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Escopofilia:
De que se alimenta o mundo virtual?
Scopophilia:
on what does the virtual world feeds?
Resumo
O texto apresenta, inicialmente, um apanhado teórico da pulsão escopofílica, a pulsão do pra-
zer de olhar. Fundamenta-se principalmente em Freud, além de Fenichel e estudiosos atuais
do tema, como Bergeret e Marli Piva Monteiro. A seguir, mostra como a internet em especial,
mas também outras formas de comunicação visual como cinema, fotografia e televisão uti-
lizam e exploram essa pulsão, a pulsão do prazer de olhar, quer seja de forma criativa, quer
seja de forma a potencializar aspectos perversos. A exploração do prazer de olhar para fins
comerciais e lucrativos é outro fato evidente em nossa realidade. Por último, uma menção à
sublimação dessa pulsão, que abre portas para a curiosidade, a aprendizagem e a pesquisa.
zer, falamos de ‘prazer de órgão’” (Bergeret, A pulsão escópica tem uma fonte: o apa-
2006, p. 68). relho visual; tem um objeto: a cena sexual ou
Somente quando as pulsões se unificam é a intimidade de alguém; e tem um objetivo
que acontecerá a primazia da pulsão fálica. ou alvo: olhar, extraindo prazer dessa visão.
Essa realidade leva Freud a denominar a se- Portanto, a pulsão se realiza pela visão.
xualidade infantil de perverso-polimorfa. O olhar alcança o objeto à distância. Al-
Ao falar da noção de apoio, em que as cança-o quase sempre sem que o objeto o
pulsões sexuais emprestam das pulsões de perceba. Em última análise, o objeto é “toca-
autoconservação a fonte da excitação, não do” pelo olhar sem que se sinta tocado e sem
podemos pensar somente na função de ali- que o objeto tome conhecimento.
mentação ou evacuação. Fenichel (1966, p. 92) lembra que “a es-
Bergeret (2006, p. 68) acentua que copofilia, a sexualização das sensações de
olhar, é análoga ao erotismo do contato”.
[...] não são somente as funções orgânicas, Freud ([1905a] 1969, p. 118) já o dissera:
mas também as funções de vida de relação “Como se dá com tanta frequência, o olhar
que apoiam as primeiras satisfações sexuais. substitui o tocar”. Em Três ensaios sobre a teo-
É assim com a visão, o tato e até mesmo a ati- ria da sexualidade já afirmara a mesma coisa,
vidade intelectual. lembrando que a visão é derivada do tato:
são a janela da alma”. Os olhos podem falar tante papel tanto dentro quanto fora da esfera
de inocência, de bondade, de consolo, mas sexual (Fenichel, 1966, p. 93).
podem falar também de desejos ocultos que
não podem ser falados. A histérica exibe seu corpo como um todo,
A pulsão escopofílica faz par com o exibi- e não a zona genital. O temor de que fique
cionismo. Em Três ensaios sobre a teoria da visível sua condição de castrada ocupa com
sexualidade, Freud escreve: frequência a fantasia inconsciente das histé-
ricas de angústia. A roupa, extensão de seu
Toda perversão ativa se acompanha, portan- corpo, serve com frequência para potencia-
to, de seu equivalente passivo: quem quer que lizar a exibição de seu corpo como um todo.
seja um exibicionista, em seu inconsciente, é Na cena em que o voyeur olha um casal na
ao mesmo tempo um voyeur [...] embora nos sua intimidade, identifica-se na sua fantasia
sintomas presentes, uma ou outra das tendên- com um dos parceiros e, às vezes, com os dois.
cias opostas desempenhe o papel predomi- Esse olhar do voyeur pode conter um desejo
nante (Freud, [1905] 1969, p. 170). sádico de destruir o objeto olhado e, ao mes-
mo tempo, a negação desse desejo, ou seja,
Nos meninos, o exibicionismo se reveste “só olhei, não destruí”. Assim também o olhar
dessa pulsão parcial de forma mais intensa. obsessivo da mulher para os genitais mascu-
Sentem prazer em se exibir. E o exibicionista linos pode esconder a ideia de destruí-los.
regride a essa fase infantil numa tentativa de Tanto a escopofilia quanto o exibicionis-
aplacar a ansiedade da castração. Superin- mo têm como finalidade o olhar-se a si mes-
vestir nessa pulsão parcial é a maneira que o mo. O exibicionismo tem um componente
sujeito regredido encontra para negar a cas- narcisista mais marcante e sempre se assegu-
tração. ra contra o temor da castração.
No dizer de Fenichel (1966, p. 93), o vo- Freud assim descreve na Conferência XX:
yeur, ao se exibir, usa o olhar do outro como A vida sexual dos seres humanos o que, em
testemunha de que possui o pênis, de que essência, caracteriza a perversão:
(ele) não lhe foi cortado. A reação de cho-
que e medo que provoca e percebe no outro, O segundo grupo é formado por pervertidos
quando se exibe, são uma projeção de seu que transformaram em finalidade de seus de-
próprio medo. E, finalmente, mostra para a sejos sexuais aquilo que normalmente consti-
mulher o que gostaria que ela lhe mostrasse, tui apenas um ato inicial ou preparatório. São
confirmando, dessa forma, que ela não é cas- pessoas cujo desejo consiste em olhar outras
trada. Assim, aplaca sua angústia. pessoas, ou apalpá-las, ou espiá-las durante
E acrescenta: execução de atos íntimos, ou por pessoas que
exponham partes do corpo que deveriam estar
Uma vez que o homem pode acalmar sua an- encobertas, na obscura expectativa de pode-
gústia de castração exibindo seus genitais, o rem ser recompensadas em troca de uma ação
exibicionismo masculino permanece fixado correspondente (Freud, [1917] 1969, p. 358).
nos genitais, o que resulta que desempenhe
um papel no prazer sexual preliminar. E na Em Três ensaios sobre a teoria da sexuali-
mulher, uma vez que a ideia de estar castrada dade, Freud já estabelecera a distinção entre
inibe o exibicionismo genital, há um desloca- o normal e o patológico:
mento do exibicionismo genital para o corpo
em sua totalidade. Não existe uma perversão Na maioria dos casos, a natureza patológica
feminina do exibicionismo, mas o exibicio- de uma perversão situa-se não no conteúdo
nismo extragenital desempenha um impor- do novo objeto sexual e sim em sua relação
quais constatamos com frequência sua rea- trônica, todos são extensões do olhar de al-
lização. guém. Como exemplo, temos o caso do ras-
Freud, na Conferência XXI diz: treador veicular ou de um aplicativo usado
no celular: ambos podem servir como exten-
São arranjos da libido e das catexias objetais são do olho do ciumento. E no caso de ciú-
que datam do início da infância e que, desde me delirante, o monitoramento do outro ou
então, foram abandonadas no que respeita à da outra se torna algo obsessivo. O mesmo
vida consciente, mas que provam estar ainda monitoramento pode ser obtido através do
presentes no período noturno e ser capazes Facebook, do Skype. E tantos outros. Multi-
de funcionar em certo sentido [...]. No entan- plicam-se as formas de saber algo do outro
to, de vez que todos, e não apenas os neuróti- instantaneamente.
cos, experimentam estes sonhos pervertidos, Da mesma forma que estamos sendo
incestuosos e assassinos, podemos concluir constantemente vistos e vigiados, também
que as pessoas que são normais, atualmen- espiamos o mundo todo no que tem de mais
te, percorreram um caminho evolutivo que belo e abjeto, humano ou cruel, banal ou es-
passou pelas perversões e catexias objetais petacular, público ou privado. E nesse pri-
do complexo de Édipo, que este é o caminho vado destaca-se a cena sexual. Nosso olho
do desenvolvimento normal e que os neuró- penetra o mundo com um simples toque de
ticos simplesmente nos mostram, de forma dedo. A tecnologia potencializa o olho hu-
ampliada e grosseira, aquilo que a análise dos mano, aproxima, amplia, clareia a imagem,
sonhos nos revela também em pessoas sadias possibilitando inclusive a visão noturna.
(Freud, [1917] 1969, p. 395). A captura das imagens começou com a
fotografia impressa, num processo lento e
Freud, no seu texto Fetichismo (1927), já complicado, com acesso a um público restri-
colocava esta grande interrogação: Por que to. Hoje é instantânea, disponível para todos.
algumas pessoas fazem esse percurso sem Sua disseminação pela internet é assombro-
maiores sequelas, e outras pegam desvios ou sa.
permanecem fixados em etapas mais infan- Em matéria de fotografias, a mais recente
tis? Naquele momento, dizia ele, não era pos- tendência são as selfies, usadas predominan-
sível saber o porquê. Mas já era um grande temente pelos adolescentes e postadas nas
passo saber como isso acontecia. redes sociais. Nelas as pessoas, em especial
os adolescentes, retratam-se nas mais dife-
Escopofilia e mundo virtual rentes situações, desde as mais inocentes até
Com o desenvolvimento da tecnologia vi- as mais sedutoras, retratando o corpo com
sual, capaz de captar imagens desde o mais sensualidade. Expõem, por vezes com certa
banal ao mais íntimo, da macro e microrrea- ingenuidade, esse momento tumultuado de
lidade, visível ou invisível a olho nu, o acesso sua vida.
instantâneo de tudo a qualquer um transfor- Há tanto fotografias ou mesmo filma-
mou este mundo num Big Brother. Tornou- gens da intimidade de pessoas autopostadas,
se terreno fértil ao crescimento da escopofi- quanto fotos ou filmagens espalhadas pela
lia. Até mesmo por motivo de monitoramen- internet como vingança, postadas por ho-
to de segurança, estamos sendo observados mens ou mulheres traídas ou abandonadas −
o tempo todo. Sempre há alguém que olha, e esse o mais recente crime virtual. Todas en-
alguém que é olhado. sejam farto material para o voyeur. Enquanto
Todos os aparelhos que nos monitoram, uns se mostram, outros espiam.
em prédios, elevadores, lojas, e mesmo na Os filmes são uma oportunidade em que
rua, seja por imagens, seja outra forma ele- todos nós vivenciamos de alguma forma a
tiva de não submeter-se à lei da sexuação, ou das combinações, de duas sessões semanais,
seja, de não ter de optar por nenhum dos se- nunca mais a vi.
xos e valer-se do uso dos dois. (Monteiro, Uma segunda paciente apresentava uma
2007, p. 116). crise de intensa ansiedade sempre que via
uma raiz de árvore exposta ou quando olha-
Aliás, nossas novelas estão repletas de ce- va para uma determinada flor que tinha co-
nas descritas por Marli, que conclui dizendo loração avermelhada por fora e escura por
que tudo isso é dentro. Ao lembrá-la de que a flor é o órgão
sexual das plantas, ficou surpresa, embora
[...] consequência da figura paterna empalide- fosse pessoa culta. Nas duas sessões seguin-
cida na sociedade atual, falha em exercer sua tes não veio. Sabendo de suas dificuldades de
função, favorecendo a transgressão da lei, ou horário, fiz contato por telefone. Respondeu-
melhor, permitindo que o sujeito se insurja à me que tinha decidido não continuar a tera-
obediência às leis (Monteiro, 2007, p. 115). pia comigo porque eu estava levando as coi-
sas por demais para o lado da sexualidade.
No tempo de Freud, tempo de extrema As duas pacientes, ao se darem conta de
repressão da sexualidade, sobretudo para as que a terapia poderia “abrir seus olhos” para
mulheres, os sintomas conversivos eram os ver o que não estavam conseguindo ou se
mais expressivos. Nos tempos atuais caiu-se permitindo ver, preferiram continuar cegas.
no outro extremo, suscitando novas pato- A propósito das perturbações da visão,
logias e sintomas sintonizados com o novo Freud afirma A concepção psicanalítica da
contexto do mundo atual. perturbação psicogênica da visão:
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