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ianismo O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NAO DISSE? © que foi mudado ao longo do tempo na Millia + Os erros das adaptagies rradugties + Os inceresses da Igreja nas divernan Appean Ao ler 0 Novo Testamento, as prenuoits pen sam estar lendo uma cépia exata dan palavias de Jesus ou dos escritos de seus apdutulon, Contudo, por quase mil ¢ quinhentos anes: esses manuscritos foram reprodusices par copistas profundamente influenciados pelay controvérsias politicas, reolégicas ¢ culturals de seu tempo. Tanto os erros quanto ag mudan- ¢as intencionais s4o muitos nos manuacritos subsistentes, dificultando a reconstituigdo das palavras originais. Este livro mostra a histéria que estd por trie das alteragdes que eclesidsticos politicos ¢ co» pistas ignaros fizeram no.Novo ‘Téstamento, causando um impacto enorme na compreensio ¢ interpretagéo da Biblia que temos hoje, Um livro para leigos, tedlogos, historiadaresi. @ |rstigio > cASSIC SNsal IND O NYWYHY ‘C Lavg C BART D. EHRMAN A maior autoridade em Biblia do mundo O QUE JESUS DISSE? O QUE JESUS NAO DISSE? QUEM MUDOU A BIBLIA E POR QUE O objetivo serd nao ser repetitive. Colocar livros e autores que ainda nao esto disponibilizados. Deixemos a preguiga de lado. Como diria o filosofo, "escaneio e publico no 4shared; logo existo" Como dizem, alguns autores pesquisam anos, e merecem uma gratificagéo por tal zelo para com o conhecimento. Aqui va minha gratificagao: MUITO OBRIGADO! Vou ler seu exemplar como forma de gratidéo por seu incrivel trabalho. "Nao terho ouro nem prata, mas tudo que tenho te dou": Muito obrigadol!!. A gratificagéo pecuniaria deixe pra depois, visto que oS homens para pensar sua existéncia devem estar com as necessidades materiais satisfeitas, vocés ndo precisam do dinheiro. Isso é um elemento acessorio a existéncial Ao comprar um livro, 0 autor recebe da editora uma micharia que nao daria nem para sobreviver. Ou seja, baixem, leiam e nao paguem nada! Essa sera sua forma de gratificagao! ESCANEAR E P. Bart D, EHRMAN O QUE JESUS DISSE? O Que Jesus NAO PISSE? 0 M1912 pilose we eacte fibrn he fea, Quem mudou a Biblia e por qué Tradugao Marcos MARCIONILO Prestigio os Ane Tio ong Misquving Jens: he Story Behind Who Changed he Bl rd Wy {© 2005 by tae. Fhann (© Copyright 2006, EDIOURO PUBLICAORS SA. Dirt cide pcs es eich & EDIOURO PUBLICACOES S.A Publado por PRESTIGIO EDITORIAL Preparagio:Alexandes Ca Revi: Rey Cinta Pana «Gabriela Semionoas Ofira rj grit ediagramasio- Onna Gaia bo eto de oogeatie harass Ieuodoyie ThePerpont Mop Libary, New Yor M. 777,635 6.24% £39 6 She Cpt 1s mitorca Laurens, Flores ei For Sela vt Rene, NY (Cpu 2: Cone de Bar. thins Capi : Vico & Alles Masur, Londtes fot Vitor Alec Mus Tondteiare Remuarce, Capt 4: ts Lira, es fot: HUA Resour, NY Capital dn Saker Winches Bete bray Lancs ft: HIMVAr Resour NY apical 6: vant Dourados de Hesighe VI, Alemanba, Abadi de So Manin “Tiss The Pent Monge Library New York os The Pegs Mpa Libary Resour, NY (Conlde:Bti Libeary; Cort Neto, BAY: Hin 21; fotos HIBVAR Resource, NY "ate din? Ogu eo Ba Prestigio A Prestigio Editorial um clo de Edionro Publicis ua Nova Jerusalém, 345 ~ CEP 21042-250 es de Janeiro — 8) Tel (2) 3882-8200 — Fax: (21) 3882-82127 313 ‘ema: diorisapediro coi ‘ernastedioura.con.be mere: ewer em bepress Para Bruce Metzger SUMARIO AGRADECIMENTOS 9 inrropugso IT rr — PISTAS DOS ESCRITOS CRISTROS PRIMITIVOS 5 5 2 osci 3 vexros vo novo restamento: 8 I apusca pas onicens ITT 5 oqyorsats Que raven a piFERENGA 137 6 avrenacdes TEXTUAIS TEOLOGICAMENTE MoTIVADAS TOT 7 os muspos soca v0-7Ex10 187 Conclusdo: MUDANGAS NAS ESCRITURAS 217 ixpice 229 AGRADECIMENTOS Devo agradecer especialmente a quatro atenciosos ¢ cuidadosos pesquisa dores, que leram o meu manuse ‘esugeriram (por vezes, recomendaram in- sistentemente e defenderam) mudancas: Kim Haines-Eitzen, da Cornell University; Michsel W. Holmes, do Bethe] College, em Minnesota; Jeffrey Si- kker, da Loyola Marymount University, e minha esposa, Sarak Beckwith, espe- cialista em Wade Média da Duke University. © mundo académico seria um lugar mais feliz se todos os autores tivessem leitores como eles. ‘Teno de agradecer também aos editores da Harper San Francisco: John Loudon, por ter estimulado e assumido 0 projeto; Michey Maudlin, por té-1o aperfeigoado; ¢, acima de tudo, a Roger Freer, por sua atenta leitura do texto € por seus uilssimos eomentitios. ‘Todas as cradugdes dos textos biblicos, exceto quando dito o contro, so minhas. Dediquei este livro a meu mentor ¢ “Pai-Dontor”, Bruce M. Metager, que ‘me ensinou tudo nesse campo e continua a ser inspiragao em meu trabalho. (Os eseritores dos Quatro Evangetbos, com seus simbolos de animais tradicionais, cada wm dels iuminando wm aspecto do retrato que eles fizeram de Jesus: Mateus como um homem (bumanidade): Marcos como um ledo (realeea): Lucas como um bo (submissio} Jo io como uma diguia (divindade). INTRODUCAO alvez mais do que qualquer outra coisa sobre a qual eu tenha escri- to, o assunto deste livro permaneceu em minha mente nos iltimos trinta anos, desde quando eu ainda era um jovem adulto ¢ iniciava os meus estudos do Novo Testamento, Pelo fato de esse assunto ter feito parte de mim par todo esse tempo, pensci dever comegar com um relato pessoal de por que esses dados foram, e continuam a set, tio importan tes para mim. O livro versa sobre os antigos manuscritos do Novo Testamento € as diferengas encontradas neles, sobre os copistas que reproduziram as Es crivuras ¢, as vezes, a alteraram. Isso pode nao ser lé muito meritério ‘como chave para a autobiografia de alguém, mas é um fato, Geralmente ‘nao se tem muito controle sobre essas coisas. [Antes de explicar como’e por que os manuscritos do Novo Testamen- to causaram uma grande diferenga emocional e intelectual em mim, na compreensio de mim mesmo, do mundo em que vivo, em minha visio de Deus e da Biblia, preciso falar um pouco de mim mesmo. Nasci e cresci em um tempo ¢ Ingar conservadores — a dea central dos Estados Unidos da América, em meados da década de 1950. Minha criagio nada teve de extraordinério. ramos uma familia normal, de cco membros que iam & igreja sem ser especialmente religiosos. Comecan- ry © QUE ESUS DISSE? do pelo ano em que eu estava na S* série, estivamos envolvidos com a igreja episcopal em Lawrence, Arkansas, uma igceja dirigida por um pas- tor sabio ¢ temo, que por acaso era nosso vizinho e cujo filho era um de meus amigos (e com quem fiz algumas travessuras mais tarde, jé no ensi- no médio — algo envolvendo charutos). Como a maioria das igrejas epis- copais, a nossa era socialmente respeitavel e socialmente responsivel. Ali se levava a sério a liturgia da igreja, e as Escrituras faziam parte dessa li turgia. Mas a Biblia nao era abertamente ressaltada: estava ali, como um, dos guias para a fé e a pritica religiosa, ao lado da tradi¢ao da igreja e do bom senso. Nés realmente nao falévamos muito sobre a Biblia, nem liamos muito, nem mesmo nas aulas da escola dominical, que se foca- vam mais em questdes praticas e sociais e em como viver no mundo. A Biblia tinha um lugar de honra em nossa casa, por causa especial- mente de mamae, que de vez em quando lia a Biblia e procurava se certi- ficar de que suas histérias € ensinamentos éticos fossem bem entendidos or nds (sem se prender muito as suas “doutrinas”). Até minha época de segunda fase do ensino fundamental, acho que eu via a Biblia como um livro misterioso um tanto quanto importante para a religiio, mas certa- mente no como algo a ser aprendido e dominado. Eu a considerava um tipo de antigiiidade, de algum modo estreitamente vinculado a Deus, & Igreja € a0 seu culto. Mesmo assim, eu no via razio alguma para ‘em carter privado ou como estudo, As coisas mudaram drasticamente para mim quando passei para a 6" sé- rie do ensino fundamental. Foi nessa época que fiz a experiéncia de “nas- cer de novo” num ambiente muito diferente do que reinava na igreja de ‘minha comunidade, Eu era um menino comum — um bom estudante, in- teressado ¢ empenhado nos esportes escolares, mas que nao se destacava em nenhum deles; interessado ¢ empenhado na vida social, mas que nao fa ia parte do alto escaléo da elite dos mais populates da escola, Lembro que sentia uma espécie de vazio interior que nada parecia capaz. de preencher, ue nio saia muito com meus amigos (nés jé tinhamos comecado a beber socialmente nas festas), que namorava (comegava a entrar no mysterium tremenduom do mundo do sexo), que estudava (eu dava duro ¢ tirava boas Notas, mas ndo era nenhum crinio}, que trabalhava (eu era vendedor por- ta a porta de uma firma que comercializava produtos para venezianas), € ue ia & igreja (eu era acélito © muito piedoso — estava presente nas ma- nnhas de todos os domingos, nao importa 0 que tivesse acorrido nas noites INTRODUGAO, 13 de sébado). Havia uma espécie de soliddo associada ao fato de eu ser um jovem adolescente, mas, naruralmente, cu nao entendia que isso decorria de ser um adolescente. Eu sempre achava que faltava algo, Nessa época, comecei a fregitentar as reunies do clube Campus Life Youth for Christ. Elas ococriam nas casas dos garotos —a primeira a qual cu fai era uma festa no quintal de um garoto muito popular, o que me le~ vou a pensar que o grupo devia ser legal. © lider do grupo era um rapaz de uns vinte e poucos anos chamado Bruce, que fazia aquele tipo de coisa profissionalmente — organizava clubes Youth for Christ localmente, ten- tava convencer garoros que cursavam o fundamental a “nascer de novo” €.a se dedicar a estudos biblicos mais sérios, a encontros de oraco ¢ coi- sas assim, Bruce era uma personalidade absolutamente cativante — mais jovem que nossos pais, mas mais velho e mais experiente que nés—, com ‘uma mensagem poderosa, segundo a qual o vazio interior que sentiamos {nds éramos adolescentes!, todos nés sentiamos um vacuo) era causado. 2 a c -nos pedir a cla auséncia de Cristo em nossos coragoes. Bastava-nos ps idade que s6 05 ‘que entrasse ¢ ele viria e nos eobriria com a alegria ea fel “salvos” viiam a conhecer, Bruce era capaz de citar a Biblia espontaneamente, ¢ 0 fazia com mui- ta constincia, Diante de meu respeito ¢ de minha ignorancia da Biblia, tudo me soava aleamente persuasivo. Tudo era bem diferente daquilo que eu aprendera na igreja, que implicava um ritual estabelecido a a to tempo e que parecia muito mais voltado pata adultos jé be dos na vida do que para criangas desejosas de diversio € de aventura, ue se sentiam vazias por dentro. rmepara abreviar ainda mais esa bistriajéresumida, por fim conheci Bruce, aceitei sua mensagem de salvagio, aceitei Jesus em meu coragio € fiz, de boa-fé, a experiéncia de nascer de novo. Eu nascera factualmente ‘quinze anos antes, mas agora se tratava de uma experiéncia nova ¢ exci tante para mim e que me fez dar inicio a jornada de uma vida de f€ que passou por grandes reviravoltas ¢ foi daz num beco sem saida que, de fato, demonstrau ser um novo caminho, que venho seguindo faz mais de trinta anos. Aqueles dentre nds que fizeram experiéncias de novo nascimento con- sideravam-se crstios “de verdade” — em oposigdo aqueles que simples ‘mente iam a igreja por obrigagao, que nao conheciam verdadeiramente Cristo em seus corages e que simplesmente se deixavam levar por im- ' (0 QUE HSU DISSE? pulsos sem nenbum contesido real. Um dos modos de nos diferenciar des- Se$ outros era 0 nosso compromisso com o estudo da Biblia.e com a ora: sido, Especialmente com o estudo da Biblia. © préprio Bruce era um homem da Biblia: ele freqitentara o Moody Bible Institute de Chicago ¢ Podia dar uma resposta tirada da Biblia para qualquer pergunta que se pudesse imaginar (e que nenhumn de nés jamais imaginaria). Logo, logo, asseia ter inveja de sta capacidade de citar as Fscrituras e comecei a es tudar a Biblia, a aprender alguns textos, a entender a sua importincia ¢ até mesmo a decorar os versiculos-chav Bruce me convenceu a tentar me tornar um cristdo “sério” e a me dedi- car por inteiro a f& crista. Isso significava estudar as Escrituras em periodo integral no Moody Bible Institute, o que, entre outras coisas, implicaria uuma dristica mudanga de estilo de vida. No Moody, havia um “eédigo™ de ética que os estudantes tinham de assinar ao entrar: nada de heber, fumar, dangar,jogar cartas, nada de cinema. E Biblia na veig. Costumavamos di- zer que no “Moody Bible Institute, Biblia era 0 nosso segundo nome”, Acho que eu 0 encarava como uma espécie de acampamento cristo mili tarizado, Pelo sim, pelo nao, resolvi ndo usar meias medidas no que dizia Fespeito & minha fé: matriculei-me no Moody, entrei e la permaneci até o segundo semestre de 1973. A experiéncia no Moody foi intensa. Decidi me formar em teologia biblica, o que significava encarar muito estudo biblico e varios cursos de teologia sistematica, Ensinava-se uma s6 perspectiva em todos esses cur- s0s, subscrita por todos os professores (eles todos assinavam um termo de compromisso) ¢ por todos os estudantes (nds também o assinavamos): a Biblia é a palavra infalivel de Deus. Ela ndo contém etros. E completa- mente inspirada e é, em todos os seus termos, “inspiracdo verbal plena”, Todos os cursos que fiz pressupunham e ensinavam essa perspectiy Gualquer outra era considerada desviante e até mesmo herética. Acho ue alguém pode chamar isso de lavagem cerebral. Para mim, era um rande passo avante, que me afastava da timida visio da Biblia que eu ti- vera na qualidade de um episcopaliano em proceso de socializagao em ‘minha primeira juventude, Aquilo era cristianismo intransigente, para os verdadeiramente comprometidos. Contudo, havia um problema dbvio com a afirmacao de a Biblia ter sido verbalmente inspirada — em todas as suas palavras. No Moody, aprendiamos num dos primeicos cursos do curri lo que na realidade INTRODUGAO, 1s o Testamento. Tinhamos e6- pias desses escritos, fetas anos mais tarde — em muitos casos, muitos e muitos anos mais tarde. Além do mais, nenhuma das cépias era comple. imente.exata, visto que os copistas que as produziram introduziram “Hudancaer algumas passagens, inaduertida c/ou intencionalmente. To- “dos 08 copistaso fizeram. Desse modo, em vez de realmente ter a pala- vas inspiradas dos aut6grafos (ito €, 0s originais) da Biblia, o que remos sho RopiaAos autégrafns sepletas de erros. Por isso, uma das tarefas ais prementes era averiguar 0 que os originais da Biblia diziam, em face das citcunstincias de cles serem inspirados e de ndo os termos mais. Devo dizer que muitos de meus colegas no Moody nao consideravam essa tarefa assim tao significativa ou interessante. Eles se contentavam com 4 afirmagio de que os aut6grafos tinham sido inspirados, dando de ombros, mais ou menos, ao problema da nGo-subsisténcia dos autdgra- fos. Para mim, porém, tratava-se de um problema muito atraente. Trata- s da escritura que Deus inspirara. Claro que mos saber como Ele originais do Nov ndo tinhamos os escrit¢ va-se das préprias palav ; recisamos saber 0 que essas palavras eram se q I omuncon sf vie gu ap palava aus ra San aloes ‘misturadas com algumas outras (aquelas que tinham sido despercebida cu intencionalmente criadas pelos copistas) que nijo nos ajudam muito se juisermos conhecer as palavras Dele. Fotis que acendev ome interes pelos manners do Novo Ts tamento, ali pelos meus dezoito anos. No Moody, aprendi os rudimentos de uma drea de pesquisa conhecida como critica textual “um termo tée- nico para a cigncia que busca restaurar. as palavras “originais” de um texto a partir dos manuscritos qus.as.alteraram. Mas eu ainda nfo on ‘va equipado para me lancar a esse estudo: primeiro, presisava aprender rego, a lingua original do Novo Testamento, ¢ provavelmente ee Tinguas antigas, como hebraico (a lingua do Antigo Testamento cristo} « latim, sem falar nas modérnas linguas européias, como alemac ¢. fas fs, para poder verificar 0 que outros pesquisadores disseram acerca des se assunto, Era um longo caminho a percorret. . | Ao término do meu triénio no Moody (era uma graduagio de trés anos), tive um bom aproveitamento em meus cursos € me encontrava mais decidido que nunca a me tornar um pesquisador cristo. Na época, eu tinha idéia de que havia muitos pesquisadores altamente capacitados entre os evangélicos cristos, mas ndo muitos evangélicos entre os alta Oniter\utnel: terete er sve ee Incr s an faP s 16 © QUE JESUS Diss mente gabaritados pesquisadores (seculares). [Por essa razio, eu queria sme tornar uma “voz” evangélica em cieculos seculares pela aquisigao de jitulos académicos que me permitissem dar aulas em instituicdes leigas (sem abrie mo de meus compromissos evangélicos! Para tanto, eu preci sava, primeiro, concluir 0 meu bacharelado e, cm vista disso, decidi me matricular em uma destacada faculdade evangélica. Escolhi o Wheaton College, nos arredores de Chicago. No Moody, tinham-me avisado que eu teria dificuldade para achar fundamenta- lista era 0 Moody: 0 Wheaton s6 recebe cristios evangélicos e é a alma cristdos verdadeiros no Wheaton —o que demonstra q ‘mater de Billy Graham, por exemplo. No principio, eu o achei um pou- co liberal demais para meu gosto. Os estudantes discutiam literatura, his- spiragdo verbal das Escrituras. isso de uma perspectiva crista, mas mesmo assim... seri que eles nao per: cebiam 0 que realmente importava? Decidi me formar em literatura inglesa no Wheaton, visto que a leitu- 1a fora sempre uma de minhas paixdes, e dado que cu sabia que para abrir camino nos circulos eruditos eu precisaria me tornar versado em ‘outra drca de erudigao além da Biblia. Também me comprometi a apren- der grego. Foi, entéo, durante o meu primeiro semestre no Wheaton, que conheci © De, Gerald Hawthorne, meu professor de grego, pessoa que vir ria a ter uma grande influéncia em minha vida como pesquisador, mestre t6ria e filosofia mais que a les faziam €, por fim, amigo. Hawthorne, como a maioria dos meus professores no ‘Wheaton, era um cristo evangélico comprometido. Mas nao tinha medo de questionar a prépria fé, Na época, tomei essa sua atitude como sinal de fraqueza (na realidade, eu pensava ter quase todas as respostas para as Perguntas que ele fazia); no fim, passei a consideri-la um comprometi- ‘mento real com a verdade, propria de alguém desejoso de se abrir & hipé- tese de que as préprias posigdes tém de ser revistas & luz do conhecimento acumulado ¢ da experiéneia de vida. Aprender grego foi urna experiéncia impressionante para mim, No de- correr do curso fui demonstrando facilidade no aprendizado dos rudimen- tos da lingua e estava sempre disposto a aprender mais. Contudo, num nivel mais avancado, a experiéncia de aprender grego se tornou win pouco ‘perturbadora para mim, por causa da minha visio das Escrituras. Logo co- Imecei a ver que o sentido, completo ¢ as nuances do texto grego do Novo Testamento s6 podem ser plenamente apreendidos quando ele €lido ees Bet ie INTRODUCAO 7 tudado na lingua original. (o mesmo pode ser dito do Antigo Testamento, como vim a descobrir posteriormente, quando aprendi hebraico). Entéo ppensei: mais uma razao para aprender bem a lingua. Ao mesmo tempo, co- mecei a questionar minha compreensao das Escrituras como verbalmente inspiradas por Deus. Se o sentido completo dos termos das Escrituras s6 pode ser apreendido quando cles sto estudados em grego (e em hebraico), isso nao significa que a maioria dos cristaos, que nao Ieem linguas antigas, rnunca terdo completo acesso ao que Deus thes quer comunicar? E isso nao torna a doutrina da inspiragao uma doutrina exclusiva da elite académica, que detéim habilidades intelectuais ¢ disponibilidade para aprender linguas, c estudar os textos, lendo-os no original? De que serve dizer que as pala-| vyras so inspiradas por Deus se a maioria das pessoas no tem menor acesso a essas palavras, mas apenas a verses mais ou menos canhestrasf dessas palavras para uma lingua, como 0 portugués, por exemplo, que nada tem a ver com as palavras origin ‘Meus questionamentos iam ficando cada vez mais complexos quanto mais eu pensava nos manuscritos que transmitiam as palavras. Quanto mais eu estudava grego, mais me interessava pelos manuscritos que pre~ servam para nés 0 Novo Testamento e pela ciéncia da critica textual, que supostamente pode ajudar-nos a reconstruir 0 que eram as palavras ori ginais do Novo Testamento, Eu sempre voltava a meu questionamento bisico: de que nos vale dizer que a Biblia € a palavra infalivel de Deus se, de fato, ndo temos.as palavras que Deus inspirou de modo infalivel, mas, apenas as palavras copiadas pelos copistas — algumas vezes corretamen- te, mas ourras (muitas outras!) incorretamente? De que vale dizer que os aucégeafos (isto €, 08 originais) foram inspirados? Nés nao temos os ori- ginais! © que temos so c6pias-civadas de ertos, ¢ a vasta maioria delas sho centirias retiradas dos originais e diferentes deles, evidentemente, em milhares de modos. Essas diividas me afetaram ¢ me levaram a mergulhar, cada vez iblia realmente era. Eu me forme mais, em busca de entender 0 que a em Wheaton em dois anos ¢ decidi, sob a orientagio do professor 1. Meu amigo, Jeff Siker, diz que a leitura do Novo Testamento em grego & como ver uma figuea em quatro cores, a0 passo que I-o traduzido & como ver a mesma gravura em prero-e-branco: voz? pode chegar ao ponto, mas perde as nuances. Ad ' eee ee 18 0 QUE JESUS DISSE? Hawthorne, especializar-me em critica textual do Novo Testamento. Fui estudar com o maior especialista do mundo no assunto, um pes quisador chamado Bruce M. Metzger, que ensinava no Seminério Teo- logico de Princeton, E uma vez mais, meus amigos evangélicos me avisaram que eu no de- via ir para 0 Semindrio de Princeton, porque, segundo me disseram, eu teria dificuldade em encontrar cristios “verdadeiros” Ii. Afinal de con- tas, Princeton era um semindrio presbiteriano, um solo ndo exatamente fértl para ctistéos “renascidos”. Contudo, meus estudos de literatura in- lesa, filosofia e histéria — para nao falar do grego — tinham ampliado significativamente meus horizontes. En estava apaixenada pelo conheci- || mento, em todos os seus campos, sacro ou secular, Se aprender a “verda- “de” significasse no mais me identificar com os cristaos renascidos que ‘eu conhecera no.ensino fundamental, que assim fosse. Meu interesse eta avan em minha busca da verdade, onde quer que ela me levasse, na confianga de que toda yerdade que cu aprendesse nio era menos verda- de por scr inesperada.ou.impossivel de enquadrar nos pequenos escani- nhos fornecidos por minha experiencia evangélica Quando cheguei a0 Seminario Teolégico de Princeton, imediatamen- te me matriculei no primeiro ano do cutso de exegese (interpretacao) he- braica ¢ grega, e preenchi minha grade curricular com 0 maximo de disciplinas do curso. Pensei que essas aulas seriam um desafio académi- £0 pessoal. O desafio académico era completamente bem-vindo, mas 0s desafios pessoais que encarei eram emocionalmente penosos. Como men- cionei, ja em Wheaton, eu comegara.a.questionar alguns dos aspectos fundamentais de meu compromisso com a Biblia. como palavra infalivel de Deus. Esse compromisso sofreu um sério baque diante de meus por- menorizados estudos em Princeton. Resisti a tadas as tentaes de mudar ‘© meu ponto de vista e conheci muitos amigos que, assim como eu, pro- vinham de escolas evangélicas conservadoras e estavam rentando “man- ter a £6" (um jeito engracado de falar — olhando as coisas agora —, porque, afinal de contas, estévamos todos fazendo um curso de teologia crist@). Mas meus estudos comegaram a me transformar. Uma reviravolta aconteceu no segundo semestre, em um curso que eu seguia € que era dado por um professor respeitado e virtuoso, chamado Gallen Story, Era um curso sobre a exegese do Evangelho de Marcos, 4 época (¢ até hoje}, meu Evangelho favorito. Para seguir esse curso, preci- , asTRopycko 9 prs Mane Teall Ebeggd mous Me sdvamos estar habilitados a ler o Evangelhi cos sola cm xeyo (eu decorara todo o vocabulirio grego desse Evangelho uma semana antes de © semestre comerar}; precisvamos registrar num caderno exegético nos- sas reflexes sobre a interpretago das principais passagens; discutimos os problemas de interpretagio do texto ¢ tivemos de escrever uma monogra- fia de final de curso sobre um ponto interpretativo crucial, de livre esco- tha. Escolhi uma passagem de Marcos 2, quando Jesus € confrontade pelos fariseus porque seus discipulos, ao atravessar um campo de trigo, comeram graos no Sabado. Jesus quer mostrar aos fariseus que “o Saba do foi feito para. os humangs, nao os humanos para o Sabado”, lembran- do-thes 0 que fizera o grande Rei Davi quando cle ¢ seus homens tiveram fome, como eles entraram no Templo “quando Abiatar era 0 sumo sacer- dote” ¢ comeram 0 pio da proposigo, que s6 os sacerdotes podiam co- mer, Um dos célebres problemas da passagem é quando se examina a passagem do Antigo Testamento que Jesus esta citando (1 Samuel 21,1-6): que Davi nio fez nada_disso quando Abiatar era o sume sacerdore# ‘mas, de fato, quando o pai de Abiacar, Ahimelec,. Em outras pala- ‘ras, essa é uma daquelas passagens destacadas para demonstrar que a Bi: blia nao ¢ infalivel; ela contém-ercas.4 Em minha monogratia para o professor Story, desenvolvi um longo complicado argumento para provar que, embora Marcos indique que 0 fato se deu “quando Abiatar era © sumo sacerdote”, isso no significa realmente que Abiatar fosse o sumo sacerdote, mas que o fato ocorreu numa parte das Escrituras que tem Abiatar como uma das figuras princi- pais. Meu argumento baseava-se no sentido dos termos gregos envolvi- dos ¢ era meio enrolado. Eu estava seguro de que o professor Story receberia bem o argumento, porque eu sabia que ele era um bom pesqui- sador crist3o, que obviamente (a meu ver) jamais pensaria que pudesse haver algo semelhante a um erro genuino na Biblia. Mas, no final do meu trabalho, ele fez um comentario de uma linha que, por algum motivo, me atingiu profundamente. Ele escreyeu: “Talvez Marcos simplesmente te nha errady”. Passei a pensat sobre isso, ponderando todo 0 trabalho que me dera por aquilo no papel, entendendo que eu dera uma grande volta em torno do problema e que minha solugao era, de fato, bastante forga- calvez Marcos tenbaerrada”. Uma vez admitido isso, as comportas se abriram. Porque se podia ha- ver um errinho insignificante em Marcos 2, provavelmente haveria erros da. Por fim, conch 20 © QUE JESUS DISSE? . Marcos 4 se cei mostarda “é a menor dentre todas as sementes da Terra”, talvez eu niio precise arrumar uma explicac3o extravagante ‘come o grio de mostarda pode ser a menor das scmentes qu 'feitamente.que.ndo €. Talvez esses erros se apliquem a qu ‘mais importantes. Por exemplo, quando Marcos diz que Jesus foi cruci- |fendo um.dia depois da ceia pascal (Marcos 14,12; 15,25) ¢ Jodo diz que + clemorren um dia antes da ceia (Jodo 19,14), taluez haja ai aleuma dife | senca genuina. Ou quando Lucas indica em seu relato do nascimento de Jesus que José e Maria regressaram a Nazaré um més depois de texem ido Belém (e cumprido os ritos de purificagao: Lucas 2,39), ao passo que Mateus indica que, em vez disso, sles tinham fugido par a sus ), talvez essa seja uma diferenca. Ou quandoPaulddiz que, depois de sua conversio no caminho de Damaseo, ele ndo foi a Jerusa Jém para encontrar-se com aqueles que eram apéstolos antes dele (Gala. tas_1,16-17), enquanto o livro-dos Atos dos Apéstolos.diz que foi a primeira coisa que ele fez. r Damasco (Atos 9,26), talvez haja af alguma difereaga Descobertas desse tipo coincidiram com problemas que eu estava en- frentando em meus estudos mais aprofundados dos manuscritos gregos do Novo Testamento gue haviam sobrevivido. Uma coisa ¢ dizer que os jriginais foram inspiadas, mas 9 verdade-é.que nao temas os originai {Entao, dizer que eles foram inspirados nao me serve de grande coisa, a ’ndo sex que-cu possa reconstruit 0s originais. E além disso, a vasta mai fos cristdns. cm toda a hist da Igreja, nao teve acesso aos originais, fazendo de sua inspiragio um objeto de controvérsia. Nos nao apenas nio Jtemos os originais, coma nia temos as primeitas cépias dos originais. ; Nao. temoy nem mesmo as c6pias das cépigs dos originais, ou as cépias ‘das cépias das copias das originais, emos sio cépias feitas mais _-setarde, muito mais tard@. Na maioria das vezes, trata-se de cépias feitas sé culos depois. E codas elas|difercii7 umas das outras em milhares de passa gens. Veremos depois neste livro que essas cépias diferem umas das outras em tantas passagens que nem chegamos a saber quantas diferengas ha. ‘Talver,seja mais fécil falar comparativamente: hd mais diferengas entre os ‘nossos zniunuscritas que palavras no Novo Testamento, Muitas dessas diferencas sao absolutamente secundaias ¢ insignifi santes, Boa parte delas simplesmente nos mostra que os antigos copistas INTRODUCAD, ay tinham tanta dificuldade em escrever quanto a maior parte das pessoas. hoje (e eles nem tinham.dicionssias, sem falar em corretores ortogrii- cos). Sendo assim, para que falar de todas essas diferencas? Se algué insiste em afirmar que Deus inspirou cada uma das palavras das Escri turas, do que estaria falando se nés ndo temos todas as palavras das Es- |crituras? Em alguns trechos, como veremos, simplesmente nio temos**" 1! | certeza de o rexto original ter sido reconstruido comexatidio. E bem di- *§* {{ficil saber.o queas palavras da Biblia querem dizer se no sabemos nem (mesmo que paleveas so essas! Isso se tornou um grande problema para meu entendimento da inspi- ragaio, porque passei a compreender que teria sido tio dificil para Deus preservar as palavtas das Escrituras quanto deveria ter sido, em primei- ro lugar, inspiré-las. Se Ele quisesse que seu povo tivesse suas palavras, ccectamente as teria dado (¢ possivelmente até Ihes tivesse dado as pala vras em uma lingua que pudessem entender, ¢ nao em grego e em hebrais co}; © fato de nao termos as palavras deve seguramente demonstrat, ; pensei, que le no as preservou para nés. E se Fle nao fez esse milagre, * nao haveria razio para pensar que teria feito o milagre anterior: inspirar + (+ essas palavras. Em suma, meus estudos do Novo Testamento grego e minhas pesqui sas dos manuseritos que © contém me levaram a repensar radicalmente 0 * ‘meu entendimento do que é a Biblia. Antes disso — a comegar de minha experiéncia de novo nascimento no ensino fundamental, passando por ‘meu periodo fundamentalista no Moody, até chegar aos meus tempos de evangélico em Wheaton —, minha fé baseava-se completamente em uma certa visio da Biblia como palavra infalivel de Deus, integralmente inspi- _/ rada. Agora, deixei de ver a Biblia desse modo. t_passou a ser* para mim.um livro completamente humano. Do mesmo modo como os copistas humanos copiaram, e alteraram, os textos das Escrituras, outros ‘anos escreverdim os originais dos textos das Escrituras. Ela € autores hi “itm livre humano do comego.ao fim. E foi escrita por diferentes autores hhumanos, em diferentes épocas e em diversos lugares para atender a di- ferentes necessidades. Muitos desses autores sem diivida se sentiam ins- pirados por Deus para dizer o que disseram, mas tinham suas préprias pperspectivas, suas préprias crencas, seus prOprios pontos de vista, suas préprias necessidades, seus proprios desejos, suas proprias compree ses, suas préprias teologias. Tais perspectivas, crengas, pontos de vista, © ie nn ta ttn en pten! an 0 QUE J8SUS DISSED necessidades, desejos, compreensdes e teologias deram forma a tudo 0 que cles disseram. Por todas essas razdes € que esses escritores diferem uum do outro. Entre outras coisas, isso significava que Marcos nao disse a mesma coisa que Lucas porque nao quis dar a entender © mesmo que Lucas. Joao é diferente de Mateus —eles niio so os mesmos. Paulo é di- ferente dos Atos dos Apéstolos. E Tiago € diferente de Paulo, Cada autor 6 um autor humano e precisa ser lido por aquilo que ele (supondo que se teate sempre de autores homens) tem a dizer, sem pressupor que aquilo que ele diz ¢ 0 mesmo — ou assimilivel a — ou consistente com aquilo ‘que qualquer outro autor tenha a dizer. A Biblia, feitas todas as contas, é um livro inteiramente humana, Essa era uma perspectiva inédita para mim, obviamente em tudo dis- tinta da visio que eu tinha quando era um cristo evangélico — e que no € a visdo da majoria dos evangélicos de hoje. Dou um exemplo da di- ferenga que minha mudanga de perspectiva traz para a compreensio da Biblia. Quando eu estava no Moody Bible Institute, um dos livros mais populares no campus era a copia mimeografada da visio apocaliptica de Hal Lindsay para © nosso futuro, The late great planet earth. O livto de Lindsay era popular nao s6 no Moody: de fato, era o best-seller de nio- ficgio (sem falar na Biblia ¢ usando a categoria de “nio-ficgio” de modo bastante amplo) em lingua inglesa nos anos 1970. Lindsay, como todos 16s no Moody, acreditava que a Biblia era absolutamente infalivel em cada uma de suas palavras, de modo que vocé podia ler 0 Novo Testa. mento ¢ saber nao s6 0 que Deus queria que voce vivesse ¢ cresse, mas até mesmo o que o préprio Deus planejava fazer no futuro e como o fa: ria, O mundo se encaminhava para uma crise apocaliptica de propargdes, catastr6ficas, ¢ as palavras infaliveis das Escrituras podiam ser lidas para demonstrar 0 que, como ¢ quando isso viria a acontecer. Fiquei particularmente chocado com o “quando”. Lindsay indicava a parabola da figueira como uma indicagao de Jesus de para quando po- diamos esperar 0 futuro Armagedon. Os discipulos de Jesus querem sa- ber quando vira o “fim”, ¢ Jesus responde: Aprendei da figueira esta pardbola: quando os seus ramos ficam ten- 108 e suas folhas comecam a brotar, sabeis que o vero se aproxima, As- sim também vés, quando virdes todas essas coisas, sabei que [0 Filho do Homem] esta préximo, as vossas portas. Em verdade, eu vos digo: esta geragao ndo passard sem que tudo isso acontega (Mateus 24,32-34). INTRODUCAO, 23 © que essa parabola significa? Lindsay, pensando tratar-se de uma pa- lavra infalivel do proprio Deus, interpreta sua mensagem indicando que, na Biblia, a “figueira” é freqiientemente usada como uma imagem da na- gio de Israel. O que significaria nessa passagem fazer folhas brotarem? Que a nagao, depois de permanecer dormindo durante uma estagao (o in- vyerno), voltaria & vida. E quando Israel voltou a vida? Em 1948, quando volton a ser uma nagio soberana. Jesus indica que o fim viré no decurso da geracao dentro da qual isso ocorrer. E quanto dura uma geragao na Bi- blia? Quarenta cnos. Bis ai o ensinamento divinamente inspirado vindo direramente da boca de Jesus: o fim do mundo deveria ocorrer-nalgum momento antes de 1988, quazenta anos depois da ceemergéncia de Israel, Essa mensagem foi completamente avassaladora para nos. Pode pare- cer bizarra agora — visto que 1988 veio e se foi, sem Armagedon —, mas, no entanto, hé milhdes de crist@os que ainda acreditam que a Biblia pode set lida literalmente, como completamente inspirada em suas predi- Ses do que acontecera em breve para levar a histéria, tal como a conhe- cemos, a seu fim. Prova disso é a loucura atual em torno da série escrita por Timothy LaHaye e Jerry Jenkins, Deixadas para_teds, outra visio apocaliptica de nosso futuro baseada em uma leitura literal da Biblia € ‘que jd vendeu mais de sessenta milhoes de c6pias até agora. £ uma mudsnga radical da leitura da Biblia como um documento para nossa fé, vida e furuco vé-la como um livro humano, com muitos * pontos de vista humanos, muitos dos quais diferem entre si, com nenhum. deles fornecendo uma orientagao infalivel de como devemos viver, Essa foi a mudanga que acabou acontecendo em meu pensamento ¢ com a qual estou agora completamente comprometido. Naturalmente, muitos cristios nunca defenderam essa visio literal da Biblia em primeiro lugar ¢, para eles, uma visio como essa deve parecer completamente unilateral ¢ descontextualizada (para nao dizer bizarra ¢ estranha as questdes de fé). Contudo, hi muitas pessoas por af que ainda véem a Biblia desse modo. De vez em quando, vejo um adesivo no qual se pode ler: “Deus disse, eu acredito ¢ esti resolvido”, Men comentario sempre é: ¢ seen _ndo river dito? E se o livro que vocé toma por transmissor-das-palavras, de Dews conrives s6 palavras humanas? E se a Biblia ndo der uma respos- ta a toda prova para as questées dos tempos modernos — aborto, direi- tos das mulheres, direitos dos homossexuais, supremacia religiosa, democracia ocidental, ¢ assim por diante? Ese n6s mesmos tivermos de 24 © QUE JESUS DISSE? descobrir como viver € como acreditar por nés mesmos, sem olhar para a Biblia como um falso idolo, ou um oréculo que nos dé uma linha de ‘comunicagao direta com 0 Todo-poderoso? Ha raz6es muito claras para pensar que, de fato, a Biblia nao é 0 tipo de guia infalivel para nossas vi- das; entre outras coisas, como venho adiantando, em muitos lugares, nds [como especia cemos 0 que as palavras originais da Biblia realmente eram. ou apenas como leitores comuns) nem me Minha visio teologica pessoal mudou radicalmente depois dessa des- coberta, levando-me a percorrer trajetos muito distintos daqueles que eu fizera na minha juventude, Continuo a apreciar a Biblia e as muitas ¢ va- riadas mensagens que ela contém. Do mesmo modo, vim a apreciar ou- tros escritos dos primeiros cristios, da mesma época ou de um pouco mais tarde, escritos de figuras menos conhecidas como Indcio de Antio- quia, Clemente de Roma, Barnabé de Alexandria. Também vim a apre- ciar escritos de pessoas de outras crencas, mais ou menos da mesma &poca, como os escritos de Flavio Josefo, Luciano de Samosata ¢ Plutar 99. Todos esses autores esto rentando entender o mundo ¢ o seu proprio lugar nele, e todos tém ensinamentos valiosos a nos transmnitir. £ impor. tante saber o que foram as palavras desses autores, de modo a poder ver, a partir do que eles tinham a dizer e de seus julgamentos, o que podemos pensar e como podemos viver & luz dessas palavras. Isso me faz retornar a0 meu interesse pelos manuscritos do Novo Testamento ¢ pelo estudo desses mesmos manuscritos no campo conhe- cido como critica textual. Estou convicto de que a critica textual é um campo de estudos intrigante, atraente e de real importancia nio s6 para 6s especialistas, mas para toda pessoa interessada na Biblia (seja um fundamentalista, um fundamentalista em recuperagio, alguém que ja- mais seria um fundamentalista na vida, ou simplesmente alguéi um remoto interesse na Biblia como fendmeno cultural e hist6rico). De todo modo, 0 que impressiona € que muitos leitores — mesmo os inte- ressados no cristianismo, na Biblia e em estudos biblicos; tanto 0s que acreditam na Biblia como infalivel como os que nao acreditam — nada sabem de critica textual. E ficil saber por qué. A despeito do fato de a critica textual ser uma area de estudos que vem sendo cada vez mais pesquisada ja ha mais de trezentos anos, ha pouquissimos livrgs a res- Peito escritos para um piblico leigo — ou seja, para quem nao sabe nada disso, para quem nao sabe grego e as ourras linguas necessérias INTRODUGAO, 25 para um estudo profundo, para quem nem mesmo entende que hé um “problema” com 0 texto, mas que ficaria muito intrigado € disposto a saber que problemas so esses e quais instrumentos 0s pesquisadores ram para lidar com eles. Este 6 0 tipo de livro que é — que eu saiba — o primeiro em seu gé- nero. Ele foi escrito para pessoas que nao sabem nada de critica textual, mas que gostariam de aprender algo sobre como os copistas foram mu- dando as Escrituras ¢ sobre como podemos reconhecer onde eles fizeram alteracBes. Foi escrito com base em meus trinta anos de reflexdo sobre 0 tema ¢ em minha perspectiva atual, que passou por muitas transforma- ges radicais acerca do meu proprio modo de ver a Biblia, Foi escrito para todo aquele que tiver interesse: + em ver como chegamos ao que o Novo Testamento é hoje; + em descobrir que, em algumas instincias, nem chegamos a imagi- nar quais eram as palavras originais; ‘+ omconstatar que essas palavras por vezes mudaram de modo mui- to interessante; ‘© em concluir que devemos, pela implementagio de alguns métodos de anslise rigorosa, reconstruir 0 que as palavras originais eram na realidade, De muitas formas, este é um livro muito pessoal para mim, o resulta- do final de uma longa jornada, Talvez, para outros, possa vir a fazer par- te da jornada que eles mesmos iniciam. 2. O livro que chega mais pesto disso & PARKER, David C. The living text of the gospels, Cambridge: Cambridge University Press, 1997.

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