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Escopofilia: De que se alimenta o mundo virtual?

Escopofilia:
De que se alimenta o mundo virtual?
Scopophilia:
on what does the virtual world feeds?

Cleo José Mallmann

Resumo
O texto apresenta, inicialmente, um apanhado teórico da pulsão escopofílica, a pulsão do pra-
zer de olhar. Fundamenta-se principalmente em Freud, além de Fenichel e estudiosos atuais
do tema, como Bergeret e Marli Piva Monteiro. A seguir, mostra como a internet em especial,
mas também outras formas de comunicação visual como cinema, fotografia e televisão uti-
lizam e exploram essa pulsão, a pulsão do prazer de olhar, quer seja de forma criativa, quer
seja de forma a potencializar aspectos perversos. A exploração do prazer de olhar para fins
comerciais e lucrativos é outro fato evidente em nossa realidade. Por último, uma menção à
sublimação dessa pulsão, que abre portas para a curiosidade, a aprendizagem e a pesquisa.

Palavras-chave: Pulsão, Escopofilia, Voyeurismo, Prazer de olhar, Zona erógena.

Pulsão escopofílica A pulsão escopofílica é uma pulsão par-


Uma das parafilias, anteriormente chama- ticular, diferenciada, que consiste na ne-
das perversões, é o voyeurismo ou escopo- cessidade de olhar. Não é uma das pulsões
filia. O voyeur é o sujeito que obtém prazer primárias fundamentais, como oral ou anal,
em observar os atos sexuais ou a intimidade mas é a manifestação de uma das formas de
sexual das pessoas. Sua ação é apenas visual; expressão da pulsão sexual.
não participa ativamente da cena. O objetivo Entende-se como pulsão a expressão psí-
é obter prazer sexual olhando, sem envolvi- quica de uma excitação provinda de uma
mento com a pessoa observada. Destaca-se, zona do corpo. A pulsão humana está for-
portanto, essencialmente a pulsão de olhar. mada por vários componentes, as chamadas
O prazer advém do olhar. A única fonte de pulsões parciais, ligadas a diferentes partes
excitação e produção de prazer é, predomi- do corpo, às zonas erógenas, e essas pulsões
nantemente, o olhar. sexuais parciais se expressam nessas zonas
Freud usa o termo escopofilia. O sujeito erógenas, nas quais diferentes partes do cor-
é levado pela pulsão escopofílica a tomar o po podem suscitar prazer.
outro como objeto, capturando-o através do Essas pulsões parciais, no entanto, se ex-
olhar à distância. Não se estabelece uma re- pressam de forma anárquica, desorganizada,
lação sujeito-objeto. E tanto pode ser a visão caracterizando a fase do autoerotismo, que
de uma cena sexual real, acontecendo pre- antecede a fase edípica. A pulsão sexual é
sentemente, quanto cenas virtuais diretas via uma só, mas difusa. “Como cada zona cor-
Skype ou fotos e filmes. poral, de forma independente, fornece pra-

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zer, falamos de ‘prazer de órgão’” (Bergeret, A pulsão escópica tem uma fonte: o apa-
2006, p. 68). relho visual; tem um objeto: a cena sexual ou
Somente quando as pulsões se unificam é a intimidade de alguém; e tem um objetivo
que acontecerá a primazia da pulsão fálica. ou alvo: olhar, extraindo prazer dessa visão.
Essa realidade leva Freud a denominar a se- Portanto, a pulsão se realiza pela visão.
xualidade infantil de perverso-polimorfa. O olhar alcança o objeto à distância. Al-
Ao falar da noção de apoio, em que as cança-o quase sempre sem que o objeto o
pulsões sexuais emprestam das pulsões de perceba. Em última análise, o objeto é “toca-
autoconservação a fonte da excitação, não do” pelo olhar sem que se sinta tocado e sem
podemos pensar somente na função de ali- que o objeto tome conhecimento.
mentação ou evacuação. Fenichel (1966, p. 92) lembra que “a es-
Bergeret (2006, p. 68) acentua que copofilia, a sexualização das sensações de
olhar, é análoga ao erotismo do contato”.
[...] não são somente as funções orgânicas, Freud ([1905a] 1969, p. 118) já o dissera:
mas também as funções de vida de relação “Como se dá com tanta frequência, o olhar
que apoiam as primeiras satisfações sexuais. substitui o tocar”. Em Três ensaios sobre a teo-
É assim com a visão, o tato e até mesmo a ati- ria da sexualidade já afirmara a mesma coisa,
vidade intelectual. lembrando que a visão é derivada do tato:

É interessante a noção de que as funções As impressões visuais continuam a ser o ca-


de vida apoiam as primeiras satisfações se- minho mais frequente ao longo do qual a
xuais, pois ampliam enormemente o leque excitação libidinosa é despertada [...] O es-
das pulsões parciais. E certamente conti- conder progressivo do corpo que acompanha
nuam a fazê-lo, especialmente a visão, des- a civilização mantém desperta a curiosidade
de que não exclusiva e predominantemente, sexual. Esta curiosidade sexual busca com-
quando passaria ao nível patológico. pletar o objeto sexual revelando suas partes
O objetivo ou alvo de toda pulsão sexual é ocultas (Freud, [1905] 1969, p. 158).
descarregar a excitação, ver-se livre da pres-
são para alcançar novamente a homeostase. Não é sem razão que há tantas expressões
E é justamente essa descarga da tensão que populares relacionadas com os olhos, sempre
é prazerosa. cheias de verdade psicológica, sublimando a
Assim definem Laplanche e Pontalis verdade da equivalência do olhar com o to-
(1970, p. 506): car. Na verdade um toque invasivo:
• penetrar alguém com os olhos;
Segundo Freud, uma pulsão tem sua fonte • fulminar com um olhar;
numa excitação corporal (estado de tensão); • perscrutar com os olhos;
o seu alvo é suprimir o estado de tensão que • despir com os olhos;
reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças • comer com os olhos (no duplo sentido).
a ele que a pulsão pode atingir o seu alvo. A propósito, Fenichel (1966, p. 92) lem-
bra:
Ao falar de zonas erógenas em Três ensaios
sobre a teoria da sexualidade, Freud ([1905] Em muitas fantasias escopofílicas, aparece
1969, p. 172) afirma: “[...] na escopofilia e no com especial claridade a fantasia de incorpo-
exibicionismo o olhar corresponde a uma rar através do olho o objeto que se vê.
zona erógena [...]”. No sadomasoquismo, em
que o aspecto dor é fundamental, é a pele a E a expressão mais forte parece ser “os
zona erógena, no corpo todo. olhos são o espelho da alma”, ou “os olhos

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são a janela da alma”. Os olhos podem falar tante papel tanto dentro quanto fora da esfera
de inocência, de bondade, de consolo, mas sexual (Fenichel, 1966, p. 93).
podem falar também de desejos ocultos que
não podem ser falados. A histérica exibe seu corpo como um todo,
A pulsão escopofílica faz par com o exibi- e não a zona genital. O temor de que fique
cionismo. Em Três ensaios sobre a teoria da visível sua condição de castrada ocupa com
sexualidade, Freud escreve: frequência a fantasia inconsciente das histé-
ricas de angústia. A roupa, extensão de seu
Toda perversão ativa se acompanha, portan- corpo, serve com frequência para potencia-
to, de seu equivalente passivo: quem quer que lizar a exibição de seu corpo como um todo.
seja um exibicionista, em seu inconsciente, é Na cena em que o voyeur olha um casal na
ao mesmo tempo um voyeur [...] embora nos sua intimidade, identifica-se na sua fantasia
sintomas presentes, uma ou outra das tendên- com um dos parceiros e, às vezes, com os dois.
cias opostas desempenhe o papel predomi- Esse olhar do voyeur pode conter um desejo
nante (Freud, [1905] 1969, p. 170). sádico de destruir o objeto olhado e, ao mes-
mo tempo, a negação desse desejo, ou seja,
Nos meninos, o exibicionismo se reveste “só olhei, não destruí”. Assim também o olhar
dessa pulsão parcial de forma mais intensa. obsessivo da mulher para os genitais mascu-
Sentem prazer em se exibir. E o exibicionista linos pode esconder a ideia de destruí-los.
regride a essa fase infantil numa tentativa de Tanto a escopofilia quanto o exibicionis-
aplacar a ansiedade da castração. Superin- mo têm como finalidade o olhar-se a si mes-
vestir nessa pulsão parcial é a maneira que o mo. O exibicionismo tem um componente
sujeito regredido encontra para negar a cas- narcisista mais marcante e sempre se assegu-
tração. ra contra o temor da castração.
No dizer de Fenichel (1966, p. 93), o vo- Freud assim descreve na Conferência XX:
yeur, ao se exibir, usa o olhar do outro como A vida sexual dos seres humanos o que, em
testemunha de que possui o pênis, de que essência, caracteriza a perversão:
(ele) não lhe foi cortado. A reação de cho-
que e medo que provoca e percebe no outro, O segundo grupo é formado por pervertidos
quando se exibe, são uma projeção de seu que transformaram em finalidade de seus de-
próprio medo. E, finalmente, mostra para a sejos sexuais aquilo que normalmente consti-
mulher o que gostaria que ela lhe mostrasse, tui apenas um ato inicial ou preparatório. São
confirmando, dessa forma, que ela não é cas- pessoas cujo desejo consiste em olhar outras
trada. Assim, aplaca sua angústia. pessoas, ou apalpá-las, ou espiá-las durante
E acrescenta: execução de atos íntimos, ou por pessoas que
exponham partes do corpo que deveriam estar
Uma vez que o homem pode acalmar sua an- encobertas, na obscura expectativa de pode-
gústia de castração exibindo seus genitais, o rem ser recompensadas em troca de uma ação
exibicionismo masculino permanece fixado correspondente (Freud, [1917] 1969, p. 358).
nos genitais, o que resulta que desempenhe
um papel no prazer sexual preliminar. E na Em Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
mulher, uma vez que a ideia de estar castrada dade, Freud já estabelecera a distinção entre
inibe o exibicionismo genital, há um desloca- o normal e o patológico:
mento do exibicionismo genital para o corpo
em sua totalidade. Não existe uma perversão Na maioria dos casos, a natureza patológica
feminina do exibicionismo, mas o exibicio- de uma perversão situa-se não no conteúdo
nismo extragenital desempenha um impor- do novo objeto sexual e sim em sua relação

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com o normal. Se uma perversão, ao invés de como contribuições preparatórias ou intensi-


aparecer simplesmente ao lado do objetivo ficadoras, não constituem, na realidade, abso-
sexual normal e somente quando as circuns- lutamente perversões (Freud, [1917] 1969, p.
tâncias são desfavoráveis a eles e favoráveis 377).
a ela − se ao invés disto, ela os expulsa com-
pletamente e toma o lugar deles em todas as A patologia está na fixação, na exclusivi-
circunstâncias − se, em suma, uma perversão dade de uma dessas pulsões para alcançar o
tem as características de exclusividade e fixa- prazer, excluindo a relação genital ou colo-
ção − então estaremos, via de regra, justifica- cando-a em segundo plano.
dos em considerá-la um sintoma patológico! Os loucos impulsos perversos nos habi-
(Freud, [1905] 1969, p. 163). tam a todos, dos mais normais e neuróticos
aos perversos. Os perversos, na ausência de
Na Conferência XX repete: “O ser perverti- um superego bem estruturado, atuam o que
do não é senão uma sexualidade infantil cin- os demais apenas fantasiam ou se permitem
dida em seus impulsos separados” (Freud, vivenciar nos sonhos.
[1917] 1969, p. 363). Não aconteceu, por al- Em situações especiais, quando o exercí-
guma razão, a unificação das pulsões parciais cio da sexualidade não é possível, essas fan-
em favor da pulsão fálica. O sujeito ficou pre- tasias e desejos recrudescem de forma mais
so em uma das etapas de seu desenvolvimen- intensa e perceptível para o sujeito.
to, fixado em uma das pulsões parciais, de- Diz Freud na Conferência XX:
masiadamente investida. É a ela que regride.
Os impulsos pervertidos devem emergir com
Perversão e sexualidade normal mais intensidade do que emergiriam se a sa-
A conhecida afirmação de que os perver- tisfação sexual normal não tivesse encontra-
sos atuam em sua vida sexual aquilo que é do obstáculo no mundo real (Freud, [1917]
apenas fantasia nos neuróticos evidencia a 1969, p. 362).
presença de elementos sexuais perversos em
todas as pessoas. Monteiro1 resume de forma clara a evolu-
Freud, em Três ensaios sobre a teoria da ção da sexualidade humana:
sexualidade, diz:
Os complicados avatares da sexualidade hu-
Segundo minha experiência, qualquer pessoa mana, no cumprimento de seu trajeto desde
que seja de qualquer forma, quer social, quer os primórdios da fase oral, passando pelas
eticamente, psiquicamente normal, é invaria- atribulações da fase anal, quando o ser huma-
velmente anormal, também em sua vida se- no vai, pela primeira vez, defrontar-se com
xual (Freud, [1905] 1969, p. 150). a negação e a repressão, irá, se tudo correr
bem, culminar finalmente na primazia genital
São traços perversos, entre outros, pre- (Monteiro, 2007, p. 114).
sentes na sexualidade normal: o beijo, a ne-
cessidade de ver o objeto sexual, de tocá-lo, A comprovação de que desejos e fantasias
apertar, morder. perversas nos povoam se dá nos sonhos, nos
Na Conferência XXI: O desenvolvimento
da libido e as organizações sexuais, Freud es-
clarece:
Marli Piva Monteiro, médica, psicanalista, membro do
Na medida em que as ações pervertidas se Círculo Psicanalítico da Bahia e do Círculo Brasileiro de
inserem na realização do ato sexual normal, Psicanálise.

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quais constatamos com frequência sua rea- trônica, todos são extensões do olhar de al-
lização. guém. Como exemplo, temos o caso do ras-
Freud, na Conferência XXI diz: treador veicular ou de um aplicativo usado
no celular: ambos podem servir como exten-
São arranjos da libido e das catexias objetais são do olho do ciumento. E no caso de ciú-
que datam do início da infância e que, desde me delirante, o monitoramento do outro ou
então, foram abandonadas no que respeita à da outra se torna algo obsessivo. O mesmo
vida consciente, mas que provam estar ainda monitoramento pode ser obtido através do
presentes no período noturno e ser capazes Facebook, do Skype. E tantos outros. Multi-
de funcionar em certo sentido [...]. No entan- plicam-se as formas de saber algo do outro
to, de vez que todos, e não apenas os neuróti- instantaneamente.
cos, experimentam estes sonhos pervertidos, Da mesma forma que estamos sendo
incestuosos e assassinos, podemos concluir constantemente vistos e vigiados, também
que as pessoas que são normais, atualmen- espiamos o mundo todo no que tem de mais
te, percorreram um caminho evolutivo que belo e abjeto, humano ou cruel, banal ou es-
passou pelas perversões e catexias objetais petacular, público ou privado. E nesse pri-
do complexo de Édipo, que este é o caminho vado destaca-se a cena sexual. Nosso olho
do desenvolvimento normal e que os neuró- penetra o mundo com um simples toque de
ticos simplesmente nos mostram, de forma dedo. A tecnologia potencializa o olho hu-
ampliada e grosseira, aquilo que a análise dos mano, aproxima, amplia, clareia a imagem,
sonhos nos revela também em pessoas sadias possibilitando inclusive a visão noturna.
(Freud, [1917] 1969, p. 395). A captura das imagens começou com a
fotografia impressa, num processo lento e
Freud, no seu texto Fetichismo (1927), já complicado, com acesso a um público restri-
colocava esta grande interrogação: Por que to. Hoje é instantânea, disponível para todos.
algumas pessoas fazem esse percurso sem Sua disseminação pela internet é assombro-
maiores sequelas, e outras pegam desvios ou sa.
permanecem fixados em etapas mais infan- Em matéria de fotografias, a mais recente
tis? Naquele momento, dizia ele, não era pos- tendência são as selfies, usadas predominan-
sível saber o porquê. Mas já era um grande temente pelos adolescentes e postadas nas
passo saber como isso acontecia. redes sociais. Nelas as pessoas, em especial
os adolescentes, retratam-se nas mais dife-
Escopofilia e mundo virtual rentes situações, desde as mais inocentes até
Com o desenvolvimento da tecnologia vi- as mais sedutoras, retratando o corpo com
sual, capaz de captar imagens desde o mais sensualidade. Expõem, por vezes com certa
banal ao mais íntimo, da macro e microrrea- ingenuidade, esse momento tumultuado de
lidade, visível ou invisível a olho nu, o acesso sua vida.
instantâneo de tudo a qualquer um transfor- Há tanto fotografias ou mesmo filma-
mou este mundo num Big Brother. Tornou- gens da intimidade de pessoas autopostadas,
se terreno fértil ao crescimento da escopofi- quanto fotos ou filmagens espalhadas pela
lia. Até mesmo por motivo de monitoramen- internet como vingança, postadas por ho-
to de segurança, estamos sendo observados mens ou mulheres traídas ou abandonadas −
o tempo todo. Sempre há alguém que olha, e esse o mais recente crime virtual. Todas en-
alguém que é olhado. sejam farto material para o voyeur. Enquanto
Todos os aparelhos que nos monitoram, uns se mostram, outros espiam.
em prédios, elevadores, lojas, e mesmo na Os filmes são uma oportunidade em que
rua, seja por imagens, seja outra forma ele- todos nós vivenciamos de alguma forma a

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escopofilia. Embora tenhamos consciência E na internet não há nenhum limite para a


de que é apenas uma projeção de imagens, exibição de encenações incestuosas com as
o filme bem articulado consegue criar um quais o sujeito possa se identificar.
clima tal que nossas emoções sejam forte- Como, no dizer de Freud, há pessoas que
mente mobilizadas: sofremos, alegramo-nos, não necessitam de um objeto real para sua
identificamo-nos com um personagem, tor- realização sexual, basta-lhes a fantasia. Cer-
cemos pelo sucesso ou pela morte de outro. tamente a internet pornô, oferecendo esse
Enfim, por alguns instantes, vivemos a ilusão objeto virtual, facilita a satisfação da fantasia.
de estar em uma cena real. Podemos identi- E atualmente proliferam na internet os sites
ficar-nos tanto com cenas de acontecimentos de sexo à distância. Geralmente mulheres,
quotidianos ‘normais’ quanto com cenas e expondo-se via Skype elas mesmas ou filma-
personagens francamente perversos. Temos das pelos próprios companheiros, propiciam
à disposição um leque que vai do normal ao aos clientes sua satisfação sexual. Esses sites
patológico. são uma nova e fácil fonte de renda.
Ao assistir a um filme nos assemelhamos A escopofilia movimenta milhões. As re-
a um sujeito que, de sua janela, sem ser visto, vistas estão repletas das intimidades dos ar-
olha de binóculo para a janela de algum edi- tistas. O povo está ansioso para saber como
fício vizinho, esperando ver uma cena íntima vive seu artista predileto, o que faz, o que
da vida privada das pessoas. come e, principalmente, como é sua vida ín-
Mas é a internet, por excelência, a janela tima. Os atores de novela, em sua vida real,
através da qual o voyeur espia a intimidade são confundidos com seus personagens.
do ser humano. Ali estão retratadas as mais Da mesma forma a TV, quando em pro-
torpes perversões. Há um retrato de todas as grama de entrevistas, explora a intimida-
fantasias ou atuações de fantasias de que o de do entrevistado de forma às vezes quase
ser humano é capaz: incesto simulando re- constrangedora. E o exemplo mais escanca-
lações mãe-filho, pai-filha, irmãos entre si, rado é o Big Brother: só dá audiência se os
cenas de voyeurismo e exibicionismo, sexo brothers se expõem, se há insinuação de sexo
a três ou grupal, cenas sadomasoquistas de ou sexo explícito. O prêmio dado ao ganha-
casais ou grupais, zoofilia tanto de homens dor é troco diante do volume que a emissora
quanto de mulheres, etc. Sem falar nas cenas fatura, evidenciando a exploração comercial
de pedofilia. As fantasias perversas atuadas da escopofilia.
estão expostas de forma nua e crua. Todo o crescimento da “farra” escopofíli-
Quanto ao incesto, Freud fala em sua ca e exibicionista tem sua razão de ser. Marli
Conferência XXI: Piva Monteiro diz que o homem de nosso
tempo vive
A escolha objetal de um ser humano é regu-
larmente incestuosa, dirigida, no caso do ho- [...] uma sexualidade desreprimida e sol-
mem, à sua mãe e à sua irmã; e necessita das ta, cuja permissividade e promiscuidade lhe
mais severas proibições para impedir que esta permitem quase todos os possíveis prazeres e
tendência infantil se realize (Freud, [1917] emoções das mais esdrúxulas [...] Casas no-
1969, p. 391). turnas para sexo grupal são anunciadas es-
cancaradamente e as trocas de casais encara-
O incesto só é barrado pela lei, fruto da das com naturalidade. As relações sexuais são
civilização. Ou seja, não existe um impedi- realizadas alternadamente ou até concomi-
mento natural ao incesto. O privilégio do tantemente com parceiros de sexos diferentes,
incesto só era reservado aos deuses e reis alegando-se o direito inequívoco do gozo da
(faraós no Egito e soberanos incas no Peru). bissexualidade, que nada mais é que a tenta-

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tiva de não submeter-se à lei da sexuação, ou das combinações, de duas sessões semanais,
seja, de não ter de optar por nenhum dos se- nunca mais a vi.
xos e valer-se do uso dos dois. (Monteiro, Uma segunda paciente apresentava uma
2007, p. 116). crise de intensa ansiedade sempre que via
uma raiz de árvore exposta ou quando olha-
Aliás, nossas novelas estão repletas de ce- va para uma determinada flor que tinha co-
nas descritas por Marli, que conclui dizendo loração avermelhada por fora e escura por
que tudo isso é dentro. Ao lembrá-la de que a flor é o órgão
sexual das plantas, ficou surpresa, embora
[...] consequência da figura paterna empalide- fosse pessoa culta. Nas duas sessões seguin-
cida na sociedade atual, falha em exercer sua tes não veio. Sabendo de suas dificuldades de
função, favorecendo a transgressão da lei, ou horário, fiz contato por telefone. Respondeu-
melhor, permitindo que o sujeito se insurja à me que tinha decidido não continuar a tera-
obediência às leis (Monteiro, 2007, p. 115). pia comigo porque eu estava levando as coi-
sas por demais para o lado da sexualidade.
No tempo de Freud, tempo de extrema As duas pacientes, ao se darem conta de
repressão da sexualidade, sobretudo para as que a terapia poderia “abrir seus olhos” para
mulheres, os sintomas conversivos eram os ver o que não estavam conseguindo ou se
mais expressivos. Nos tempos atuais caiu-se permitindo ver, preferiram continuar cegas.
no outro extremo, suscitando novas pato- A propósito das perturbações da visão,
logias e sintomas sintonizados com o novo Freud afirma A concepção psicanalítica da
contexto do mundo atual. perturbação psicogênica da visão:

Patologias da visão Quanto ao olho, estamos acostumados a inter-


Não raramente encontramos histéricas com pretar os obscuros processos psíquicos impli-
perturbações de visão. Conscientemente cados na repressão da escopofilia sexual e no
afirmam, por exemplo, nada enxergar, em- desenvolvimento da perturbação psicogênica
bora inconscientemente elas estejam vendo. da visão, como se uma voz primitiva estives-
Recordo-me de uma paciente que veio à con- se falando de dentro do indivíduo e dizendo:
sulta depois de peregrinar por vários anos ’Como você tentou utilizar mal seu órgão de
por diversos consultórios médicos, oftalmo- visão para prazeres sensuais perversos, é jus-
logistas e neurologistas, que lhe afirmavam to que você nunca mais veja nada’, e como se
nada haver de anormal em seu aparelho vi- desta maneira estivesse aprovando o resulta-
sual. Buscou recursos esotéricos e por fim do do processo (Freud, [1910] 1969, p. 202).
um padre que, adequadamente, encami-
nhou-a para psicoterapia. Nessa punição imposta pelo superego está
Seu sintoma: uma vez ao ano, sempre na evidente a lei de Talião, “olho por olho”. Na
mesma época, durante um mês, ficava com- sequência, Freud ilustra com a lenda da bela
pletamente cega. E isso já se dava há vários Lady Godiva:
anos seguidos. Nesse tempo, os familiares
tinham que conduzi-la pela casa. Depois, es- Como todos os habitantes da cidade se escon-
pontaneamente, recobrava a visão. Na anam- deram por trás de suas venezianas fechadas a
nese (2 horas com o casal), ficou evidente ter fim de tornar mais fácil a tarefa da senhora de
havido problemas quanto à sua sexualidade cavalgar nua pelas ruas, em pleno dia, e como
em sua vida pregressa. Mostro a ela que pos- um homem que espreitou pelas venezianas
sivelmente a cegueira pudesse estar relacio- seus encantos descobertos foi punido com a
nada com esses problemas. Feitas as devi- cegueira. E este não é o único exemplo que

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sugere que a enfermidade neurótica também Abstract


possui a chave secreta da mitologia (Freud, This text initially presents a theoretical review
[1910] 1969, p. 202). of the scopophilic drive. It is based mainly on
Freud, supported by Fenichel and other con-
Não podemos nos esquecer da sublima- temporary experts on the subject, such as Ber-
ção da escopofilia. É dela que brota a ener- geret and Marli Piva Monteiro. Following, it
gia que move o sujeito ao desenvolvimento shows how the internet particularly, but also
da aprendizagem. A escopofilia é o princi- other forms of visual communication such as
pal componente da curiosidade sexual da cinema, photography and television, use and
criança. Essa curiosidade pode se converter explore this drive, the drive to obtain pleasure
num fim em si mesmo, que seria a perver- in watching, be it in an imaginative way, be
são, ou deslocar-se para uma curiosidade it in a way to potentiate perverse aspects. The
sublimada, desejo de investigação, de co- exploitation of the pleasure in watching, for
nhecimento. commercial and lucrative ends, is also another
evident fact in our reality. At last, a mention
As cenas primárias, ou seja, a observação dos to the sublimation of this drive, which makes
adultos em sua atividade sexual ou o nasci- way for curiosity, learning and researching.
mento de um irmão constituem a experiência
mais comum e podem estimular ou bloquear Keywords: Drive, Scopophilia, Voyeurism,
a curiosidade (Fenichel, 1966, p. 93). Pleasure on watching, Erogenous Zone.

Entre diferentes causas da dificuldade de


aprendizagem, temos aí uma pista. A pulsão Referências
de saber se alimenta, portanto, da energia
da pulsão sexual, de forma mais precisa, da BERGERET, J. Psicopatologia, teoria e clínica. Porto
sublimação da energia da pulsão escopofí- Alegre: Artmed, 2006.
lica.
FENICHEL, O. Teoría psicoanalítica de las neurosis.
Considerações finais Buenos Aires: Paidós, 1966.
Esta retomada teórica do tema da escopofilia, FREUD, S. A concepção psicanalítica da perturbação
bem como a constatação de sua importância psicogênica da visão (1910). In: ______. Cinco lições
na leitura da realidade virtual, mostra-nos a de psicanálise, Leonardo da Vinci e outros trabalhos
atualidade deste tema. A pulsão escopofílica (1910 [1909]). Direção-geral da tradução de Jayme
fornece a energia em toda a curiosidade de Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 193-203.
(Edição standard brasileira das obras psicológicas
apreender o mundo que nos cerca. completas de Sigmund Freud, 11).
Faz-se presente na aprendizagem, na pes-
quisa científica e na arte (fotografia, cinema, FREUD, S. Conferência XIX: Resistência e repressão.
pintura) pela sublimação. Mas se faz presente In: ______. Conferências introdutórias sobre psicaná-
também na exploração comercial da pulsão lise (Parte III. Teoria geral das neuroses. 1917 [1916-
1917]). Direção-geral da tradução de Jayme Salomão.
escopofílica e na possibilidade de identificar- Rio de Janeiro: Imago, 1969. p. 337-354. (Edição stan-
se com as práticas sexuais perversas expostas dard brasileira das obras psicológicas completas de
nos sites pornôs. Por último, permite ao pró- Sigmund Freud, 16).
prio sujeito o exibir-se ao olhar dos outros.
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Recebido em: 21/11/2016


Aprovado em: 01/12/2016

Sobre o autor

Cleo José Mallmann


Psicólogo. Psicanalista.
Sócio do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul.

Endereço para correspondência


E-mail: <cjmallmann@hotmail.com>

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