me nos grandiosas. A
Bíblia foi e scrita també m para e ssas almas.
Os não re ligiosos e stranham e ssa e ntre ga absoluta. També m
é possíve l dize r que talve z todo home m se m fé , ao conde nar e ssa
e ntre ga, afirma sua libe rdade e ntre me ada de ce rta inve ja
daque le que e ncontra se ntido total na transce ndê ncia de De us.
Só De us basta, diz Te re sa de Ávila, só De us comple ta, pre e nche
totalme nte , não de ixa e spaço para nova insatisfação. Só na
re lação com De us e ssa e ntre ga, e m ve z de e svaziar, pre e nche
por comple to. Essa é a chave da mística e que torna o home m de
fé no inte rior de uma cave rna no de se rto mais fe liz do que o re i
opule nto ce rcado pe la corte . O re i nunca te rá ce rte za se se us
vassalos se curvam por me do, tradição ou até ironia. O re i
morre rá acossado pe las te orias conspiratórias e pe lo se ntime nto
do cinismo humano e das aparê ncias. Se u narciso pe de , mas se u
inte le cto de sconfia da ate nção que lhe che ga. O home m de fé
te m ce rte za, não de sconfia, e ntre ga-se , ace ita. Se te ve dúvidas ou
se e las pe rsiste m na noite da sua alma, e ntre ga-se mais e re ce be
e ssa re sposta. Só De us basta. A criação de ssa ide ia é a mais
brilhante de todas as propostas re ligiosas. Jó de scobriu isso para
alé m do se u be m-e star.
O PERDÃO CRIS TÃO
UM ADULTÉRIO E UM PERDÃO
O pe rdão cristão e ncontra mome ntos particularme nte
tocante s no Novo Te stame nto. Me u pre fe rido é a história da
adúlte ra (João 8). Uma mulhe r foi surpre e ndida e m adulté rio. Foi
flagrante , não há e scusas. Havia te ste munhas. Se o jogo de
palavras não fosse e xce ssivo, até pode ríamos dize r que foi com a
“boca na botija”. Alvoroço total na comunidade . Que de lícia
e ncontrar um bode e xpiatório. Uma mulhe r que se e ntre gou por
de se jo e amor a um home m que não e ra se u marido. Um se r
humano que buscou fe licidade fora da re gra. Todos aque le s que
de se jaram isso ano após ano e não tive ram ne m oportunidade e
ne m corage m, agora apontavam o de do furiosos, e fe lize s. Ela
ousou, e la fe z, e la de ve pagar. A le i é clara: ape dre jame nto.
Matar com pe dras é uma morte simbólica. Pe rmite a todos
atirare m parte da sua raiva na pe ssoa que se de sviou. Um
e nforcame nto só dá e sse praze r ao carrasco. Guilhotinar é
me cânico. Fuzilar é quase assé ptico. Ape dre jar é que é gostoso.
Posso, pe dra após pe dra, ir ve nce ndo o mal que e u ve jo e m mim,
mas que o outro e xe rce u. Ape dre jar é e xorcizar. Com força,
atiro minha pe dra e ace rto, de pre fe rê ncia na parte que mais
ode io do pe cador. Ape dre jar é uma socie dade anônima de ódios
com divide ndos para todos os inve stidore s. A adúlte ra de ve se r
ape dre jada.
“Mas por que apenas matar esta pecadora? Poderíamos
também levar o caso a Jesus”, dizem fariseus e doutores da Lei.
Ele seria confrontado com um caso claro e sem possibilidade de
interpretação. Jesus deveria participar da sociedade anônima. Isso
significa que a fama de um Jesus que perdoava e pregava o
perdão já incomodava muita gente. A hermenêutica de Jesus a
favor de um esgarçamento da Lei era, certamente, notória. O
episódio teria ocorrido depois do Sermão da Montanha, quando o
programa moral de Jesus já estava enunciado.
O e pisódio de monstra duas raivas dos moralistas. Uma é
contra a infração do código. Essa raiva se volta contra a mulhe r.
O outro polo de ódio é contra que m que r diminuir as pe nas,
inte rpre tar as re gras e pe rdoar. Esse se ntime nto se de scarre ga
contra Je sus. Dois coe lhos, uma só cajadada. Que dia glorioso
para a virtude farisaica. Se vivos, os farise us te riam pe dido a
re dução da imputabilidade pe nal para se te anos, transmutando
e m pre ocupaçõe s sociais se u ódio.
A ce na é bastante te atral. Os farise us arrastam a mulhe r até
Je sus. O Nazare no, quase como e m um rote iro, ignora os
acusadore s. Je sus, o Supre mo Be m, não ouve o que falam de
mal sobre o mau ou a má. Ele é surdo à acusação e fica
e scre ve ndo no chão. O que e scre ve ? Nada sabe mos. Se mpre que
le io sobre e ssa ce na pe nso nos alunos e nte diados com a aula
rabiscando uma folha e m branco (há alguns anos, hoje se ria
digitando e m apare lhos). Estaria Je sus de monstrando té dio com a
acusação? Falaria de ntro do me stre uma voz com a frase : “Oh
não, e ste s farise us de novo, não apre nde m nunca…”? Não
pode mos afirmar isso. Nunca se disse nada sobre o té dio de
Je sus. Se ria he re sia supô-lo?
Je sus e scre ve , indife re nte ao grupo ruidoso. Se u
protagonismo é dado pe lo silê ncio. O Evange lho diz que Je sus se
e ndire itou, pre ssupondo que ante s e stava curvado, ou acocorado
e scre ve ndo, e m todo caso, e m uma posição abaixada. De
re pe nte , uma frase : “Que m de ntre vós não tive r pe cado, atire a
prime ira pe dra” (João 8:7). Frase bombástica! Ape dre jar se ria
confe ssar o orgulho de se pre sumir acima do pe cado e da
humanidade . Isso ne m os farise us pode riam dize r, ainda que
pude sse m pe nsar. Foram se afastando. O Evange lho dá mais
uma pista — a re tirada se guiu orde m cronológica: foram saindo a
partir do mais ve lho. Quanto mais idade , mais me mórias de
pe cados e mais re morsos, mais consciê ncia pe sada. Um a um,
todos se re tiraram. Re stavam Je sus e a mulhe r. Se mpre imagino
e ssa ce na e m um palco. Talve z te nha sido e scrita com e sse
propósito.
Ve jam uma dife re nça: no prime iro sé culo da nossa e ra,
me smo e ntre farise us, e ra impe rativo re conhe ce r-se pe cador. No
nosso sé culo, te mpo de autoajuda, de e stímulo ao positivo e ao
orgulho de si, e m é poca de re forço dos narcisos pe lo e nsino
totalme nte lúdico e pais culpados, se Je sus fize sse a me sma
pe rgunta, talve z tive sse chovido uma saraivada de pe dras sobre a
pobre mulhe r. Hoje , há poucos pe cadore s e culpados. Hoje , a
culpa é sinal de angústia mal re solvida, se ntime nto de pe cado
pode se r tratado com psicanálise e lítio. O pe ssimismo sobre a
nature za humana de sapare ce e m re de s sociais. Fe lizme nte para
a adúlte ra, aque le mome nto e ra outro.
Je sus sozinho com uma mulhe r aos pé s; o me stre faz uma
pe rgunta re tórica, como se fosse indife re nte de fato a tudo:
“Onde e stão os que te acusavam? Ningué m te conde nou?” Ela
re força que não. Então Je sus diz que també m não a conde nará.
Mas o re torno da adúlte ra a te shuvá te m uma condição: não
pe car de novo. Quando Je sus diz “não torne s a pe car”, e stá
dize ndo que sabe que e la pe cou, que o de poime nto dos farise us
e ra ve rdade iro, que não e ra uma calúnia. Je sus te m ple na
consciê ncia: e ra uma adúlte ra e foi pe ga no ato. “Não torne s a
pe car” mostra que o pe rdão é e fe tivo e incide sobre um e rro re al
e come tido. Mais: adúlte ra, ao longo do capítulo 8 de João, e m
ne nhum mome nto e la ne ga isso ou diz que é inoce nte (ah, como
e stamos longe de sse dia e m que a de sculpa pronta não brotava
magicame nte dos lábios de todos). A adúlte ra sabe que adulte rou.
Je sus sabe que a adúlte ra adulte rou. Todos sabe m do adulté rio.
Ningué m o ne ga. Pe rdoar não é e sque ce r ne m dar livre passe
para mais e rros. É só o re conhe cime nto de que houve um e rro e
que há a disposição para que não ocorra de novo. Pe rdoar é só
re conhe ce r a humanidade do pe cador, nunca é uma de fe sa do
pe cado.
No capítulo 8 de João, Je sus dá mais uma pista importante .
Ele afirma se r a luz do mundo (ve rsículo 12) e , mais importante ,
acusa os farise us de julgare m se gundo a carne e que e le “a
ningué m julga” (Jo 8, 15). Talve z se ja o mais importante tre cho
sobre pe rdão da Bíblia. Je sus, o filho de De us, a se gunda pe ssoa
da Trindade , o Me ssias, o home m-De us e ncarnado, diz que não
julga ningué m. Ele , a luz do mundo, é o único que pode ria de finir
a tre va, já que todos os se re s não são luz; somos ape nas
iluminados ou não. Je sus, a luz do mundo, não julga. Fascinante
e sta passage m: uma de rrubada de quase tudo que a tradição
acre dita sobre punição, moral, castigos e te rnos, fogo e danação.
De us é amor, a frase sínte se de João: “Que m não ama não
che gou a conhe ce r De us, pois De us é amor” (I Jo 4, 8).
Vamos, e ntão, piorar o de safio de Je sus aos farise us: aque le
que nunca julgou algué m atire a prime ira pe dra. Agora sim, não
sobraria ningué m.
Te mos um dado final ne ssa história e dificante . O capítulo
te rmina no ve rsículo 59 com um fato pouco e xplorado pe la
tradição. De pois de todo o de bate sobre culpa e pe rdão, de pois
de te r se anunciado a luz do mundo, de pois de dize r que não
julga ningué m e te r humilhado os ávidos ape dre jadore s, e nfim…
Te ntam ape dre jar Je sus. Je sus e sconde u-se , fugiu e e vitou que a
re ligião da cruz se tornasse a re ligião da sagrada pe dra. Não
sabe mos se e le se ocultou de forma não natural ou se saiu
corre ndo. Sabe mos que saiu e e vitou sua lapidação.
O último bastião do ódio é contra que m pe rdoa. Não
castigar transfe re a raiva para o que pe rdoa. Apare nte me nte , o
castigo e xpia, e scoa, conce ntra e ajuda a diminuir a raiva cole tiva,
ou, pe lo me nos, o castigo de svia a raiva do pe cado para o
pe cador e sua punição re stabe le ce a orde m unive rsal. Quando e u
não puno, talve z, o mal se torne difuso e incomode muito. Como
é próprio da nossa e spé cie , odiar re úne muito mais de se jo do
que amar ou pe rdoar. Talve z por isso me smo, se ndo amor,
Je sus de fine que não julga. Amor não julga. Como somos
humanos e o amor não che ga a se r todo o nosso se r, julgamos
muito, com praze r, todo dia, e stabe le ce ndo no julgame nto nossa
supe rioridade , pois só julgo me u infe rior moral, ou pe lo me nos
julgo para que algué m se torne me u infe rior moral.
O julgame nto e a punição acalmam. De ve se r o silê ncio,
e stranho e profundo que se se gue às muitas de scriçõe s que
te mos das e xe cuçõe s públicas. A multidão grita, apupa, joga
coisas. A cabe ça cai na guilhotina e o de lírio é absoluto. De pois,
e m silê ncio, re tiram-se para casa. Passou o crime , foi punido o
criminoso. Expiou-se o pe cado. Re stabe le ce u-se a orde m. O que
faze r? Ou te ntar ape dre jar que m pe rdoou ou achar outro
pe cador. Para sorte de todos os farise us, na te nda ao lado
have rá outra adúlte ra, outro sodomita, um pre varicador e um
novo ladrão. Que sorte ! Se m e le s se ríamos obrigados a pe nsar
e m nós me smos. A pe drada na adúlte ra e ra para nocaute ar
nossa consciê ncia. Graças a Je sus, de ssa ve z, a pe dra re tornou e
atingiu todos. Se jamos francos: o trabalho de um farise u nunca
te rmina. Francame nte , e sse Je sus é um e straga-praze re s!
Capítulo 7
~
Perdão grande e perdão pequeno, da Cruz às cruzes
O ERRO E O UNIVERS O
JES US E OS CHATOS
Jesus perdoou a adúltera. Não foi uma dificuldade enorme.
Não era Jesus o traído, nem era o traidor. Sua isenção divina era
reforçada pe la humana: e le não era parte envolvida. Jesus discutia
um princípio, não uma paixão.
Mas o pe rdão brilha mais quando nos atinge de ve rdade e
quando a que stão é mais re le vante . Por isso, se o pe rdão da
adúlte ra é uma e xce le nte história sobre a te ologia de pe rdoar, o
pe rdão da cruz é o ponto alto da sua prática.
Pre so na madrugada e ntre quinta e se xta-fe ira, chicote ado,
coroado de e spinhos, humilhado, e sbofe te ado, e xaminado por
ge nte muito chata como He rode s, Anás, Caifás e Pilatos (se rá
mais doloroso apanhar ou ouvir pe rguntas imbe cis como as de
Pilatos?), Je sus e stava se ndo muito castigado. Sob o sol claro de
uma primave ra e m Je rusalé m, carre gou sua cruz e ne la foi
pre gado. Foi torturado na fre nte da mãe e , ce rtame nte , isso
de ve ria doe r muito també m, pois via a dor nos olhos de Maria.
Atingido e m toda a e xte nsão de uma punição, física e moral;
e sticado há horas na cruz, te ndo se de e xtre ma e te ndo pre gos na
re gião altame nte se nsíve l dos ne rvos do pulso, Je sus che gou ao
mais fundo do sofrime nto. Le mbre mo-nos que , ao e ntrar ne ste
ciclo, e le já havia suado sangue e não dormido no Horto das
Olive iras naque la noite . Ao se u re dor, a dor aume ntada pe lo
sofrime nto dos poucos amigos ali pre se nte s e talve z aume ntada
pe la ausê ncia da maioria dos discípulos. Era o máximo do
máximo do que qualque r se r pode ria suportar.
Aque le home m na cruz pe rdoou aos que lhe impunham e ssa
dor. “Pai, pe rdoa-lhe s, e le s não sabe m o que faze m” (Lucas
23:34). Je sus tornava se u martírio um crime culposo, ou talve z
ne m tornasse um crime . O pe rdão brotava da cruz com mais
ê nfase do que aque le dado à pe cadora, com mais e moção, com
sangue na boca, mas e ra o pe rdão. Essa foi a supre ma coe rê ncia
da narrativa sobre Je sus. Pe rdoou quando e ra fácil e quando
ficou difícil.
Outro de talhe . Para mim ao me nos, se mpre foi fácil se r
compre e nsivo be m se ntado, aque cido, tranquilo e banhado.
Tomando um bom chá ou uma boa taça de vinho, ce rcado de
afe to e com boa saúde , o pe rdão brota dos me us lábios com
facilidade . Sou tranquilo, quando tranquilo. Poré m, no calor da
hora e da irritação, outro e u apare ce , ou se ria, de fato, me u
ve rdade iro e u? Por que digo isso? Porque o mome nto e m que
Je sus pe rdoou e ra de e xtre ma te nsão física e psicológica. Je sus
morre u gritando. Sim, Je sus de u um grito e xtre mo, de agonia, de
de se spe ro. Não foi uma morte tranquila. Quando e ntre ga se u
e spírito, Je sus grita. É uma morte dolorosa e se ntida, inte nsa e
no e xtre mo do possíve l. Ne sse mome nto, Je sus pe rdoou. Esse
pe rdão brilha ainda mais.
NOVAS GULAS
OS NOVOS FARAÓ S
LA NAVE VA
CORPO E ALMA
TUDO É IGUAL?
Re zar, e m e spe cial e m um local conside rado sagrado, traduz
uma das mais antigas e forte s tradiçõe s da e spé cie humana. Se i
que um e spe cialista e m re ligiõe s fará uma crítica corre ta. A
palavra re ligião não pode se r aplicada a todas e ssas e xpe riê ncias
ao longo dos milhare s de anos da e spé cie humana. Mais: o fato
de um indivíduo e star e m oração no Kote l ou e m Apare cida não
torna ambos portadore s da me sma e xpe riê ncia. Essa é uma
crítica corre ta à chamada fe nome nologia: ao julgame nto de algo
e xte rno que aproxima situaçõe s que só e ncontram e sta
proximidade na minha cabe ça.
A crítica é corre ta. As pe dras de Stone he nge não foram
e dificadas com o me smo propósito do Kote l. Poré m, me smo
ace itando que a fe nome nologia se ja um proble ma, é pre ciso
re conhe ce r que , de muitas formas, por muitos caminhos, com
muitos e sforços distintos, e gípcios, jude us, árabe s e outros povos
compartilhavam uma cre nça ao faze re m suas construçõe s
sagradas: aque le s e ram locais e spe ciais onde suas oraçõe s
che gavam de forma mais dire ta ao mundo do alé m.
Acade micame nte , não pode mos analisar toda oração como
algo idê ntico. É corre to e nte nde r cada tipo de cre nça e m um
conte xto e spe cífico e irre pe tíve l, inse rida na História. Quando
ministro aulas sobre o te ma, critico a visão que aproxima o xamã
da Sibé ria do je suíta e spanhol e do rabino e m Nova York. São
coisas dife re nte s. Na prática, fora do rigor conce itual, quando um
católico se aproxima do Muro das Lame ntaçõe s, fica e mocionado,
porque algo ali, e m uma fé distinta da sua, o ligou a algo que e le
crê maior. Passe ar no Jardim Baha’i, e m Haifa, Israe l, e spaço
que a fé pe rsa fe z quase como um re fle xo do Paraíso, toca
re ligiosos de todas as orie ntaçõe s. A fe nome nologia que a
acade mia re je ita com boas razõe s é se ntida de muitas formas
pe lo fie l que não lê críticas acadê micas.
Na “casa do me u Pai há muitas moradas” (João 14:2) diz
Je sus no último e vange lho. Essa frase pode se r lida de muitas
formas. Para o re ligioso, provave lme nte , significa que posso e star
e m dive rsos locais, com dive rsas fé s, de dive rsos modos e que ,
sobre todos e tudo, e xistirá um Pai. Provave lme nte e sse é o
se ntime nto dominante dos re ligiosos.
]
Há algo na morte que eu jamais experimentara. Está
na expressão do poema de Edgar Allan Poe: nunca mais.
Nunca mais o vere i, nunca mais falarei com e le, nunca
mais o abraçare i no dia conjunto do nosso aniversário.
Nunca mais, como grasna o corvo do poema. Nunca
mais. Nunca outra vez ver. Apenas lembrar e tecer
memórias, como em num inventário infinito; até o dia
que esta mortalha também me cubra e eu me torne
uma sombra apenas. Virei tecelão de fios e rastros
tênues. Cultivo o tempo passado do meu pai até que
meu próprio se esgote. Passaram-se dois anos.
[
Volto ao caso da minha amiga. A vida prosse gue , a morte ao
nosso re dor nos le mbra se mpre da bre vidade de tudo. Esse
se ntime nto faz surgir cé ticos e místicos. Já passe i pe las duas
e xpe riê ncias. A mágoa é de sgastada pe lo te mpo. O orgulho
pe rmane ce be m mais.
Talve z e xista um de grau acima da possibilidade do pe rdão. O
pe rdão, re pe ti ao longo do livro, te m algo de vaidoso, na me dida
e m que e stabe le ce uma parte corre ta (a que pe rdoa) e outra,
e rrada (a que ne ce ssita do pe rdão). O pe rdoador, o
mise ricordiador, é um juiz que pode de cidir. Ele funciona com o
pode r e a e mpáfia do clie nte que dá ou não gorje ta ao garçom. O
e mpre gado não pode pe dir a gorje ta. Ele anse ia por e la, mas não
pode re clamá-la. Fica ali de pé , olhando, e spe rando, e m uma
te rríve l e assimé trica re lação de pode r. Talve z e le ame quando o
clie nte é ge ne roso, talve z até e le não me re ça algo a mais porque
o se rviço foi ruim, talve z e le se ja muito bom — nada disso
importa, que m de cide é o clie nte .
O que pe rdoa é clie nte , dono da ve rba e da de cisão. Talve z
aqui e ste ja o proble ma: de cidir pe rdoar ou não te m como base ,
e m última instância, quanto do me u orgulho foi fe rido. “Como foi
possíve l faze r isso comigo?” O ce ntro da que stão é a palavra
comigo.
Dive rge m os te ólogos se e xiste chance de De us pe rdoar a
traição do de mônio um dia. Alguns insiste m na re de nção final de
todos os se re s, inclusive os de caídos. Claro que o de mônio
de ve ria e star arre pe ndido. Só e xistiria pe rdão divino ne sse caso.
Mas o que os te ólogos discute m pouco é se Lúcife r conse guiria
pe rdoar De us. Te r sido amado talve z se ja mais impe rdoáve l do
que te r sido magoado. Com o amor dado, transforme i-me ,
cre sci, fui nutrido. Isso cria um hiato ainda maior do que a
ofe nsa.
Todo o futuro dos pe rdõe s que você e e u, que rido le itor e
que rida le itora, te re mos de dar ou re ce be r, de pe nde do orgulho.
“Ama e faz o que quise re s”, diz a e pígrafe do bispo de Hipona
ne ste capítulo. A barre ira do orgulho é a mais e ficaz contra o
amor.
Aque le s que sofre ram bullying na e scola sofre m muito. Um
dia, talve z, pre cise m pe rdoar se us agre ssore s, ou, ao me nos,
passar muitas horas discutindo isso com um analista. Pouco se
discute o fardo do agre ssor, o que promove u ou lide rou o assé dio
físico, e mocional ou ve rbal. O bullyer pre cisa agre dir pe la dor que
se nte consigo, para e liminar naque le que acha fraco a própria
fraque za. O custo da vítima é altíssimo, mas a re de comple xa de
dore s inclui o agre ssor. As fe ministas diziam, há quase cinque nta
anos, que o movime nto e ra també m para libe rtar o home m do
machismo, não ape nas a mulhe r. O home m se obrigava a coisas
e a um código que e ra custoso a e le també m, tal como e ra
viole nto para as mulhe re s. O agre ssor e o agre dido sofre m na
maioria dos casos, ainda que , claro, o custo físico ou psicológico é
se mpre e norme para a vítima.
Che gamos próximo ao fim da nossa viage m ao longo do
conce ito de pe cado e de pe rdão. Pe rdoar é muito inte re ssante ,
mas a de cisão se há ou não o pe rdão é um ge sto de vaidade .
Encaste lar-se na virtude (muitas ve ze s apare nte ) mascara o jogo.
É a dialé tica do se nhor e do e scravo de He ge l: um é re fé m da
e scravidão, outro é re fé m da situação de te r de controlar o
e scravo. Tanto o carce re iro quanto o ape nado e stão na prisão. O
me do pre side a ambos. A grade se para duas angústias
imbricadas.
Se r sábio é livrar-se ou lutar contra o me do. Pe rdoar não é
dize r, “e u sou me lhor”, mas afirmar que també m é humano. Por
não se r me lhor é que posso dar o pe rdão. Por achar que , e m
circunstâncias similare s, posso faze r o me smo ou pior, e u
abomino aque le ato, mas dou me u pe rdão. Não dou porque sou
ge ne roso, mas porque não sou ge ne roso, porque sou ruim,
porque també m fui e xpulso do Éde n. Então, puf, e vaporou-se
mais um pe daço do pe que no moralista de ntro de nós.
Se r sábio é que re r me lhorar. Se r me lhor talve z já se ja
pre te nsioso. Então, pe ço pe rdão aos me us le itore s e a minhas
le itoras pe la e xte nsão da jornada. Pe ço pe rdão aos que ofe ndi ao
longo de toda a minha vida, e spe cialme nte como profe ssor. Pe ço
pe rdão pe lo me u olhar duro, pe la palavra te rríve l, pe lo gê nio de
cão. Pe ço pe rdão a uma amiga que pe diu me u pe rdão, pois e u
ajude i a criar uma situação que me e ncaste lou na virtude .
Sim, o poe ta tinha razão, um vaso colado talve z nunca mais
possa te r flore s com água. Um vaso partido e stá partido e pe rde
sua função original. Então, se m água, e le possa guardar
chocolate s, ou te xtos, ou fotos, ou faze r e co para novos risos. O
substantivo é vaso. Partido é adje tivo. O e sse ncial se manté m.
Que ro muito isso. Obrigado por te re m che gado até aqui. Pe rdão
pe los me us de fe itos e , acima de tudo, pe ço pe rdão pe las virtude s
que imagino te r.
Que todos pe rdoe m os atrasados, os inse guros, os que
trope çam na língua portugue sa, os fofoque iros, os pre guiçosos.
Mas, acima de tudo, que todos pe rdoe m muito os pontuais, os de
fala se gura, os de portuguê s pe rfe ito, os le ais e os dilige nte s.
Esse s també m ne ce ssitam muito do amparo de todos. E que
ningué m caia sob o pe so dos se us pe cados ou das suas virtude s.
~
Algum as indicações para m ais ideias
EDITORA EXECUTIVA
Carolina Chagas
EDITOR
Rodrigo Almeida
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Thalita Aragão Ramalho
PRODUÇÃO EDITORIAL
Jaciara Lima
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Fernanda Silveira
REVISÃO
Thamíris Leiroza
1 O título é calcado em
um livro de 1988,
México: El Placer de
Pecar y el Afan de
Normar. Organizado
por Joaquín Mortiz
para o Instituto
Nacional de
Antropologia e
História. O assunto
do livro é a sociedade
colonial ibérica e seus
dilemas morais.
2 DOSTOIÉVSKI,
Fiódor. Os irmãos
Karamazov. Trad.
Paulo Bezerra. São
Paulo: Editora 34,
2008.
3 KAFKA, Franz. Carta
ao pai. Trad. Modesto
Carone. São Paulo:
Companhia das
Letras, 1997.
4
ECO. Umberto. O
cemitério de Praga.
Record: São
Paulo/Rio de Janeiro,
2011. p. 14.
5 VENTURA, Zuenir. Mal
secreto — inveja. Rio de
Janeiro: Objetiva, 1998.
6 BONDER, Nilton. A
alma imoral. São
Paulo: Rocco, 1998.
7 Nova York: Harper,
2010.
8 CORDAS, Taki,
WEINBERG, Cybelle.
São Paulo:
Annablume, 2010.
9 Epicurismo e
Hedonismo não são a
mesma coisa. Mas,
como trato da visão
religiosa do prazer,
repito aqui a fusão
que o pensamento
moral cristão
produziu para ambos.