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instavel

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 278, 01 de Dezembro | 2014

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Bernard Lahire: "A escola é


a estrutura estável de
quem vive numa família
instável"
Sociólogo francês, professor de Sociologia na Escola Normal
Superior de Lyon, na França fala sobre sucesso escolar em
meios populares
NOVA ESCOLA
Marcia Bindo

Bernard Lahire Sociólogo francês, professor de Sociologia na Escola Normal Superior de Lyon, na França

Nascido e criado em um bairro operário, o sociólogo francês Bernard Lahire foi o


primeiro em sua família a chegar à universidade. Isso o levou a questionar as
razões do fracasso escolar e também do sucesso, estatisticamente improvável,
nos meios populares. "Eu queria compreender por que minha irmã, meus primos
e meus amigos enfrentaram dificuldades na escola, e o que havia me conduzido a
um caminho incomum." A pesquisa sobre o tema originou o livro Sucesso Escolar
nos Meios Populares (368 págs., Ed. Ática, tel. 4003-3061, edição esgotada).

Nesta entrevista, Lahire defende que o meio social é crucial ao desenvolvimento


das crianças, pois sozinhas elas não conseguem superar as dificuldades com que
se deparam. O especialista alerta que, para reverter o quadro atual de fracasso
escolar em regiões vulneráveis, é essencial investir em políticas públicas que
melhorem o ambiente social e a estrutura das escolas de periferia.

Seus primeiros trabalhos falam de um assunto comum no Brasil: o fracasso escolar


nos bairros mais pobres. Qual a relação entre Educação e classe social?
BERNARD LAHIRE A Educação vem do ambiente social. O fato de que ela seja diferente
conforme o meio é um dado comum a todas as sociedades desiguais. Bairros
pobres normalmente têm escolas com menos estrutura e famílias com baixo
capital cultural, que muitas vezes não ajudam no desenvolvimento do aluno. É
triste, mas nesse contexto a criança está fadada ao fracasso. Repito, tudo vem do
ambiente social, dos obstáculos aos sucessos. Um estudante não consegue sair
sozinho de suas dificuldades de aprendizagem, as influências externas são
fundamentais - seja o apoio de um familiar, de um amigo estudioso ou de
professores competentes.

O que se entende por capital cultural?


LAHIRE Significater acesso a diversos elementos que desenvolvam a cultura, de
objetos materiais a formas abstratas. Ter uma biblioteca em casa, onde os pais
possam explorar com os filhos diversos escritores e obras, é um exemplo. O
capital cultural pode ser transmitido para as crianças de muitas maneiras, mas
está presente fundamentalmente no círculo familiar.

Como essas interações cotidianas com a família e a formação cultural repercutem na


aprendizagem?
LAHIRE Aleitura, por exemplo, está relacionada com a escrita. Se os pais leem
histórias aos filhos desde pequenos, isso vai permitir uma melhor compreensão e
aprendizagem da escrita, desde a identificação de elementos até a construção de
um texto, com introdução, desenvolvimento, conclusão e uma mensagem para a
reflexão. A família tem esse poder de dar as ferramentas do sucesso. Sem
mencionar que esses momentos em que pais e filhos leem juntos são de
cumplicidade, de partilha, de troca, de despertar o espírito de curiosidade na
criança.

Que políticas públicas diferenciadas deveriam ser criadas para escolas em


ambientes vulneráveis, nos quais muitas crianças não têm acesso a esse capital
cultural?
LAHIRE Mais investimento em estrutura: bons professores, bons equipamentos, boa
equipe pedagógica. Assim, será possível oferecer aos estudantes, na escola,
auxílios que alguns podem não ter fora dela. Por exemplo, dar oportunidades a
crianças pobres de fazer uma viagem escolar, dar-lhes acesso a livros, oficinas e
cursos de arte e música. A escola é a estrutura estável de quem vive numa família
instável. Ela precisa trabalhar junto com os pais para facilitar a harmonização
entre esses dois ambientes.
Como vencer essas diferenças inevitáveis entre os alunos, de modo que todos
tenham chances de não fracassar?
LAHIRE Superaras diferenças que vêm de fora é muito complexo. É preciso dedicar
mais tempo a cada estudante de acordo com a personalidade e as necessidades
dele. Não se deve homogeneizar e sim adaptar as soluções para diferentes
problemas. Para isso, são necessários tempo e equipe adequada. Se os governos
não investem em Educação, estão criando um problema de saúde pública. A
escola está em crise e isso é um desastre para o futuro, porque é preciso tempo
para transmitir conhecimentos e cultura.

Famílias que fogem da estrutura considerada por muitos como "normal" (pais
separados, crianças criadas pelos avós, filhos com pais homossexuais...) são
chamadas de desestruturadas e alguns educadores julgam ser essa a causa para o
aluno não aprender. O que acha?
LAHIRE Nãodevemos nos focar no que é "normal" ou "anormal", mas na
capacidade de oferecer à criança o apoio e os recursos para superar obstáculos
(uma doença, a perda de um pai, um divórcio). Não há um único padrão de
família, mas há vários fatores que prevalecem em um contexto familiar favorável
ou desfavorável. A supervisão da escola é importante no desenvolvimento infantil,
em especial se as crianças não têm uma estrutura estável no ambiente familiar. A
escola deve aceitar esse seu papel maior e não se limitar ao ensino curricular.

Muitos educadores dizem que educar não é responsabilidade da escola. Cabe a ela
apenas ensinar conteúdos curriculares. Qual a sua opinião?
LAHIRE Osprofessores têm, sim, a responsabilidade de fornecer competências de
instrução - aquisição do conhecimento - e de Educação - disciplina do saber e da
vida. Os dois elementos são inseparáveis e a ideia de "instrução pura", que alguns
educadores acreditam transmitir, é absurda. Eles devem aceitar que, ao ensinar,
estão necessariamente transmitindo os dois aos alunos. Defendo que os docentes
serão bem-sucedidos em seu trabalho e poderão torná-lo mais agradável se
perceberem que o seu papel é o de educar e instruir ao mesmo tempo.

Como deveria ser a estrutura escolar para dar conta dessas demandas?
LAHIRE Emtermos objetivos, seria importante que cada escola tivesse uma equipe
pedagógica com psicólogos e tutores para acompanhar os estudantes. O ideal é
que fosse reduzido o número de alunos por classe. Não é culpa dos professores
se o Estado não investe para criar essa estrutura. Ao contrário, o que vemos
normalmente é o governo reduzir o número de professores, suprimir classes e
equipes pedagógicas. Um desastre.

Diante disso, o que o professor pode fazer para ajudar alunos de locais vulneráveis?
LAHIRE Os docentes não são psicólogos, mas muitas vezes acabam ajudando da
maneira que podem. Infelizmente, os estabelecimentos escolares, mesmo na
França, têm falta de auxílio pedagógico, médico, psicológico, entre outros, que
seriam capazes de dar um apoio muito mais adequado do que o dado pelo
professor. De modo prático, os docentes podem estabelecer "classes de
adaptação", que permitam às crianças com mais dificuldade de aprendizado se
familiarizar com as bases escolares e se reintegrar sem serem colocadas de lado.
Estimular esses alunos na realização das atividades, mostrar suporte e inspirá-los
também dá bons resultados.

No Brasil, os melhores professores não querem trabalhar nas piores escolas,


geralmente localizadas na periferia. Há meios, na sua opinião, para resolver essa
situação?
LAHIRE Édever e responsabilidade do Estado que as escolas públicas ofereçam
excelência educacional. De um lado, cabe ao governo levar bons professores às
escolas de periferia, oferecendo bons salários, equipamentos e treinamentos. De
outro, cabe aos professores que amam seu trabalho entender a importância
social que fazem ao priorizar na sua carreira o setor público, em vez da
simplicidade do setor privado, em que as crianças muitas vezes já vêm de famílias
com forte capital cultural e econômico. Assim, o educador pode fazer toda a
diferença no percurso dos estudantes a quem ensina, tornando-se parte do
sucesso escolar e da vida de cada um deles.

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