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A doença mental, ao longo da histó ria da humanidade, teve diferentes

significados e , consequentemente, diversas abordagens, entretanto, como um


viés comum, sempre houve uma preocupaçã o, maior ou menor, em conter o
sofrimento humano.
Na segunda metade do século XX, a forma de encarar a doença mental é
novamente revolucionada. Inicialmente impulsionada por Franco Basaglia,
psiquiatra italiano, que critica os tratamentos e as instituiçõ es psiquiá tricas,
principalmente porque a psiquiatria contemporâ nea se baseava no isolamento
do “louco”. Defendia que a institucionalizaçã o criava o “duplo da doença mental”
com um incremento nocivo que sobrepujava a doença de base (AMARANTE,
1996). A experiência bem sucedida de Basaglia na Itá lia, que culminou na criaçã o
de uma lei que leva seu nome, na década de 70, influenciou fortemente o que veio
a se transformar na reforma psiquiá trica no Brasil.
Cabe ressaltar que a influência de Basaglia na reforma psiquiá trica
brasileira nã o ficou apenas no campo ideoló gico, mas o pró prio esteve por vezes
no Brasil, em conferências e em estreita ligaçã o com o recém-criado Movimento
dos Trabalhadores da Saú de Mental. Movimento este que, na década de 80,
buscou uma mobilizaçã o social “por uma sociedade sem manicô mios”
(AMARANTE, 1996).
No Brasil, em 1989, tem-se um marco relevante para os avanços na saú de
mental. O Projeto de Lei n. 3.657/89, de autoria do Deputado Federal Paulo
Delgado, inspirado na Lei Basaglia e que previa a reorganizaçã o da assistência
psiquiá trica brasileira com a substituiçã o dos manicô mios por outras formas de
tratamento e acompanhamento (COSTA, 2007). O projeto desencadeou debates e
discussõ es em diversos setores, sejam da sociedade como nos acadêmicos acerca
desta questã o. Aprovado somente doze anos depois, propõ e:

O reestabelecimento dos direitos civis e políticos dos doentes mentais; a


extinçã o progressiva dos manicô mios e sua substituiçã o por hospitais-
dia; a internaçã o em hospitais gerais, por períodos mínimos; a
regulamentaçã o da internaçã o compulsó ria, ou seja, aquela que se dá
sem a aprovaçã o do paciente, e que poderá ocorrer por, no má ximo, 24
horas, com o conhecimento do juiz e de uma junta médica;
regulamentaçã o do uso de terapias perigosas, como o eletrochoque.
(COSTA, 2007)

A busca por uma conduta e postura mais humanizante do tratamento aos


doentes mentais acompanha um movimento mundial em torno da adoçã o dos
princípios fundamentais da bioética, a saber: a beneficência/nã o-maleficiência,
autonomia e justiça. O primeiro binô mio é secularmente reconhecido e mais
profundamente aceito e respeitado na á rea da saú de. Com relaçã o ao princípio
de autonomia, pode-se definir pelo reconhecimento à s capacidades e aos pontos
de vista individuais, incluindo o direito de analisar e escolher, agir conforme
convicçõ es e valores pessoais (COHEN apud COSTA, 2007). No contexto
profissional, a autonomia pressupõ e o consentimento informado, ou seja,
fornecer ao indivíduo as informaçõ es mais completas e claras possíveis de modo
a permitir-lhe exercer, com plenitude, o direito de analisar e decidir.
Sabe-se, por outro lado, que o princípio da autonomia apresenta
limitaçõ es em alguns casos, como é o da doença mental. Tal condiçã o torna
complexa a delimitaçã o dos limites éticos quanto ao respeito que lhes é devido.
Cabe, contudo, salientar, que mesmo limitada, transitó ria ou permanentemente,
sua autonomia deve ser respeitada como expressã o de dignidade humana.
Segundo Martin (apud COSTA, 2007), os hospitais nã o sã o humanizados o
suficiente, é um local onde os doentes se sentem despersonalizados e isolados. A
luta anti-manicomial busca levar os profissionais de saú de mental a fazerem uma
reflexã o a cerca de novas formas de pensar, agir, perceber e cuidar dos doentes
mentais. Assim, mesmo que a internaçã o psiquiá trica seja necessá ria,
recomenda-se que seja feita em enfermaria de hospital geral pois facilita a
identificaçã o e tratamento de condiçõ es físicas concomitantes e contribui para
nã o estigmatizar o doente. Recomenda-se o emprego de hospitais-dia em que o
sistema de internaçã o parcial evita o malefícios da internaçã o crô nica e supre
demandas que o regime puramente ambulatorial nã o seria capaz, estimula a
socializaçã o e o desenvolvimento da autonomia.
A lei antimanicomial propõ e uma relaçã o interdisciplinar entre os
profissionais envolvidos no tratamento da doença mental e inclui o atendimento
psicoló gico entre as modalidades possíveis de terapêutica. Tal relaçã o, no
entanto, necessita ser construída caso a caso no que se refere a cada instituiçã o,
principalmente porque nã o é previsto, claramente, o papel do psicó logo
(SANT’ANNA, 2006). A interdisciplinaridade é condiçã o indispensá vel para
enxergar a pessoa de modo biopsicossocial que por sua vez, é imprescindível
para garantir o respeito a sua individualidade. Entretanto, apesar dos avanços já
alcançados com a legislaçã o, a luta antimanicomial patina em muitos aspectos
pela dificuldade de se desvincular o tratamento do doente mental de uma cultura
médico-centrada, que por vezes, enxerga os demais profissionais de uma posiçã o
hierarquicamente diferenciada e limita a troca de informaçõ es (SANT’ANNA,
2006).
Deve-se entender a Reforma Psiquiá trica e a luta antimanicomial nã o
apenas como um desospitalizaçã o, o que seria uma visã o incompleta e covarde
perante o doente pois pressuporia apenas sua retirada do hospital. Trata-se, na
verdade, de uma mudança de paradigma que ofereça alternativas terapêuticas,
proponha a reabilitaçã o do indivíduo e, para tal, lhe ofereça uma estrutura de
suporte que lhe permita a reinserçã o progressiva na sociedade e na família.
Entende-se que cabe à Psicologia a busca por tornar o tratamento do
doente mental mais humanitá rio, garantindo-lhe cidadania. Vale ressaltar
também que o olhar deve estar nã o só desprovido de preconceitos mas também
aberto a multiplicidade das manifestaçõ es da doença mental e a
responsabilidade ética do profissional, a qual prevê a garantia da integridade do
indivíduo e da sociedade quando estas estiverem em risco.

BIBLIOGRAFIA

AMARANTE, P. (1996). O homem e a serpente: outras histórias para a


loucura e a psiquiatria. SciELO-Editora FIOCRUZ.

COSTA, J. R. E., dos Anjos, M. F., & Zaher, V. L. (2007). Para compreender
a doença mental numa perspectiva de bioética.
SANCHEZ, F et al (2000). Reforma Manicomial. Disponível em:
<www.comciencia.br/dossies-1-72/reportagens/manicom/manicom.htm>
Acesso em: 28.out.18

SANT'ANNA, Tatiana Camargo de; BRITO, Valéria Cristina de Albuquerque.


A lei antimanicomial e o trabalho de psicólogos em instituições de saúde
mental. Psicol. cienc. prof.,  Brasília ,  v. 26, n. 3, p. 368-383,  Set.  2006  
Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-
98932006000300004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 02  Nov.  2018. 

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