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“BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONTIALIDADE” DO PODER’ “GOOD LIVING": BETWEEN “DEVELOPMENT” AND “UN/COLONIALITY OF POWER Anibal Quijano’ © que aqui proponho € abrir uma questio importante de nosso crucial periodo histérico: 0 Bem Viver’, para ser uma realizacao histérica efetiva, nio pode ser um complexo de priticas sociais orientadas 4 produgdo e a reprodugao demoeritica de uma sociedade democritica, outro modo de existéncia social, com seu proprio e especifico horizonte histérico de sentido radicalmente alternativos a “Colonialidade” Global do Poder e & “Colouialidade”/Modernidade/Emocentrada'. Este padrio de poder ‘Uma primeira e breve versio se publicou no Boletim de OXFAM, maio de 2010, Socidlogo e tesrico politico peruano, atualmente dire‘or da citedra “América Latina e a Colonialidade do Poder” na Universidade Ricardo Palma, em Lima, Peru, ¢ professor do departameato de sociologia da Universidade dde Binghamton, Nova York, Estados Unidos. ‘Hem Viver" e “Bom Viver” sio os termos mais dftadides ao debate do novo mavimento da sociedad, sobretudo da populace vista como indigena na América Latina, a paftir de uma existéncia social diferente da que nos tem imposto a “Colonialidade” do Poder. “Bem Viver” é, provavelmente, a formulagio mais antiga na resistencia “indigena” contra a “Colonialidade® do Poder. Foi, notavelmente, cuuhada no Viee-Reino do Pert, por aida menos {que Gamén Pom de Ayala, aproximadamente em 1615, emi sua Nueva Coroniea e Buen Gobierno. Carolina Ortiz ‘FemAudez € a primeira a ter chamado a ateng2o sobre esse histérico feito: “Felipe Guaman Poma de Ayala, Clorinda ‘Matto, Trinidad Heariquez y la teora eritica. Sus legados a la teoria social contemporinen”, em Yuyaykusun, 2. Universidade Ricardo Palma, dezembro 2009, Luna, Peru. As diferearas podem uo ser somente linguisticas, Senfo, conceituais. Sera necessirio delimitar as altemativas, tanto no espanol latino-americano, como nas Variantes PFincipais do quéchua na America do Sul e no aimara, No quéchua da norte do Peru e no Equador, se diz “alin ‘Kehaway” (Bem Viver) ou “Allin Kghawvana’ (Boa Maneira de Viver) e no queclua do sul e na Bolivia cosmima-se dizer “Sumac Kawsay" e se traduz em espankol como “Bem Viver". Mas “Sumac” significa bonite, lindo, no norte do Peni e no Equador. Assim, por exemplo, “Imma Sumac” (Que Bonita) &0 nome artistico de uma famosa cantora peruana, “Sumac Kawsay" se traduziria como “Viver Bonito”. Inclusive, no faltam desavisados enrocentrstas que Dretendem fier de Sumac o mesmo que Sta epropoem dizer Suma Kawsty A teoria da “Colonialidade” do Poder, ow “Colenialidade” do Poder Globel, ¢ do Eurocentrismo ou “Colonialidade”/Modernidade Eurocentrada, como seu especifico horizonte histrico de sentido, foi o proposta em meus textos desde comeco da década final do Século XX. Para os fins do stual debate, pode ser iil ‘meuciouas os principais. “Colonialidad y Modecaidad/Racioualidad”, originalmente publicado em Peru Indigena, ‘VoL13, No. 29, Lima 1991; “Americanity as a Concept or the Americas inthe Modem World-System”,publicado em cco-utoria com Immanvel Wallerstein em International Social Science Journal, No. 134. Nov. 1992 UNESCOBlackiwel, p. 549-587, Paris, Franca: “América Latina en la Economia Mundial", —publicado em Problemas del Desarrollo, Institvo de Investizagdes Econémicas, UNAM, vol. XXIV, No. 95, outubro-dezembro 1993, México; “Raza, Etnia y Nacion: Cvestioues Abieras", em Jose Carlos Mariategul ¥ Europa. Ed, Amavta, 1993, pp. 167-188. Lima, Peni. *Colonialit du Pouvoir et Demoeratie en Amerique Late", em Future anterieur: ‘Amérique Latine, democratie et exclusion. LHarmuttan,1994. Paris, Francia; “Colouialidad, Podet, Cultura y ‘Conocimiento en Aupétice Latina”, em Lima, Anuario Mariateguiano, 1998, vol. IX, No. 9, p-113-122. Pen “Que Tal Raza!” em Familia y Cambio Social. CECOSAM, ed. 1998. Lima, Pert; “Colouialidad del Poder, Euroceatrismo y América Latina", emi Edgardo Lander, comp. Colontalidad del saber, eurocentrismo ¥ clencias sociales, UNESCO-CLACSO 2000, p. 201 e ss: “Colonialidad del Poder y Clasificacion Social”, originalimente em Festschrift for Immanuel Wallerstein ex Journal of World Systems Researeh, Vol. VI, No, 2 Fal Winter 2000, 1p.342-388, Special Issue, Giovanni Amighi and Walter L.Goldfrank, eds. Colorado, USA, “Colonialidad del Poder, Globslizacién y Democracia”, versto revisada em San Marcos, Segunda Epoca, No. 25, Julho 2006, p. S1-104, Universidade de San Marcos, Lima, Pec ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E 4 “DES/COLONIALIDADE” [...] é ainda hoje mundialmente hegeménico, mas também em seu momento de mais profunda ¢ enraizada crise, desde sua constituigo, ha pouco mais de quinhentos anos. Nestas condigdes, Bem Viver, hoje, s6 pode ter sentido como uma existéncia social alternativa, como uma “Des/Colonidade” do Poder. 1 “Desenvolvimento”, um paradoxo eurocéntrico: ~modernidade sem lidade” “des/coloni Desenvolvimento foi, sobretudo no debate latino-americano, o fim principal de um discurso politico associado a um elusivo projeto de desconcentragio e redistribuigio, relativos a0 controle do capital industrial, na nova geografia que se configurava no capitalismo colonial-moderno global, ao fim da Segunda Guerra Mundial, Em um primeiro momento, esse foi um discurso virtualmente oficial. Contudo, prontamente deu lugar a complexas e contraditorias questoes que produziram um rico ¢ intenso debate, com reverberagées mundiais, como clara expresso da magnitude ¢ da profundidade dos conflitos de interesse politico-social implicados em toda essa nova geografia de poder, na América Latina em particular. Assim foi produzida uma extensa familia de categorias (principalmente, “desenvolvido”, “subdesenvolvido”, “modernizagio”, “marginalidade”, “participagao”, de um lado, e “imperialismo”, “dependéncia”, “marginalizagao”, “revoluclo”, na vertente oposta) que se foi exibindo em estreita relago com os conflitivos e violentos movimentos da sociedade, que levaram seja a processos inconsequentes ou a mudangas relativamente importantes, mas inacabados, na distribuigao de poder. De modo breve, se poderia dizer que na América Latina o resultado principal foi a remogio do “Estado Oligérquico” ¢ de algumas de suas instancias na existéncia social da populagio desses paises. Mas sem sua dependéneia historico/estrutural na “Colonialidade” Global de Poder nem os modos de exploragiio e de dominagao inerentes a tal padriio de poder, foram erradieados ou alterados suficientemente para dar lugar a uma produgdo e gestio democritica do Estado, nem dos recursos de produgio, nem da distribuigao ¢ apropriagao do produto. Nem o debate logrou, apesar de sua intensidade, liberar-se da hegemonia do Eurocentrismo, Em outros £05 nomes Raul Prebisch, Celso Furtado, Anibal Pinto, Femmando Henrique Cardoso-Enzo Faletto, Andrew Gunder Frank, Rui Mauro Marin, Theotonio Dos Santos, José Nun, entre os muites que tomaram parte em dito debate, sto provavelmente familiares major dos leitores.E hi, com cereza disponivel, a esse respelto, uma extensa lteamira R. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 Jan, /jun, 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [..] termos, essas mudangas nao levaram ao “desenvolvimento”. De outro modo nao poderia estender-se porque o fim reaparece sempre. Agora, por exemplo, como fantasma de um inconcluso passado®. 2A “Colonialidade” Global de Poder e 0 fantasma do Estado/nagaio A hegemonia do Eurocentrismo no debate levava na América Latina criar 0 “desenvolvimento” em relagdo ao Estado/Nagiio. Mas, uo contexto da “Colonialidade” Global de Poder, essa perspectiva era historicamente irrelevante. Mais ainda, precisamente quando, depois da Segunda Guerra Mundial, este padrio de poder ingressava a escala global, em um prolongado periodo de nmudangas decisivas que aqui é ‘itil sumarizar: 1) © capital industrial comegou a vincular-se estruturalmente com 0 que entio foi denominada como “revolugao cientifico-tecnolégica”. Essa relagdo implicava, de um lado, a redugo das necessidades de forgas de trabalho viva e individual e, em consequéncia, do emprego assalariado como estruturalmente inerente ao capital em seu novo periodo. O desemprego deixava de ser um problema conjuntural ou ciclico “Desemprego estrutural” foram os termos posterionmente cumhados entre os economistas convencionalistas para significar esse processo 2) Essas tendéneias de mudanga das relagdes entre capital @ trabalho, implicaram a ampliaglo da margem de acumulagdo especulativa, também como tendéncia estrutural e nao somente ciclica, e levaram 4 dominagdo progressiva da “financeitizagao estrutural”. Assim se foi configurando um novo capital industrial/financeizo, que de pronto teve uma relativamente rpida expansio mundial. 3) Um processo de “teenocratizagao/instrumentalizagao” da subjetividade, do imaginério, de todo © horizonte de sentido histérieo especifico da “Colonialidade”/Modemidade/Eurocentrada, Trata-se, em rigor, de um proceso de crescente abandono das promessas iniciais da chamada “racionalidade modema” e, nesse sentido, de uma mudanga profunda da perspectiva ética/polities da eurocéntrica versio original da ““colonialidade’ modemidade”. Esta ndo deixou de ser, no obstante “Verde Anibal Quijano:E1 Fantasma del Desarrollo en América Latina, Em Revista Venezolana de Economia y Ciencias Sociles, 2/2000, pp. 73-91, Universidade Central de Venezuela, Caracas, Venezia, Do mesmo autor Os Fantasmas da Ameria Latina, em Adouto Noveis, org. Oito Visoes da America Latina, SENAC, pp. 49-87, Sto Paul, 2006, Beal R. Fac. Dir. UFG, ¥ nT, p46 ~ 57, jane. /jun. 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [..] sua nova caracteristica, atrativa e persuasiva, embora se tornando cada vez mais paradoxal e ambivalente, historicamente impossivel em definitivo. 4) O desenvolvimento e a expansio do novo capital industrial/financeiro, junto com a derrota dos grupos nazi/fascistas da burguesia mundial, na disputa pela hegemonia do capitalismo durante a Segunda Guerra Mundial, facilitaram a desintegragio do colonialismo europeu na Asia e Africa, e, ao mesmo tempo, a prosperidade das burguesias, das camadas médias, inclusive de setores importantes dos trabalhadores explorados, dos paises euro/americanos, ) A consolidagao do despotismo burocritico (rebatizado de “socialismo realmente existente”) e sua ripida expansio dentro e fora da Europa ocorreram dentro desse mesmo canal histérieo. O referide modo de dominago foi sendo afetado, cada vez mais profunda e de maneira insana por essa corrente tecnocritica e instrumental da “racionalidade” colonia/moderna, 6) Nesse contexto, a hegemonia dessa versio da “modemidade” operava como 0 mais poderoso mecanismo de dominagio da subjetividade, tanto por parte da burguesia mundial como da despética burocracia do chamado “campo socialista”. Desse modo, no obstante_—suas_—_rivalidades, ambos os_-—smodos_— de dominagio/exploragio/conflito, convergiram em seu antagonismo repressivo aos novos movimentos da sociedade, em particular entorno da ética social 4 respeito do trabalho, do género, da subjetividade e da autoridade coletiva. Seria mais dificil explicar de outro modo, a exitosa alianga de ambos modos de dominagao para derrotar (seja em Paris, Nova York, Berlim, Roma, Jakarta, Tlateloco, ou em Changai e Praga) os movimentos juvenis, sobretudo, que entre os fins dos anos sessenta e comeco do século XX, lutaram, minoritariamente, mas em todo 0 mundo, entio jé no somente contra a exploragao do trabalho e contra o colonialismo © imperialismo, contra as guerras colonial-imperiais (nesse periodo, Vietna era 0 caso emblemitico), senfo também contra a ética social do produtivismo e do consumismo; contra o pragmitico autoritarismo burgués e burocratico; contra a dominagio de “raga” e de “género”; contra a repressio das formas nao conveneionais de sexualidade; contra © reducionismo teenocritico da racionalidade instrumental ¢ por uma nova relagio estética/ética/politica, Lutando, em consequéneia, por um horizonte de sentido historieo radicalmente distinto que o implicado na “Colonialidad”/Modernidade/Ewocentrada 7) Ao mesmo tempo, surgia um novo padrao de conflito. Em primeizo ponto, a deslegitimagao de todo sistema de dominagao montado sobre 0 eixo R. Fac. Dir. UFG, ¥ nT, p46 ~ 57, jane. /jun. 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E 4 “DES/COLONIALIDADE” [...] “raga’/"género”/"etnicidade”, A tendéncia comegou ja desde final da Segunda Guerra Mundial, como resultado da repulsa mundial a respeito das atrocidades do nazismo e do autoritarismo militar japonés. O racismo/sexismo/etnicismo de ditos regimes despoticos sio s6 ficavam, por tanto, derrotados na guerra, seniio também e no menos, convertidos em referencia deslegitimadora da racionalizagio, do patriarcado, do etnicismo e do autoritarismo militarista nas relagdes de poder. Mas foi sobretudo durante a década dos anos 60 do século XX que o grande debate sobre a “raga” e sobre o “género” puderam ganhar um novo ¢ definitivo relevo, anuneiando o grande conflito mundial atual entorno do controle dos respectivos ambitos da pritica social. 8) Por tudo isso, nao obstante a derrota dos movimentos antiautoritirios e antiburocriticos, e da consequente imposigao da “globalizaga0” do novo Capitalismo Colonial Global, a semente de um horizonte histérico novo pode sobreviver entre a nova heterogeneidade histérico/estrutural do imagindrio mundial, e germina agora como ‘um dos sinais maiores da proposta de Bem Viver. 3 O novo periodo historico: a crise enraizada da “Colonialidade” Global de Poder © desenvolvimento daquelas novas tendéncias historias do Capital Industrial-Financeiro levou a esse prolongado periodo de auge e de mudangas a culminar com a explosio de uma crise enraizada no padriio de poder como tal, a “Colonialidade” Global de Poder, em seu conjunto e em seus elementos fundamentais, desde a segunda metade de 1973, Com essa crise, 0 mundo tem ingressado em um novo periodo histérico, cujos processos especificos tém profundidade, magnitude ¢ implicagdes equivalentes, embora com um quase sinal, aos do periodo que denominamos como “Revolugao Industrial/Burguesa”. Os termos “neoliberalismo”, “globalizagao” e “pos-modemidade” (que aqui nfo poderiam ser discutidos cuidadosamente)’, apresentam com razodvel * sti contibuieno ao debate dessas questbes, principalmente em: Modernidad, Identidad y Utopia en América Latina. Ed. Sociedad y Politica, Lima 1988; “Colonialiad del Poder, Globalizaciba y Democraca'”,originalmente em Tendencias Basicas de Nuestra Era, Iastoto de Estudios lntemacionales Pedro Gual, 2001. Caracas, ‘Venezuela, Uim versio revisada, em San Marcos, No, 25, Tulho 2006, revista da Universidade de San Marcos, Lima, Peri; “Eave Ja Gueua Saata y Ia Crvzede", ocigialmente em America Latina en Movimtento, No. 341, ‘unio 2001. Quito, Equador: El Trabajo al Final de Siglo 0%", riginalmente em Pensée socal entque pour te ‘XNT siete, Melanges en Vhoaneur de Samir Amin. Forum 6 Ters- Monde, L’Harmattan 2008, p.131-149, Pai, France, @ "Paradojas de la Coloiaidad’Modesaidad Euwocentrada”, em Hueso Humero, No. 53, asil 2008, p. 30 49, Lima, Pent R. Fac. Dir. UFG, ¥ nT, p46 ~ 57, jane. /jun. 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E 4 “DES/COLONIALIDADE” [...] eficdcia, no obstante todas suas ambivaléncias e complexidades, 0 cariter € as tendéncias maiores do novo periodo. © primeiro consiste, basicamente, na imposicao definitiva de novo capital financeiro no controle do capitalismo global colonial/modemo. Em um sentido preciso, se trata da imposigdo mundial da “desocupagdo estrutural”, plenamente tramada com a “financeirizagao estrutural”. O segundo, na imposigao dessa definida trama sobre todos 0 paises e sobre toda a populagio humana, inicialmente na América Latina, com a sangrenta ditadura do General Pinochet no Chile, e depois pela politica dos governos de Margaret Thatcher e Ronald Reagan na Inglaterra e nos Estados Unidos, respectivamente, com 0 respaldo e/ou submissio de todos os demais paises. Essa imposigio produziu a dispersao social dos trabalhadores explorados e a desintegragio de suas principais instituigdes sociais e politicas (sindicatos, sobretudo); a derrota e desintegragao do chamado “campo socialista”, ¢ de virtualmente todos os regimes, movimentos e organizagdes politicas que Ihe estavam vinculados. China, ¢ depois Vietna, optaram por ser membros do novo “capitalismo realmente existente”. industrial-financeiro ¢ globalizado, sob um despotismo burocrético reconfigurado como sécio das maiores corporagdes financeiras globais e do Bloco Imperial Global* Enfim, “pés-modemidade” denomina, nao de todo inapropriadamente, a imposigao definitiva da tecnocratizagao/instrumentalizagio da até entio conhecida como a “racionalidade modema”. Isto é, de “Colonialidad”/Modemidade/Eurocentrada. Estamos, pois, imersos em um processo de completa reconfiguragiio da “Colonialidade” Global de Poder, o padrao de poder hegeménico no planeta. Trata-se, em primeiro ponto, da aceleragio e aprofundamento de uma tendéncia de reconcentragao do controle do poder. As tendéneias centrais de dito processo consistem, em um breve relato, em: 1) are-privatizagao dos espagos publics, do Estado em primeiro lugar; 2) a reconcentragdo do controle do trabalho, dos recursos de produgio e da produgao/distribuigaios 3) a polarizagao social extrema e erescente da populagio mundial; 4) a exacerbagio da “exploragio da natureza”: 5) a hiperfetichizagio do mercado, mais que da mercadoria; * sobre o conceito ce Bloco Imperial Global, emeto a Colonfalidad del Poder, Globalizacién y Demoeracia, ja R. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 Jan, /jun, 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E 4 “DES/COLONIALIDADE” [...] 6) a manipulagao e controle dos recursos tecnologicos de comunicagao ¢ de transporte para a imposigao global da tecnocratizagaovinstrumentalizagio da “colonialidad”/modemidade 7) a mercantizacdo da subjetividade e da experiéncia de vida dos individuos, prineipalmente das mulheres; 8) a exacerbac3o universal da dispersio individualista as pessoas ¢ da conduta egoista transvestida de liberdade individual, o que na prética equivale a universalizagao do “sonho americano” pervertide no pesadelo de brutal perseguigaio individual de riqueza e poder contra os demais: 9) a fundamentalizagio das ideologia religiosa ¢ de suas correspondentes étieas sociais, 0 que re-legitima o controle dos prineipais meios da existéncia social; 10) uso erescente das chamadas “industrias culturais” (sobretudo da imagem, cinema, TV, video, etc.) para a produgao industrial de um imagindrio de terror e de mistificagdo da experiéneia, de maneira a legitimar a “fundamentalizagio” das ideologias e da violéncia repressiva. 4A “exploracio da natureza” ¢ a crise da “colonialidade” global do poder Embora aqui de maneita apenas alusiva, nfo seria pertinente deixar de indicar que um dos elementos fundamentais da “Colonialidade”/Modernidade/Enrocentrada ¢ 9 novo e radical dualismo cartesiano, que separa a “razio” e a “natureza™. Dali, uma das ideias/imagens mais caracteristicas do Eurocentrismo, em qualquer de suas vertentes: a “exploragao da natureza” como algo que nao requer justificagao alguma e que se expressa cabalmente na ética produtiva engendrada junto com a “revolugao industrial”, Nao é dificil pereeber a inerente presenga da ideia de “raga” como parte da “natureza”, como explicagao e justificagio da exploragao das “ragas inferiores”. E em amparo dessa mistifieagio metafisien das relagdes humanas com o resto do universo, que os grupos dominantes do homo sapiens na “Colonialidade” Global de Poder, em especial desde a “revolugao industrial”, tém levado a espécie a impor sua hegemonia de exploragio sobre as demais espécies animais ¢ uma conduta Um debate mais mimusioso pode ser encontrado em “Colonialidad del Poder y Clasificacion Social”, originalments ‘om Festschrift for Immanuel Wallerstein, om Journal of World. Systems Research, vol, VI, No.2, Fall Winter 2000, p. 342-388. Special Isue, Glovanal Acrghi and Walter L. Goldfiank, eds. Colorado, USA. R. Fac. Dir. UFG, ¥ nT, p46 ~ 57, jane. /jun. 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [..] predatéria sobre os demais elementos existentes neste planeta. E, sobre essa base, 0 Capitalismo Colonial/Global pratica uma conduta cada vez mais feroz e predatéria, que termina colocando em risco no somente a sobrevivéncia da espécie inteira no planeta, senio a continuidade e a reprodugdo das condigdes de vida, de toda vida, na terra. Sobre sua imposigfo, hoje estamos matando-nos entre ns e destruindo nosso lar commun. A partir desta perspectiva, 0 chamado “aquecimento global” do clima na terra, ou “crise climética”, longe de ser um fenémeno “natural”, que ocorre em algo que chamamos “natureza” e separados de nés como membros da espécie animal Homo ie sobre a sapiens, & o resultado da exacerbagio daquela desorientagao global da espé terra, imposta pela tendéneia predatéria do novo Capitalismo Industrial/Financeiro dentro da “Colonialidade” Global do Poder. Em outras condigdes, é uma das expressdes centrais da crise enraizada deste especifico padrio de poder. 5 A nova resisténci ‘umo a “des/colonialidade” do poder Desde fins do século XX, uma proporgao crescente das vitimas de referido padrio de poder, tem comecado a resistir a essas tendéncias, em virtualmente todo 0 mundo. Os dominadores, os “fimeionatios do capital”, seja como donos das grandes corporagies financeiras ou como governantes de regimes despéticos-buroeriticas, respondem com violentas repressdes, agora nio s6 dentro das fronteiras convencionais de seus proprios paises, sendo através ou por cima delas, desenvolvendo uma tendéneia 4 re-colonizagao global, usando os mais sofisticados recursos teenolégicos que permite matar mais gente, mais ripido, com menos custo. Dadas essas condigées, na crise da “Colonialidade” Global de Poder e, em especial, da “Colonialidade”/Modernidade/Eurocentrada, a exacerbagao do conflito ¢ da violéncia se tem estabelecido como uma tendéncia estrutural globalizada Tal exacerbagio do conflito, dos fundamentalismos, da violéneia, aparelhar a erescente e extrema polarizagao social da populagiio do mundo, vai levando a propria resisténeia a configurar um novo padrio de conflito. A resisténcia tende a desenvolver- se como um modo de produgao de um novo sentido da existéncia social, da vida mesma, precisamente porque a vasta populagdo implicada percebe, com intensidade crescente, que o que esta em jogo agora nio é s6 sua pobreza, como sua etema experiéneia, senio, nada menos que sua propria sobrevivéncia, Tal descoberta implica, necessariamente, R. Fac. Dir. UFG, ¥ nT, p46 ~ 57, jane. /jun. 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [..] que nio se pode defender a vida humana na terra sem defender, a0 mesmo tempo, no mesmo movimento, as condigies da propria vida nesta terra Desse modo, a defesa da vida humana, e das condigdes de vida no planeta, se vai constituindo no novo sentido das lutas de resisténcia da imensa maioria da populagdio mundial. E sem subverter e desintegrar a “Colonialidade” Global de Poder e seu Capitalismo Colonial/Global hoje em seu mais predatério periodo, essas lutas nao poderiam avangar para a produgio de um sentido historico altemativo ao da “Colonialidad’/Modemidade/Eurocentrada. 6 “Des/colonialidade” do poder como continua produgao democritica da existéncia social Esse novo horizonte de sentido historic, a defesa das condigdes de sua propria vida e das demais neste planeta, jd esti fimado nas lutas e nas préticas sociais alternativas da espécie. Em consequéncia, contra toda a forma de dominaco/exploragao na existéncia social. E dizer, uma “Des/Colonialidade” do Poder como ponto de partida, € a autoprodugio e reproducdo democritica da existéncia social, como eixo continuo de orientagdo das priticas sociais. E neste contexto histérico em que ha que se localizar, necessariamente, todo debate e toda elaboragio acerea da proposta de Bem Viver. Por conseguinte, se trata, prineipalmente, de admiti-la como uma questo aberta, no somente no debate, sendo na pritica social cotidiana das populagdes que decidam tramar ¢ habitar historicamente nessa nova existéncia social possivel. Para desenvolver-se e consolidar-se, a “Des/Colonialidade” do Poder implicaria priticas sociais configuradas por: a) igualdade social de individuos heterogéneos ¢ diversos, contra a desigual classificacio e identificagio racial/sexual/social da populagao mundial; b) por conseguinte, as diferengas, nem as identidades, nao seriam mais a fonte ou o argumento da desigualdade social dos individuos; ©) agrupagdes, pertences e/ou identidades seriam 0 produto das decisdes livres e auténomas de individuos livres e autonomos; 4) reciprocidade entre grupos e/ou individuos socialmente iguais, na corganizacao do trabalho e na distribuicdo dos produtos; R. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 Jan, /jun, 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [..] ¢€) tedistribuigao igualitaria dos recursos ¢ produtos, tangiveis ¢ intangiveis, do mundo, entre a populagao mundial; 1) tendéneia de associagdo comunal da populagzio mundial, em escala local, regional, ou globalmente, como 0 modo de produgdo € gestdio diretas da autoridade coletiva e, nesse sentido preciso, como o mais eficaz mecanismo de distribuigho e redistribuigo de direitos, obrigagdes, responsabilidades, recursos, produtos, entre os grupos ¢ seus individuos, em cada ambito da existéncia social, sexo, trabalho, subjetividade, autoridade coletiva e corresponsabilidade nas relagdes com os demais seres vivos e outras entidades do planeta ou do universo inteiro, 7 Os “indigenas” do “sul global” ea proposta de bem viver: questies pendentes Nao ¢ por acidente historico que o debate sobre a “Colonialidade” do Poder e sobre a “Colonialidade’/Modemidade/Eurocentiada, teaha sido produzido, primeiramente, a partir da América Latina, Assim como nfo é que a proposta de Bem ‘Vier venha, inicialmente, do novo movimento dos “indigenas” latino-americanos. América Latina é 0 mundo constituido nas “indias Acidentais” (irénica referencia divulgada ideia de “Indias Ocidentais”)'". Por isso, como o espago original € 0 tempo inaugural de um novo mundo histérico ¢ de um novo padrio de poder o da “Colonialidade” Global de Poder. E, assim mesmo, como o espago/tempo original e inaugural da primeira “indigenizagdo” dos sobreviventes do genocidio colonizador, como a primeira populagio do mundo submetida a “racializagio” de sua nova identidade e de seu lugar dominado no novo padrio de poder. A América Latina populagao “indigena” ocupam, pois, um lugar basal, fundante, na constituigao e na histéria da “Colonialidade” de Poder. Dai, seu atual lugar € papel na subversio epistémica/tedrica/historica/estética/ética/politica deste padrio de poder em crise, implicada nas propostas de Des/”Colonialidade” Global do Poder e do Bem Viver como uma existéncia social alternativa. Contudo, se bem a América, e em particular a América Latina, foi a primeira nova identidade histétiea da “Colonialidade” do Poder e suas populagdes colonizadas os primeiros “indigenas” do mundo, desde o século XVIII todo o resto do temtitério do planeta, com todas suas populagdes, foi couquistado pela Europa Ocidental. E tais populagdes, a imensa maioria da populacio mundial, foram colonizadas, © povert Finley Las inlas Aceidenales. Ea, Barataria, 2003. Espana. R. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 Jan, /jun, 2013 ISSN 0101-7187 ‘BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E A “DES/COLONIALIDADE” [..] transformadas em raga e, em consequéncia, indigenizadas”. Sua atual emergéncia nao consiste, pois, em mais outro “movimento social”. Se trata de todo um movimento da sociedade cujo desenvolvimento poderia levar a “Des/Colonialidade” Global do Poder isto € a outra existéncia social, liberada de dominagio/exploragao/violéncia A crise da “Colonialidade” Global de Poder e 0 debate e a luta por sua ‘DesiColonialidade” tem mostrado a pela luz que a relagio social de dominagao/exploragao fundadas em tomo da ideia de “raga”, é um produto da historia do poder e de nenhuma cartesiana “natureza”. Mas também mostram a extrema heterogeneidade histérica dessa populagio “indigenizada”, primeiro em sua histéria previa 4 colonizagao europeia; segundo, na que se tem produzido pelas experiéneias sob a” Colonialidade” do Poder, durante quase meio milhao de anos e, finalmente, pela que esti sendo agora produzida no novo movimento da sociedade rumo a “Des/Colonialidade” do Poder Nao teria sentido esperar que essa historicamente heterogenia populagio, que compéem a esmagadoramente imensa maioria da populace mundial, tenha produzido ou abrigado um imaginério historieo homogéneo, universal, como altemativa 4 “Colonialidade” Global do Poder. Isso ndo poderia ser concebivel inclusive tomando em conta exclusivamente América Latina, ou América em seu conjunto. Todas essas populagdes, sem excegio, provém de experiéneias historicas de poder. Até onde sabemos, 0 poder parece ter sido, em toda a historia conhecida, niio somente um fenémeno de todas as existéncias sociais de larga durago, sendo, mais ainda, a principal motivacao da conduta histérica coletiva da espécie. Tais experiéncias de poder sem diividas sao distintas entte si e a respeito da “Colonialidade” de Poder, no obstante possiveis experiéncias comuns de colonizagao. Contudo, as populagées “indigenizadas” sob a dominagao colonial, primeiro na “América” pela Tbéria, € mais tarde em todo 0 mundo sob “Europa Ocidental”, nao sé tem dividido em comum, universalmente, as perversas formas de dominagio/exploragio imposta com a “Colonialidade” Global do Poder. Também, paradoxal, mas efetivamente, na resisténcia contra elas tem chegado a dividir aspiragdes histéricas comuns contra a dominagio, a exploracio, a discriminacZo: a igualdade social de individuos heterogéneos, a liberdade de pensamento e de expresso de todos esses individuos, a redistribuigao igualitiria de recursos, assim como 0 controle igualitirio de todos eles, sobre todos os ambitos centrais da existéncia social. R. Fac. Dir. UFG, ¥ nT, p46 ~ 57, jane. /jun. 2013 ISSN 0101-7187 “BEM VIVER”: ENTRE O “DESENVOLVIMENTO” E 4 “DES/COLONIALIDADE” [...] Por mdo isso, na “indigenidade” historica das populagdes vitimas da “Colonialidade” Global do Poder, nao incentivou somente a heranga do pasado, senao toda a aprendizagem da resisténcia histérica de to largo prazo. Estamos, por isso, caminhando na emergéncia de uma identidade historica nova, hist6rico/estruturalmente heterogénea como todas as demais, mas cujo desenvolvimento poderia produzir una nova existéncia social liberada de dominacZo/explorac3o/violéncia, o qual ¢ 0 mesmo coragao da demanda do Forum Social Mundial: Outro Mundo é Possivel. Em outros termos, 0 novo horizonte de sentido histérico emerge com toda sua heterogeneidade histérico/estrutural. Nessa perspectiva, a proposta de Bem Vier é, necessariamente, uma questdo historica aberta’ que requer ser continuamente indagada, debatida e praticada, ® Acerca disso, por exemplo, as vecentes entrevisas a dirigentes aimaris na Bolivia, feitas¢ difundidas no ena da CAOL, A revista América Latina en Movimlento, da Agencia Latiao-americans de Informago (ALAD), tem dedicado 0 No, 452, fevereiso de 2010, iategralmente a este debate, sob o titulo geral de Reeuperar el sentido de Ia vida. A Respeito das mesmas priticas socais, hi ja um muito importante movimento de pesquisa especifica. Ver ‘Vivir Bien Frente al Desarrollo. Procesos de planeacién participativa en Medellin. Esperanza Gomez et al Facultad de Cieacias Sociis, Universidade de Medellin, Colombia, 2010, R. Fac. Dir. UFG, v. 37, n. 1, p. 46 Jan, /jun, 2013 ISSN 0101-7187

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