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CAPITULO IIt REPRESENTAR L.Dom Quixote ‘Com suas volts reviravolias, as aventuras de Dom Qui xote tragam 0 limite: nelas terminam os jogos antigos da se- rmethanga © dos signos; nelas ja se travam novas relagses. Dom Quixote ndo é o homem da extravagincia, mas antes 0 pperegrino meticuloso que se detém diante de todas as mar- cas da similitude. Ele € 0 heréi do Mesmo. Assim como de sua estreita provincia, ndo chega a afastar-se da planicie fa mliar que se estende em torno do Andlogo. Percorre-a inde- finidamente, sem transpor jamais as fronteirasnitidas da di- ferenga, nem alcancar 0 coragio da identidade, Ora, ele pré- prio é semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar diretamente da festa dos livros, Seu ser inteiro sé linguagem, texto, folhas impressas, historia Ji tanscrita, E feito de palavras entrecruzadas; 6 eserita er- ante no mundo em meio & semethanga das coisas. Nao po- +rém inteiramente: pois, em sua realidade de pobre fidalgo, $6 pode tornar-se cavaliro,escutando de longe a epoptia secular 64 AS PALAVRASE AS COISAS aque formula a Lei Olivo é menos sua exiténcia que seu de- ver Deve incessantemente consulti-o, a fim de saber 0 que fazer dizer, quas signos dara si préprioe aos outros para ‘mostrar que ele ¢ realmente da mesma natureza que o texto donde sau. Os romances decavaara esereveram de uma ver, portodas a prescrgio de sua aventura. E cada epsédio, cada decistio, cada faganba seri signos de que Dom Quixote é de fato semelhante todos esses signos qu ele decaleou. Mas se ele quer ser hes semehante€ porque deve pro- vicls, € porque os signos (legiveis) jé nfo sfo semelhantes a seres(vsiveis). Todos esses textos escritos, todos esses 10> ‘ances extravagantes slo justamente incompardveis: nada no ‘mundo jamais se es assemelhou; sus linguager infinita fica em suspens, sem que nenhuma situ yen amas preen- ché-a; podem ser queimados todos intiramente, masa fi- gura do mundo no ser por iso alterada, Assemehando-se 0s texts de que €o testemunho,o representant, 0 real ani- Jogo, Dom Quixote deve fomecer a demonstragio etrazer a marca indubitivel de que eles dizem a verdade, de que sio realmente a finguagem do mundo. Compete-Ie preencher a promessa os livros. Cabe-Ihes refazer a epopi, mas em sen- ‘ido inverso: esta narava (petendia narra) fagana reais prometids a meméria;jé Dom Quixote deve preencher com realidade os signos sem contido da narrative. Sua aventura seri uma éecifagio do mundo: um percurso minucioso para recolher em toda a superficie da tera a figuras que mos- tram que os livros dizem a verdad. A faganha deve ser pro- ‘a: consistendo em triunfar realmente ~€ por isso que a vi- ‘6ria no importa no fundo-, mas em transformar arealidade em signo. Em signo de que os signos da linguagem sio real- ‘mente conformes s prpris coisas. Dom Quixote Io mun REPRESENTAR 65 do para demonstrar os livros. Endo concede a si outras provas senio o espelhamento das semelhangas, ‘Seu caminho todo é uma busca das similitudes: as me- ores analogias sio solcitadas como signos adormecidos que ‘cumprisse despertar para que se pusessem de novo a falar. Os rebanhos, as criadas, as estalagens tornam a sera linguagem dos livros, na medida imperceptivel em que se assemelham os castelos, ds damas e aos exéreitos. Semelhanga sempre frustrada, que transforma a prova buscada em irrisio e deixa indefinidamente vazia a palavra dos livros. Masa propria nio- similitude tem seu modelo que ela imita servilmente: encon- tra-o na metamorfose dos encantadores. De sorte que todos © indicios da ndo-semelhanca, todos os signos que mostram {que 0s textos escritosnio dizem a verdade assemelham-se a ste jogo de enfeiticamento que introduz, por adil, diferen- ‘52 no indubitivel da similitude. E, como essa magia foi pre- vista e descrta nos livros, a diferengailuséria que ela intro- ‘duz nunca sera mais que uma similitude encantada. Um sig- ‘no suplementar,portanto, de que os signos realmente se as- ssemelham a verdade ‘Dom Quixote desenha o negativo do mundo do Renas- cimento; a escrita cessou de sera prosa do mundo; as seme- Thangas e 0s signos romperam sua antiga alianga; as simili- tudes decepcionam, conduzem a visio ¢ ao deitio; as coisas ppermanecem obstinadamente na sua identidade irdnica: no siio mais do que o que so; as palavras erram a0 acaso, sem. ‘contetido, sem semelhanga para preenché-las; nfo marcam ‘mais as coisas; dormem entre as folhas dos livros, no meio ‘da poeira. A magia, que permitia a decifragdo do mundo des- ccobrindo as semelhancas secretas sob 0s signos, no serve ‘mais senio para explicar de modo delirante por que as ana- Jogias sdo sempre frustradas. A erudigio, que lia como um 66 AS PALAVRASE AS COISAS. texto tinico a natureza ¢ 0s livros, é reconduzida as suas qui- ‘eras: depositados nas piginas amarelecidas dos volumes, 05 signos da linguagem nao tém como valor mais do que a ue ficyo daquilo que representam. A escrita eas coisas 0 se assemelham mais. Entre clas, Dom Quixote vagueia ao sa- borda aventura, ‘A linguagem, no entanto, nio se tomou completamente mpotente. Doravante, detém novos poderes e que Ihe so pro prios. Na segunda parte do romance, Dom Quixote reencon- tra personagens que leram a primeira parte do texto e que 0 reconhecem, aele, homem real, como o herd do livro. O tex- to de Cervantes se dobra sobre si mesmo, se enterra na sua propria espessura e torna-se para si objeto de sua propria narrativa, A primeira parte das aventuras desempenha na se- gunda o papel que assumiam no inicio os romances de cava- Taria, Dom Quixote deve ser fel a esse livro em que ele real- ‘mente se trou; deve protegé-lo dos errs, das falsificagdes, das seqiéncias apécrifas; deve acrescentar os detalhes omi tidos; deve manter sua verdade. Esse livr, porém, Dom Qui xxote mesmo nio o eu nem pode lé-1o, j que ele 0 € em car ne € sso, Fle, que & forga de ler livros tornara-se um signo cerrante num mundo que no o reconbecia,e-1o tornado, mal- grado elee sem o saber, um livro que detém sua verdade, rea ne exatamente tudo o que ele fez disse, viu e pensou e per- mite enfim que o reconhegam, de tal modo se assemelha a ‘todos esses signos cuj sulco indelével deixou aris desi. En- tre a primeira e a segunda parte do romance, no intersticio ddesses dois volumes e somente pelo poder deles, Dom Qui- ‘xote assumiu sua realidade. Realidade que ele deve somente inguagem e que permanece totalmente interior ds palavra. ‘A verdade de Dom Quixote ndo esté na relagdo das palavras ‘com o mundo, mas nessa tinue e constanterelagdo que as mar- REPRESENTAR 67 ‘cas verbais ecem de si para si mesmas. A fiego frustrda das ‘epopéias tornou-se no poder representativo da linguagem. ‘As palavras acabam de se fechar na sua natureza de signos. Dom Quixote & a primeira das obras modernas, pois que ai se vé a razio cruel das identidades e das diferencas ddesdenhar infinitamente dos signos e das similitudes: pois ‘que aia linguagem rompe seu velho parentesco com as coi- sas, para entrar nessa soberania solitiria donde s6 reaparece- ri em seu ser absoluto, tomada literatura; pois que ai a se- melhanga entra numa idade que é, para ela, a da desrazio e da imaginagdo. Uma vez desligados a similitude € 0s signos, dduas experiéncias podem se constituir e duas personagens apatecer face a face. O louco, entendido ndo como doente, ‘mas como desvio constituido e mantido, como funglo cultu- ral indispensavel, tornou-se, na experiéncia ocidental, © ho- ‘mem das semelhangas selvagens. Essa personagem, tal como { bosquejada nos romances ou no teatro da época barraca e tal como se institucionalizou pouco a pouco atéa psiquiatia do século XIX, € aquela que se alienow na analogia. £0 jo- ‘gador desregrado do Mesmo e do Outro. Toma as coisas pelo {ue nio so e as pessoas umas pelas outras;ignora seus ami 10s, reconhece os estranhos; cré desmascarar e impOe uma ‘mascara, Inverte todos os valores e todas as proporgdes, por- que acredita, a cada instante, deifrarsignos: para ela, os ou- ropéis fazem um rei. Segundo a percepcdo cultural que se te- vedo louco até o fim do século XVIII, ele s6¢ o Diferente na ‘medida em que ni conheve a Diferenga; por toda a parte vé semelhangas esinais da semelhana; todos os signos para ele se assemelham e todas as semelhancas valem como signos. "Na outra extremidade do espaco cultural, mas totalmente pro- ‘ximo por sua simetra, 0 poeta €aquele que, por sob as dife- rengas nomeadas e cotidianamente previstas, reencontra os pparentescos subterraneos das coisas, suas similitudesdisper-

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