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1ª Edição

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Sumário
O Demônio de Diamantes ................................................................................................. 6
O Velho ........................................................................................................................... 25
Quando os santos marcham ............................................................................................. 29
A grama do vizinho é sempre mais vermelha .................................................................. 39
Sério?............................................................................................................................... 51
O que acontece quando os livros caem da estante? ......................................................... 60
Corujas não podem mover seus olhos ............................................................................. 73
Supernova – O templo dos magníficos ............................................................................ 82
Esconderijo ...................................................................................................................... 91
O que os olhos veem ....................................................................................................... 94
Linhas tortas .................................................................................................................. 105
Vitrine............................................................................................................................ 111
O anfitrião ..................................................................................................................... 122
Esqueça.......................................................................................................................... 133

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‘’É tudo um tabuleiro de noites e dias;
os homens são peças, e o fado temerário
com elas joga, e move, e toma, e dá o mate,
e uma a uma as recolhe,
e vai guardar no armário.’’
Omar Khayyam

‘’- É. Ela nunca mexia nas damas. Toda vez que ela fazia uma dama, deixava na última
casa. Nunca usava nenhuma, só porque gostava de ver todas as damas enfileiradas nas
últimas casas.
Stradlater não disse nada. Pouca gente se interessa por esse tipo de coisa.’’
J. D. Salinger

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À dúvida.

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O Demônio de Diamantes
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R io dos Diamantes era uma cidade pacata, mesmo, daquelas que

meio mundo adora passar férias. Gozava de nove mil habitantes, sujeitos
estranhos que dividiam as suas atividades semanais entre trabalhar, sair
para se divertir e comentar a vida alheia (o que também não deixa de ser
divertido). Vez ou outra surgia algum roubo ou coisa parecida, é verdade,
mas estavam acostumados a não ter muito o que esquentasse as
discussões de boteco, de praça e de caminhada.
O caso a seguir trata de um acontecimento que gerou mais conversas
do que qualquer roubo de vinte reais ou ‘’o filho da fulana tá bebendo’’
na história. Se você mora em uma cidade pequena, é seu dever descobrir
o que todas elas têm em comum. Vamos lá. Te dou três segundos.

Exatamente: assombrações. Cachorros gigantes, pássaros que


anunciam a morte, dezenas de cavalos trotando na madrugada... A lista é
grande e diversa, tão variada que leva muita gente a pensar se essas
coisas realmente existem. Marcelo acreditava em vida fora da terra,
César já vira fantasmas, Pedro não acreditava em nada... Até o dia da
primeira aparição.
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- Ouça, César, ele é louco – jogou-se para trás. A cama tremeu. – Disse
que vai acabar comigo e não sei o quê.
- E vai mesmo! – disse o baixinho. – Você se lembra do Dinho, né? Tá
estudando fotossíntese até hoje.
- Ele que tente, o errado não sou eu.

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César largou o espelho, onde sua imagem o acompanhava entre
manchas de pasta de dente. Encarou Pedro com as sobrancelhas para
cima.
- Que foi?
- Sei lá... Você meio que tentou puxar um coro de ‘’velho trouxa’’ no
meio da aula.
- É! – levantou-se apontando o dedo. – E vocês traidores me deixaram
gritando sozinho.
- Traidores não, calculistas.
- Traidor... – disse com um sussurro de vilão caricato, caminhou até a
porta, sorrindo. Marcelo apareceu na esquina.
Os três eram amigos de longa data, desde uma briga generalizada no
futebol da terceira série. Naquele dia, ninguém sabia exatamente o que
estava acontecendo, mas entraram no conflito como se fosse resolver
todos os problemas do mundo (o que de certa forma é um pequeno
resumo do que são os surtos de violência desse planeta, só que com mais
catarro e menos tampões de dedo). Como resultado, 90% da terceira série
voltou no outro dia ou sem tv, ou com um histórico respeitável de
chineladas no corpo.
- Não quero nem saber – decretou Marcelo. – Hoje é calabresa ou
nada.
- Ou nada. – repetiram os dois.
Era noite de pizza, um evento importantíssimo que acontecia no
segundo domingo de cada mês desde a oitava série. Uma tradição, claro,
e prezavam pelas próprias tradições religiosamente.
A noite da pizza acontecia em etapas:
1 – Comer Pizza e beber refrigerante até se sentirem com dez quilos a
mais.
2 – Caminhar por boa parte da cidade.
3 – Conversar fiado frente à casa de algum deles até a madrugada.

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É isso. Não eram os mais radicais dos adolescentes, como podem
perceber.
Saíram. A pizzaria ficava razoavelmente longe (longe, para cidades
pequenas, significa dez minutos), então chegaram quando o relógio bateu
as 21:20. As conversas que aconteceram ali não importam muito para a
história, mas era algo sobre uma teoria relacionando World of Warcraft e
o surgimento de espinhas.
Saíram exatamente uma hora depois, haviam comido como bárbaros
saqueando um fast food e se utilizaram de normas de etiqueta parecidas,
também. Logo despediram-se dos donos e saltaram pra fora.
- Caramba... – Marcelo esfregou as mãos.
Estava um calor de quatro infernos quando entraram, coisa de quarenta
graus de sensação térmica. Agora, saindo, sentiam ventos gélidos como
raramente acontecia no inverno. Paralelepípedos pareciam mais pálidos,
folhas se agrediam, os cachorros magrelos inspiravam uma empatia
sinistra. Eram as únicas almas vivas na rua.
- Essa cidade é doida, cara. – disse Pedro.
Bateram pés, a mudança repentina não soava mais como importante.
Importante era a segunda etapa, caminhar e conversar bobagem, o resto
era extensão. Continuavam a sentir frio, claro, e ele quase que gritava
ordenando-os a ir embora, mas continuaram, ainda assim, pois
respeitavam tradições.
Desceram e subiram ladeiras, ninguém. Em uma delas viram o pátio de
uma escola. Escuro como o fundo de um abismo, tremulava vultos
deformados e velozes.
‘’Vá embora’’.
Seguiram conversando, pois precisavam ignorar o desconforto que
sentiam. Passaram por mercearias antigas, casas em eterna construção, o
mesmo caminho de sempre, só que enfeitado por novos calafrios e
paranóias fresquinhas. Viria a acontecer algo, era evidente, mas
ignoraram, tornaram-se um trio de céticos justo naquela hora.

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- Está próximo! – gritou Dalua. – Arrependam-se de suas injustiças!
Se sentiram levemente aliviados, pois alguém finalmente resolvera
aparecer. Dalua era o doido oficial de Rio dos Diamantes, pois toda
cidade pequena possui um deles. Normalmente vagava pelas madrugadas
gritando sobre as faltas cometidas pelos cristãos locais e passava tardes
procurando portais por aí. Não bebia. Não se drogava. Não fazia mal a
ninguém. Só era um doente que a população preferia ridicularizar a
diminuir seu sofrimento.
- Onde estão? – berrava. – Onde estão todos?
E passou correndo - as mãos na cabeça puxando os cabelos -, tropeçou
e continuou em disparada.
- Certo. Isso foi estranho.
- Ele é doido. – disse Pedro. – Ainda não se acostumaram?
- Nunca vi ele arrancar um bolo de cabelo – Marcelo cutucou o rastro
com o pé. Era bem farto.
- Relaxem, caramba.
Surgiu então a rua Rosa Martins, conhecida por abrigar as pessoas
mais ricas de toda Rio dos Diamantes. Era curta, findava em uma ladeira.
Já haviam visto aqueles casarões antes, mas nunca – nunca – com
absolutamente todas as luzes apagadas. As paredes, muros e portões
escorriam muito mais do que dinheiro público, naquele dia.
Sentiram fome.
Quando atravessaram a metade, os cachorros passaram a latir. Batiam
os corpos contra os portões em uma sinfonia estranha, pesada, como se
aquele batucar dependesse de suas vidas. Eram músicos, quem diria que
não? Os notas ondulavam, caóticas, repletas de sentimentos.
Aí, uma sombra viva serpenteou em frente aos três.
- Mas que merd...
Pedro foi lançado dois passos para trás. Marcelo e César se viraram.
Queixos caíram quando viram a criatura.
- CORRE! – foi tudo o que conseguiram falar.
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Era um lobo enorme, encarava os três com olhos verdes magníficos,
brilhantes como neon. Dentes afiados saiam para fora da boca, onde
também estava uma língua longa e ferida. Metade do corpo era composto
por sombras negras e esverdeadas, enquanto a outra metade se fazia em
carne antiga. Olhou para um lado e para o outro. Rugiu. Os cachorros se
calaram.
- O que foi isso? O que foi isso? O que foi... – repetia César.
Desceram a ladeira aos tropeços, Marcelo perdeu um chinelo no
processo. Estavam para finalmente fugir, então, ao mesmo tempo, por
desgraça ou coincidência, todos olharam para trás.
Lá de cima, posto de rei, a criatura observava a fuga.
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Rodolfo ministrava biologia em uma das escolas estaduais da cidade.
Apesar da alcunha de ‘’velho trouxa’’ e dos fartos cabelos brancos, não
era um homem de tanta idade.
- Ignore, Márcia. Você sabe como eles são – pôs-se próximo à cortina.
– Sim... Sim... Claro, mas não é uma regra. Aceite as suas notas, filha.
Um abajur e um notebook iluminavam a sala. Os raios pareciam se
unir, findando em uma garrafa de pescoço longo. A imagem do homem
refletia distorcida.
- Estude mais. Se acertar tudo ninguém poderá dizer coisa alguma.
Seu gato corria atrás de uma bola.
- Então tudo bem. Boa noite, fique com Deus. Até mais.
Largou o celular na mesa e puxou o chá para a boca. Abriu a cortina,
ventava muito lá fora. Zé Ramalho, no aparelho, cantou ‘’Kryptônia’’ em
uma velocidade diferente.
‘’Esse maldito som velho...’’.
O exterior hipnotizava, olhava com um interesse inexplicável, que
diabo de maravilhoso via num poste, naquela luz amarelada, era só sal e
fogo, mais nada. Passos pesados devoraram a Rua Paraná. Os postes

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pareceram perder a soberania, invadidos, pendendo, até que as sombras
se libertaram.
A caneca beijou o chão.
- Meu... Deus...
A criatura veio lentamente, passeou como se morasse na casa ao lado.
‘’Como?’’ – pensava o professor. Isso, essa situação, era justamente
aquela palavra que invocamos quando coisas acima do nosso
entedimento resolvem aparecer: impossível.
Passou em frente à casa, parou, olhou para Rodolfo e seguiu em linha
reta. Seu corpo balançava em lençóis negros, mas não era o vento que
levava. Só conseguiu puxar as cortinas quando as sombras
desapareceram no limite da luz.
Sentou-se no sofá. Desligou a música. Não dormiu.
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Logo ao chegar em casa, Pedro teve a certeza de que no outro dia teria
muito sobre o que conversar. E teve, assim como a cidade toda.
- Algum retardado quebrou o portão da minha casa. – disse uma garota
do segundo ano.
- Mataram as galinhas da minha vó, cara. Quem é que faz isso? – outro
garoto. Comeria galinha no almoço, mais tarde.
Boa parte da cidade comentava sobre as coisas estranhas da noite
anterior. Os que de fato haviam visto a criatura continuavam calados,
tanto por medo, quanto por não terem pregado o olho. O sentimento era
que o assunto não devia ser evocado, parecia algo ruim, desconfortável,
como bradar palavrões dentro de uma igreja.
- Que é isso, cara? A cidade inteira tá falando... – Pedro mordeu o
sanduíche.
- Falando sobre tudo, menos sobre um lobo gigante feito de sombras.
- Ainda estou tentando entender o que aconteceu, relaxe.

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- Espero que seja uma noite pra nunca mais – César quase dormia na
mesa. – Talvez só esteja perdido, sei lá... Se alguém soltasse um leão no
meio da rua daria na mesma situação, entende?
- Bem... A diferença é que sabemos o que é um leão.
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No primeiro dia, a criatura não passou de um boato. ‘’Essa
juventude!’’ - gritavam os mais velhos. Teorias conspiratórias sobre
gangues e drogados já estavam sendo forjadas, pois é a resposta fácil, e a
resposta fácil mais do que agrada: conforta. E que gangue estranha!
Arrancar cabeças de galinhas, furar portões de aço, assustar cãeszinhos
ao ponto de não saírem da casinha durante o dia todo...

- Ae, Dalua! – grunhiu uma criança. A mochila balançando no ombro.


– O mundo acaba hoje?
- Não cara, para. Vai pra sua casa, me deixa em paz.
O grupinho ficou sem reação. Normalmente receberiam um ‘’VÃO
EMBORA, PECADORES! ARREPENDAM-SE!’’, agora era uma resposta
comum. E... Que coisa... Ele estava vestido com roupas limpas, não
fedia, não gritava, caminhava normalmente...
Não disseram nada, estavam chocados. Abaixaram a cabeça e seguiram
para casa.

- Eu tí dígo, Cláudio – o açougueiro limpou as mãos. – Se eu pego


aquele maldíto que roubou mínha vaca, eu mato! E mato mesmo!
Não só a vaca havia desaparecido, como todo um rastro de grama.
- Isso é coisa daqueles drogados – Cláudio, o taxista, respondeu. – Eles
ficam usando essas porcarias aí de maconha, quando vê já tá roubando
vaca!
Concordou.

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Os policiais da cidade se reuniram rapidamente para resolver o
problema da gangue. Decidiram que era necessário reforçar a ronda
noturna, então concordaram em utilizar todos os veículos naquela noite.
Todos os dois carros começaram a rodar às 21:00.
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O dia passou leve e ensolarado. A noite caiu em ventanias.
- Ah, cala a boca!
- Sério! – disse – Eu segui ele, até, mas nunca vi um moleque tão
rápido na vida. Deve ter pulado algum muro e aí eu deixei pra lá.
- Só... – respondeu, ajeitou a arma na cintura – Não tinha como você
saber.
- Eles que rezem para que eu ou você os capturem, porque se o
Teixeira pegar...
- Nem fala, bicho... A monocelha dele quase alçou voo quando ficou
sabendo.
O carro continuou seguindo, os faróis iluminavam os cachorros da rua,
figuras estranhas, medonhas e quietas. Estavam organizados em fila, um
de cada lado, sentados. O policial que não dirigia jogou o braço para fora,
estalou os dedos e assobiou.
- Ei garoto! – ignorou – Ei!
O cão sorriu, um sorriso humano, repleto de nuances. Na cara uns
olhos cheios, quase que pedindo ajuda.
- Essa cidade tá estranha, sei não... – comentou o que dirigia.
Cumprimentou o açougueiro com um simpático aceno. O companheiro
ainda se recuperava do trauma.
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Euclides chegou em casa trinta minutos depois. Ficava ligeiramente
fora da cidade, ao lado de uma estrada de terra e de uma pequena criação
de gado. Bebeu três cervejas, jantou com sua mulher, pegou uma quarta
garrafa e se sentou na varanda, acariciando a espingarda enquanto

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observava os animais. Os minutos passaram ao passo em que bitucas de
cigarro se amontoavam no chão. Cochilou.
Acordou com o próprio ronco, mordendo o ar.
- Merda – mais tossiu do que falou.
Viu que já era madrugada, uma da manhã, e nem sinal dos tais
delinquentes. ‘’Devem estar apanhando agora’’ – pensou, e ficou alegre,
imaginando cacetetes empurrando peles. A verdade é que sentia um frio
aterrador, se dormisse ali ficaria resfriado, então era melhor cair na cama
e guardar a arma. Faria assim, mas aí o curral se abriu sozinho. O rangido
foi dolorido, dramático, mais ainda quando o cãozinho da casa fugiu em
disparada.
- Quem tá aí!? – gritou o açougueiro, tentando ser imponente. Não
houve resposta.
Se a voz não era o bastante, então que a arma fizesse sua função
principal: fortalecer pseudo-machezas. Atirou pro alto e algo saltou no
escuro.
Assistindo do sofá quentinho, é natural pensar que os protagonistas dos
filmes de terror são sujeitos burros. O problema é que, em momentos tão
extremos, existem apenas três reações possíveis: paralisar
completamente, correr da forma mais idiota possível e agredir sem
pensar. Euclides não acreditava em fantasmas, tinha fé mesmo é na
maldade humana (inclusive a própria), então escolheu a terceira opção.
Correu com as pernas abertas, praguejando contra a juventude,
arrumando a arma todo desajeitado.
- VÃO EMBORA, VAGABUND...
Da terceira, nasceu a primeira possibilidade. Primeiro viu uma sombra
enorme correndo pela estrada, depois, quando os olhos voltaram ao
movimento, enxergou quatro vacas organizadas em um quadrado. Os
animais se espalharam mais uma vez, quando as poucas luzes iluminaram
uma novilha. Era bonita, forte, com uma linda mancha em forma de
coração na cabeça... Assim como a vaca velha que roubaram na noite
anterior.
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Teixeira não parou de coçar o revólver desde que entrara na viatura.
Falava, falava como nunca, o novato só ouvia.
- É o que te digo, vagabundo só vira gente na base da pancada. Eu era
um desses deliquentes malditos também, Carlos, eu era. Digo com
propriedade.
- O senhor? – incrédulo – Nunca imaginaria.
- Pois imagine – levantou a mão. – Foi só o meu pai arrancar esse dedo
que me tornei um moleque direito. A vagabundagem estava no dedo,
Carlos. No dedo.
O pobre Carlos conteve a própria reação. Não era nem um pouco
agradável encarar de tão perto aquele indicador travado nos 50% de
carregamento.
- Mas a direita continuou intacta – sorriu, a monocelha foi lá pro alto. -
E o tapa é forte, Carlos, o tapa é forte.
Era mesmo. O soldado lembrava vividamente do dia em que o sargento
tatuou um Hamsá perfeito nas costas de um viciado.
- E vou pegar esses arruaceiros, Carlos, eu vou... Os caras chegam de
outra cidade, Carlos, pelo amor de Deus, só pra isso. Aqui não. Aqui não,
Carlos.
A viatura seguiu, iluminou aquela parte pela terceira ou quarta vez.
Dirigir em cidades pequenas não é complicado, deve-se dizer, apesar do
costume incômodo que as pessoas têm de caminhar no meio da rua.
Dessa forma, os policiais guiaram na tranquilidade usual, mas com
olhares atentos, cheios de anseio por avistar um ou dois malandros. A
vigilância se dissipou quando uma lata de lixo voou no horizonte.
Pisou no acelerador, os faróis pareciam mais firmes e estrábicos.
Freiou em frente à uma rotatoria, veio um cheiro de borracha. Já para
fora, ergueram seus revólveres.
- Mãos pro alto!

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Haviam algumas formas estranhas escondidas no escuro, bem ao lado
da lata. Pareciam homens, mas também pareciam tarântulas e serpentes.
A rua era extremamente mal iluminada, quase uma pintura de criança ou
uma foto de celulares antigos.
- VAMOS! – rugiu – Mãos para o alto e se deite!
Então alguns vultos chicotearam-se pra longe, outros se esticaram em
espinhos. Latas levitaram, placas voaram, era como se por um segundo se
sentissem dentro de um raio, ou debaixo d’agua, ou ambos, ao mesmo
tempo.
- Que... Que merda? – praguejou Carlos, se afastando, quase
transparente.
Teixeira era experiente, então agiu. Mirou no estranho fenômeno,
atirou uma, duas, três balas. Não sentiu um só sinal de recuo, mas ouviu
um grito de sofrimento escapando da escuridão. Uma dor maldita -
entendia-se pelo grito -, uma dor maldita e magnífica.
As luzes se acenderam.
Estava lá. Seus dentes tremiam, o corpo ora físico, ora sombra, se
arrastou repleto de buracos, mas nem assim transmitia fraqueza. Teixeira
foi tomado por uma branquidão tremenda. Carlos, então, quase
desapareceu.
As feridas se fecharam.
- Fuja, Sargento! Vamos! – surgiu o soldado, arrastando o
companheiro.
Direcionaram os olhos para o carro. Uma pedra enorme atravessou o
vidro. Entraram em desespero, óbvio, então puxaram suas armas e
descarregaram na cabeça da criatura.
Esse foi o tempo que tiveram para correr.
- É o demônio, Carlos, é o demônio! – repetiu, olhando para os lados
como um animalzinho desorientado.
Sombras furiosas taparam as luzes, uma expansão sinistra acontecia
ali. Não havia tempo para considerações metafísicas, estratégias,

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lucidez... Só restou o pavor. Vieram as luzes mais uma vez, então os dois
policiais se viraram. Enxergaram todas as lojas da rua destruídas,
praticamente dez portas de aço partidas como papel.
Um rugido precedeu o que tornaria Rio dos Diamantes famosa.
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- Santo... Deus... – Pedro sussurrou para si mesmo, perdido na
multidão.
Acordaram com as sirenes das viaturas da cidade vizinha. Naquele dia
não houve aula, devido à um fato bem específico: a cidade afogara-se no
caos.
Estavam pelo menos quinhentas pessoas ao redor do carro, então
demorou para que Pedro percebesse o estrago. A viatura do Sargento
Teixeira estava dividida ao meio.
- É o demônio de Díamantes! – uma voz gritou no fundo.
- Acalmem-se, deve haver uma explicação. – diziam os policiais.
- O que é isso, cara? – César e Marcelo apareceram.
- Nosso amigo resolveu destruir a cidade.
- Justo quando eu tinha conseguido esquecer. – respondeu.
As conversas eram muitas. Alguns falavam sobre o fim dos tempos,
outros sobre drogas, um grupo rezava em conjunto... O inegável era: um
carro estava partido no meio, assim como várias portas de aço. Carlos e
Euclides contavam sobre a mesma criatura, professor Rodolfo também.
Nessa linha surgiram vários outros relatos, estes que incluiam desde fatos
até diabos alados.
- Se vocês achavam que estava fora de controle...
Aí - sabe-se Deus de onde e como - apareceu um carro da Rede Aurora
de Televisão.
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- Pois é, Cleber! Estamos aqui na cidade de Rio dos Diamantes, onde a
população afirma estar convivendo com um demônio. Isso mesmo, um
dêmonio, o suposto causador da destruição que vocês estão vendo aí nas
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imagens. Podemos perceber aqui... Ó... O carro partido ao meio, as portas
dos estabelecimentos arrasadas... É realmente impressionante.

- Bem... Quando enviei o e-mail para vocês nem imaginava que isso
tudo viria a acontecer. Os senhores policiais quase se feriram ontem.
Estou realmente abalado. – afirmou o professor Rodolfo Carlos.

- Eu o vi! O demônio roubou uma das mínhas vacas e no outro día


devolveu um bezerro. Eu sempre dísse que se tratava do sobrenatural,
sempre! Agora olhe o que aconteceu! Que Deus nos ajude, rapaz,
estamos aterrorízados. – comentou o açougueiro Euclides. O bafo de
álcool moldou feições engraçadas no repórter.

- Oi mãe! Beijo! – pulou um moleque na frente.

- Tivemos acesso às imagens do circuito de segurança de uma das


lojas. As imagens que vocês verão a seguir são chocantes e reais.
Surgiu na tela, então, uma câmera noturna, onde dois policiais
atiravam contra o nada. Depois objetos voaram, o vidro da viatura
explodiu e, pouco depois, o carro simplesmente se abriu no meio.
Certamente, se houvesse tempo, diriam que se tratava de um viral para
um suposto filme que nunca lançam, tranquilizando todos e erguendo
pequenas montanhas de panos quentes. Entretanto, não houve tempo para
artifícios tão funcionais. Aquilo era real, e transmitido para todo o Brasil.
- Sim, sou eu nas imagens... Não... Não quero falar sobre isso... Ainda
estou preocupado com o meu companheiro, o sargento Teixeira.
- Ele ainda não apareceu?
- Nã....
- Não é um demônio! – surgiu uma voz no meio da multidão. A
monocelha apontou. – Muito pelo contrário, senhores... É UM
MILAGRE! - e os cinco dedos completos envolveram o microfone.
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- Como podem ver, o sargento Teixeira não possuía um dos dedos. –
fotos saltaram na tela. Um close. – Agora estão aí, os cinco! É realmente
impressionante o que está acontecendo aqui. Estaremos preparados para
uma grande reportagem exclusiva esta noite, onde Julinho dos Pecados, o
famoso sensitivo das estrelas, buscará o Demônio pelas ruas de Rio dos
Diamantes. E... Seria mesmo um demônio?

- Eu sempre dísse! É um envíado dos céus! Mílagreiro!

- Lúcio Martins para o Tv Desgraça.


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A cidade se dividiu, alguns apoiavam o que dizia o sargento Teixeira,
outros – a grande maioria - queriam a morte do Demônio de Diamantes.
O Brasil se tornou uma extensão, o assunto se espalhou facilmente
quando a imagem da viatura dispersou-se por todos os lugares.
Julinho dos Pecados era um homem estranho, vestia um conjunto de
camisa e calça boca de sino. Ostentava um cabelo longo, liso e loiro.
Com um braço em forma de cisne, mantinha-se como um mestre de
karatê se preparando para capturar uma mosca.
Era noite, a equipe se organizou onde a população não os alcançaria.
- Onde está o meu café? – a voz fina de Julinho se espalhou pelas
tendas. Um jovem surgiu e entregou.
- Diabo! – gritou, o moço encolheu – Vocês não servem pra nada, né?
Nem pra trazer a droga de um café direit...
- E aqui está Julinho dos Pecados, se concentrando para a caçada de
mais tarde. O clima é tenso, a escuridão pesa, mas não há diabo que o
assuste.
Julinho largou o esporro e levou uma mão à cabeça, erguendo a outra
em linha reta para o alto. O estagiário correu para longe das câmeras.

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- Este é o licor da lucidez. – disse o sensitivo – Trouxe direto da
Indonésia. Aquele que o consome verá tudo o que está escondido pelos
véus da realidade.
‘’Oooh!’’ – reagiram os outros, já imaginavam a edição.

- Rio dos Diamantes, noite de outono, um demônio surge – o


microfone nas mãos, a equipe acompanhando o passo. – Sinto medo, pois
seus poderes já foram comprovados, levo a certeza de que os bons
espíritos intercederão por mim – disse algo em uma língua inventada. –
Telespectadores da Rede Aurora, esta é a praça onde o ataque aconteceu.
O sensitivo ia à frente de dez pessoas. Câmeras, maquiador, diretor,
som e luz. Gesticulava da forma mais estranha e forçada possível.
- Veja o que está se construindo, Pedro. – disse Marcelo, de longe.
- Com certeza, e não quero estar aqui quando acontecer. – partiram
para suas casas.
Àquela altura, o professor Rodolfo sentia um arrependimento absurdo.
Nunca teria enviado o e-mail, se pudesse. Fez como todos os outros:
entrou em casa, fechou todas as portas e tentou dormir.
Dalua passou por ali, agarrou algumas latinhas e as jogou em um saco.
Balançou a cabeça em negação.

- É meia noite, o momento em que a nossa realidade se torna frágil. A


criatura está à espreita, sabe que a caçada está acontecendo. Eu a sinto,
vejo cipós espirituais apontando para a destruição. Não há ninguém aqui,
a solidã... Esperem... VEJAM!
Um homem da produção passou correndo, vestido de verde dos pés à
cabeça. Correram atrás como se vivessem em um desenho animado
oitentista.
Não haviam policiais, não haviam seguranças. Nenhum dos forasteiros
acreditava em assombrações ou paranormalidade, especialmente Julinho
dos Pecados. Estiveram em cidades o bastante para ter essa certeza.

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- Viram!? Temos em câmera, exclusivo para o TV Desgraça, a criatura
passou bem ali! – a ‘’criatura’’, horas depois, se afundaria em uma
garrafa de whisky.
Ficaram nessa brincadeira por mais algum tempo, e realmente não
existiriam problemas se continuassem assim. Produziriam uma
reportagem idiota, o apresentador ligaria uma criatura sobrenatural à
corrupção do país de alguma forma e partiriam para o próximo saci na
garrafa ou casa assombrada. Pena que, justo nesse dia, decidiram gravar
um pouco mais.
- Cara, isso tá ficando massa... – comentou o Julinho. – Vamos fazer
mais.
- Qu... Que isso, Julinho... Tá todo mundo cansado, tem certeza disso?
- Pareceu um pedido pra você? Rala peito! Café, rápido! – e o pobre
quase soltou fumaça pelos calcanhares.
Se dirigiram, então, para uma série de ruas. Praticamente rodearam a
cidade toda, mas Julinho não se sentia completo. O que faltava? Café?
Tinha tomado. Bebida? Não sentia vontade. Cocaína? Talvez, mas o
nariz sangrava tanto que não sabia se queria mais.
- São duas da manhã, senhores. – disse para a câmera. Um chinelo
perdido se escondia no mato.
- Ei, Julinho, seu nariz. – apontou o câmera.
As duas narizas liberaram um sangue grosso, estranho, repleto de
pontinhos brancos. Se viu por um espelhinho triangular e ergueu os
dedos com um guardanapo. O papel voltou mais branco do que a própria
droga.
- Que?! – reagiu, pois o sangue continuava no reflexo. Passou mais
uma vez. Nada.
A sombra cresceu atrás de seu corpo. Primeiro enxergou os olhares
mortos de sua equipe, os microfones caindo, os gritos de histeria sendo
forjados na garganta. Aí, então, o desespero se estabeleceu. O monstro
rugiu, parecia mais magro do que antes, carregava buracos visíveis na

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pele. Rugiu na cara do estagiário, o pobre tornou-se areia
instantaneamente.
- VAMOS! PORRA! VAMOS! – gritou o motorista, tirou sabe Deus
de onde a coragem.
Correram todos para a van, loucos, animais, caindo enquanto fechavam
a porta. Julinho derrubou mulheres, homens, vultos, flashes, até que
sentou-se na carona. Duas vans lotadas cantaram pneu. A criatura
perseguiu, fez-se areia todos os equipamentos esquecidos no chão.
- Mas que merda, mas que merda... – repetia o sensitivo, quase fazendo
a calça de banheiro.
Certo, vamos aos fatos: duas vans, repletas de desespero, fugiam de
uma criatura. O motorista estava no automático, o dito sensitivo se
borrando e a equipe sentia-se em uma espécie de sonho. Não haviam
policiais, nem qualquer meio de proteção, exceto uma calibre 12 que
passaram a carregar após o terceiro roubo que sofreram. Julinho agarrou
a arma, claro.
- O QUE FAZEMOS? – um grito ecoou lá no fundo.
O ser era rápido o bastante para acabar com tudo em um segundo, mas
não o fazia, era como um gato brincando com pássaros mortos.
Caminhou pelos muros, saltou pelas casas, atravessou postes, seguiu
perseguindo.
- Eu posso atirar nele – disse o motorista. – Me dê.
- E parar o carro? Você é louco? – gritou o Julinho.
- ME DÊ! – rugiu.
Uma briga começou. Julinho, possuído por um coração a mil, achou
uma boa ideia dar um soco em um motorista de dois metros de altura.
Recebeu um murro belíssimo no nariz, o que fez sangue de verdade
descer para a boca.
- Filho da puta! – praguejou o grande.
Agarrou a 12 e parou o carro. Viu a outra van se fazer em grãos
quando a criatura a atravessou.

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- VÁ EMBORA! – atirou contra o céu.
Para sua surpresa, o monstro parou.

Dalua não conseguia dormir de jeito nenhum, então resolveu fazer o


que sempre fazia: caminhar. Em certa hora ouviu o som de pneus, de
freios, de tiro. Foi atrás sem ter tanta certeza se controlava o próprio
corpo, mas isso era todo dia, há pouco tempo, então não julgou como
algo estranho. Não demorou muito para dar de cara com o monstro, que
estava de costas, encarando o atirador. Paralisou.
- Pai nosso que estais no céu... – rezou, puxando um terço do bolso.
Percebeu que não era tudo. Havia mais. Muito mais. O monstro não
tinha medo de uma arma, do homem... Tinha medo dos homens.
O motorista sentiu as luzes dos faróis em suas costas. Virou-se. Viu
imediatamente um cadillac preto com as portas se abrindo, essa foi a
última coisa que enxergou antes da sua cabeça estourar.
- Isso vai nos dar um trabalho... – comentou um dos dois homens. O
cheiro de pólvora cresceu.
A criatura caminhou para trás e desapareceu em luzes verde-escuras
quando um livro foi aberto. Partiu, assim como a outra van, mas para
lugares diferentes. O bloqueio da visão se foi, assim, os dois senhores
viram Dalua rezando no fim da rua.
- Droga. – disse o do livro.
As últimas ventanias balançaram o terço em suas mãos.

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25
O Velho

O lá, como vocês estão? Eu não ando muito bem. As dores no corpo
me incomodam cada vez mais e essas malditas pontadas na cabeça
apontam a minha preocupação sempre que podem. Apesar de todos esses
inconvenientes, não deixo de fazer o que quero, inclusive - veja só você -
, não parei de trabalhar um único dia. Para dizer a verdade: eu não
consigo. O prazer de exercer o que faço me motiva a levantar todas as
manhãs.
Trabalho nesse ramo há trinta anos, e não escondo que já recebi
propostas de trabalho ‘’melhores’’. Recusei de imediato, claro, seria um
louco se aceitasse. Talvez você esteja se perguntando o que diabos faço -
ou até não esteja, o que é mais provável - mas, se te alegra, eu não sou
um médico, deputado, ou qualquer uma dessas coisas de bom nome por
aí. Sou só um coveiro. Pois é. E amo o meu trabalho. É evidente que não
é o melhor salário do mundo, mas tudo o que há aqui carrega um ar
indiscutivelmente arrasador, desde o grande mausoléu do barão até a cruz
do pedreiro que faleceu construindo o mesmo mausoléu.
Peço a permissão dos senhores para um clichê horrível, praticamente
extraído daqueles livros de supermercado, mas, dada a permissão, digo:
esse lugar, mesmo com a morte exalando por todos os lados, me faz
sentir mais vivo.
Em todos os anos de trabalho, nunca vi nada dessas coisas que as
crianças inventam para assustar os amiguinhos. Na verdade, pensando
bem... Uma dessas histórias realmente aconteceu. Era sobre o homem de
branco e a mulher de vermelho. Assustador, não? Eu até achei estranho
quando, de longe, vi os benditos caminhando para o túmulo da senhora
Dulce, mas quando os interrompi e perguntei quem eram, descobri que a
tal mulher de vermelho (que de tão feia mais parecia o dragão vermelho)
era só uma prostituta, e o dito homem de branco não passava de um
cliente de carteirinha, que, do alto da sua estranheza, gostava de levar a
Tiamat ao cemitério onde trabalho. É engraçado lembrar dessa história, e
mais ainda quando me dou conta de que eles nunca mais voltaram aqui.
Devem estar criando lendas nos matos por aí, presumo.
Apesar de todas essas histórias falsas, há um episódio que aconteceu há
algum tempo que eu adoraria compartilhar com vocês. Era uma manhã
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fria de terça-feira, a névoa tomava as lápides e fazia os cachorros
esqueléticos tremerem fora da grade. Se encolhiam e olhavam
desconfiados. Os gatos, lá das suas árvores, se recusavam a sentir frio. Os
mais sinistros pareciam sorrir para o céu nublado, para mim, para o
mundo que era nosso, mas era deles. Era estranho, visto que nunca gostei
dos bichanos e eles tampouco de mim, mas não liguei.
Continuei encostado em uma parede podre, observando o pouco
movimento dali. Aos poucos, as velhinhas viúvas iam embora para as
suas casas. Algumas choravam, outras sorriam... Eu achava tudo aquilo
estranhamente lindo. Conforme a névoa seguia se movimentando,
percebi um homem parado, olhando para uma lápide. Era um daqueles
velhos que colocavam a calça na altura do umbigo e jogava damas à
tarde. Seus cabelos brancos balançavam no vento frio e, de costas para
mim, colocava um chapéu e desaparecia onde a névoa era mais forte. Eu
não havia reparado, mas aquele homem já vinha há vários dias seguidos,
sempre com o mesmo ritual e desaparecendo logo depois. Digo, nem
mesmo a mais velhinha das velhinhas ou a mais viúva das viúvas já teve
uma freqüência tão grande na história desse cemitério, ou um ritual tão
assustador. Ele havia superado até a dona que derramava gotas do seu
sangue no túmulo do marido! É... Pensando bem... Isso era mais
assustador. Aquela velha olhava torto para mim sempre que podia, ou me
xingava sem nenhum motivo aparente. Mesmo os pingos de sangue não
tiravam o mérito do velho. Foi assim por longos dias, eu na minha parede
podre vendo as senhorinhas irem embora e o velho continuando lá, até
botar o chapéu e desaparecer na névoa. Eu ficava cada vez mais curioso,
realmente tentado a ir ver o que o homem fazia ou descobrir quem ele
era, mas não ia, claro, é preciso respeitar o espaço, a paz e a
tranquilidade, não é mesmo? Bem... Eu acreditava nisso... Mas os gatos
nas árvores mais pareciam achar que, na verdade, o que eu tinha era
medo. Droga... Os cuspidores de pelo estavam me desafiando!
Em uma manhã de terça exatamente igual a que reparei o velho pela
primeira vez, faziam exatos quinze dias que o homem não falhava sequer
um. Era o dia perfeito. Ele já estava lá, e eu na minha parede podre. Era a
hora de provar que eu tinha tudo, qualquer coisa, mas medo não. Os
bigodudos já se amontoavam para assistir, como se aquilo fosse um
grande show. Malditos! Estavam apostando se eu iria ou não! Mas estava
decidido, ia mostrar para eles.

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Poucos passos me separavam. Estalei os dedos, larguei o apoio da
parede e limpei a sujeira que ficou. Olhei fixamente para o velho e,
tomado por um calafrio que viajava o corpo como um choque elétrico,
comecei a caminhar em sua direção. A cada passo, a terra vermelha
sujava mais os meus sapatos e a névoa desaparecia do olhar. Pisquei
forte, tirei coragem da curiosidade, meus braços, mãos e dedos tremiam
de frio. A ansiedade martelava, foi quando percebi que já estava bem
atrás do velho. Respirei fundo e, lentamente, fui levantando a mão para
tocar o seu ombro. Tentei encostar, e foi aí que aconteceu, a minha mão
atravessou o homem, e, por Deus, ele não sentiu nada! Arregalei os olhos
como nunca antes, e o senhor se pôs a caminhar. Quando saiu da minha
frente, finalmente pude ver o que estava na lápide que o seu corpo
escondia. O nome: não importa. A frase: ‘’Trabalhou e dedicou a sua
vida como coveiro por 30 anos’’. Caí de joelhos, com as mãos na cabeça,
e, atônito, olhei para o céu. O fantasma, meus amigos, era eu, e eu nunca
havia me sentido tão vivo em toda a minha existência.

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29
Quando os santos marcham
1

E stava encostada em um poste da Rua Curitiba. O cigarro pendia

nos lábios enquanto um jornal boiava numa poça de água suja.


‘’O carnaval Belo-horizontino anda a todo vapor. A expectativa é que
mais de duas milhões de pessoas transitem pela cidade durante o
período carnavalesco. A cidade contará com mais de duzentos blocos,
além de palcos oficiais, oficinas e brincadeiras. A cidade se consolidou
como...’’
Era sexta-feira, Beatriz não ligava muito para o carnaval em si, mas
adorava a chuva de trabalhos que recebia nos dias posteriores.
Comparava a traição ao cigarro, à cachaça e à procrastinação, os vícios
mais comuns que existem. Haviam outros também, claro, que certamente
estavam mais para auto-destruição do que para um víciozinho. Crack,
heroína, cocaína, ressentimento... Ao longo da história o ser humano teve
muito tempo para pesquisar meios de se matar. Tocava ‘’Disfarça e
Chora’’ no boteco ao lado, podia ser tanto o Djavan, quanto o Cartola,
mas estava pensativa demais para descobrir.
Chacal havia recebido um caso, um dos especiais, como diziam, e fazia
tempo demais que não se divertiam em um desses. O último, um caso de
latrocínio com uma chave de rosca, havia acontecido há quase um ano.
Viu o cabeludo saltando de dentro do Mercado Central, trazia uma
maleta azul e um copo de café.
- E aí, o que temos? – se abraçaram ao mesmo tempo em que
começaram a caminhar, como se fosse um ato só.
- Assassinato! – quase comemorou.
- E você está animado? Jesus...
- Não, não é isso... É só... Finalmente um caso que não envolva
casamentos arruinados.

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- Eu sei, só tô te enchendo – sorriam. - Onde é?
- Vem.
Atravessaram uma série de caminhos: corredores de moradores de rua,
esquinas de bêbados, becos de advogados, ruas de anúncios de dentistas e
chips de celulares. Assim era caminhar em Belo Horizonte no século
XXI, o momento em que a informação surgia em disparos de armas-
laser. Chegaram em cerca de seis pedidos de esmola.
- Bem... – Beatriz encarava com certa desconfiança - Tem certeza?
A porta do prédio se abriu em um estouro, repentinamente, empurrada
por uma mulher que vestia apenas roupas íntimas. Gritava, os olhos
esbugalhados, os pés tropeçando, dedos repletos de um medo que em
nada correspondia à graciosidade usual.
- Olha... Acho que tenho.
Um senhor gordo veio logo atrás, obviamente não conseguia impedir o
surto de desespero. Estava completamente maluco.
- Oh, meu Deus do céu... Finalmente. Entrem... Entrem... – o olho
esquerdo tremendo involuntariamente.
Logo de cara, o dono fez o que deveria ter feito antes: passou a chave
na porta e encaixou mais trancas do que podia contar.
- O que está acontecendo? – perguntou Beatriz.
A visão era desesperadora, uma pintura trágica. Estavam quinze
mulheres amontoadas em um canto do saguão, algumas choravam, outras
tentavam acalmar as companheiras e a si mesmas. Em especial, três delas
se encolhiam com lingeries manchadas de sangue, essas eram as que
viram coisas não muito agradáveis.
- Um cara entrou no quarto, Chacal, e depois... Meu Deus do céu... – o
pano limpando o suor.
- Se acalme, vamos subir. – Beatriz já sentia.
Era óbvio que se tratava de algo a mais. A vida daquelas mulheres já
era triste o bastante, e, mesmo longe de casos de assassinatos, não era
difícil perceber a melancolia no olhar. Agora, apesar disso, não
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transmitiam apenas ondas de tristeza. Havia um sentimento diferente por
ali, um medo raro, estranho, fresco, um trauma recém construído.
Subiram as escadas e caíram em um corredor longo, com diversas
portas pelos lados e um cheiro horrível de eucalipto. O chão estampava
um rastro de sangue que era qualquer coisa, menos uma linha reta.
Beatriz pisou em uma mancha estranha que lembrava um rosto humano.
- Esse cara... – dizia o dono do bordel – Ele entrou com três meninas...
Tipo, sei lá, não é comum mas também não quer dizer que alguém é um
psicopata, certo? A gente ouviu uns barulhos muito estranhos, aí fui
obrigado a bater na porta. Ninguém atendeu, daí arrombei a fechadura
sem nem pensar.
Empurrou a porta quebrada, a última do corredor. A cena surgiu.
- Oh céus... Só tire isso logo daí antes que alguma delas enlouqueça e
chame a polícia – jogou-se em um canto, de forma que não enxergasse o
interior. Beatriz e Chacal entraram.
Era um quarto pentagonal, com uma cama no centro, um frigobar no
fundo e um pequeno banheiro na direita. Na cama, uma mulher estava
estirada com um buraco na cabeça, a boca tão aberta quanto os olhos.
Atrás, outra balançava equilibrada na gélida porta aberta, indo para lá e
para cá, rangendo, enquanto cortinas abertas mostravam um horizonte
perdido no meio da selva.
- É... Bem... Nossa. – disse o Chacal.
Outra prostituta boiava com um pulmão arrancado, encostava
levemente na porcelana da banheira. Manchas de sangue criavam
paisagens extensas pelo quarto, tanto no chão quanto em uma das
paredes. Eram montanhas, árvores, rios, coisas que alguém como Tolkien
certamente poderia descrever por cinco páginas inteiras.
- Por que sempre tem que ter um louco?
Beatriz caminhou pelo quarto torcendo o nariz, sentia um cheiro forte
de tempero queimado. Encarou os olhos mortos da primeira, o balançar

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da segunda e o banho da terceira. O sangue era estranho, pastoso, corria e
parecia não correr, desenhos bagunçados, aterrorizantes, entrelaçados.
- Oh. – disse Beatriz, e veio.
2
Agora se via no meio de uma estrada, uma reta imensa e esburacada.
Caminhões carregavam troncos gigantes de eucalipto, pedras voavam, e
lá Beatriz gritava, como gritava, um canto desesperado em coro com os
motores. Era atropelada, voltava, e não sentia dores. Só medo, euforia,
queria que aquele céu obscuro, os círculos e as lágrimas parassem, mas
não pararam com facilidade, eram caminhões demais, barulhos demais,
um gás interminável que queimava ao passo em que afogava. Quis se
matar. Acordou.
- A polícia, Beatriz! Acorde! – Chacal balançava seu corpo, a porta
explodindo em berros.
- Saiam! – um cacetete lambeu a madeira.
- Oh... Merda... – os olhos fracos.
Viu Chacal se virando e batendo as mãos no chão. Quando as luzes
tremeram, os corpos mortos se tornaram pétalas roxas. A banheira, o
frigobar e a cama, agora, mais pareciam um pedido de casamento do que
uma cena de assassinato. O cabeludo caiu de cabeça, os músculos de
Beatriz acordaram, correu enquanto ouvia a porta se quebrando.
- Cien. – abriu a mão em direção dos policiais.
O tempo parou exatamente quando o chute acertou a porta. O guarda
estava ao lado de mais três, um segurava o dono do bordel e o outro
protegia a moça que fugiu. Fragmentos de madeira começaram a voar
vagarosamente, mas Beatriz e Chacal ainda se moviam como bem
queriam.
- Vamos! – bradou ela – Você tem que fazer!
Sua pele avermelhou, não conseguiria aguentar por mais tempo,
Chacal despertou justo quando a porta começara a se mover mais rápido.
Em um flash, os dois apareceram no meio Praça Sete. Nenhum dos

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transeuntes pareceu reparar que duas pessoas surgiram do nada, já que
um fusca estampado com os ursinhos carinhosos resolvera passar justo
naquele momento, roubando toda a atenção para si. Que coincidência,
não concordam?
3
- Que diabo aconteceu? – disse o Chacal, caminhando rápido junto à
parceira.
- Eu não sei... Eu não sei, caramba! – atravessaram o sinal. O cheiro de
pizza no ar – Quando cheguei perto do corpo caí numa espécie de transe,
uma lembrança que não vivi, sei lá... Só... Digo... Que merda... Vamos
falar disso depois.
Lançou o silêncio do concordar.
Caminharam até atingir o prédio. Era uma construção velha, pouco
reformada, do tipo que suga fortunas sob o nome de ‘’condomínio’’. O
elevador estava quebrado há cerca de uma inauguração, a reta do
corredor guardava três portas e o cheiro mais maldito de eucalipto que o
mundo já conheceu.
Quando atravessaram a porta, o mal ficou para trás.
4
Chacal e Beatriz nasceram da mesma forma: surgindo. A primeira
lembrança de suas vidas era um cheiro leve de pão de queijo no ar.
Vestiam roupas que sonhavam em ser sacos de batata, mexiam os dedos
dos pés, das mãos, piscavam os olhos com força. Sabiam conversar, mas
nem faziam ideia do que seria a tal da língua portuguesa. ‘’Quem são
ocês?’’ ‘’Quantos anos cês tem?’’ – foi o que disse a velhinha – e a única
palavra que saltou da boca, naquele dia, se repetiu no apartamento:
- Fome.

- Pegue aí.
O pacote de bolachas recheadas caiu na mesa, Chacal tirou a primeira
(precaução contra baratas, ugh!), jogou no lixo e comeu o resto.

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- Ok, é óbvio que não é algo humano. – começou Beatriz.
- Não adianta ficar tentando descobrir, pode ser o... Sei lá, o fantasma
do Hitler dançando lambada, e ainda assim não vamos saber o que fazer.
Pode ser um eco.
- Pode não ser. Certo que houve violência, mais de uma pessoa morreu,
mas um eco nunca me jogou em um transe.
- Não é problema nosso. Já foi. É só pegar o dinheiro amanhã e tudo
está lindo.
- Caralho... – caiu em uma cadeira – Não sente nem um pouquinho de
remorso as vezes? Digo, as famílias encontrarão os corpos, mas nunca
saberão o que aconteceu e quem foi o assassino. São histórias inteiras.
- Nosso trabalho é livrar a bunda dos joãozinhos e mariazinhas
submundanos, investigar é pra lá – apontou para a direção que findava
em um posto policial.
- Hum – resmugou. Foi fria em todas as vezes que descobriu traições, e
nos outros assassinatos também, então se sentiu um pouco hipócrita.
- É o que eles dizem, Beatriz, não há rosas sem espinhos.
- Ou romantismo barato – retrucou, na ponta da língua.
Preferiram deixar para lá, já que, apesar de extraordinária, não era uma
situação inédita. Em contrapartida, esse decreto permaneceu apenas nas
palavras, já que o grito ilusório ainda viajava pela garganta da mulher.
Chacal dormiu onde se deitou, como de costume.
5
O dia raiou em carnaval. É engraçado como dias específicos parecem
guardar ares próprios. O domingo de páscoa, o natal, a própria festa da
carne... E aquele sábado não fugiu ao costume, era a mais pura brisa de
liberdade. Beatriz acordou em um salto, sonhou com pássaros e telas de
televisão. Chacal caiu do sofá, sonhou com cigarros à cinquenta
centavos.
Dormiram muito mais do que imaginavam, e acordaram ao mesmo
tempo. Era meio dia, a fome doía.

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- Vamos procurar alguma coisa pra comer – convocou o Chacal.
Entraram nas escadarias, o cabeludo trocava a maleta azul de mãos
como se fosse uma batata quente.
- Pensei que estava tranquilo – disse Beatriz.
- E estou, mas ainda assim é algo sobrenatural. Até que os dias passem,
isso aqui dorme comigo! – deu dois tapas no azulado.
Pisaram do lado de fora, a festa brilhou os olhos. Agora as ruas eram
mais sujas, a poluição sonora era maior e o tráfego beijava a insanidade,
mas nem de longe o sábado carnavalesco soava como preocupação. As
pessoas fantasiadas pulavam, bebiam bebida barata, fumavam os mais
variados – e suspeitos – cigarros, além de entrarem e saírem de carros em
ritmo industrial. O shopping estava lotado, óbvio, mas também era um
lotado legal. Esbarraram no Gato de Chapéu, indicaram um caminho para
um Saci e uma Curupira, almoçaram bem ao lado de uma trupe de
piratas.
‘’- VOSSÉ-SELÊNÇA!’’ – a televisão gritou, o canal foi substituido por
outro noticiário. – ‘’A Savassi receberá cerca de cinquenta blocos, as
atividades já estão acontecendo e permanecerão até...’’
A voz da apresentadora parecia estranha, não era igual àquela do dia
anterior. Falava como se engasgada, quase doente, seus olhos pulsavam.
‘’Vamos então à previsão do tempo. E aí, Jonas, o clima agradará os
foliões?’’
Havia um relógio no pulso do moço, o tal Jonas. Enquanto apontava o
Sudeste no mapa, o Nordeste parecia borbulhar para fora, agarrando,
derretendo. O Norte se separava, o sul era uma espiral. Que estranhos
aqueles olhos, a forma como batiam, corações vivos com pupilas.
Uma mesa voou por cima da cabeça de uma funcionária, andou quieta,
não viu nada. Um flash. O móvel voltara ao lugar.
- Chacal... – olhos desenharam veias.
As luzes fluorescentes chegaram em raios lisos, assim como os neons
abrilhantaram as cadeiras ao curvar e perfurar superfícies. Os olhos de

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Chacal - e que medo davam - os olhos de Beatriz - e que Beatriz era
aquela? - Toc. – sonhava o relógio. Mas o tempo não era o mesmo. Os
sentidos não eram, nunca foram, não queriam ser. Ferveu-se o desespero,
algo tentava fugir da garganta e das tripas. Tudo era uma dolorosa
câmera lenta.
Quando tudo voltou ao normal, estavam no meio da Savassi. Os blocos
cantavam, as fantasias rugiam, o cheiro de cigarros envolvia a
celebração. Estavam onde deviam estar.
6
- Foi você? – perguntou Beatriz. Os foliões próximos foram distraídos
por um grupo de oito pessoas: dois fantasiados de aparadores, seis como
livros.
- N... Não.. – Chacal gaguejava.
‘’W/Brasil’’ tocava alto, e era uma música estranha, mas não passava
nem perto da estranheza daquela situação. Estavam com medo, pois era
evidente: algo espreitava entre braços nus e dedos queimados.
- Eu sinto... – gaguejou o Chacal.
- Eu também.
- O que faço? Levo a gente pra onde?
- Pra qualquer lugar, temos que pensar em algo.
Chacal levou a mão à irmã e fez como sempre fazia. Imaginou um
lugar, sentiu as pessoas, fechou os olhos e abriu.
- Merda – estavam no mesmo lugar.
Beatriz era corajosa, mas agora tremia, um frio maldito nadou pelo
corpo quando se lembrou do bordel. Normalmente sentiam presenças,
bisbilhoteiros, essa gente que jura estar escondida. Nos raros casos que
envolviam o sobrenatural, entretanto, só sentiam um tremor, como foi
quando viram as três moças mortas. Em nenhum desses casos os mortos
haviam puxado seus pés ou qualquer tipo de ataque direto, eram só
pobres diabos perdidos, completamente indiferentes à ameaça daquele
momento.

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O tempo se fez lento.
As marchinhas se tornaram guturais baixinhos, quase de ninar, se é que
isso é possível. Rapazes musculosos balançavam seus vestidos de
bailarina, um palhaço, um zorro, um rei e um homem dentro de uma
moldura protagonizavam um encontro improvável. Dois moços se
beijavam em um canto, duas moças em outro, três pessoas pareciam fazer
o mesmo, juntos, enquanto, ao mesmo tempo, uma figura mantinha-se
animada, suando, sozinho, cantando o que vinha para cantar. E a bebida
subia! E os guarda-chuvas giravam! E Beatriz não estava vermelha.
- Céus... – disse o cabeludo.
- Vocês...
- Precisam...
- Voltar...
Sentiram como se milhares de facas atravessassem seus pulmões.
Voltar para onde? Que voz era aquela? Que... Que diabos estava
acontecendo?
As pessoas saíram do caminho, joelhos encontraram o chão. Seguiram
os olhares e finalmente viram. Boquiabertos, fitaram dois vultos: um
fumava, o outro sorria entre longos cabelos. Que medo os irmãos
sentiram, senhores, quando viram uma Beatriz e um Chacal caminhando
em sua direção.

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A grama do vizinho é sempre mais vermelha
1

L úcio Gonçalves era um cara daqueles. Barrigudo, trabalhador,

churrasqueiro de hobbie e mecânico de profissão. Era conhecido por


muitas coisas (como a habilidade de beber uma cerveja em cinco
segundos), mas, antes de todas as famas, carregava consigo a mais
gritante: de curioso. Era um bisbilhoteiro de primeira, beirava à doença, e
não parou mesmo quando recebeu a paulada que entortara seu olho
esquerdo.
Os Moreira moravam ao lado desde que Lúcio e a família compraram a
casa. Eram íntegros, alegres, e não se importavam com a bateria de
Bruno, o mais novo dos Gonçalves. O que mais poderiam pedir? Fato é
que mudaram-se depois de sete anos, quando um emprego irrecusável
surgiu. Lúcio estava triste, pois eram bons amigos, e a pele esfriava só de
pensar em como e quem seriam os novos moradores. A casa era grande,
deduziram, então viria uma família. Erraram.
Naquela tarde de sábado, semanas depois dos Moreira se mudarem, a
figura saiu de seu Chevette Tubarão.
2
Era um homem pequeno, meio corcunda, carregava feições inexatas.
Não parecia bravo, nem triste e nem feliz. Para Lúcio, especialmente,
aparentava mesmo era que o senhor não apreciava a própria mudança.
Não voltou ao carro, não carregou nada. Bateu a porta e ficou por lá.

- Então está aí o novo vizinho. – Marília sentou-se no sofá. A janela


mostrava uma rua quieta.
- Veja – esticou o braço, estava arrepiado. – Que sujeito estranho.
- Que feio, Lúcio!

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- Perdão, perdão... – deitou-se, sorrindo. O gato siamês da família,
Almofada, atacou o ar com toda a violência que sua fofura permitia.
- Deve ser um cara legal, trate de fazer amizade – agarrou o bichano e
levou pro alto. – Vou arrumar algumas coisas do escritório, volto já.
Marília era uma advogada reconhecida, casca dura, famosa por provar
a inocência de um rapaz em um caso de repercussão nacional. Trabalhava
mais horas do que o dia possuia, e, quando descansava, também estava
trabalhando.
Bruno e Maria eram filhos dos dois. Maria estava na capital, primeiro
lugar em alguma engenharia, orgulho construído por cima de 12 horas de
estudo diárias, alguns ataques de ansiedade e batalhas semanais entre
dores de cabeça e gotas de dipirona. Bruno estava na oitava série,
espinhas no auge, tocava bateria desde a quinta.
3
Uma versão bem realizada de Another Brick in the Wall saía do andar
de cima. O uniforme da escola balançava nos braços magros quase que
como os pratos.
- Pan, pan pan! – cantarolou o barrigudo, lá em baixo. Era do samba,
mas arriscava outras coisas quando o dia deixava.
Ninguém sabia exatamente o por quê, mas o som da bateria chegava à
casa ao lado com a potência que atingia o primeiro andar. Bruno era
bom, sabiam disso, mas o que tinha de barulhento no instrumento
compensava em timidez fora dele. Era um menino calado, mas gentil e
sereno.
- Pra lá, Almofada. Agora não.
- Mi-au. – respondeu o bichano, praticamente argumentando, e correu
como um doido para o corredor.
- Você nem acredita – desafiou Marília.
- Pois diga – Lúcio enfiou um palito em um dos pedaços de carne que
fritava.

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- Estava saindo do escritório e uma moça me parou, perguntando
coisas sobre o caso Pedro e tudo mais. Pediu até autógrafo. Estuda direito
lá no centro.
- Rá! Famosona!
Marília sorriu, gostava da sensação de reconhecimento e de saber que o
seu nome percorria corredores de faculdades. Talvez fosse o momento de
retomar aquele livro, afinal.
- Veja.
Lúcio apontou mais uma vez para as janelas do novo vizinho. Estavam
iluminadas por um amarelo meio doente, de forma que a silhueta do
senhorzinho ia e vinha, ia e vinha, ia e...
- Pelo amor, Lúcio! É a casa dele, rapaz, ele pode correr em círculos lá
dentro que não é da nossa conta.
- Sei não... Esse cara não tá descendo...
Lúcio normalmente era impulsionado pela curiosidade, mas, dessa vez,
sentia que algo realmente estava errado. Não eram idas e vindas de
exercício, ou de reflexão, era impaciência. Parecia que a qualquer
momento jogaria uma pedra na janela.
- Bem... – os lábios de Lúcio foram sugados para trás – Droga.
A passos leves, o corcunda saiu de sua casa.
- Você resolve. – decretou a mulher, e subiu.
- Sim, senhora – o homem já estava na metade do caminho. –
BRUNO! JÁ É HORA!
Os pratos pararam e o último bumbo soou obediente. Os toques na
porta seguiram exatamente nessa mesma hora. Lúcio parou, incrédulo.
- Que...? - ou o velho era campeão dos cem metros rasos ou alguma
coisa estava errada.
Olhou com o olho torto pelo olho mágico, e a única coisa que viu fora
Almofada encarando o horizonte. Mirava como se estivesse em frente ao
maior amontoado de peixes já feito no mundo.
Abriu a porta, não havia ninguém.
42
- Deus do céu – correu e pôs-se na janela, o queixo caiu.
Podia ser um abajur, é verdade, mas, naquela noite de sábado, a
silhueta pareceu carregar um corpo.
4
O domingo amanheceu como qualquer outro, mas a imagem
continuava em loop na cabeça de Lúcio. Não falou com Marília, não
precisava, só contou que na verdade o vizinho estava indo para outro
lugar. De qualquer forma, ela não ligava, e eram por dois motivos bem
específicos:
1º: Marília não carregava a curiosidade/paranóia do marido.
2º: Tinha uma entrevista marcada em um daqueles programas de tv que
o convidado fala qualquer besteira e a platéia aplaude como se a vida
dependesse disso.
- Este é o ponto, querido – ela dizia, ajeitando o vestido. – O Roberto
já está solto, comprovado como inocente, e não largam a droga do osso.
- Bem... Você meio que salvou o cara de uma perpétua, ainda vai
render por um tempo. E pelo amor de Deus, Marília, ainda não acharam o
culpado.
- Como se eu fosse descobrir quem diabos é! – retrucou firme, mas
com bom humor. – Isso é tudo culpa do Valter, eu peço para que não
aceite esses convites, ele vai e aceita.
- Boa sorte!
- Boa sorte mesmo – repetiu. – Agora é ouvir propagandas de pílulas
milagrosas e câmeras digitais por cinco horas – beijou-o. – Fique com
Deus, volto logo.
Lúcio era apaixonadíssimo por aquela mulher. Linda, elegante,
educada, inteligente até cansar... Assim era Marília, e o homem tinha
certeza que, mesmo se ela não fosse tudo isso, ainda a amaria na mesma
intensidade. Depois de um tempo assistindo algum esporte, desceu até a
cozinha e comeu algo frente às janelas. O recinto do corcunda lembrava
os casarões assombrados que infestavam as histórias da sua infância,

43
sentiu um calafrio quando se lembrou delas. A casa pulsava para cima e
para baixo.
Pela tarde, Bruno voltou a praticar sua bateria.
5
A entrevista estava condenada desde o momento em que o futuro
demitido Valter avisou para Marília do compromisso. Nada seguiu, se
não a desgraça.
- A nova pílula Master Slim chegou – não era nova coisíssima
nenhuma e o nome em inglês servia apenas para a estética. – Quem ligar
nos próximos trinta minutos ganhará um brinde exclusivo, feito só para
você – um chaveiro. - Venha!
- Céus... – os olhos doíam nas luzes.
- Estamos de volta com o Show da Tarde! – aplausos. Muitos aplausos.
Aplaudam, malditos! – E agora... Chegou a hora, ein? Marília Gonçalves
falará tudo sobre o caso Roberto.
Vinheta sem sentido: é sho-owww
- Bem... É... Provamos a inocência do Roberto com base nas câmeras e
nos telefonemas recebidos pelas vítimas antes de tudo acontecer. As
filmagens provaram que o Roberto estava em outro bairro quando o
crime foi consumado.
- Você diz as garotas mortas? – assim disse o apresentador.
Nesse momento, Marília sentiu uma raiva absurda de tudo. Praguejava
mentalmente contra Valter, o canal e a forma como aquele rapaz tratava a
morte de duas pessoas como se fosse entretenimento. Só mais uma pauta
entre propagandas de magreza e semi-pornografia.
- É... As vítimas... – e encarou. Só encarou.
- Mas onde estaria o verdadeiro culpado? O dono daquela voz que
todos vimos nas gravações?
- Supomos que morto. Uma arma foi encontrada no rio.
- E o corpo? – rápido, planejado.

44
- Ainda não foi encontrado. As motivações também não foram
descobertas, mas suspeitamos que seja um serial killer, o mesmo que
atacou a cidade vizinha no ano passado.
- Interessante... O que você acha que está causando tanta desconfiança
na mídia?
- A imprensa gosta de certezas rápidas, mas não é assim que as coisas
funcionam. A verdade leva tempo e chegará um dia – encarou o
apresentador mais uma vez, sorrindo. – Talvez também estejam
frustrados e envergonhados por terem crucificado um inocente
publicamente, ou pelos processos que andam recebendo e que certamente
perderão, diga-se de passagem.
- É... – um belo silêncio – Vamos aos comerciais.
Vinheta sem sentido: é sho-owww
Marília respondeu mais algumas perguntas, dessa vez mais contidas e
menos provocativas, depois foi pra casa. Ainda no carro, Valter recebeu
um telefonema que o convidava a conhecer o olho da rua.
6
O quarto cantava longe enquanto Bruno tomava banho. Estava há
horas tocando bateria, então os dedos e as mãos doeram. Não havia
acontecido nada durante a tarde, o vizinho sequer foi visto. Lúcio, por
outro lado, não tirava os olhos da casa.
- Já deu, Bruno! Sai dessa água! - obedeceu quieto, seguiu para se
vestir.
O pai, lá em baixo, andava de um lado para o outro. Se irritou muito
naquela tarde pela tal entrevista, e se perguntava sobre como estaria
Marília, mas preferiu esperar que chegasse em casa do que ligar ou
passar mensagens.
Entre toda aquela inquietação e raiva, como se esperasse o momento
certo, um vulto atravessou a janela do corcunda. Daqueles que não só
assustam, mas fazem um homem grande e gordo cair no chão.
- Jesus... – se feriu. Encarou o sangramento do braço.

45
Outra sombra atravessou o corredor, linhas abraçavam o corpo como
um diabo acorrentado. Caíram vasos, entortaram quadros, entortou o
olh... Ah, o olho já era torto, né?
- BRUNO! – gritou o pai, instintivamente, pois a criatura desaparecera
nas escadas. O medo e a necessidade de proteção deram-lhe forças para
reagir.
Agarrou no que podia e correu desesperado, mas, ao primeiro passo
nos degraus, os vasos e quadros voltaram ao lugar. Bruno não ouvira
absolutamente nada.
- O que está acontecendo... – disse o homem, e não era uma pergunta.
Se recômpos, o som dos pratos veio do quarto mais uma vez. Não
sentia mais as feridas.
Lúcio respirou por um tempo, ouvindo os constantes testes no quarto
de cima. Vinham pratos, tons, surdo, bumb... Bumbo? Que havia com
aquele bumbo? Mais duas pisadas no pedal.
- Huh? – reagiu o filho, ouvindo o som feio, quebrado.
Lúcio sentia que vinha algo por aí, o coração acelerou. Estava
completamente desnorteado.
- PAI! – gritou o garoto, longe de sua quietude usual.
Como pai que era, mais uma vez esqueceu de si. Correu como novo,
adentrou o quarto, encontrou o filho atrás do instrumento. O jovem
olhava com as mãos na boca, quase chorando.
- O que foi? – perguntou, caminhando para onde o jovem estava.
Saiu do caminho, Lúcio viu o bumbo rasgado. Dentro dele, inchado,
roxo e com os olhos abertos, o gato Almofada repousava para sempre.
8
- Como isso aconteceu? – perguntou Marília, horas depois.
- Deve deve ter rasgado de alguma forma e acabou engasgado com os
pedaços... – Bruno estava visivelmente triste.
- Pobrezinho... Fique calmo... – o abraço de mãe secou os olhos
marejados.
46
Lúcio estava mais uma vez na janela, olhava agora não com
curiosidade, mas com medo e raiva. ‘’Engasgou coisa nenhuma!’’ –
pensava. Mas... Como então? Não... Era obra daquele diabo corcunda!
Bruno e Lúcio enterraram Almofada no quintal, Marília subiu para
tomar um banho merecido. Se deitou e teve cerca de quarenta e quatro
pesadelos.
9
De manhã, Lúcio foi para o trabalho. Analisou algumas rebimbocas da
parafuseta, sujou-se como manda a regra e não deixou de pensar um só
segundo no que havia acontecido na noite passada. Almoçou, claro, um
prato tão alto que por pouco Deus não desceu e confundiu os idiomas dos
construtores. Encheu a barriga e até esqueceu os problemas... Pelo menos
até o chevette tubarão aparecer na porta.
- Não é possível... – praguejou internamente.
As janelas lançaram um raio de luz em seus olhos, doeram, a sombra
partiu para fora do carro. Era uma figura torta, baixa, estranha até quando
incompleta.
- Boa tarde. – Lúcio disse por educação.
- Boa tarde o que, bunda mole?
A sombra inflou, se tornando então um homem gigante que respondia
pela alcunha de Carlão.
- Oh... Esse sol me tonteou bonito, bicho.
- Boa tarde... – repetiu. O bigodinho balançando – Problema seu aí,
chefe. Um velho entregou lá na outra e o endereço que ele deu é
exatamente do lado da sua casa. Entrega lá. Ele pagou a mais.
- Oh não – o sol ainda tonteava. Carlão passou caminhando para o
café.
- Oh não mesmo. Esse carro estava possuído.
- Possuído? – Lúcio repetiu, rápido – O que quer dizer com isso?
- Eh... É só uma piada... Que bicho te mordeu? Tava difícil de
consertar, só isso.
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- Ah... – a sanidade voltou – Pode deixar.
O carro parecia um coração. Pulsava, tremia, balançava maleficamente.
Lúcio estava apavorado. Ontem, seu gato havia sido morto logo após
uma série de eventos estranhos acontecerem, hoje, logo depois, precisava
levar o carro à casa do suspeito. Pensou: ‘’Eu sou o chefe, caramba!
Mando outro entregar!’’ Olhou... Olhou... Não havia ninguém.
- O que aconteceu com todo mundo?
- Nunca recebemos tanto movimento em um só dia, lá na outra. –
respondeu Carlão – E tenho que voltar rápido, antes que vire um caos.
- Certo. Vou fechar agora, então. Preciso de um descanso, mas me
ligue se necessário.
- Ligarei.
Trancou tudo e entrou no chevette vagarosamente, era um ladino
penetrando a caverna de um dragão. Escolheu não acreditar que o diabo
do homem fizera aquilo para atormentá-lo, mas a ideia florescia, forte,
pois o barrigudo não costumava confiar em quem bebia menos que o
próprio carro.
Acelerou e guiou até a rua.
10
O carro era legal, até. Pensou em comprar um no futuro, caso
adquirisse uma corcunda e resolvesse perambular pela sanidade de
terceiros. Estacionou em frente à casa e buzinou. Nenhuma resposta.
Mais uma vez.
Nada.
E outra.
Silêncio.
Foi acometido, então, por um sentimento horrível, uma cólera que não
desejaria para ninguém.
Quando percebeu, havia socado o vidro do carro, do nada.
- Merda! Que porra? – gritou.

48
A visão escureceu, o céu relampejou como se Deus houvesse tirado
uma foto. Saiu do carro cambaleando, apoiou-se na porta e viu as janelas
de sua casa explodirem em cacos de vidro. Atrás, o grito de Bruno:
- PAI!
O garoto apontou para o lado de fora, correndo, foi quando seus dois
braços deram uma volta completa. O berro de dor e o estalo dos ossos
puderam ser ouvidos há metros.
- BRUNO!
Quando Lúcio disparou em corrida, não passava pela sua cabeça a
loucura que aquilo era. Só pensava em ajudar o filho, só isso, e depois
sobraria espaço para o sobrenatural.
Bem... Foi assim até o corcunda abrir a porta.
11
Quando viu a figura apontando, a cólera se multiplicou por dez. Teve,
ali, a certeza absoluta de que a culpa era dele e que devia pagar.
Esqueceu do filho, esqueceu da realidade, só pulou em um homem velho
e socou sua cabeça por vinte vezes.
- O que... O que... Eu fiz..? – ele clamava, sofria, mas Lúcio só parou
quando o sangue tapou o rosto e o desmaio aconteceu.
Saiu do espancamento e só então se lembrou que um filho com braços
quebrados estava pedindo ajuda. E que filho? Bruno não estava mais lá.
- Merda... Merda... Merda...
Largou o corpo desacordado para trás e correu para sua casa. As mãos
pingavam sangue.
- Bruno! – chamava – BRUNO!
Quando colocou os pés na sala, viu um cenário completamente
revirado. Estavam quadros e mais quadros pelo chão, em linha reta.
Arregalou os olhos quando percebeu que todos estampavam uma figura
em comum: Marília.
- NÃO! – rugiu.

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Seguiu a trilha de fotos, estavam levando para o escritório.
Repousavam agora nas paredes, virados de cabeça para baixo.
- MARÍLIA! – chamou.
Jogou-se para a porta do cômodo, e viu.
- Me... Ajude...
Sua mulher estava no centro da parede, de ponta cabeça, assim como
todos os quadros e recortes de jornais que a rodeavam. Em sua frente,
encarando-a com rostos febris, frios e impiedosos, duas garotas mortas
disseram:
- Justiça – em coro. – Justiça.

50
51
Sério?
1

G eraldo Mariano, 45 anos, motorista de ônibus ilegais há duas

décadas. Muito amado por seus familiares, profissional exemplar,


especialista em muitas coisas. Apreciador de forró.
O dia era a sexta, onde o maior movimento acontecia. As pessoas
queriam voltar para as suas cidadezinhas, escapar daquela capital que os
curava, mas que não dava vida nenhuma a mentes criadas nos braços da
tranquilidade. Muitos eram velhos, alguns eram crianças, a maioria
aceitava a etiqueta de adulto, fazer o que?
A portinha separava os motoristas dos passageiros, não para garantir a
privacidade deles – até porque eram uns trinta – mas para proteger
Geraldo do cheiro, do barulho, das conversas fiadas e perguntas sem fim.
É justo dizer que se tratava de uma peça bem forte.
Placas surgiam e desapareciam na noite. As intactas mandavam parar,
virar e ter cuidado, as pixadas mandavam se fo... Bem, essas não serviam
pra muita coisa.
A fome bateu às oito, e, às oito, Geraldo avisou:
- Quarenta minutos, pessoal. Parada pra janta!
O cheiro do posto era insuportável, linhas pesadas de gás e calor. Não
era possível ficar dentro do ônibus, pois o mofo se misturava à desgraça,
dando luz a um aroma de calabouço bem característico. Ficou lá, então,
apenas um homem bem velho, talvez um sobrevivente de Chernobyl, já
que aguentava aquele tormento sem nem tremer as narinas.
- EU QUERO!
Esse grito sempre surgia na primeira parada, quando as crianças ainda
se mantinham bêbadas de euforia. Parte dos pais, por inocência ou pouco
saco, davam o chocolate que faria os pequenos diabos conversarem por
toda uma noite. Geraldo realmente não entendia como a procura era tão

52
grande por aquelas passagens, já que a única diferença em relação às
empresas legalizadas eram singelos trinta reais. Não dizendo que seja
pouca coisa, mas se torna um número irrisório quando se conhece o
50/50 das viagens clandestinas: ou é um caminho tranquilo, ou os sete
diabos abissais resolvem viajar junto. De toda forma, não é caso do meu
departamento.
Geraldo jogou no prato pedaços de churrasco tão mal passados que
poderiam acusá-lo de maus tratos. Terminou de pegar a comida e
começou a jantar.
2
- Cheiro tá foda hoje – comentou um dos passageiros.
No banheiro do restaurante, junto desse, estavam mais quatro. Todos já
se conheciam de outras vezes, viajavam com frequencia, então
concordaram diretamente com a afirmação do barbudo.
- Que será que tá acontecendo? É cada coisa que dá medo até de
explodir.
- Explode nada... – comentou, fechando o zíper.
- Vai dando certeza... Depois de quarta passada tá todo mundo com
medo. Sei nem como consertaram essa joça em tão pouco tempo.
- Ué... Fiquei sabendo de nada. O que rolou?
- O que rolou? Tráfico de drogas, meu mano. Uns passageiros
trocaram tiros com os policiais e tudo. O ônibus ficou um queijo suíço.
- Sério? – só um disse, mas todos pensaram o mesmo.
- Sério. Como era uma quarta tinha pouca gente, sorte a de vocês que
não estavam lá. Me borrei todo. Vejam lá os buracos quando voltarem -
saiu caminhando meio depressa.
Um moço ouviu de dentro da cabine. Uma moça, do lado de fora,
também. Trataram de passar para frente as informações, já que,
aparentemente, a empresa havia escondido muito bem o ocorrido.
A conversa já havia chegado a todos quando Geraldo pagou pelo seu
almoço.
53
3
Geraldo Mariano, 45 anos, poucas horas antes de se deparar com o
maior horror da sua vida. O forró tocava enquanto o segundo motorista
lia ao lado. No instante, passavam por um daqueles vilarejos minúsculos
que mais parecem cenográficos que reais.
- Até que demorou para descobrirem – disse Geraldo.
- O que?
- O tiroteio, ué. Conseguiram achar os buracos na camuflagem.
- Aaah... A gente nem tem nada com isso. Não dá pra controlar quem
entra e sai.
- Claro, mas sabe como é... Povo conversa demais.
- E como – concordou. Voltou ao livro.
A viagem seguiu. Ao todo, eram quinze horas de viagem, então os
passageiros se agarraram na primeira migalha de entretenimento que
encontraram.
- Valhei-me... Como isso não chegou pra gente? Tem coisa aí. Meu
senhor Jesus...
- Tem nada, Berenice. – respondeu a companheira. Os óculos fundo-
de-garrafa pesando o nariz – Já passou, já foi resolvido. Eles são boa
gente.

- Olha... Não tem como confiar em um ônibus que passou por isso, tá
errado... – diziam mais pro fundo.
- É mesmo. Quem garante que os traficantes não são eles?
- Justamente! E se incriminaram um coitado? Digo... A polícia ia
liberar tão cedo?
- Podem ter molhado a mão dos caras – retrucou.
- Troca de tiros, cara! Não tem como! Fiquei sabendo que até
acertaram o ombro de um dos policiais.

54
- Explodiram a cabeça de um dos policiais – disse um velho, fechando
a janela – Esse país não valoriza, dá nisso.
- Sério? – disse.
- Sério.
- Que tristeza... Quem te disse?
- Estavam falando lá no restaurante. Eu é que não durmo, não mesmo.
Depois acordo com uma arma na cabeça e acabo tendo um infarto antes
que apertem o gatilho. Aqui não, Júnior, aqui não.

O segundo motorista abriu a portinha e foi ao banheiro. Já haviam


perguntado sobre o ocorrido, mas disse que não sabia de nada, que não
estava no dia, então ninguém insistiu. Tudo estava quieto, escuro,
estalando roncos. Voltou logo.
- Tudo bem lá? – indagou.
- Na santa paz.
4
As trevas das onze horas pareciam prever o que viria, passavam pelo
ônibus, acompanhavam-no, os faróis mal conseguiam abrir caminho. Era
como um tunel eterno, com luzinhas singulares de vez em quando.
Acontece que toda a região havia sofrido com uma falta de energia
terrível, e o ônibus precisava cortar aquelas cidades por um considerável
tempo. Não era um problema em si, mas, para os passageiros, a situação
se tornara bem curiosa.
- Terceira cidade... – disse o que presenciou o tiroteio - Tudo escuro...
O rapaz ao lado logo reparou a fundura dos olhos e a sombra que se
formava quando ligava – e ligava tanta vezes – a tela do seu celular.
Podia estar com febre, ou com um calor horrível, vai saber... Fato mesmo
é que aquele homem não estava bem.
- Tudo certo aí, meu parceiro? – perguntou. Seu sotaque baiano
normalmente criava um clima alegre, mas dessa vez não foi o caso.

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- Nada certo, brother... Nada certo – na sua mente, os tiros dos
policiais e dos bandidos ainda tremiam. – Primeiro escondem esse
tiroteio de todo mundo, depois um monte de cidades sem luz... Que
diabo... Que diabo...
- É chato, tá certo. Mas é só azar, fique calmo.
- QUE DIABO! – rugiu, atropelando as pernas do companheiro e
andando em direção da porta – ABRAM ESSA MERDA!
Poltronas foram jogadas para trás, empurradas por tantos ombros
assustados. Tudo bem que a paranóia ainda era recém nascida, como o
início de um incêndio, o atraso de uma hora ou um elevador parando,
mas nada impedia que as emoções dançassem para todos os lados.
- Abra! – e atirava palavrões.
Palavras carinhosas acompanhavam socos furiosos, e Geraldo apenas
escutou quando a música terminou. Um susto.
- Que é isso? – o segundo motorista abriu a porta, acordado aos saltos
de um sono profundo.
- Qual a de vocês? Me diga! Ein?
- Qual a nossa o que, rapaz? Você tá louco? – gritou de volta. O
silêncio. - Para o ônibus, Geraldo.
- Você pensa que eu não sei? – gritou o moço, uma figura quase morta
– Todos já sabem que vocês estão em um esquema de tráfico! E se nos
matarem?
- M... Ma... Que? Aquilo foi um acidente! Não conseguimos controlar,
não podemos revistar ninguém! Não tem esquema nenhum!
O ônibus parou.
- Meu amigo... – Geraldo se levantou. A respiração profunda do
passageiro assustava – Você já viajou comigo antes, já até jantou
comigo, lembra? Acha que a gente ia expor vocês a esse perigo? Pelo
amor de Deus...
A respiração ficou mais tranquila, a veia na testa diminuiu, mas os
olhos mortos continuaram.
56
- Veja lá. – conversaram dois moços no fundo do ônibus – Que merda
é essa? Esse cara não para de falar desse tiroteio desde a primeira parada
e os motoristas agem como se nada tivesse acontecido. Que merda,
Roberto? Que merda?

- É assim mesmo, Rrrrúte. – disse uma velhinha – Tudo fedido, um


calor desses em plena noite, e agora o perigo de estarmos carregando
drogas sem saber. E se tiverem colocado essas porcarias nas nossas
malas? Estão fazendo esse golpe por aí, vi no jornal.
- Sério?
- Sério. Disseram que era um plano perfeito.
Essas duas palavras, plano e perfeito, juntas, foram ouvidas por todos
(exceto o velho dorminhoco e os motoristas) que habitavam aquele
organismo chamado ônibus. Não houve dedo do Diabo ou coisa parecida
por aqui, fora apenas o que chamam por aí de uma ‘’infeliz
coincidência’’. O doido, lá na frente, suando e segurando a porta, já se
fazia calmo perante a figura de Geraldo. Infelizmente, a calmaria seria
temporária.
5
- Ele tem umas crises... – comentou o Geraldo, já de volta à estrada –
Foi o que a mãe dele disse, mas também falou que não é tão comum
assim.
- Acha que o tiroteio deixou ele biruta?
- Acho... E acho que só se deu conta disso depois que entrou no ônibus.
- Difícil – disse. – Meu tazer está aqui, caso ele invente alguma coisa.
O clima do outro lado era assustador, o termo é esse. As pessoas se
olhavam em uma escuridão absoluta que nem mesmo a luz dos celulares
conseguia iluminar (pelo contrário, dava um aspecto de falsidade e
simulação). Não demorou para que as cabeças tremessem e a ansiedade
surgisse, especialmente com um homem tendo uma crise em posição

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fetal bem ali ao lado. Fez-se uma inquietação, uma sensação
claustrofóbica, ao realizarem que estavam presos àquela caixa de metal.
- Isso tá errado. Tá errado – um homem se levantou. – Temos que dar
um jeito de sair daqui, tá muito errado. Não sentem?
Gritos surgiram de volta, os motoristas não escutavam. Todas as
pessoas concordaram, achavam realmente plausível a ideia de que estava
acontecendo uma conspiração ali, exceto um:
- Amigos, vamos manter a calma. Sem conclusões precipitadas. – o
baiano sentia que algo ruim chegava.
- E essa escuridão? – retrucou o homem – E esse cheiro? Esse calor?
Esse pobre coitado chorando no canto?
- Sim, sim... Se acalme, vamos buscar explicações. Buscamos agora
mesmo.
Aí o ônibus parou.
6
- Ah nem... – disse o Geraldo – Está com o dinheiro aí?
- Estou sim. – respondeu o outro. Lá fora, o carro da polícia esperava.

- É A POLÍCIA! – berrou o homem, na janela – Eu disse!


- Eu vou até lá, ok? – o baiano tentou acalmar, de novo – É só abrir a
porta e...
Na hora, recebeu um soco no meio dos dentes. Caiu assistindo tudo em
câmera lenta.
- VOCÊ É UM CÚMPLICE!
Os gritos começaram, as mãos tentavam abrir janelas que não abriam,
a escuridão lá fora vinha e ia com as luzes da viatura. O vermelho e azul
da sirene, o cheiro mais uma vez, o louco tremendo, o pacificador
sangrando, o velho dormindo, o agressivo puxando a porta.
- ESTAMOS TRANCADOS! EU DISSE! EU DISSE!

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- Começo de mês, meu rapaz – disse o policial.
- Só temos isso, libera aí – e deu o bolo de notas de cinquenta. –
Gastaram muito escondendo os buracos.
- Hum... Semana que vem pegamos o resto, certo?
Só observou, depois respondeu de má vontade:
- Certo.
Aqui a negociação está resumida, durou cerca de cinco minutos no
total, um recorde. Entregue o dinheiro, a viatura desapareceu envolvida
em seus faróis.
- Que merda, é azar demais – comentou o segundo motorista.
- Não é dinheiro nosso, então que seja – disse Geraldo.
Um vento surgiu, trouxe consigo um barulho de porta rangendo.
Pararam.
- A porta não estava trancada? – indagou o mais novo.
- Estava – confirmou Geraldo.
Os passos se tornaram rápidos, e, chegando ao ônibus, viram uma mão
pendendo para fora da porta aberta, sangrando, segurando uma tesoura.
- Meu Deus do céu... – levou as mãos à boca.
Subiram as escadas, sentiam medo, o cheiro, o inevitável. Chegando à
porta destruída, enxergaram todos os corpos banhados em sangue. Um
homem caía de sua poltrona com uma garrafa cravada no pescoço, uma
moça sangrava com a cabeça agarrada em um dos vidros e canivetes
erguiam-se como lápides, tão numerosos quanto os corpos mortos que os
motoristas transportariam naquela noite sob o céu estrelado de um dia
sem energia.

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60
O que acontece quando os livros caem da estante?
1

A Biblioteca da Santa Paz nasceu em 2016, quando as obras no

cemitério homônimo finalmente se concluiram. Sua história era tão


curiosa quanto a localização.
Contam que, há mais de cem anos, um coronel teimou em construir um
mausoléu gigante para que toda a sua família descansasse sob o mais fino
(e inútil) dos luxos. Gente rica tem dessas coisas, não é verdade? De
adorar erguer coisas gigantes para abrigar vento. Acontece que o bendito
morreu em um incêndio junto à todos os seus herdeiros, então nunca
ninguém pôde mergulhar naquela terra. Houve um longo e disputado
processo, a prefeitura conseguiu os direitos da área, e, claro, iriam fazer o
que fazem de melhor: destruir o que pode ser útil. Logo logo surgiram
alguns ativistas e, com a sorte do único parente vivo ser um homem
gentil, conseguiram transformar o ‘’Mausoléu do Coronel’’ na
‘’Biblioteca Comunitária da Santa Paz’’.
2
Manoel cuidava daqueles livros como se cuida de uma criança.
Estavam impecáveis, mais que os da sua própria coleção, até os
exemplares mais velhos mantinham-se magníficos. Muitos estavam lá,
dos clássicos aos contemporâneos, davam o ar da graça até aqueles sob
medida, filhos de ghost writers, adotados por estrelas da internet bem
como um viciado adota uma pedra de crack.
- Veja, vou abrir em uma página aleatória – anunciou.
‘’Se dê valor, querida, as pessoas não te merecem.’’
- Meu Deus – reagiu com a única reação possível.
- Não adianta! Todos os dias abro em uma página aleatória e sempre é
ruim.
- Acordou gentil, pelo visto.

61
- Horroroso! Horroroso!
Tiago e Manoel eram amigos de infância. Aprenderam a ler juntos,
exercitaram o hábito juntos, e agora cuidavam de uma biblioteca, juntos.
Era um dia cinza e trovejante, mas não caía chuva nenhuma. O vento
frio percorria prateleiras, atravessava Harry Potter’s, Alienistas, Bíblias e
uma extensa obra espírita. Abraçava quem surgisse pela frente.
A tarde continuou assim, e o maior trabalho fora conter grupos de
alunos que surgiram para uma tal pesquisa. Não contê-los de estudar,
claro, mas de destruir as prateleiras e os mangás.
- Imprimiram isso errado, tá ao contrário – bradaram pelo menos
quinze vezes, e Manoel explicava, pacientemente, mas isso não impedia
os moleques de dizer mais uma vez. É sabido que crianças só gostam de
duas coisas: suas mães e caos.
Fecharam as portas por volta das sete, quando a escuridão já brilhava
no céu. Os trovões ainda estavam por lá, e gritavam mais do que os
jovens de mais cedo.
Os dois não tinham tanto medo do cemitério, eram sujeitos bem
céticos, viam estátuas onde estavam estátuas e lápides onde eram lápides.
As crianças, por sua vez, corriam de ambas, enquanto adolescentes
apressavam os passos e adultos mais refletiam que consideravam
possibilidades. Naquele dia, contudo, as coisas pareciam diferentes, não
dá pra explicar direito.
A visão perpassou, moldou coisas estranhas, a periférica deu o tiro de
largada para o surgimento de vultos velocistas. Pernas travaram, o corpo
parou, e o-que-quer-que-fosse resolveu acompanhar a decisão.
- Eita – reagiu Manoel. – Viu isso?
- Vi nada – tapeava o celular. – Que foi?
- Nada – abriu o portão do cemitério. – Deve ser algum gato correndo.
Fecharam, se cumprimentaram e tomaram o caminho de suas casas. Lá
dentro, rapazes e moças compartilhavam um chá vindo de um lugar
muito, muito distante.

62
3
Horas depois, quando sujeitos invisíveis já circulavam as casas e o
coveiro dormia sendo observado, quatro jovens vinham conversando alto
pela rua. Eram ditos góticos, vinham de um show mais underground que
usar pochete na segunda década do Século XXI.
- Vai dar pra traz agora? A gente sempre faz isso! – um deles dizia.
- Não comigo – respondeu o outro.
- Cala a boca e vamo logo. Dá nada.
Ajudaram uns aos outros a saltar o muro, caíram numa aura fria e de
expulsão. À noite, como sabem, dimensões se aproximam e a distância se
estreita. Jovens vestidos de preto se misturavam na escuridão,
confundiam os olhos dos mortos.
- O que vocês fazem aqui, afinal? – perguntou o novato.
- Desenterramos os corpos e derramamos sangue nos crânios.
Silêncio.
- Sério?
- Não, doente. Só bebemos catuaba lá na árvore. Tá assistindo
noticiário demais, ein?
- Ah...
As risadas dos quatro atravessavam os planos, pois lá não soava o
sentido, só o sentimento. Dezenas de pessoas pairavam em pé ao redor da
trupe, homens e mulheres de épocas antigas, já de volta ao pó, mas que
desfrutavam de uma experiência muito mais sublime do que essa que a
Terra consegue oferecer.
Sentaram-se embaixo da tal árvore, que carregava folhas grandes,
nenhum fruto sequer, mas um caule grosso e resistente. As garrafas
caíam, enchiam copos, os vivos dançavam e cantavam músicas de outro
continente enquanto os mortos conversavam entre si. Era um ambiente de
paz, nos dois planos, não haviam desejos de maldade.
Quando a bebida já fazia efeito e a cabeça tombava enganando a perna,
decidiram caminhar pelo cemitério até dar vontade de ir embora. Nem
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lembraram da possibilidade de um coveiro furioso surgir gritando (até
porque o dito cujo roncava mais alto que seus gritos).
- Diga ‘’nariz’’!
- Nariz! – o flash carimbou a foto do rapaz. Um belo retrato, abraçado
com a estátua de um anjo, sombra e batom nitidamente destacados pela
luz.
Não demorou para que dessem de cara com a Biblioteca da Santa Paz.
Ah... Se vocês pudessem ver as paredes e seus desenhos, as janelas de
vidro... Aquele ar tão... Diferente.
- Ei, vamos entrar?
- Pra que?
- Bateu uma vontade de ver lá dentro.
Só fizeram concordar, pois o álcool tirou qualquer resquício de lógica
que ainda guardavam em suas cabecinhas. Enfiaram um pedaço de ferro
na fechadura, giraram com dificuldade, como nos filmes, e o espectro
luminoso moveu as peças lá de dentro.
Partindo dos celulares, as luzes lamberam as paredes. Mostraram um
quadro ‘’3D’’ de um lobo, onde o animal era manso visto de um ângulo e
raivoso visto por outro. Prateleiras guardavam o acervo, um balcão
segurava o computador. Se separaram entre os temas.
Foram-se alguns minutos. Um deles cambaleava entre a parte dos
autores estrangeiros e um pequeno amontoado de jornais. Gostava das
capas, eram bonitas, com exceção daquelas com fotos de humanos reais.
Humanos complicam as coisas. De toda forma, desabou pelos cadarços
enquanto via uma dessas, caiu babando em periódicos velhos.
- Merda.
- Vamo, tá na hora – a vontade súbita atingiu os três, enquanto o quarto
mal sabia como tinha caído.
As unhas repletas de esmalte preto jogaram os documentos pros
cantos. Levantou-se com a mão no ombro, viu os amigos indo para a
porta.

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- Me esperem, caramba.
O primeiro bateu a testa no nada, como se a saída fosse uma parede
pintada com as cores do lado de lá. Caiu pra trás sob os gritos de ‘’Que
isso? Que isso?’’, enquanto um deles tapeava a saída, confirmando que
era mais dura do que pedra.
- O que tá acontecendo? – chegou o babão.
As almas já rodeavam a biblioteca àquela altura, mas não entravam,
mantinham-se tão espertas quanto as crianças que passeavam lá perto.
Era possível explicar a energia que sentiam lá dentro com uma única
palavra: pântano. Sim, sem dúvidas, um pântano.
- AJUDA! – gritou o novato. Não viria.
Um livro vermelho caiu, e, fácil assim, o garoto sumiu. Outro preto
espatifou-se, desapareceu mais um.
- Santo...
Mais dois ao chão, um amarelo e um azul, mais dois rapazes foram
embora.
4
Manoel e Tiago chegaram juntos naquela manhã de sábado. Viram
muitos carros da polícia no caminho, rondavam numa lentidão atenciosa
e preocupada.
- O que aconteceu?
- Sei lá... Já é o que? O quarto? - Era o quinto.
Os portões do cemitério se fecharam e as cruzes tomaram conta da
paisagem. Passaram pela árvore, cataram as garrafas de bebida, muitas
embalagens de bala, chiclete e uma infinidade de má educação.
A porta da biblioteca estava travada da mesma forma que deixaram.
‘’Pelo menos não roubam’’ - pensavam, então tirar lixo do chão era um
problema minúsculo. Lá dentro tudo continuava impecável, assim não
demorou para que o fluxo razoavelmente pequeno de pessoas começasse.
Chegavam garotos e garotas obrigados pelos pais, esses não liam nada,
só pegavam, pois não há prazer algum na imposição. Vinham outros que
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realmente liam e apreciavam, a maioria estudantes de escolas que não
enfiavam Machado de Assis e José de Alencar na idade errada, quando a
sensação de lê-los era a mesma de investigar uma bula de remédio.
Vinham também senhores e senhoras simpaticíssimos, falavam sobre
Tolstói, Agatha Christie e Jorge Amado, não demorou para que um
pequeno clube de leitura nascesse. Um sábado comum, o melhor dia,
segundo os dois.
Quando chegou as três horas da tarde, um moleque perambulava
sozinho entre as prateleiras. Manoel lia num canto, Tiago conferia um
caderno procurando atrasados, José (a criança) só queria saber quem era
o próximo que Obelix desceria o cacete. Logo logo a história se foi, e o
garoto se pôs a procurar outra coisa com socos, poções e explosões.
Arrastou os dedos pelas prateleiras, assobiando baixo, admirando todas
as cores. Parou no final, agarrou um, leu a capa:
- A Floresta da deees... Destruição.
Um ser verde estava estampado na frente, vestia roupas estranhas,
caminhava entre árvores, jogava pra fora uma língua quadrifurcada.
‘’Livro-jogo’’, dizia em cima, e não precisou de mais nada para que a
empolgação movesse os dedos. Naquele mesmo instante, algo despencou
atrás de si.
Sir Arthur Conan Doyle
Um estudo em vermelho
- Cuidado aí, amiguinho – disse, simpático, encaixando a edição de
volta.
- Mas eu...
Sentou-se de volta o Manoel, José preferiu deixar pra lá. Que pena que
as decisões naquele corredor não corresponderam às suas. O livro voltou
a cair.
- Mas que...
Dessa vez não fez barulho, então olhou pelos buracos e viu os dois
rapazes na maior tranquilidade. Guardou a aventura de Ian Livingstone e

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se pôs a caminhar até a de Conan Doyle. Era uma capa simples, sem logo
de editora, muito provavelmente produzida de forma artesanal por mãos
talentosas. Abaixou-se, agarrou-o, tapeou a capa dura enquanto viajava a
unha pelo verso, em apreciação. Abriu.
- Sh... Sherlo... Sherlock... Sherlock Holm-es... - Perdeu o interesse e
colocou-o de volta. Que nome difícil.
Viajou a visão pelo ambiente, voltou os olhos ao chão, lá estava o livro
mais uma vez. Saltou para trás se engasgando com um grito, pois agora
havia caído escancarado, com as páginas para baixo, mas não tocava o
chão. Parecia... Levitar. Aproximou-se com medo, colocou dois dedos
trêmulos por baixo e o virou. O grito seguinte foi solto, livre, uma
microfonia dura e aterrorizada. O livro caído, agora no chão, com as
folhas pra cima, guardava uma mão que saía lentamente de dentro das
páginas. A pele seca, as unhas pintadas de preto, os espasmos... José
chutou o exemplar, correu aos berros e atravessou o cemitério tapando os
olhos.
- Eita, Manoel, o que é que você falou pra ele?
- Nada... Só disse pra ter cuidado com os livros... – estava
absolutamente embasbacado.
- Deve ser algum inseto. Droga.
Levantaram-se logo e foram para o corredor. O livro estava no chão,
quieto, fechado, era impossível imaginar que nele e em mais três
aconteciam tantas coisas.
- Eu, ein.
Tiago pegou do chão, guardou. Voltaram.
- É... Acho que tá na hora.
- Nenhum devedor?
- Nenhum.
- Então vai fechando as janelas.
Fez assim. Trancaram a biblioteca e foram para casa.
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Eram duas da tarde de um domingo gelado (cuidavam da biblioteca
todos os dias), estavam de moletons largos e o fluxo de pessoas
praticamente não existia. O domingo era mais pra limpar, tirar poeira e
ligar para atrasados do que para atender usuários. O quadro do lobo
estava raivoso para Tiago e quieto para Manoel, faziam suas coisas um
de cado lado do cômodo.
Uma voz serena entrou pela porta antes mesmo que o corpo o fizesse.
- Bom dia!
- Bom dia, senhor Davi. O que manda pra hoje?
Era o coveiro, um dos leitores que a Biblioteca Comunitária da Santa
Paz forjou logo quando abriu. Gostava muito de quadrinhos.
- Na realidade, nada quanto aos livros. Ainda estou lendo o que peguei.
Só queria ver se estava tudo bem por aqui.
- Como assim? – Perguntou ao grisalho – O que houve?
- Eu não sei – respondeu. – Passei por perto ontem, era cedo ainda,
umas nove, aí ouvi uns barulhos altos aqui dentro.
- Barulhos? Tipo o que?
- Tipo... Tipo como se tivessem balançando as prateleiras.
- Ué. Que coisa. Parece estar tudo no lugar.
- Que bom – disse. – Pois bem, era isso. Achei que devia comentar
com vocês.
- Agradecemos muito, Davi. Vamos dar uma olhada agora mesmo!
- Beleza, se cuidem! – e foi embora.
Foram os dois para os corredores, e na verdade muitas coisas estavam
fora do lugar. Nada que implicasse em horas de reorganização, mas era o
bastante para qualquer um com transtorno obsessivo compulsivo bater a
cabeça na parede duas ou três vezes. Muitos livros fora de ordem, quatro
no chão. Arrumaram sem muito esforço.
- Alguém só pode ter entrado aqui.
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A situação se repetiu, pelo menos duas vezes por semana os livros
eram bagunçados, algumas coisas caíam e até mesmo quebravam.
Decidiram que era a hora de fazer algo. Não estavam assustados por
medo de fantasmas ou coisa parecida, mas pela mínima possibilidade de
vandalismo constante e até as chances de alguém estar morando lá
dentro. Pior ainda era descobrir por onde o inquilino estava entrando e
saindo, coisa que até o momento não faziam a mínima. Decidiram que
ficariam lá dentro por uma noite, assim fizeram numa sexta-feira.
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O barulho da porta se trancando precedeu o vento gélido que passou
pela fechadura. Lá fora – já oito da noite – os espíritos conversavam,
sentados, esperando o momento em que pudessem transcender. Os velhos
ensinavam aos novos que poderiam sair dali em breve, que não se
preocupassem, já que nada de ruim acontece aos pacientes e justos.
As coisas não pareciam querer mudar na realidade de Manoel e Tiago.
Estavam sentados, de luzes apagadas, alternavam entre segurar seus
celulares e barras de ferro. Precisavam se proteger, tem muito doido por
aí.
O plano era que um dormisse enquanto o outro vigiasse, como
naqueles filmes pós-apocalipticos, a diferença era que justamente não era
um. Não sentiam tanto que havia um perigo real, estavam lá mais para
botar medo em quem quer que fosse, ou, na melhor das hipóteses, dizer
que o(a) invasor(a) pode visitar a biblioteca quando bem entender, mas
não de madrugada. Gostariam de descobrir a passagem secreta, também.
Nessa tranquilidade, após horas, sentiram os olhos pesando. Manoel foi
dormir, Tiago devia vigiar, mas caiu por cima da mesa em vinte minutos.
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Tiago descansava a bochecha no celular quando ouviu o barulho de um
livro caindo. O queixo saiu da tela e foi para o ar, balançando junto à
cabeça enquanto a mente voltava à realidade. Pensou ter sido uma
lagartixa.

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Tiago se levantou, passou a mão no rosto e olhou entre os corredores,
não conseguiu ver nada. Enxergou Manoel dormindo e virou-se. O lobo
da parede observava com a raiva de sempre, enfeitado por olhos azuis e
presas tortas. Era uma bela peça, muito bem feita mesmo, só que não
pôde ver essa beleza toda quando o corpo inteiro amoleceu. Ali onde
estava, outrora, o lobo mostrava sua face dócil.
- Manoel – falou baixo, mas no silêncio absoluto acabou virando um
grito.
- Que foi!? – levantou-se, já indo em direção ao amigo.
- O lobo, caramba!
Manoel também via. Caminharam de um lado para o outro e a
expressão do canídeo não se alterava.
- Deve ter quebrado, calma.
Era uma justificativa plausível, concorde você, mas a sensação não foi
aquele alivio de quando nos lembramos de coisas esquecidas. Tiago
continuou preocupado. Empalideceu mais ainda quando tentou ver a hora
em seu celular. Estava estacionado nas duas da manhã.
- O meu também – respondeu Manoel. – Que diabo?
Outro livro caiu justo nesse momento. Não por ter dito a palavra
‘’diabo’’, mas dizê-la em um cemitério, às duas da manhã, acabou
resultando em uma coincidência quase artística. ‘’Diabo’’. BOOM!, um
livro cai. Foi o bastante para agarrarem as barras de ferro.
- QUEM É? – gritou. – Aparece!
Mais dois cairam. Sabe Deus em qual corredor.
Avançaram logo, apontaram as lanternas, viram nada. O teto parecia
mais baixo, sentiam-se abafados, mesmo com o frio que rodeava a
biblioteca. Uma coruja cantou lá fora, voou por cima das almas e sentou-
se ao lado de uma, onde foi acariciada. Gostou do carinho.
- É sério! – gritou Manoel – A gente só quer conversar!
A intenção era real, mas é frase de assassino. Algumas palavras
simplesmente não soam bem juntas, por puro empirismo. Veja bem, é
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como ‘’Pode passar’’ e ‘’Não vou te bater com o chinelo’’, ‘’Esquerda’’
e ‘’Auto-crítica’’, ‘’Cidadão’’ e ‘’De bem’’. Aparecer até aparecem
muito, mas soar confiável...
De repente ouviram um chiar, vinha do último corredor. Parecia que
algumas coisas se arrastavam, tremendo, um pequeno terremoto
individual. A lanterna não iluminava bem, precisavam se aproximar. A
luz foi chegando, aumentando, e finalmente atingiu a última prateleira.
No fim da reta, quatro livros balançavam no chão.
Manoel e Tiago, a partir daí, não conseguiam nem falar e nem correr,
só viam.
Primeiro, os livros liberaram uma energia luminosa. Depois levitaram,
organizaram-se dois com as páginas abertas pra baixo e um em cima
desses dois, escancarado para o alto. Desse veio o tronco, dos outros, as
pernas, do último - que voou para onde seria o ombro direito – saiu um
braço.
Uma lágrima desceu do rosto de Manoel, Tiago suava.
A criatura grunhiu antes de caminhar em direção dos dois. Não tinha
cabeça, nem o outro braço. O pescoço e o ombro esquerdo mais pareciam
uma lótus aberta, sem sangue, sem nada. Eram passos nada habilidosos,
inicialmente, como um bebê aprendendo a andar, desequilibrando e
desequilibrando. O aproximar da figura acentuava o desespero, seu
caminhar não fazia barulho, mas era carne viva, com certeza. Mal sabiam
os góticos que tudo aquilo acontecia. Naçquele momento dormiam em
suas casas, dias depois de serem encontrados pela polícia, em um sono
profundo e calmo.
O monstro chegou e parou em frente aos dois, as veias do braço
pulsavam, mas sabiam que não era sangue. Parecia pensar. Aí então, e só
então, o braço único se moveu, rapidamente, e com toda a voracidade
agarrou... Um livro. Desviou dos dois garotos, e nesse momento
conseguiram correr. Ultrapassaram a criatura, abriram a porta e
dispararam em fuga, esquecendo logo que o dia existiu.

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Lá atrás, o ser também saiu de dentro da biblioteca. Andou um pouco,
sentou-se em uma sepultura e sentiu o público se aproximando. Eram
muitos.
Com uma voz que vinha sabe-se lá de onde, começou:
- Era uma vez...

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Corujas não podem mover seus olhos
1 – Só mais um

P or uma razão simples, desde sempre ensinaram Ponto 40 a não

considerar os roubos como rotina. Não parecia interessante para os


negócios contratar um vigia disperso, era um trabalho que necessitava de
esperteza, olhos abertos como o diabo, pensar mais rápido que os dedos
dos policiais.
- E você ainda liga? – Teiú disse – A gente sempre demora pra
encontrar.
Estavam rodando pelas estradas de terra por algumas boas dezenas de
minutos, em dois carros. Teiú diriga ao lado de Francisco, vulgo ‘’Ponto
40’’, um apelido que recebera sem nenhum motivo especial. Usava uma
.38, até.
- Aí, te disse. Você se preocupa demais.
Os fuzis balançavam no porta-malas como as danças típicas do país
que vieram. A bomba estava guardada, tinham mais medo dela do que
dos guardas, estavam até mal acostumados com tantos roubos bem
sucedidos.
- Cangaço moderno... – ironizou o Teiú – Se Lampião ainda tivesse
vivo não teria uma cidade em paz. E digo capitais também, 40. Digo sim.
A terra se tornou asfalto poucos segundos depois das filas de postes
apontarem no horizonte. Ficaram para trás o mato, as chapadas e a
poeira, surgiram casinhas, ruas de pedra e um silêncio absoluto. Também
ficaram quietos, quase que imediatamente, todos os oito que compunham
a quadrilha.
Então, deu o ar da graça o único banco da cidade, bem pequeno
mesmo, e amarelo. Não haviam guardas - como era costume nas
cidadezinhas - mas contava com um alarme que certamente faria um
barulho considerável.

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Barulho fez. E muito.
A bomba explodiu sem rodeios, voaram cacos de vidro e pedaços de
concreto. Casas próximas tremeram. Tão logo a sirene ecoou.
- RÁPIDO! – rugiu o Teiú.
Enquanto Ponto 40 e Borracha mantiveram-se na vigia, o resto
aproveitou para terminar o que começaram.
Mais uma bomba, essa mais rápida e menos potente.
- Agora – comandou, ao ver as luzes das casas se acendendo.
Abraçadas por gritos de ‘’NINGUÉM SAI! FICA AÍ!’’, as balas de fuzil
procuraram a lua. Janelas se fecharam, gritos fantasmagóricos
percorreram becos, quadros caíam das paredes.
- VAI! VAI! VAI!
Mais uma rajada seguiu para o céu da madrugada. Malas de dinheiro
marcharam para dentro do carro. Foram rápidos.
- HA HA! – gargalhou o Borracha, vitorioso, e tomou um tiro no meio
da testa.
2 – Encontro
Desesperados, entraram no veículo ao mesmo tempo em que puxavam
gatilhos. Afundaram o acelerador com a selvageria de quem chuta a
cabeça de um desacordado. Não era possível dizer se as balas que
explodiram o vidro eram deles ou dos policiais.
- VAI, PORRA!
A sirene criava ondas nas paredes. Vinham mais tiros, voltavam
outros, competiam em um racha não declarado. Pneus cantavam falsetes
enquanto a fuga se desenrolava.
BOOM!
O pneu de Ponto 40 explodiu, e assim também aconteceu no carro dos
militares. Era como se estivessem espelhados. Uma janela ia lá, uma
janela ia cá. As curvas seguiam pela cidade desconhecida. Quem diabos
havia colocado aqueles homens nas ruas? Não é comum haver ronda
noturna em lugares tão pequenos. Tudo bem que haviam sugado até o
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último centavo das cidades vizinhas e obrigado seus habitantes a
utilizarem o banco que acabaram de roubar, mas isso não justifica, ora!
Quem teve a audácia de dar o mínimo de segurança possível para aquelas
pessoas? Pensavam tudo isso, e, junto, concordavam com a velha
afirmativa de que esse mundo estava cada vez mais louco.
A viatura se aproximou cada vez mais e - que bonitinho - todos
recarregaram as armas ao mesmo tempo. Quando os clicks cessaram, não
restou tempo para a caça continuar. Um dos carros acabara de bater numa
segunda viatura.
- Meu Deus do céu... – rezou o Ponto 40, tanto de espanto, quanto de
agradecimento.
Viraram-se sentindo o sangue em espiral, e o carro partiu para o asfalto
mais uma vez. A percepção do motorista – Teiú - passou de desesperada
para completamente turva. Tremeram pelo asfalto e sairam em uma
estrada de terra, acelerando mais e mais ao passo em que perdiam a
razão.
O carro caiu em um barranco e seguiu descendo, até bater em uma
árvore.
3 - Frio
O cheiro de óleo era forte. Acordaram praticamente ao mesmo tempo.
Estavam no meio de um mato fechado e agressivo, encostados no carro
como bêbados na madrugada. Só se recordavam de uma cabeça
explodindo e de dois carros batendo.
- Deus do céu... – 40 dizia. – Onde que a gente tá?
- Na merda, aparentemente – a cabeça do comparsa descia e subia,
enfeitada por sangue seco.
Ficaram em silêncio por mais um instante, tentando assimilar as ideias,
mas as lembranças não chegavam gentis, vinham acompanhadas pela
mais insensível das más vontades.
- Tenta ver no celular, sei lá.

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Arrastou-se até o carro e encontrou o celular, sua superfície guardava
buracos mais profundos que os da estrada.
- Desgraça – disse. - Só nós dois sobramos, mano. Tudo o que podia
ter dado errado deu.
- Não começa a se desesperar – condenou. – Já estamos fodidos o
bastante. Pega o dinheiro e as mochilas, foda-se, vamo sair daqui antes
que nos encontrem.
Haviam duas bolsas de mantimentos e cinco de dinheiro.
- Não devemos estar longe, é impossível. Pega uma por precaução e
levamos três. Isso tudo tem que valer de algo, porra... Já perdemos muito.
- eram bem pesadas, então cada um levou duas.
Caminharam, caminharam e caminharam, se sentiam dentro de uma
floresta, e até poderia ser, já que o rosnar de uma onça perambulou por
alguns corredores do subconsciente. A noite chegou num piscar de olhos,
e, com ela, o mais violento frio que sentiram em suas vidas. Não tinham
roupas fortes, nem barracas, nem nada. As bolsas de dinheiro
rapidamente se tornaram bolsas de calor.
- Eu não acredito que estamos fazendo isso.
Notas de cinquenta queimavam, as de dez iam junto, dentes famintos
espreitavam entre as árvores.
4 – Ruídos
Não escolheram por isso, mas acabaram dormindo quando pararam
para descansar. Atingiram uma estrada ao nascer do sol.
Perderam pelo menos três mil reais para o fogo e frio, já que os paus
simplesmente não queimavam direito. Aparentemente caíra uma chuva
forte enquanto dormiam, o céu se estendia nublado e misterioso. A terra
subia, mesmo molhada, formando aquelas esferas de poeira que os ninjas
usam para se teletransportar. Os dois não caminhavam, se levavam, a
sujeira das roupas e a fraqueza dos pés criavam um ar bestial horrível.
- Olha no que a gente se meteu, meu Deus do céu – desesperou-se.
- Agora fala de Deus, né? Cala a boca e caminha.

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- Respeita. Ele nos protege também. Protege todo mundo.
- PORRA! – exaltou-se o Teiú – Você já atirou no joelho de um cara
por causa de cem reais, moleque. O diabo vai te comer com farofa.
- Ok, madre Teresa – respondeu. - Eu acredito no perdão, vou sair
dessa vida, isso aqui é uma mensagem.
- Te matam antes. Não existe ex nesse ramo.
- Te matam quem? Um morreu e o resto deve ter beijado bota de
policial a noite inteira. Só restamos nos dois, você não...
- Por mim você vai pro quinto dos infernos e constrói uma casinha, tô
nem aí. Só quero o meu dinheiro. Prefiro morrer de frio a fazer aquilo de
novo.
- A estrada não é grande – acalmou-se o 40. – Vamos encontrar ajuda
e...
Um som de carro veio até eles. Os homens da lei estavam a quarenta
por hora, devido às más condições da estrada, mas quem era quarenta por
hora, medo e frio perto de dois homens com medo de tomar uma surra?
Sumiram na estrada em dois tempos.
- Desgraça. Desgraça. Desgraça... – repetia o Teiú, os ruídos ainda
vinham.
- O barulho tá aumentando! – gritou o Ponto 40.
O ronco se assimilava muito ao motor do carro, uma cópia perfeita, só
que muito mais alto. O problema é que vinha da direção para onde
corriam.
- Que porra é essa?
Viraram a curva aos tropeços, deram de cara com a criatura, mas o
cérebro não processou corretamente no primeiro instante. Quando o fez,
paralisaram. O monstro estava agachado, atingiu quase dois metros e
meio quando ficou de pé. Era peludo, vermelho, dono de uma língua
gigante que saía para fora de uma boca vertical. Essa ficava na barriga,
enquanto acima do pescoço não pairava uma cabeça, mas um olho único,
gigante e vidrado.

78
- Meu pai do céu...
Só o barulho da sirene cancelou a paralisação. Se jogaram de cara no
mato e nem sentiram os galhos rasgando o rosto. Caíram, esconderam-se
atrás de uma pedra. As pernas se recusaram a correr.
O carro da polícia veio a todo vapor, pois haviam visto os dois quando
fugiram. Ao também virarem a curva, o carro perdeu toda a estabilidade
que possuía, já que não é muito simples dirigir e se borrar de medo ao
mesmo tempo. Findou na língua, enrolado, devorado numa bocada só.
Os olhos travaram, não podiam confiar no que viam. Comeram algo
estragado, só podia, estavam sob o delírio de um desmaio, ou, se não,
haviam morrido na perseguição e aquele era o inferno: uma floresta
infinita, fria e com o diabo em suas colas, não muito diferente do que
fora a vida.
Aparentemente, o estômago daquela magnífica e odiável criatura não
apreciou tanto o lanche. Cuspiu pneus, agarrou a barriga, vomitou algo
que poderia ser gasolina mas que a razão implicava em dizer que era
sangue. Não dele, claro.
Paralisados novamente, só correram quando o rugido deu toda a
vitalidade que o monstro precisava. Assim se iniciou a perseguição.
5 – Mergulho
Já nem sabiam onde estavam as bolsas. Só pensavam na própria bunda,
óbvio, já que dinheiro não serviria de nada para homens digeridos por um
monstro caolho. A criatura lançava coisas com a língua, segurava,
parecia furioso. Ponto 40 e Teiú saltavam entre os troncos, acoados pelo
barulho ensurdecedor que a corrida e a raiva causavam no ambiente.
Sentiram o vento de quase-morte quando uma árvore explodiu em outra.
- Meu Deus do céu!
- A gente tem armas, porra! – gritou o Teiú.
- Que?! – reagiu 40.
- ARMAS, PORRA!
- NÃO VAI FUNCION...

79
Teiú quis nem saber, parou tirando um revolver – só pegaram dois – e
disparou.
- DESGRAÇADO!
As balas perfuraram o pescoço, o peito e as pernas, mas o bicho
continuou, implacável, até chutar o pobre homem para o alto de uma
árvore. 40 não chegou a ver, mas o som do impacto dizia o destino que o
amigo tivera.
- Não...
Lamentou, e caiu barranco abaixo quando correu, sem controle. Ao
abrir os olhos, só via a criatura por cima de seu corpo.
- Por favor... Por favor... Não...
A língua do monstro tremia, solta no ar, pingando baba enquanto
guardava folhas na superfície. Os pelos vermelhos roçavam nas pernas,
esticados à guisa de agulhas. O olho único era a pior parte, cada piscar
instigava um futuro pesadelo, e mais ainda quando aliado à lembraça de
Teiú morrendo. Rodeou o pescoço e começou a enforcar, as veias
saltaram e a visão escureceu. Morreria, mas na primeira visão da
infância, no primeiro clarear da luz branca, o monstro despencou.
Enxergou-o cuspindo um motor para fora de seu estômago (se tivesse
estômago, vai saber).
40, desesperado, jogou-se para outro barranco, deslizou e parou ao
lado de um rio. Um trovão balançou o céu - literalmente, as nuvens
pareceram girar, falhar e voltar ao lugar. Ouviu o seguinte grito:
- Ali! Pega ele, porra!
Policiais desceram apontando armas. O monstro surgiu, saltou por
cima dos bons homens e só não esmagou os que conseguiram correr. 40
tirou as roupas mais rápido do que um casal terminando uma discussão e
foi direto para a água. De olhos fechados, esperava bater pelo menos o
joelho em uma pedra, mas acabou batendo tudo, pois a água contornou
seu corpo ao desejo da criatura.

80
O sorriso vertical chegou ao rosto e a língua rodeou o pescoço mais
uma vez. Enquanto a ‘’vida’’ ia embora, os dedos se transformavam em
números.
6 – Reprovado
- Tirem ele daí. Coloquem na outra mesa. – comandou um homem de
armadura tática.
- Oh, merda – disse o rapaz, sendo carregado.
- Ricardo Santana. 70% de aproveitamento. Reprovado. Próximo.
- Por favor, Coronel, me dê mais uma chance! Você sabe que valho a
pena, faltou pouco. – homens de lata tiraram o óculos de sua cara.
- Não é possível, Ricardo, não agora. Quarta reprovação. Passe na
psicóloga, sim? Ela vai te ajudar a separar melhor as coisas. Com a
aprovação dela posso pensar em autorizar o seu retorno, está bem?
- Sim, muito obrigado. Não vou decepcionar a organização mais uma
vez.
Os robôs levaram a maca até o corredor, onde sumiram. Na mesa, o
Coronel ligou um gravador. Disse:
- Vinte e oito de novembro, quarta reprovação do candidato Ricardo
Santana. Sua simulação correu bem até o momento em que não pôde,
mais uma vez, separar o personagem do real. Por medo, não absorveu as
informações necessárias sobre a criatura, suas habilidades e fraquezas.
Apenas correu, deixou os outros morrerem e terminou também indo à
óbito, apesar das ajudas externas que possuía por direito. Aconselhei-o a
conseguir autorização do setor de psicologia. O estudo sobre as
criaturas nortenhas corre bem, passaremos às do sudeste logo quando
formarmos nosso pelotão, devidamente treinado e preparado para
captura e abate. Agradeço a paciência da gentil presidente e dos
colaboradores. Casos como esse acontecem, mas não diminuem em nada
a grandeza do trabalho. Coronel Mattiacci, agradecido, desliga.

81
82
Supernova
O Templo dos Magníficos

V ia láctea, galáxia espiral, 27ª realidade, onde não há vida na

Terra, humanos nunca existiram e a água não é fonte de vida. O


indispensável é a Supernova, só ela, por capricho divino ou coincidência
temporal. Energia vital, a alma maleável... Classificavam a Supernova de
muitas formas antes da praga surgir e dar luz à crise dos corpos. Agora
era a selvageria, os impérios, facções, mercenários que roubam e matam
por sobrevivência e dinheiro. A Supernova é a vida, ora, e naquela
galáxia, agora, a vida era mercadoria.
<>
Alkar Zr’ileé, da raça T-wok, mercenário desertor formado na facção
de Ilbax, o gigante. Agora, no planeta Sinfonia, da 27ª realidade, 50 anos
pós crise dos corpos, onde as ruínas dos Rapons se erguem e perecem.
Deixou a nave logo na entrada, onde muralhas destruídas formavam
peças surrealistas. Sua pele áspera, típica da raça, sentiu o frio de
Sinfonia entrando e saindo. O templo estava no fundo, magnânimo,
qualquer um diria que ainda funcionava. Dois Rapons gigantes de pedra
pairavam aos pés de uma escada, segurando as lanças típicas da espécie.
A situação era bem diferente nas casas, onde reinavam as ruínas do que
um dia fora belo e próspero.
- Nível.
Sua armadura brilhou luzes no antebraço, onde a palavra ‘’Médio’’
surgiu. Era a única Supernova que possuía, e não levava um único tostão
no bolso.
- Analise.
O capacete escaneava enquanto Alkar seguia. Ia em tudo, achava nada,
seus arcos vermelhos não conseguiam atingir o templo. Estava sozinho,
isso era bom.

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- Analise. – repetiu.
Arcos vermelhos saíram, não era o bastante mesmo em frente às
escadas. Havia algo lá dentro que impedia bisbilhoteiros, óbvio.
‘’Templo dos Magníficos. Arquitetura Rapon. Dedicado aos antigos
heróis da raç... Ra... Raç...’’
A voz do capacete se dissipou em um eco. Conferiu o outro braço.
Energia cheia.
- Hum...
O acessório abriu-se para trás, formando uma sanfona na nuca. Seu
rosto era o T-Wok comum: nariz achatado, orelhas grandes horizontais e
olhos fundos. Sem pelos, a pele cinza-azulada evocava o céu de um dia
nublado.
Ergueu as mãos, duas pedras levitaram junto. Olhou para um lado, para
o outro, esperando ouvir o barulho que precederia o esmagamento do
possível inimigo. Nada veio. Controlou-as para que orbitassem ao redor
do corpo. Não seria muito inteligente gritar pedindo para que se
revelassem, então fez o mais lógico: tentou ler mentes. Levou três dedos
a cada um dos olhos e o fez. Caiu no chão logo quando a primeira onda
chegou:
- VÁ EMBORA! TRAIDOR!
Claro, se referiam ao apoio T-Wok na independência dos Drumms, o
motivo da rivalidade entre as duas raças. Mas de onde vinha? Por quê
não fora uma leitura limpa? Não é muito fácil acuar a mente de um Wok.
Se recompôs, veloz, largou as pedras, puxou o revólver e seguiu pelas
escadas. Podia facilmente ser outro T-Wok, o que complicaria as coisas
em mais ou menos setenta e cinco formas diferentes.
O céu era roxo e vigilante, se estendia sob o templo pentagonal como
se fosse só dele. Era uma bela estrutura, formada por rochas muito bem
organizadas, e não haviam andares visíveis, já que o seu interior seguia
ao subterrâneo. Passou pela porta – um grande triângulo – enquanto
tentava sentir armadilhas, mas nenhuma se revelou. Andavam pelas

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paredes desenhos de Rapons antigos, símbolos indecifráveis, frases
inteiras. Não sabia ler nada daquilo. Todas as letras se moviam,
embaralhavam, então não se importou com o carinhoso recado de ‘’VÁ
EMBORA!’’ que os antigos lhe enviaram.
<>
A primeira visão do interior revelou uma verdadeira obra de arte. O
chão e o teto guardavam pinturas magníficas de guerreiros corajosos,
muitos da primeira linha de batalha. Via-se atiradores, aliados, e,
principalmente, soldados com lanças. Raças inimigas eram representadas
por moribundos e traidores, mal desenhados, vilões construídos por
interesses de uma época distante. Uma tábua de pedra gravava as
seguintes palavras no idioma comum:
‘’TEMPLO DOS MAGNÍFICOS – Onde heróis descansam e sonhos
nascem’’
Enquanto lia, fechou-se de repente o triângulo. Era engraçado, pois
vento não era, tampouco outra pessoa. Digo com essa certeza pelo
simples motivo de que o triângulo (ou porta, se preferir) era um buraco.
Tentou ler mais uma vez, e agora não vieram gritos, nada que o
atormentasse além do assobio sinistro do silêncio. Jogou a arma frente ao
corpo e seguiu a passos rápidos em direção das escadas. Só queria pegar
o maldito bracelete e ir embora, mas sabia que algo mais sério
aconteceria ali.
O andar era repleto de luzes roxas e azuis. Duas estátuas, no fundo,
seguravam um escudo original, ainda com cicatrizes. Havia um odor
incômodo e ossos estranhos espalhados pela sala. Alkar não era o
primeiro a pisar ali. Atrás do escudo e das estátuas, uma escada seguia
para outro salão. Passos vieram de lá.
O mercenário atirou, tentando impedir o avanço do inimigo, mas nem
o segundo e nem o terceiro tiro cessaram o avanço da criatura. Veio de lá
um robô em forma de Rapon, sem um braço, soltando faíscas, mais
ferido que o tal escudo.

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O rosto era o perfeito padrão da raça. Olhos pretos mantinham-se
perfeitamente acima de dois buraquinhos, como se precisasse mesmo
respirar. A boca formava um arco de mau humor eterno e a mão de três
dedos segurava uma lança. Qualquer um poderia jurar que era um Rapon
verdadeiro, se não fosse uma particularidade que a engenharia daquele
tempo fora obrigada a sobrepor a estética: dedos retangulares.
- Invasor – disse. A voz mais lembrava um filósofo que um robô.
O tiro foi a resposta de Alkar, a lança girou e o absorveu, adotando
para si uma tonalidade avermelhada que logo desapareceu quando o
chicoteou de volta. O mercenário levitou o escudo para si, quebrando as
mãos de estátuas seculares, viu a energia rubra desaparecer.
- Alkar Zr’ileé. T-Wok. 52 anos. Dono de uma Desbravadora-8. Fim
das informações.
- O seu Templo está morto, protetor. Não há mais o que defender. Sua
raça se mudou.
- T-Wok... – repetiu.
O robô derreteu, escorreu pelo chão e desapareceu sem deixar rastros.
Ainda com o escudo, Alkar correu até as escadas. Atirou nas duas
estátuas que o aguardavam, reduzindo-as a pedaços miseráveis de um
passado glorioso. A parede, de repente, acertou violentamente o seu
rosto.
Sangrando, rolou escadas abaixo. Não fazia ideia do que o tinha
atingido, tudo estava escuro, só conseguia enxergar um pequeno fio de
luz roxa, em cima, que logo desapareceu.
Então viu.
<>
Tudo era transparente, era possível enxergar a terra ao redor e o céu em
cima, como se não houvessem andares no templo. Apesar da tonalidade,
as paredes não deixaram de se mover. No canto - meio que sorrindo,
meio que encarando - o protetor surgiu de dentro delas.
- Alkar Zr’ileé. T-Wok. Procura o Bracelete de K’á.

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Alkar atirou. A parede se moveu e o tiro explodiu na transparência,
deformando o rosto do inimigo em neon.
- Sim. O Bracelete – entrou de volta e surgiu mais uma vez, agora do
chão, balançando os dedos retangulares – Se é isso que quer, terá sua
chance.
Um pequeno altar surgiu, e lá estava o item, erguido, apenas esperando
uma mão corajosa.
Não haviam saídas, pois o Templo era maleável, só restava a luta. Era
um salão enorme, com algumas estátuas, todas intactas, a transparência
criava uma sensação permanente de levitação para todos. Ao lado do
altar, duas delas em especial mostravam armaduras maiores, de guerra,
coisas que apenas comandantes e líderes poderiam usar. Foram
justamente esses que se moveram, para o azar do T-Wok. Derreteu-se
novamente o protetor, agora aos pés dos Magníficos, ao mesmo tempo
em que giravam suas lanças e iniciavam o ataque. O escudo foi à frente
de um dos olhos e o revolver mirou as cabeças. Foi-se o laser na
transparência, explodiu criando laços e fios por todo o salão. Atiraram
lanças, Alkar se esquivou, e voltaram às mãos desenhando arcos. Girou
uma engrenagem do revolver e apertou o gatilho mirando o chão. A arma
esticou-se em luzes cegantes, formou uma espada completa.
Com o escudo, correu em direção dos inimigos. Saltou um ataque com
a lança – eram tão rápidos quanto os Rapons reais – e explodiu a defesa
na cara do outro. Girou a lamina em direção do pescoço e só não o cortou
fora porque o chão levantou seu corpo até o teto.
Bateu a cabeça na transparência, enxergou o sorriso do protetor. Mais
estátuas surgiam ao redor, do nada, caiu e sentiu a lâmina secular se
quebrando na nova armadura. Rolou antes que outra perfurasse o
respirador. Mais duas estátuas começaram a se mover.
Abandonou a espada no ar e controlou-a com a mente para que
orbitasse acima de sua cabeça. Cercaram-no e, a cada tentativa de ataque,
a arma revidava automaticamente.
- Lute, protetor! Covarde!
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Uma risada viajou pelo salão.
- Não percebe? Eu não protejo ninguém... – disse – Eles me protegem.
Um dos magníficos tentou investir, a espada de Alkar cortou três dedos
fora. Percebeu logo o que acontecia ali. Os dedos eram retangulares!
Cortados manualmente, ainda com lascas, por mãos confusas e solitárias.
<>
Não havia tempo para conversas e teorias, comandou a espada e fez o
primeiro se reduzir a pedaços. Os outros três martelaram suas costas,
golpes estranhos, mal feitos, coisas que Rapons nunca fariam. E não
eram Rapons, por mais que tudo o confudisse, eram apenas blocos de
pedra. Sentiu a armadura rachar enquanto fatiava o segundo, caiu girando
quando uma das laminas acertou o ombro. O rosto mirava o teto, mirava
o chão, mas logo não conseguiu distinguir o que era o que. Poderia
facilmente ter destruído todos os inimigos, mas o cenário o enlouquecia a
ponto de batalhar tão mal quanto aquelas rochas. Virou-se, do rosto de
um controlado surgiu a face do protetor.
- Traidor.
O chão subiu, as paredes estreitaram e Alkar se viu novamente em pé,
mas preso por todos os lados. A espada fora engolida por uma língua
criada pela parede.
- Não há vida em você! – Berrou o T-Wok. – Você não possui
vontades!
- Não? – Seu corpo, para fora, lembrava uma centopéia. – Ainda que a
programação assombre o meu corpo, criaturas como você sempre surgem
para lembrar quem eu me tornei. Vocês são o conflito.
O corpo quebrou-se, o robô saiu por completo de dentro do seu
protetor. Percebeu que não só o braço faíscava, mas parte da cabeça
também, um lugar pequeno, mas visivelmente amassado.
Luzes vieram do céu.
<>

88
Lá fora, duas naves de bom tamanho rodeavam o teto do Templo.
Eram vermelhas, a cor dos Ravachis. Seu rastro se tornara mais vagaroso,
indicando o processo de pouso.
- ME AJUDEM!
- Eles não podem te ouvir.
Paredes pingavam, os olhos de Alkar perdiam vida. A sensação era
quente, as pedras que lhe prendiam começavam a desaparecer, agora
entravam em suas veias, de forma indolor, e não possuia mais o controle
do próprio corpo. Sentiu a dor de uma agulhada, e já não se lembrava o
que era dor. Nem quem era. Nem nada.
- Alkar Zr’ileé. T-Wok. Procura o Bracelete de K’á – disse. – Desertor
da facção de Ilbax, o gigante. Abandonado com três anos de vida.
Mercenário de profissão e apostador compulsivo. Bom com números,
ruim com letras. Prefere o vermelho ao azul – a boca se abria, os olhos
assistiam as naves pousando. – Agora, protetor de Q-37a, Deus da
lucidez, imperador.
Os braços entortaram, os pés esticaram, a postura arqueou. O rosto
esticado, morto e vivo, a pele perdendo a cor.
Os dedos do robô se fizeram lâminas, Alkar foi moldado desde as
botas até o capacete. Um magnífico perfeito, de lança típica, glória
natural e dedos retangulares.
<>
- Vá! Lance! – a voz fina do Ravachi ecoou por Sinfonia.
Seu tripulante jogou uma esfera detectora. Logo retornou.
- Aqui diz que não existem armadilhas.
- Então se movam. Armas em mãos.
Entraram logo no Templo, sem enrolar. Os três tripulantes seguiam
dando cobertura, enquanto o chefe, na frente, se deparou com o cenário.
- Permaneçam atentos.
Lá no final, tranquila, uma única estátua se mantinha de pé. Segurava
uma lança, olhava pro nada, transmitia um sentimento ao mesmo tempo
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vazio e preenchido. O capitão logo se aproximou, encarou-o por um
longo minuto.
- Alguma coisa aí, chefe? – indagou o tripulante.
- Não, não... – Respondeu. – Mas é uma bela peça. Os antigos sabiam
mesmo como fazer as coisas.
Lançaram mais alguns olhares para o salão vazio. Desceram as
escadas.

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Esconderijo

D eitado, ferido, estrangulado pelo medo. Mais uma vez havia


escapado da morte. Meu corpo sangrava, cortes latejavam em suor e
fogo. Quanta escuridão... Quanto fedor... Maldito necromante, eu te
amaldiçoo! Não se cansa de me perseguir? Tem mesmo que atacar com
seu chicote flamejante? Dessa vez a batalha havia sido dura, minha
espada parara as luzes e explosões, mas o que eu, minúsculo, miserável,
poderia fazer contra os raios, o caos incitado? Corri, me escondi, estava
no lugar que sempre me salvava. Até quando me protegeria, entretanto?
Ele viria mais uma vez, sim, me encontraria no musgo, na água, no lixo,
como se minha alma já houvesse se esvaído para abismos de desespero e
lamentações.
A escuridão eterna me abraça, minha armadura pesa, cada respirar é
uma dor distinta. O inimigo diz que não sei o que vejo, que o que ouço
não é a verdade, insiste que o meu sentir sempre está errado. Responda,
meu Deus, em sua imensurável sabedoria, algum homem é mesmo capaz
de dizer o que é real? O que vivemos, sentimos, a história por trás deste
monte de carne e sangue.
Passos no corredor.
Me desespero, peço ajuda aos céus, pois aqueles passos sempre
avisavam que algo horrível aconteceria. Não vou recuar... Não dessa
vez... Não posso fugir quando tantos dependem de mim. Acabará aqui.
A mão na porta.
Fico de pé, ergo a espada, seu brilho branco me apavora. Não consigo
enxergar o que me rodeia, mas uma luz insiste em se espalhar pela
fechadura. Desaparece e, tapada, tenho a confirmação de sua chegada.
- Saia – ele diz. A voz é horrível, me joga para trás, confunde os meus
sentidos. Ergue os esqueletos do esconderijo.
NÃO! – eu grito. A porta se abre, o corpo monstruoso aponta, os
monstros me rodeiam. Destruo todos, giro a espada, sinto a armadura
sendo arranhada, mas eles voltam, sempre voltam, são indestrutíveis. Me
consomem enquanto a escuridão é engolida pela palidez.
VOCÊ NÃO ME VENCERÁ! – insisto.

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Ele já estava lá, parado frente à minha desgraça, ouvindo gritos com
prazer, apreciando a minha figura estirada no estofado. Me encarou,
balançou a cabeça e, segurando uma bandeja, declarou o seu feitiço:
- Osvaldo, pare de gritar e tome os seus remédios. Se desobedecer,
buscarei o chicote.
Os antigos ferimentos se abriram nas minhas costas.

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94
O que os olhos veem
1

C léber e Luís, sentados num ônibus que seguirá até o centro.

Conversam, na esperança de que o tempo não passe, sentem a juventude


queimando suas peles. Aqui, neste ônibus, se inicia uma noite em que o
inesperado atingirá suas vidas. Não da forma que as imagens da internet
e os filmes americanos passam, mas o verdadeiro inesperado, aquele que
nenhum viciado em adrenalina deseja viver.

Um céu muito estrelado cobria a avenida mais barulhenta e


movimentada da cidade, tão mal iluminada quanto ensurdecedora.
- Ou... – papeou Luís, olhava para a rua enquanto o ônibus parava no
sinal - Já pensou como é fácil marcar o dia de alguém?
- Ãn? Do que cê tá falando? – respondeu enquanto guardava uma lata
de spray na mochila.
- É, ué. Olha só aquela senhora ali na banca.
A velhinha comprava uma revista de passatempos como quem
consegue garrafas d’água após dois dias de sede. Contava moedas com
uma habilidade majestosa, mas a visão não era tão boa assim.
- Que tem ela?
- Eu posso apostar com você, aqui, que esse... Que dia é hoje?
- Vinte e sete de maio.
- Que esse vinte e sete de maio, pra ela, não teve nada de especial.
Mesmo se for o aniversário da bendita, mesmo se o cachorro aprendeu
um truque... Ela só vai deitar e dormir.
- Certo... Certo... E daí?
- Veja... – disse, e se colocou para fora da janela. – Ei, EI! QUANTO
TEMPO!

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A moça tomou um susto, a revista enrolada se soltou como uma mola
na medida em que a pele embranquecia. O ônibus seguiu viagem.
- OLÁ! OLÁ! – finalmente respondeu, balançando a mão e sorrindo.
- Ok... O que é que foi isso? – perguntou Cléber, assistindo o amigo
voltar.
- Como o que foi? Ela vai ficar pensando a noite inteira sobre quem eu
sou, de onde me conhece, essas coisas! Só bastou um estranho acenar pro
dia tomar um rumo diferente, percebe?
- Percebo... Mas, seguindo a sua lógica, um assaltante só está fazendo
o favor de marcar o dia de alguém.
- O senhor está deturpando as minhas intenções.
- Esse é o meu trabalho – e riram.
Um homem atravessou a catraca enquanto o cobrador fumava um
cigarro, só então o ponto chegou. Desceram. Luís amarrou o tênis, Cléber
apertou a mochila nas costas.
Vazia e suja, a rua parecia sempre em segundo plano, coadjuvante
perto dos exóticos e raros transeuntes. Uma gangue de cachorros
atravessou a calçada perseguindo uma sacola, enquanto um cão playboy
latiu de dentro do carro, condenando a ação nada polida dos sete. No fim
dessa mesma calçada, uma moça surgia caminhando, toda imponente em
seu rabo de cavalo e tênis all star.
- Na hora, ein? Tô morrendo de fome.
- Também estamos bem, Vanessa, e você? – disse Cléber.
- Ah, se ferrar... Nós três nos falamos o dia inteiro e você quer que eu
chegue de beijinho na bochecha?
- Queremos. Somos crianças carentes e sofridas – começaram a
caminhar.
- Eu acreditaria no seu papo se, bem, nós não morássemos na zona sul.
- O que mais tem na zona sul é carência – retrucou o Cléber. – Não se
lembra do João?
- É! O João! – confirmou Luís.
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- Você nem lembra quem é! – acusou Vanessa.
- Verdade seja dita.
- Blé! – continuou a moça. – Eu tô dizendo carência de verdade, não
ouvir música triste e passar sombra nos olhos.
Militares passavam fazendo exercícios, carros rodavam pelas ruas.
Muitos postes. Muitos letreiros.
- Metade da sala era louca por ele, e ele insistia em acreditar que era
sozinho no mundo.
- Aaah, o João! Era um cara legal, pô! Me emprestava altos jogos.
- Que bonitinhos – reagiu Vanessa.
- É... Até o pai dele dar a louca e mandar ‘’parar de andar com
vagabundo’’.
- Ah, a festa – Cléber quase tropeçou.
- A festa! Eu enxergava uma garrafa, o véio via o fim do mundo. Fazer
o que?
- Luís Neves, levando pessoas para o mal caminho desde 1998.
- Como acha que fui o espermatozóide vencedor?
Dobraram a esquina às risadas, enquanto uma lanchonete apontava no
final da rua e um gato caolho perambulava por cima do muro.
2
Mataram a fome e tacaram guardanapos no lixo. Dois velhos jogavam
damas lá dentro, um mendigo brigava com uma lata de lixo lá fora.
Estava frio.
- E aí, pra onde vamos? – perguntou o Luís.
- Vi na internet que tem um lote abandonado há quatro quarteirões
daqui – Vanessa tinha aquela voz de quem sabe das coisas.
- Atualização de quando?
- Dois meses atrás.
- Meia noite e meia... Nu! – Cléber olhava para o pulso, incrédulo. Era
do tipo que usava relógios.

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- Eita, esse dia voou.
A rua, no momento, era fria, vazia e medonha. O céu estava cheio, a
iluminação precária, os paralelepípedos invadidos por arbustos valentes.
Na primeira esquina, um muro repleto de pixações surgiu. Iam desde
imagens de desenhos infantis até símbolos nazistas pixados por
sulamericanos. Não dá pra esperar muita lógica de nazi, né?
- Ué... Não era daqui quatro quarteirões?
Vanessa estava boquiaberta, demorou um pouquinho pra responder.
- É... Que coisa... Devo ter visto errado.
- Bom que andamos menos. Agora vamo logo, se não quiserem voltar
pra casa de viatura, claro – Luís pegou uma lata de spray. Os outros o
acompanharam.
Há atrás do tal muro um grande lote abandonado, pai de inúmeros
focos de dengue e amores proibidos. A rua, vazia e escura, faz como se
quisesse lançá-los de volta para suas casas, mas a confusão logo passa
quando a diversão começa. Pixam letras estranhas, rostos sorridentes e
paralelas.
Cléber, Luís e Vanessa, pixando um muro de uma rua desconhecida.
De um lado há a juventude, jovens de classe média-alta e pequenas
amostras de adrenalina, do outro, além dos tijolos, um homem puxando
um semelhante pelos cabelos. O chacoalhar das latas ecoa pela rua. A
vítima não grita, está desacordada, a silhueta carrega-o para algum lugar.
3
Continuaram com seus desenhos por mais alguns minutos, então
decidiram seguir a rua. Vanessa arrastava o dedo na parede enquanto
caminhava, pensando longe, olhando pra baixo.
- Ei, Vanessa, lembra quando o pai do Cléber achou as latas?
- Ou! – reagiu o Cléber.
- Você nunca mais sai dessa casa, seu energúmeno! – Imitava a voz
dos adultos e simulava uma barriga com as mãos. – Perdido! Salafrário!
Ordinário!

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- Cala a boca! – empurrou o amigo, sorrindo.
Vanessa seguia quieta.
- Ei! – repreendeu Luís.
- Uh? – ela reagiu.
- Tá lá em Júpiter, ein?
O barulho do dedo se arrastando.
- Ah sim, desculpa. Ainda tô com esse lance dos quarteirões na cabeça.
- Relaxa, não é nada. É só...
O dedo de Vanessa escapou, seu braço entrara quase que inteiro dentro
de um buraco. Por pouco não caíu lá dentro.
- Eita...
Batia a poeira aos xingamentos.
- Da onde essa droga surgiu?
- A gente trouxe as lanternas? – Cléber perguntou.
- Pra que? – Luís também deu uma olhada.
- Vamo lá dentro, deve tar limpo.
- Cê é louco... Deve ter até cobra aí.
Vanessa logo interferiu:
- Que ótima ideia, caramba! Entrar num lote vazio, escuro e...
As luzes das duas viaturas foram o bastante para a voz cessar. Giravam
como numa boate, vinham dos dois lados da rua.
- Merda!
- Gente... Não...
- Você quer ser presa?! Entra!
Não haviam contra-argumentos ali, nem sabia o que seria da sua vida
se a família descobrisse que o exemplo das crianças era uma deliquente.
Entraram no buraco sem grandes dificuldades.

99
Os carros da polícia seguiram pela rua, sem pressa, lentos como um
computador do final dos anos 90. Os três engoliam seco àquela altura, e
se amedrontaram mais ainda quando ouviram a voz dos dois.
- E aí, viu alguém? – o policial parou o carro bem ao lado do outro.
- Ninguém. Vamos continuar no bairro por mais algum tempo.
- Beleza.
Aceleraram e sumiram na escuridão, trazendo o silêncio absoluto mais
uma vez. Suspiraram. Respiraram.
- Quase – meio que comemorou.
- Bota quase... – respondeu Vanessa – Agora por favor, vamos sair
logo aqui. Esse lugar já tá dando medo.
Uma bola de fogo subiu subitamente ao céu, lançada do centro exato
do lote. Iluminou os três, quase caíram de susto.
- Caramba... Tem alguém soltando fogos? A polícia...
- Aparentemente eles desceram – Luís já estava com a cabeça no
buraco, o que, escrevendo assim, soa meio estranho – Não subiu tão alto,
o que deve ser?
- Não importa. Vamos embora. – Vanessa disse logo.
- Vocês não querem saber o que foi isso não? Porque eu quero. –
começou.
- Luís, pelo amor de Deus, deixa de ideia errada.
- Relaxa, moça. Não tem perigo. – Cléber apoiou, já pegando as
lanternas.
- E se for algum traficante? O que vocês tem na cabeça?
- Calma. Se for perigoso a gente volta, simples assim.
Vanessa não teve opção, era seguir os dois ou ficar sozinha no meio do
nada. Fechou a cara, já planejava os xingamentos e os ‘’eu avisei’, mas
foi.

100
Deram nada mais que dez passos, sujando os pés em pequenas moitas
úmidas. Quem diria que aquele lote era tão grande? Poderia abrigar
qualquer famoso excêntrico, segurar casas tão imensas quanto vazias.
Outra bola de fogo subiu, iluminando tudo mais uma vez. O breve
instante em que os olhos puderam enxergar fora o bastante para joelhos
dobrarem até o chão. Viram quatro sujeitos de roupas longas - amarelas e
pretas-, com capuzes que tapavam metade do rosto. O tempo... O tempo
em que houvera luz não fora o bastante para decifrar o que estava largado
no chão, mas parecia um homem, amarrado, levitando.
- O que foi... O que foi aquilo?
- Meu Deus...
Aterrorizados, apagaram as lanternas instintivamente. Os pés não se
moviam. Nunca haviam usado drogas naquela vida - só nas passadas -,
mas ainda assim questionaram a própria lucidez.
Mais uma bola subiu, confirmando que o homem realmente levitava.
Volta a escuridão, olhos arregalados, cada centímentro de pele tremendo.
Outra bola, e da onde saía? O pobre rapaz ainda girava cercado pelos
componentes daquela sinistra seita.
A luz voltou mais uma vez, só que agora não havia homem algum no
centro.
- Vamos embora, rápido! – Vanessa se desesperou, puxando os amigos
para fora da angústia.
Viraram, ligando as lanternas, e a linha de luz acertou o rosto de um
quinto cultista. Um grito horrível escapou das bocas quando a criatura
ergueu uma mão putrefata. O fedor foi substituído pelo cheiro de tinta
quando Vanessa esvaziou a lata em seu rosto. Aquilo, de certa forma,
havia dado a coragem que faltava para a fuga.
Saltaram por cima daquilo, correram para o lugar de onde vieram.
4
- Que merda!? – berrou Cléber, retomando.

101
- Só corre, porra! – vai dizer que você contém os ânimos quando está
fugindo de cultistas, leitor? – Vai!
Já era possível enxergar os postes da rua, e, que coisa, pareciam mais
distantes do que deveriam. Os raios das lanternas se cruzavam,
iluminavam rostos deles e dos outros. Já corriam por vinte segundos.
- O que tá acontecendo? A gente não se afastou tanto assim!
Um grito precedeu a queda. Pararam, miraram as luzes, assistiram uma
mão levando-o embora.
- CLÉBER! – rugiu Luís.
Atirou a lata com toda a raiva possível. Inútil. A mão do amigo
desapareceu na escuridão.
- NÃO! – gritou mais uma vez.
Os papeis se inverteram, agora eram eles quem perseguiam os
inimigos. Luzes e gritos revelavam que Cléber ainda estava sendo
arrastado.
Vanessa disparou sua lata, só então o corpo do amigo parou. Reergueu-
se, correu em direção dos dois, mas não fora libertado, longe disso,
soltaram-no apenas por um breve prazer vil. Voou para o vazio.
Desapareceu mais uma vez.
Correram atrás, correram muito, não encontraram nada.
- Não... – lágrimas já desciam dos rostos.
- Quem são vocês?! – rugia – Isso não é engraçado, porra!
A distância dos postes parecia a mesma, sentiam-se correndo atrás de
uma montanha. Os raios das lanternas paravam na escuridão, o
sentimento de confinamento e a falta de ar tornava quase impossível
manter a calma.
Paralisaram. Um bola de fogo subiu mais uma vez.
- Ali! – Vanessa apontou.
A percepção de distância voltara ao normal, se viram próximos quando
mais uma esfera viajou aos céus. No centro, agora, Cléber levitava
rodeado pelas criaturas. Luís teve a certeza de que não era uma piada
102
quando saltou por cima do amigo e o libertou de uma levitação real. Mais
chamas encontraram o céu, desta vez, porém, tudo se manteve iluminado.
Vanessa atravessou o círculo e se colocou junto aos amigos. Cléber
respirava com dificuldade, sua pele era fria, os olhos estavam
preocupantemente fechados.
- Acorda, cara!
Os capuzes lembravam bicos de falcões, eram pontudos e mostravam
muito pouco dos dentes podres. O ar era diferente, algo impossível de
colocar em palavras, mas que se aproximava um pouco das nossas
definições de ‘’angústia’’ e ‘’desespero’’. Perceberam que os quatro
oravam:
- À luz, à luz...
O ser que fora atingido pela tinta não mostrava mais a mancha negra
no capuz. Estava limpo, quieto, sabia que já haviam vencido.
- À luz... À luz.
Tudo escureceu e se iluminou mais uma vez. Vanessa viu algo no céu,
algo rápido e disforme. Não podiam fazer nada, só observavam as
criaturas, aterrorizados, impotentes, atingidos pelo inesperado.
- Vai ficar tudo bem, amigo. É só uma piada... – chorou. – Só uma
piada...
Cléber abriu os olhos violentamente quando outra esfera subiu. Seus
olhos não eram mais os mesmos, eram compostos inteiramente por luzes,
rastros. Luís sentiu o peso desaparecendo dos seus braços.
- NÃO!
Cléber sumira, a luz continuou.
- DESGRAÇADOS! – rugiu Vanessa.
Num êxtase de raiva, os dois tentaram correr em direção das criaturas,
entretanto, os pés que se moveram não foram os seus. Agora havia algo
em frente aos olhos, e a visão não era a mesma, o tamanho do corpo, os
dedos, os braços...
- O que...
103
Luís jogou a mão frente ao rosto, uma camada de pele bicolor voltou
para as costas. Agora enxergava... Sim... Via seu corpo e o de Vanessa
parados não muito longe. Ela, por sua vez, ali do lado, acabara de
descobrir sua nova pele.
- Luís... – a voz doía.
Tentaram perseguir o que era seus, mas havia muita pele, não estavam
acostumados, foram atingidos pela mais límpida loucura que a mente
pode receber. Os novos – e sorridentes - Luís e Vanessa saíram com
calma, pularam o muro e foram para Deus sabe onde. Os originais, em
sua nova casca, finalmente conseguiram correr, mas a distância não era a
mesma, o muro nunca se aproximava.

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105
Linhas Tortas
1

Q ue época para Elis... Viúva, sem filhos, vivendo sozinha numa

fazenda que só era sua porque os pais desapareceram. Não eram tempos
de vacas gordas, longe disso, passava fome porque nada crescia e sofria
de sede porque o rio estava sujo, secando e cada vez mais perigoso.
Sentia-se vigiada 100% do tempo, talvez paranóia causada pela solidão.
Sua casa estava aos pedaços, a chuva era um sonho, só se lembrava da
língua portuguesa porque trocava poucas palavras com Aloysius, seu
gato de estimação.
- Beba... Beba...
Aloysius lambia a água na maior tranquilidade, era um bom animal,
companheiro desde os tempos em que a fartura predominava. Não
parecia sentir tanto quanto Elis sentia, só estava lá, deixando que as
coisas acontecessem.
A moça estava sentada na janela, observava o céu nublado que só
prometia, mas nunca mandava água. Até os pássaros haviam sumido das
árvores, mesmo quando ia pegar lenha naquela interminável floresta, só
conseguia ouvir o vento e as batidas de seu machado. Havia comida e
água para aquele dia, mas não havia prazer algum em comer, já que o
alimento acompanhava a propriedade insípida do elixir da vida. Foi para
a cozinha, pegou algumas batatas, acendeu o fogão à lenha e esperou.
Dormiu cedo.
2
O dia amanheceu com outro ar. Aloysius fez seu trabalho de
despertador e voltou para o lado de fora. Elis sentou-se na cama e
esfregou os olhos. Assim, repentinamente, foi acometida por um vento
forte, refrescante, vivo como poucos que apareciam naqueles tempos.
- Caramba...

106
Levantou-se e fechou a janela, sonolenta, ainda sem se dar conta do
que acontecia. Driblou os poucos móveis, desceu as escadas, desviou de
alguns buracos e bebeu água. Virou-se para a porta, viu Aloysius
correndo atrás de um pássaro.
- Oh! - sorriu pela primeira vez em quatro ou cinco dias. Foi atrás do
gato.
O felino saltava bem alto, quase pegou o rouxinol, mas o passarinho
era esperto, voou mais rápido e mais ágil.
- Não faça isso! – condenou. O gato saiu como um golfista que errara
uma tacada fácil.
Ficou encarando a ave por alguns instantes. Estava parada, muito
parada, cantava muito, não se lembrava de ter visto rouxinóis naquela
região desde que se mudara para lá.
- Fique por aqui, menininho. As coisas vão melhorar.
Realizou, então, que as folhas da árvore estavam verdes, coisa que não
acontecia há meses.
- Deus!
Disparou para onde deixava os baldes. Água! Em abundância! Se as
folhas estavam verdes só poderia ser obra de uma generosa chuva.
- Oh... – ajoelhou-se.
Não havia uma única gota, nenhum rastro, nada, restou aceitar. Se
arrumou, pegou o machado, cortou madeira.
3
No outro dia, logo depois de comer a mesma refeição de sempre, Elis
sentou-se numa cadeira e bebeu a pouca água que tinha. Admirou a
imensidão morta, seca, sob o olhar de uma única árvore e seu rouxinol.
Aloysius brigava com um pedaço de mato e aparentemente estava
perdendo. O céu cinza, as nuvens serrilhadas, a poeira atravessando a
casa.
- Meow.

107
Imagine você a cara que Elis fez. Uma moça naquelas condições, sem
ver chuva há mais tempo do que se lembrava, comendo pouco e se
hidratando quando dava. Imagine, pois essa é a cara que fez quando o
trovão balançou tudo. E não foi só um tremor, beirou um terremoto,
atormentou os céus por cinco segundos! Levantou-se puxando a cadeira
para trás, correu para dentro de casa não por medo, mas para pegar todos
os baldes que podia. Sentado, o gato desafiou o céu.
- É a chuva, Aloysius! – Ela gritou, saindo da porta aos pulos. – Fomos
abençoados!
Jogou os seis baldes no chão, e, quando estava para arrumá-los, um
relâmpago atravessou o céu. E outro. E outro. E outro.
- Eu devo... Eu devo estar ficando louca...
Cada relâmpago limpava o cinza celeste, simples assim, distribuíndo
todo um azul belíssimo, vivo como o intrépido bichano que o observava.
Elis correu para dentro da casa carregando o gato, tinha muito medo do
que fosse que estivesse acontecendo. Pôs-se na janela, viu o céu se
limpando mais uma vez, o barulho era horrível. O sobrenatural continuou
por um minuto inteiro, até que findou com uma chuva de raios. Não no
horizonte, mas bem na plantação (se é que poderia receber esse nome).
- Mas livrai-nos do mal... – Já orava. – Amém.
Foi para a porta sob o barulho e a luz, viu o céu compartilhando cinza,
azul e branco. Saiu para fora, boquiaberta, nem imaginando que era só o
começo. A árvore agora estava totalmente saudável, nova em (perdão)
folha. O rouxinol agora possuía uma família, um ninho, frutas davam nos
galhos na maior generosidade. Era um milagre, somente isso.
- Meu Deus... Meu Deus... – dizia.
O relâmpago não havia deixado nenhum rastro de destruição, pelo
contrário, limpara tudo, trouxera a vida de volta à plantação. Batatas,
cenouras, tudo estava lá. Era inacreditável, especialmente porque não
plantara cenouras. Como? O que era aquilo? O sofrimento finalmente
acabaria. O rio erguia-se em águas limpíssimas, nada perigosas, os baldes

108
agora eram belos, intactos, brilhantes, até Aloysius, veja só, praticamente
venceria o prêmio de gato mais saudável do mundo.
Elis gritou quando um raio atingiu a casa, tornando-a, imediatamente,
um lar como poucos que havia visto na vida, completamente reformada,
nova.
- Obrigado... Obrigado... Obrigado...
A casa não foi a única atingida. Da porta vieram duas pessoas idosas,
um homem e uma mulher, sorriam como quem não via uma filha há
tempos. Ah, é verdade, a felicidade era por isso mesmo.
- Pai! Mãe! – gritou.
Enquanto corria, tudo se alterava. Ficava mais saudável, mais verde,
mais azul, estradas se abriam e chuvas se formavam. A paz retornou.
- Obrigado, Deus! – Gritou, chorando, abraçando os pais – Obrigado!
De tão emocionada, nem percebeu o que dizia o novo trovão que
cantarolou pelo céu. Era mais ou menos assim:
- Ótimo trabalho, de fato. Impressionante.
4
Vozes passeavam pelo ateliê.
- Obrigado, senhor. A restauração foi bem simples, na verdade.
- Não seja modesto, rapaz. Tenha certeza que te chamaremos mais
vezes.
Sorriu.
- Quantos dias você levou?
- Três dias, senhor.
- Ótimo... Ótimo... Tenho certeza que o senhor Pereira ficaria contente
em ver seu ‘’Um bom lugar’’ tão bem restaurado. Bom trabalho, rapaz.
Nos vemos.
- Nos vemos, senhor. Muito obrigado.
O moço foi embora na maior alegria, era realmente bem talentoso. Na
parede, o quadro se manteve tranquilo, como a situação que representava.

109
Todos estavam felizes, aquele era um grande dia.

110
111
Vitrine
Primeiro dia

A na viu, de dentro do seu ônibus, um monte de meninos jogando

bola na rua. Um deles acabara de perder o tampão do dedo,


completamente rodeado por amiguinhos que estavam ou preocupados, ou
rindo da sua cara. Outro, mais gordinho, ostentava um suéter laranja.
Haviam soldados por todos os lados, três deles cooperavam em um
beco espancando um bêbado. Homens corriam de cacetetes, no centro,
enquanto outros de negócio pisavam em poças. Sangue descia entre as
veredas do cotidiano.
Essa era uma imagem comum na década de setenta, a de crianças
brincando na rua.
Segundo dia
A terça feira estava caótica no trabalho. Ana era estilista, nada de alto
posto, e por isso trabalhava como uma condenada. Entre os panos que
eram carregados para tudo quanto é lado, surgiam não só pessoas, mas
histórias, lamentos, palavras de todos os cantos do país. Conversavam,
obviamente, não só sobre o trabalho, mas também sobre a copa do
México e a seleção brasileira.
- Onde verá a final, Ana? – Martinha bebia água.
- Não sei, talvez na casa dos meus pais. – encostou-se próxima à
janela.
- O pessoal está indo na praça, no dia. Se quiser ir é só aparecer.
Os gols de Clodoaldo, Jairzinho e Rivelino traziam mais confiança ao
país, mas nada à Ana. Estava passando por uma fase não muito fácil, e
enxergar tantas pessoas alegres por uma bola entrando numa rede
irritava-a profundamente. Talvez pelo barulho, talvez pela bobeira, talvez
por inveja, já que não conseguia ver a importância que eles viam e que,
de fato, existia.

112
- Talvez eu vá.
A janela mostrava o futuro, telões, transmissões ao vivo, pessoas
andando com roupas prateadas e coloridas. Brilhava, também, o cacetete
elétrico dos soldados.
A chegada dos homenszinhos verdes, poucos anos antes do golpe
militar, deu de presente ao mundo coisas que poucos almejariam fora de
desenhos e filmes. Carros ligeiramente achatados, prédios que não caíam,
tecidos indestrutíveis, maleáveis, progresso... E só pediram um pouco de
água. Uma pena que resolver problemas tecnológicos não implicava em
amansar nossas desgraças.
Saiu do prédio e colocou os óculos de utilidade. Lá estava a
temperatura, as rotas que deveria tomar para chegar no bar em que
marcara o encontro, as ligações perdidas e as mensagens de voz deixadas
pelo chefe.
- Engraçado... – pensou ela. – Eles não usam nada.
‘’Seja gentil com a Madame Clara, Ana. Sabemos que podemos
confiar em você, mas ela é uma mulher difícil.’’
Enquanto o homem era eletrocutado por um bastão, outro espirrava
água, e a população caminhava entretida em seus óculos de utilidade. Os
cinemas de rua estavam lotados, talvez algum evento, talvez nada.
‘’Fique tranquilo, já me encontrei com a Madame em oportunidades
anteriores. Conseguirei a parceria.’’
- Enviar.
O caminho logo findou em um bar onde todas as paredes eram tomadas
por trepadeiras de neon. ‘’A luz da cidade’’ era um dos maiores points da
classe média-alta, vendiam coisas de todo o mundo, além do melhor café
que você pode comprar. O interior era repleto de vidro, vidro pra todo
lado. Cadeiras, mesas, copos, qualquer coisa que se pode colocar luz
dentro. Madame Clara estava no fundo, era uma mulher velha, estilista
antiga, rabugenta até cansar. Tomava algo parecido com vodka, sozinha,
ostentando seu mini pavão albino na cabeça. O bicho dormia.

113
- Boa tarde, Madame – Ana cumprimentou.
- Boa tarde, querida – e soltou a fumaça multicolorida de seu cigarro. -
A tempo, como sempre.
Sentou-se. Madame Clara geralmente usava sobretudos de pele animal,
jaquetas de garras ou qualquer coisa do gênero, mas não foi assim
naquele dia. A velha mostrava, orgulhosa, seu suéter laranja.
- Que belo dia, não? Nunca trouxeram uma vodka melhor que essa,
nunca mesmo.
- Um belo dia, Madame – Ana fez força para não demonstrar a
estranheza daquele bom humor. – Suponho que hoje o seu tempo é curto,
certo?
- Tempo? – sorriu, o arco irís gasoso saindo dos dentes separados –
Tenho todo o tempo do mundo. Me diga... Como quer o seu drink?
- Hoje serei obrigada a recusar, tenho um compromisso mais tarde –
mentira.
- Que pena...
- Como eu te disse pela mensagem... – guardou seus óculos – Nós da
Rota da Seda nos interessamos muito pelos seus últimos trabalhos.
Adoraríamos ter, mais uma vez, a oportunidade de criar junto à uma
mente tão brilhante.
- Hum...
Madame Clara levou a mão a um rosto que nunca mais veria rugas
(parcela 8/20), seu pavão ensaiou um acordar quase coreografado.
- Não disse isso a ninguém, ainda, mas acho que posso te dizer... Veja
bem... – amassou o cigarro – Vou me aposentar.
Isso, para a indústria da moda, na época, era um sonoro ‘’porcos
voaram’’ ou ‘’o dia de são nunca chegou’’. Madame Clara? Aposentada?
Nem Ana conteu a surpresa.
- Bem... Por essa eu não esperava.
- Sim, me perdoe por não ter avisado.

114
- N... Não... Tudo bem... Só que precisarei contar ao meu chefe. Há
algum problema?
- Nenhum, até lá a notícia terá se espalhado. Conte aos seus amigos
que foi a primeira a saber! – gargalhou.
Que Madame era aquela? Tudo bem que a aposentadoria muda as
pessoas, mas àquele nível? Quem esperaria? Era uma mulher nova,
fazendo piadas, sorrindo, sem nada da sua marca registrada: a arrogância.
- Agradeço, Madame Clara. Espero que aproveite bem o merecido
descanso.
- Também espero! – bebeu. – Peça desculpas ao seu chefe, ok?
- Pedirei.
Ana se levantou, sentiu o calor das luzes. Enquanto isso, um garçom
vestido com um suéter laranja serviu mais uma bebida.
O pavão abriu a cauda.
Terceiro dia
- PRISÃO AOS TORTURADORES! – gritaram na rua.
- Como eles entram? – um senhor perguntou à outro.
- Vai saber. Não entendo essa vaidade toda.
- Vaidade?
- Sim, vaidade. O progresso é tão visível... Veja as telas, veja a cidade.
Por quê insistem nessas ideias ultrapassadas? Temos o que merecemos,
diabo, o resto é vaidade.
- Com certeza, hoje só não trabalha quem não quer trabalhar.
Os dois usavam suéteres iguais, laranjas, e igualmente sabiam que não
era como falavam. É aquela coisa, uma mentira dita muitas vezes se torna
uma verdade, e nada mais confortável do que convencer a si mesmo que
suas injustiças são inofensivas. Nunca sequer haviam conseguido
permissão para visitar a outra cidade, qual o sentido de possuírem tanta
certeza do que falavam, já que o contato era nulo? Culpa, é a resposta,
pura e simplesmente.

115
Ana já havia reparado nos tais suéteres, mas a imagem do acidente que
matara sua mulher sempre mudava o foco. Havia acontecido há um mês.
Quando saiu do ônibus, porém, o choque foi muito maior. Não eram só
alguns, eram vários, espalhados, juntos, pelo menos um a cada dez
transeuntes. Que diabo? Estava diretamente ligada ao mundo da moda e
nunca havia ouvido sobre aqueles suéteres. Aparentemente, fizeram uma
festa e não a convidaram.
O caos continuava dentro da Rota da Seda. Ana tomou seu posto e não
conseguiu deixar de perguntar:
- O que são esses suéteres? O que eu perdi?
- Me pergunto o mesmo. Todos acham o céu na terra, pelo visto –
respondeu a Martinha.
- Que coisa... Da onde surgiu?
- Algum rival, claro. Devem ter feito o que sempre fazemos.
- Investir tudo em divulgação? – disse Ana – Porque eu não vi nada.
- Não, boba... Plagiar dos miseráveis da Cidade Norte.
- Ah... Nunca fui escolhida.
- Fui só uma vez – disse Martinha. – A situação é complicada. Mas
sabe como é... Estão assim porque não trabalham.
Estranhamente, ninguém lembrava com certeza de quando a cidade foi
dividida em duas. O que sabiam era que as pessoas contrárias ao governo
foram gentilmente presenteadas com uma parte da cidade, para viverem
como queriam, enquanto as que o apoiavam ficaram com o outro
extremo. Ninguém, sem autorização, poderia viajar livremente entre os
dois lados, cada um na sua bolha, cada um com as suas regras, todos
vivendo e deixando viver. Caso houvessem invasões, as forças policiais
correspondentes resolveriam com a força.
- Ou você vê algum dos nossos tentando ir pra lá? Só vamos por
turismo – completou.
- É verdade – disse Ana, mas não concordava tanto assim.

116
À noite, se deitou em seu colchão e ligou a TV. Era um dos únicos
momentos felizes naqueles tempos, e até agradecia aos extra-terrenos por
um material tão fofo. O jornal das oito dizia:
- Hoje foram capturados mais cinco invasores da Cidade Norte,
totalizando doze apenas nessa semana. As causas da fuga, como sempre,
envolvem fome, sede e doenças.
- Ainda bem que não há isso por aqui, não é, Juliano?
- Ainda bem.
Quarto dia
Saiu de sua casa ouvindo música pelos óculos. A temperatura estava
agradável, os soldados rondavam pelo bairro e o ônibus cortaria as ruas
limpíssimas em poucos instantes. Limpíssimas e vazias de civis, diga-se
de passagem.
- O que ouve esta manhã, senhorita? – indagou o policial, percebendo
os fones.
- Bach – respondeu.
- Me permite? – ergueu uma espécie de caneta.
- Claro.
De alguma forma, a caneta captou o som e transmitiu palavras para
uma pequena tela retangular. ‘’Johann Sebastian Bach’’ – dizia.
- Tudo certo, tenha um bom dia.
- Igualmente.
O ônibus veio junto à ventania. Ana ergueu o braço, como usual,
porque nem todo progresso do mundo substitui a simplicidade. A porta
automática se escancarou e o motorista recebeu o dinheiro, abrindo a
segunda porta logo após.
- Oh.
Ana se assustou. Haviam dez pessoas no ônibus, e as dez brilhavam
seus suéteres laranjas. Sentou-se ao lado de um deles, um playboy que
sabe Deus por qual motivo estava pegando um ônibus.

117
- Por acaso está indo para a praça, senhorita?
- Oh... Talvez – disse, por educação. – Na realidade tenho alguns
compromissos antes.
- Não deixe de ir. Vamos atropelar a Itália. Vai querer contar pros seus
netos.
- Haha... – não achou engraçado – Vou sim.
O homem saiu no primeiro ponto e o resto manteve as bundas quietas
nas cadeiras. Era horrível, Ana sentia-se como se estivesse nua, as
pessoas não diziam nada, mal pareciam reparar que vestiam o mesmo
traje. Pareciam felizes, de toda forma, aquela felicidade estranha, que
incomoda, que arranha como um muro chapiscado. Não conseguia
perguntar, pois a tristeza abençoava sua timidez, então estranhava e
passava direto, fingindo que nada acontecia.
A final - Brasil e Itália -, talvez era a única coisa que unia os dois lados
da cidade. Pareciam muito mais unidos, de fato, pois ao invés de tiros à
distância e bastões à meia, brigavam enrolados no chão. A população
rodeava o soldado e o invasor, ambos vítimas, batendo palmas e pedindo
para que se matassem. Ana saltou do ônibus bem ali.
- Vá embora, vagabundo! Ha!
Seguiu quieta, como sempre fazia, até que ouviu o tiro.
- Isso! Isso!
Nunca tinha visto aquilo acontecer. Tudo bem espancarem um ser
humano no meio da rua, mas um tiro? Não era possível que...
- Deus...
Viu a cabeça estourada do rapaz, um cadáver completo, bem ali do
lado. Esse choque a atingiu profundamente. Não sentiu apenas o asco
comum, foi algo potente, arrasador, bem diferente da euforia e
comemoração do resto das pessoas. Dispersaram-se como baratas
laranjas saindo de uma caixa de gordura. O terror foi cortado pela voz de
Martinha:
‘’Estamos todos aqui na praça, Ana. Venha! Será bom pra você!’’

118
Realizou duas coisas: 1 - Martinha realmente parecia feliz, 2 –
ninguém na rua usava o uniforme da seleção. Decidiu ir para a tal praça,
no final, tanto para ver se conseguia sorrir, quanto para esquecer aquele
acidente estirado no meio da rua.
Quanto mais caminhava, mais suéteres surgiam. As pessoas pareciam
tão alegres, o tecido era o maior orgão de seus corpos. Manequins
mecânicos anunciavam promoções inacreditáveis, o laranja fim-de-tarde
brilhava até mesmo em seus olhos mortos. Colocou os pés na esteira e
esperou, enquanto era levada, drones desenhavam figuras no céu.
Dirigíveis estampavam marcas de cerveja, de cigarro (já que não mais
faziam mal, o que de certa forma diminuiu o consumo) e canais de
televisão.
- Talvez o Pelé usou essa coisa, e agora todo mundo leva como um
símbolo – disse um rapaz que também estava na esteira. Não usava o tal
suéter, assim como a moça que o acompanhava.
A ladeira era bem grande, a subida demorou três minutos. De cima,
enxergaram um mar laranja balançando bandeiras em frente à um telão.
As cores vivas do México quase saltavam para fora.
‘’Rivellino, Jairzinho, Pelé...’’ – a voz vinha de longe, quase cantando,
alta como se proferida da boca de um gigante.
Ana, guiada pelo óculos, viu Martinha gritando e bebendo cerveja. Seu
sorriso acompanhava o suéter laranja. Tocou o aro para enviar a
mensagem de alerta, mas desistiu quando pessoas desconhecidas
surgiram festejando. Então, percebeu que era a única pessoa que não
estava vestida como todos os outros. Antes havia enxergado algumas
camisas diferentes, mas agora fora completamente engolida pelo eufórico
exército. Sua ansiedade atacou com a força de setenta tiros de escopeta,
de uma vez só, e seu corpo não era mais de seu controle. Atravessou as
pessoas, empurrou seus braços, nadou na carne, suor e loucura daquela
cor interminável.
- Não... Me tirem... Me tirem daqui... Por favor...

119
A imagem de sua mulher morrendo apareceu mais uma vez, tomou
seus olhos e sua mente. Não achava a saída, era tanta gente, tantos gritos,
tantas vozes, tanto barulho, mas só ouvia o ‘’Se salve...’’ que Luciana
dissera antes de partir.
‘’E começa o jogo!’’
Uma luz surgiu naquele labirinto unicolor, a saída brilhou, mas seu
tormento não diminuiu nem um pouco. Estava perto, mas parecia longe,
tão longe, distante de tantos dentes, línguas e braços.
A voz do narrador acompanhou a garrafa que atingiu sua cabeça.

Acordou dezenas de minutos depois. Sua cabeça sangrava, seu corpo


estava sujo, molhado e abandonado. Ninguém a ajudara. Não havia um
único pio na multidão, algo havia acontecido.
Quando a visão tornou a melhorar, enxergou a disputa de penaltis que
criara o silêncio. Sentou-se com as costas em um poste, ainda sentindo as
dores da pancada. Aquelas pessoas malditas, odiava todas elas e seus
suéteres respectivos. Também odiava aqueles soldados, seus uniformes
comemorativos, suas mãos que tremiam procurando alguém para atirar.
Nada havia, não havia nada, o neon mais cegava do que trazia esperança.
- Oh não – disse uma voz sofrida.
O jogador brasileiro chutou a bola com tanta força quanto
inconsequencia. Voou longe.
- O italiano vai errar, ele vai errar!
O homem não estava com cara de quem iria decepcionar o seu país,
não mesmo, já o goleiro brasileiro não passava a mesma segurança. Ana
continuou no chão, não restava mais pânico, só ódio.
- Partiu, vai bater, bateeeeeu...
E o gol foi feito. Correram os azuis para seus abraços, vitoriosos,
campeões em cima de um time que o mundo nunca mais veria. Os
sorrisos de pouco tempo atrás se tornaram uma melancolia absurda. As
120
pessoas se sentaram onde viram, banharam suas roupas com lágrimas,
gritaram a raiva de seus corações.
- Ha... - começou Ana - Ha... Haha... Hahahaha! - era a única pessoa
alegre dali. Não feliz, alegre, achando graça.
Do poste da praça central, Ana encarou todas aquelas centenas de
pessoas. A diferença era que não enxergava mais aquele laranja todo, não
enxergava sequer os suéteres.

121
122
O Anfitrião
1

- I
de em paz e que o senhor vos acompanhe.

- Graças a Deus – responderam em coro, e a missa terminou assim.


As pessoas saíam dos bancos, papeavam com conhecidos e
caminhavam para fora, tudo ao mesmo tempo. Ao passo em que muitos
iam embora, outros ficavam mais um pouco, esses eram os mais devotos
e os que ajudavam em alguma necessidade da paróquia. Naquele
domingo, porém, até mesmo os componentes desses dois grupos
pareceram sair mais rápido, não demorando para que restasse apenas uma
igreja vazia.
Padre Benjamin era um homem bom, isso pode ser dito. Ajudava os
pobres, visitava os doentes, cuidava da pequena Rosa do Norte como
ninguém um dia cuidara. Ao término da celebração, pôs-se a guardar as
vestes num pequeno cômodo interno, cantarolava alguma música quando
o barulhento trancar da porta se misturou aos passos de uma senhora.
- Bom dia! – cumprimentou, alegre, caminhando e segurando as
chaves.
- Bom... Bom dia Padre!
Chegou tremendo, ostentando olhos fundos, visivelmente cansada.
‘’Que teria acontecido à essa mulher?’’ – pensava o Padre,
automaticamente, pois a situação era bem preocupante.
- Como está?
- Não muito bem, Padre. Até por isso estou aqui.
- O que houve?
- Não durmo há dois dias, pelo amor de Deus... Estou desesperada.
- Pois conte. O que posso fazer por você?

123
- É... Bem... – enfiou a mão nos cabelos bagunçados, coçou a cabeça
violentamente. – Não é o tipo de pedido de ajuda que o senhor vê todos
os dias, mas acredito que saiba sobre o que está acontecendo.
Parou de falar por um instante, olhou pro chão, parecia que ia cair
desmaiada ali mesmo (ou que acabara de descobrir o sentido da vida,
olhos perdidos, sabe?). Benjamin já estava ansioso.
- O meu menino, Padre, ele se chama Davi... É um bom garoto, só tira
nota boa, mas ele fez algo... Não que tenha sido de propósito, claro! Ele
não tinha como saber. Mas está feito, por Deus, está feito...
- Se acalme, o que ele fez?
Olhou pro chão mais uma vez, um transe incômodo. Dessa vez durou
longos segundos.
- Ele... Ele me contou que estava brincando na sala, com os carrinhos,
soldados, não sei, não importa... Que sentiu uma vontade muito forte, que
nem fome, como ele disse... De... – mais uma pausa – De bater na porta
do meu quarto.
- Ora – disse o Padre, queria sorrir, mas não sorriu. – Não há nada de
mal nisso. Ele quebrou algo?
- Não, o senhor não tá entendendo. A porta estava fechada, ele sentiu
essa vontade e bateu nela como alguém pedindo para entrar. Não tinha
ninguém lá dentro, só moramos eu e ele – engasgou nas próprias
palavras. - A porta respondeu, Padre, a porta respondeu.
- Respondeu? Mas como?
- Ela repetiu o toque, aí ele veio correndo, morrendo de medo. Desde
então aquele quarto continua fazendo barulhos, batendo, me... Me
chamando. Nós não conseguimos mais dormir, não temos para onde ir,
deve ser um demônio, Padre.
Não conseguiu responder de imediato, ficou olhando para a moça, seus
olhos esbugalhados, sua magreza. Havia lido sobre exorcismo, sobre
demônios, mas nunca houvera a mínima possibilidade de contato com
algo assim. Aquela história toda trouxe-lhe medo, é verdade, mas uma

124
absoluta empolgação também, pois de alguma forma sabia que cada
palavra era real.
2
Benjamin trancou a igreja e entrou no carro junto à moça.
- Onde o seu filho está agora, senhora?
- Gisele – tossiu. - Meu nome é Gisele. Ele está na vizinha.
- Está dormindo lá? – o carro já andava.
- Está.
- E por quê não faz o mesmo? Não deveria passar o dia em uma casa
assim.
- Eu vou dormir lá hoje... O problema é que trabalho em casa, preciso
do dinheiro.
- Oh, entendo.
Pensava o padre que talvez se animara demais, como uma criança
ouvindo uma história, muito provavelmente só chegaria, abriria a porta e
não teria nada por lá. O que motivaria todo o alvoroço, então? A mulher
era louca? Essa justificativa geralmente vem de bocas não muito
agradáveis, então desconsiderou logo. Seja verdade, seja mal entendido,
estava indo de qualquer jeito.
Não conversaram muito, chegaram rápido numa rua esburacada. Era
uma parte distante, na saída do bairro, onde os caminhos não contavam
com mais do que quatro casas. Gisele morava em uma bem pequena. Na
casa ao lado, Davi esperava sentado numa escadinha, veio correndo
quando o fusca parou.
- Davi, fique lá com a tia – já fora do carro. - Eu e o moço vamos
resolver o problema das goteiras, tá bom?
- Tá bom, mamãe, que bom! – e voltou. Tinha por volta de seis anos,
estava aparentemente descansado.
- Goteiras? – o padre perguntou.
- Sim, eu disse pra ele que são goteiras grandes, e que os barulhos são
da água. É só uma criança, né?
125
- Está certíssima.
A porta abriu com o girar da chave, deu de cara com a sala. O piso era
de cimento, havia uma estante, um sofá e uma televisão de tubo. Na
frente, uma porta aberta findava na cozinha.
Atrás do sofá, uma porta fechada erguia-se absoluta.
- É essa? – perguntou.
- Sim... Mas... Eu não entendo...
- O que foi?
- Ela parou com os barulhos. Justo agora, depois de doze horas sem
parar.
Ok, agora não via aquela certeza toda de que a situação era real. Um
lugar isolado, uma história extraordinária, pensou que poderia estar bem
perto de perder alguns órgãos. Agarrou o terço que levava no pescoço e
puxou-o para fora da camisa. Pôs-se logo frente ao alvo.
- Você disse que ele bateu na porta como quem pede pra entrar, certo?
- Sim, foi isso.
Girou a maçaneta. Gisele se assustou. Girou de novo e de novo. Puxou
com força. Nada.
- Se importa de me emprestar as chaves? Está trancada.
- Essa... – gaguejou. – Essa porta não tem chave.
- Como não?
- Estava quebrada há meses, ela não se fechava.
- Céus... – reagiu Benjamin, em voz baixa - Tudo bem, tudo bem...
Deve haver uma explicação – se recompôs. – Como não ouvimos vozes
ou barulhos estranhos, acho que a única coisa que podemos fazer é
buscar algo pra abrir a porta.
- Tenho um pé de cabra aqui, não sei se serve.
- Serve, mas teremos que quebrar.
- Se isso resolver, quebre até duas – convicta.
3

126
Colocou o objeto como se deve, movimentou-o, a porta nem chegou a
tremer. Parecia perfeitamente fechada, colada, uma com a parede. Vendo
que o método convencional falhara, preparou-se para disferir o golpe.
Uma! Duas! Golpeou a maçaneta três vezes, destruindo-a na terceira.
Bateu mais vezes, esperando que fosse algo emperrado, mas a porta
manteve-se firme.
- Eu não consigo explicar – disse, meio sem jeito.
- Eu estou dizendo, Padre, há algo aí. Se os barulhos voltarem você vai
poder v...
O grito veio como a turbina de um avião acertando uma folha de papel.
Foram ao chão o padre, a moça e um jarro. Seguiram então barulhos de
batidas, correntes, vozes incompreensíveis e estalos de chamas. Fez
assim por cinco segundos e parou.
- Deus do céu... – levantou-se o Padre, quase correndo.
- Eu disse... – Gisele chorava.
- Não se desespere... – conteu suas dores para amansar as dela – Não
há uma janela?
- Não...
- Deus... – levantou-se, o terço nas mãos. Foi à porta. – Covarde! Essa
não é a sua casa! Vá embora!
Uma forte pancada atingiu o outro lado, alguém estava lá.
- Não resista! Vá! Em nome de Deus!
Nada veio.
- EM NOME! – apontou a cruz. – DE DEUS!
Click.
Nem mesmo o padre acreditava que aconteceria tão rápido. O diabo
fora embora? Fácil assim? Nem falou grosso, mostrou os dentes ou
reagiu a pedidos de cartão de crédito. Devia ser um primo distante
daqueles que via na televisão, ou um estagiário, algo assim.
- Fique lá fora, Gisele. Eu vou entrar.

127
- Você tem certeza?
- Tenho, ele foi embora, está tudo bem.
Sabia duas coisas: que não estava tudo bem e que sentia uma vontade
quase incontrolável de entrar naquele quarto. Lhe chamava, ouvia não
pelas orelhas, mas pela pele, caíra num encanto insuperável.
Gisele sumiu, desapareceu da sala durante os devaneios de Benjamin.
Pensou que teria ido para fora, então fez o sinal da cruz e empurrou a
porta sem pressa. Todo o corpo invadiu um cômodo escuro e que
cheirava a lixo queimado, o padre fechou-a de volta em um gesto tão
automático quanto hipnotizado.
Sopros estouraram pelo ar, não se via nada. Benjamin caiu e seus
joelhos bateram em um piso diferente, mais frio e áspero.
Tochas se acenderam, revelaram o inacreditável.
4
Estava dento de uma caverna, no alto de uma escada em espiral. Tudo
era feito de pedra, tudo, desde as bases das tochas até o teto que protegia
dos raios eternos. Trovões nasceram, relâmpagos brigaram, sentiu que
estava no inferno. Não havia mais porta alguma, havia apenas – e como
se só aquilo existisse no universo – um homem no final da escada. Era
um sujeito verde, talvez por efeito da luz, um tom de gripe horrível. Ele
sorria. Benjamin não conseguia distinguir se o moço vestia roupas finas
ou o combo bermuda/chinelo.
- Quem é você!? – gritou. – O que é isso, por Deus?
- Não se exalte – ele disse, convidando-o com a mão. – Venho para
conversar, Benjamin.
As escadarias se tornaram planas. Para quê estavam lá, afinal? Agora
era o homem, e que sujeito estranho, lembrava uma câmera desfocada.
Sentou em uma cadeira, onde havia uma mesa, solicitou que o padre
sentasse na outra.
- Quem é você!? – repetiu. – Me responda!
Subitamente, estava sentado.

128
- Senhor Benjamin, me responda você... – girava uma caneta de pedra
na mão. – Quando você entra na casa dos outros, você grita, esperneia e
banca o louco?
- Mas que...
- Isso que você ouviu! Está na minha casa, ora. Se comporte!
- Pai nosso que estais...
- Ah – puxou um papel. – Diz aqui que foi essa daí mesmo que você
rezou quando matou Nicolau Lopes.
Calou-se. Encarou o homem com um ódio que não convinha à sua
personalidade comum. O verde, por sua vez, sorria no maior cinismo que
podia encontrar.
- Pois bem, agora que fui um babaca em nome da calmaria, vamos aos
negócios – alguns morcegos de pedra voaram no alto. – O meu nome é
Samlro, pronuncia-se com a língua toda doida dentro da boca, tente
depois. Venho em nome da família Lopes, mais especificamente Isaac
Lopes, que viajou para muito, mas muuuuuuito longe, só pra poder trocar
algumas palavras comigo.
- Escute, eu não quis matá-lo, o empurrão foi uma brincadeira, como
eu imaginaria?
- Adoro brincadeiras assim, já temos algo em comum.
- Deus... Você veio para me matar, não é?
- Bem, senhor Benjamin... O pedido de Isaac envolvia as palavras
‘’lenta’’ e ‘’dolorosa’’.
- Não... Pelo amor de...
- Tô te zuando, relaxa, ele só quer que você morra mesmo.
A fúria explodiu, tornou-se violento, e, como qualquer indivíduo
violento: burro. Avançou em um ser obviamente poderoso, fora do seu
pequeno entendimento, e a única coisa que conseguiu foram as visões do
que o aguardava na pós-vida.
- Viu, estressadinho? – disse Samlro, encarando o homem aterrorizado.
– Só me ouça, numa boa, e receberá o sorvete antes do almoço – limpou
129
a garganta. – Pois bem, onde estávamos? Ah é, você matou um cara. O
senhor, no alto dos seus 16 anos, não pôde ser julgado e condenado, o
que deixou o senhor Isaac bem bravo, bravo o bastante para encontrar
uma entidade de vingança, que sou eu.
Apesar de já ter escapado das visões, parecia que simplesmente toda a
sua crença havia sumido, não conseguia clamar a Deus, não se sentia
digno de proferir uma única palavra.
- Me mate logo, pare com isso – foi abatido por uma melancolia
absurda.
- Não funciona assim, tenho que te dar uma opção. Negócios, cê sabe,
uma proposta cobre a outra.
- Do que está falando? – agora tudo estranhamente parecia fazer
sentido, por mais que estivesse em frente à uma entidade de vingança,
numa caverna com morcegos de pedra.
- Então... Nicolau Lopes morreu de traumatismo craniano, ao bater a
cabeça. Talvez alguns crimes sejam esquecidos na Terra, especialmente
quando o criminoso se arrepende verdadeiramente - o que aconteceu com
você - o problema é que aqui, nesse plano, as coisas continuam, mesmo
se não tiveres feito de propósito. Há uma única forma de esquecermos
quando se trata de assassinato, que é o perdão do morto e dos que o
amam. Essa é a parte que não aconteceu com você.
- Eu peço perdão todas as noites... Todas...
- Nicolau te perdoou – disse, firme. – Mas poucas almas da Terra
possuem a sapiência dos que moram aqui. Lá há vingança, que é o meu
departamento, remorso, inveja, egoísmo, todos os venenos que você
pensar. Não há como impedir que um pai, humano, sinta tudo isso
perante a situação toda.
Benjamin abaixou a cabeça, chorava, já perdia da mente o tal mistério
da porta, como se estivesse na caverna de Samlro desde que o dia raiou.
- Diga, então – tão firme quanto. – O que me resta?

130
- Isaac ofereceu a própria saúde em troca da sua morte, nós aceitamos,
pois ela irá para muitos que precisam. O problema, se me permite dizer
assim, é que você se arrependeu e foi perdoado por um dos lados, então
não podemos lhe ceifar a vida diretamente. O que te resta... Bem...
- Diga – passou as unhas na mesa.
- Você tem duas opções. Uma: trocar de lado, onde quem morrerá é
você e o seu pai não buscará vingança. Duas: nos oferecer a sua saúde,
muito mais abundante que a de Isaac, e viver mais alguns anos.
- Mas... – gaguejou – Mas aí o sacrifício de Isaac será em vão? O
pedido não será atendido?
- Atendido será, só que mais tarde. Mais cedo, no seu caso! –
gargalhou sozinho. – O velho já está nas últimas, Benjamin, virá primeiro
que você!
- E não me encontrará...
Ficaram em silêncio.
- Então, o que decide?
- Mas na primeira opção... – pensava alto. - Acabarei com a sanidade
mental de um homem que perdoou o maior pesadelo da minha vida... Eu
morrerei por suas mãos, é errado não por mim, mas pela vida que ele
terá...
- As coisas passam...
- Não passou pra mim.
Mais um silêncio.
- Bem... Você tem o tempo que desejar – empurrou duas folhas. – A
primeira é a primeira opção, a segunda, a segunda e blá blá blá. Assine
na que você desejar, frente e verso. Pense o quanto quiser.
Samlro caminhou e, enquanto ia, uma escada surgia, levando-o para o
teto escuro. O sujeito verde logo sumiu.
Na mesa, suando, querendo chorar, sofrendo, Benjamin batia a caneta
contra a mesa. Uma sensação horrível, uma garganta seca, uma mente
sendo atingida por todas as direções.
131
- Me ajude, pai, me permita fazer o certo...
Então um pingo caiu em uma das folhas. Àquela altura, tremendo,
confuso, mal sabia distinguir se a gota viera de uma goteira ou de um dos
seus próprios olhos.

132
133
Esqueça
1

O nariz de Alan se arrastava, esmagando, a visão não tocava nada

além de um chão que já se unia ao rosto. Tudo era excessivamente


iluminado, alternando entre um colorido aterrador e um cinza absoluto.
Pessoas corriam, algumas divididas em dois pedaços, cada um com vida
própria.
2
O ônibus balançava.
Dos quarenta que viajaram, trinta já haviam encontrado seus destinos.
Os dez restantes, pacientes, ficaram à espera do último ponto: uma praia
afastada que anualmente recebia a rave Jequitrip. Era bem famosa a tal
festa, vinha gente de tudo quanto é canto. Acontecia em Minas Gerais,
nas margens do rio Jequitinhonha, em um dos raros lugares onde a areia
era abundante.
A paisagem mudou gradualmente, passando de arbustos à ipês e ipês à
gameleiras, até o momento em que uma fila de vacas anunciou a
chegada. Ouviam as ondas sonoras numa tranquilidade notável, como
velhinhos apreciando jazz, escorrendo serenidade.
Mago, Danilo e Alan foram os últimos a sair, brilharam os olhos. A
praia estava coberta por tecidos leves e multi-coloridos, erguidos por
estacas enfeitadas com folhas. Alguns jovens já esperavam o início da
festa, postos logo abaixo dessa estrutura, ouvindo as músicas na mesma
concentração dos bichos lá de trás. Trajavam roupas indianas por algum
motivo misterioso.
- Ei... – disse Mago. - Vocês não querem ficar um pouco não?
- Nem se pudéssemos. O caminho é bem longo.
- Aaah... – insistiu. – Você tem certeza que isso é real, né?
- Pela sétima vez: sim. Agora não pergunta isso mais, pelo amor.

134
- Eu só não quero caminhar tanto tempo pra nada.
- Relaxa, Mago – Danilo interviu, espreguiçando.
Enquanto um bom número de pessoas descia para a praia, os três
seguiam tranquilamente por uma estrada de terra. Não iriam participar de
festa alguma naquele dia, tampouco buscavam músicas ou contato
humano, almejavam algo além.
Alan conhecera um ex-maluco-de-estrada em um dos shows que fazia.
Era um velho de pelo menos setenta anos, lúcido como nunca vira, um
daqueles que conta histórias sem parar. E quantas tinha. Não mais
viajava de bicicleta ou vendia artesanato, claro, pois a idade chega e a
saúde vai, mas que adorava falar sobre suas odisséias, ah, isso adorava.
Foi assim, ouviu sobre tudo, mas uma em específico ficou presa na
cabeça.
- Ouça, Alan – dizia o velho, naquela ocasião, ao mesmo tempo em
que girava sua inseparável garrafa d’água. – Um cara me contou uma vez
que tinha ido lá pros lados do Vale do Jequitinhonha, bem longe, disse
que existia um pessoal que morava escondido numas serras... É um lugar
que até hoje só dá pra chegar a pé.
- E o que tem lá?
- Então, esse cara me chamou pra ir com ele, queria me mostrar como
essas pessoas viviam. Eu fui, né? Isso há trinta anos atrás. O caso, Alan,
é que era verdade, eram meio que cinquenta pessoas vivendo num
templo, sem ninguém daqui de fora se dar conta.
- Índios?
- Não eram. Nunca soube de verdade a história toda, mas é como se a
sociedade deles houvesse crescido com gente que ia de curiosidade e
acabava ficando, o que não foi o meu caso.
- Caramba... Isso é sério?
- Sim, e nem terminei. Eles, lá, comemoravam algo quase que religioso
uma vez por mês. Meditavam, comiam, bebiam e... E usavam a parada
que deu a maior viagem da minha vida, sem comparação.

135
- O que? Ayahuasca?
- Não, não é isso, é algo novo, que só tem naquele lugar. É como uma
esfera de vidro, eles dão uma pra cada, sabe Deus onde conseguem. E o
pior é que nem ensinaram muita coisa, só falaram pra gente fazer o que
bem entender com ela e esperar. Eu, por exemplo, segurei e observei,
enquanto outro cara quebrou na própria cabeça.
- Nu! – Alan gargalhou.
- É sério! Cara, eu nem consigo te explicar direito, mas minha vida
nunca mais foi a mesma. Outra coisa.
Não precisou de muito para que se embebedasse de empolgação, pois
era meio louco e, assim como os amigos, já havia usado tudo o que vira
pela frente desde os dezessete anos. Combinaram a viagem com meses de
antecedência, calculando que chegariam no mesmo dia em que o velho
chegara. Com a sorte do tal ônibus, do tal festival, só precisariam viajar
por sete horas e caminhar mais quatro. O perigo iminente de sussuaranas,
das muitas cobras e de um sol nada amigável até que existia, mas aqueles
eram sujeitos estranhos, do tipo que não se importava tanto em perder um
dedo ou dois.
Depois de duas horas, o caminho parecia uma subida eterna. Viam as
serras derramando ao longe e seguiam um mapa que o próprio senhor
havia desenhado quando a última hora chegou. Desceram um lajedo,
escaparam de pequenas poças d’água, abriram parte do caminho.
- Não, eles queriam a bicicleta.
- E você vendeu?
- Claro.
- O bobo foi você ué, ficou barato.
- Mais ou menos, preferi o dinheiro rápido.
- Quinhentos reais de diferença! – berrou o Danilo. – Tá é louco.
- E muito mais de prejuízo se ela continuasse parada dentro de casa –
retrucou.
- Justo.
136
- Justo para um cara impaciente, você quer dizer.
- Aaaah, cês querem demais! – se defendeu o Mago. – Pobre eu tô de
qualquer jeito.
O caminho seguiu por um mato fechado e difícil, a sensação era de
escavar paredes, literalmente, pois de vez em quando nem o facão era
páreo para os cipós. Finalmente, receberam uma linda visão ao
escaparem desse caminho.
Estavam numa serra, as paisagens mineiras eram tão avassaladoras
que não houve um que não dissesse ‘’uau’’ ou variável. Viram um rio
passando no canto, incontáveis árvores, uma imensidão verde que não se
explicava, já que não era a época de chuvas. Experimentavam muitas
visões em uma, era só apertar os olhos que o rio virava outro, as
chapadas se transformavam, tudo. Se o motivo da viagem fosse aquele
lugar, já seria o bastante.
- É real.
Erguido na chapada mais próxima, nasceu a visão de um templo
enorme. Sua arquitetura era estranha, excentricamente reta. Detalhes
ainda eram poucos - visto de onde estavam -, mas a torre erguida atrás da
construção, à beira da queda, enfeitava os olhos de qualquer um.
- Deus... – o Mago de boca aberta – Como ninguém nunca ouviu falar
disso?
O céu era azul e de nuvens baixas, pássaros voavam. Absolutamente
do nada, sentiram uma vontade imediata de silêncio, o fizeram enquanto
caminhavam. Mal se deram conta e os pés já subiam a escadaria.
Que obra inacreditável era o ambiente, tudo, da natureza e do homem.
O santuário, uniforme e de paredes brancas, detalhou-se quando
avançaram. Não haviam desenhos, bandeiras ou placas, era como uma
caixa enorme com uma torre atrás, e só isso.
- Pegue a foto – Danilo cortou o silêncio. – Acho que já é hora.

137
A escada terminou em uma porta gigante de madeira, daquelas que só
tem em casa de gente rica, visivelmente feita à mão. Nela estava o único
detalhe elaborado de todo o exterior: um círculo.
Esse círculo, esse com uma linha reta horizontal dentro, desenhado
com uma espécie de tinta àspera e preta, atingiu os olhos dos três com a
força de uma ventania. Então, a porta se abriu.
3
De lá surgiu (surgiu) uma figura de estatura comum, trajava roupas
longas e cheirosas. Sorria sem mostrar os dentes.
- Boa tarde – disse, e os rapazes se assustaram, travaram, pois na
verdade esperavam um inquilo que tentasse uma expulsão imediata.
- Boa... Boa tarde... – nem sabia o que falar.
- Bem... – O moço cortou o silêncio. – Se estão aqui, vieram para uma
visita.
- Sim, temos a foto de um moço que já esteve com vocês, caso precis...
- Não – Interrompeu. - Se estão aqui por vontade própria, já é uma
prova de que sabem o que vieram fazer. Estou certo?
- Está certo.
- Pois bem, venham comigo. Sejam bem vindos.
- O... Obrigado... – disse o Mago, assim como os outros. Estavam um
pouco tímidos.
Entendam: estes definitivamente não eram caras que sentiam essa coisa
toda de vergonha, só em ocasiões especiais, geralmente quando
decepcionavam pessoas queridas. Agora, entretanto, estavam como
namoradinhos visitando a casa dos sogros. Perninhas lentas, olhar
vacilante, prestando atenção em tudo.
A primeira sala do interior era de cor única, gozava apenas do mesmo
detalhe da porta. O piso era feito de pedras grandes, nada plano em
algumas partes. Descansavam ali alguns violões, tambores e harpas.

138
Logo à frente, três portas finalizavam o cômodo, mostrando corredores
longos, iguais em distância e detalhes. Um sujeito cabeludo saiu de um
deles, vestia os mesmos trajes.
- Posso avisá-los do início?
- Com certeza – respondeu e, enquanto o rapaz voltava, continuou
dizendo. – Vocês disseram que descobriram o nosso lugar por meio de
um amigo. Ele esteve aqui há muito tempo?
- Sim – Alan respondeu. - Há pelo menos 25 ou 30 anos.
- Oh! – gargalhou. – O mestre deste tempo retornou há algumas
semanas. Está em um lugar melhor.
- Meus pêsames... O senhor é o responsável agora?
- Responsáveis todos somos – disse, aos risos. – Mas não, sou algo
como... O designado a receber os visitantes. Me sigam por aqui, vocês
conhecerão o mestre.
O designado manteve-se quieto, mas, por algum motivo, cada um dos
três rapazes rumou para um dos corredores. Logo olharam uns para os
outros, confusos, pois o movimento e a opção haviam sido muito
naturais, como se escolhas diferentes simplesmente não fizessem sentido.
- Aparentemente vocês são sujeitos bem distintos entre si – seguiu para
trás.
Agora sim estavam incrédulos, já que o moço acabara de abrir a porta
de onde vieram. Não surgiu a saída, mas um quarto corredor,
completamente novo.
- Isso... – disse o Mago, boquiaberto. – Isso não estava aí.
- Ora, tudo está e não está, Luciano. Eu, você, os seus amigos, este
templo.
Nem realizou que o designado acabara de descobrir seu nome, só
estava chocado com o quão onírico aquilo era, apesar da certeza de que
vivia algo real. Alan e Danilo nem conseguiam falar.
O corredor era enfeitado por azulejos estampados com triângulos
dentro de triângulos, quadrados dentro de quadrados e círculos dentro de
139
hexágonos. Tudo daquela parte mesclava vermelho e preto, do chão ao
teto, assim como o quarto para qual a passagem levava. A primeira
imagem que viram foram cerca de dez pessoas sentadas no chão, ouvindo
atentamente as palavras de um homem velho. O designado aconselhou-os
a se sentar. O fizeram, enquanto o velho dizia assim:
- O tempo é um espectro que sempre cresce, e cresce, cobre todo o
corpo pelas costas, uma sombra que sempre lhe espreitará. Esse agente
poderoso conhece o que tem nas mãos, não se enganem, pois leva e
deixa. Poucos podem com a sua força – parou por um segundo. - Digo
isso, quero dizer... Todas essas coisas sobre tempo, para que vocês não se
percam quando essa noção se dissolver, afinal, vocês estão com ela há
décadas, desde o útero, nasceram com essa percepção. Quando o
momento chegar e vocês usarem a esfera, se lembrem que o tempo não
fará mais sentido, mas que ainda estará lá. Entenderam?
Alguns ‘’sims’’ disseram por todos.
- Certo, prosseguirei então. Não usem a esfera se o intuito de vocês for
recreativo, ou se o que os trouxe aqui não tenha sido o acaso. Existem
muitas coisas por aí com o intuito único de diversão, essa não é uma
delas. A esfera não é sobre a carne.
- Mestre... – disse um rapaz. – O que veremos? Sei que é algo único,
mas não acha seguro dizer as sensações mais comuns?
- Claro, com certeza. Já estava chegando nessa parte.
Caminhou até o fundo, onde havia uma estante. Engraçado que
nenhum dos três havia reparado aquilo, aqueles, tudo que não fosse o
mestre e os alunos. O móvel tinha formato de escada e, em cima dos
degraus, pelo menos cinquenta esferas enfileiravam-se. Pegou uma.
- Isso, este presente – levantou-a. – Fará com que vocês se esqueçam
de todas as alegrias e tristezas, tudo o que é extremo. Lhes colocará no
centro exato.
- Ent... – começou o Alan, mas parou.
- Diga, meu jovem.

140
- Então não há prazer algum, correto? Pois o prazer não é o centro.
- E viestes por prazer?
Silêncio.
4
- N... Não...
- Todos estão acostumados demais com o um ou o outro, preocupados
em escolher times e cores, patrocinando uma manutenção maniqueísta
dia após dia – respondeu. – O prazer é a contemplação, Alan. É estar.
- O... Ok.
- Não existem métodos corretos de utilização – continuou. – Vocês
pegarão uma das esferas e farão o que bem entender. Os segredos que a
acompanham são mistérios até para nós. Peguem uma, andem pelo
templo, as coisas virão. Estarei aqui se precisarem de algo.
Sentou-se. Explodiu a esfera que segurava. O vidro vermelho
chovendo no chão.
5
Todos os que ouviam se levantaram. Chegaram ali de formas
diferentes, souberam de maneiras distintas, tudo era outra coisa. Sentiam-
se como um organismo, as paredes postas de veias gigantes, imersos em
um corpo imenso tão vivo quanto morto. Algumas pessoas seguraram as
suas e se colocaram a caminhar. Não parecia uma boa ideia fazer como o
mestre (por mais que um ou dois quebraram as suas no primeiro lugar
que viram).
Alan, Mago e Danilo se enxergaram nas esferas quando pegaram-nas.
O reflexo lembrou uma arte antiga que um deles havia visto numa
exposição, os três se lembraram disso.
- O que vão fazer?
- Acho melhor dar uma volta, sei lá.
- Também acho.
Nesse momento, as lembranças e percepções sumiram.

141
Mago estava em frente aos três corredores, que agora eram quatro,
mas, se pedisse com jeitinho, facilmente virariam cinco. Parecia
perfeitamente normal o fato de que acabara de ser teleportado, assim
como o sumiço dos amigos. Nada lhe atormentava. Ainda segurava a
esfera, nem pensara em como usá-la ainda.
Os passos miraram o corredor do meio, era iluminadíssimo, o teto
poderia facilmente ser classificado como um mineral valioso. Lá viu o
seu reflexo, onde se apresentava como uma figura pixelizada e sem
braço, mas ainda assim de boa aparência. Parecia haver uma luz no
interior.
O corredor terminou em uma sala redonda, bagunçada, muito grande e
sem ninguém, assim como a vida de quem acabara de entrar.
- Mas que...
As paredes eram de vidro, aquários, com peixes coloridos indo e vindo,
viajando em turbilhões ora turvos, ora limpos. Mago veio boquiaberto,
pois, agora, era absurdo demais para a mente considerar como algo
possível. Caiu para trás quando viu o tubarão.
Um peixe passou como uma bala atravessando a água. Espirais
subiram, bolhas nasceram, o líquido desapareceu e retornou. Mago
ergueu-se, foi à frente, os olhos tremularam quando levou a mão ao vidro
e assistiu aos peixes formando o contorno. Vieram todos, uniram-se
como se ouvissem um pronunciamento importante. Os olhos de Mago –
centelhas - denunciavam o quão maravilhado estava, então, subitamente,
uma sombra ergueu-se no fim, afastando a pequena convenção. Talvez
estivessem com medo, fugindo de um predador, mas a possibilidade
maior era de que havia um palestrante superior lá no outro lado. Era
intrigante que não conseguia ver até onde ia o aquário, aliás, era como se
cada peixe guardasse uma lâmpada de lucidez consigo. Onde não
estavam, permanecia um mistério.
Mago fitou a esfera, viu-se nela mais uma vez, encarou-se não mais
como imagem, mas como uma criatura largada no espaço, um agente tão

142
inútil quanto importante. A mão foi se fechando, lenta e calma, até o
momento em que o objeto se tornou um monte de cacos.
O que veio primeiro foi um som de violino, um constante e agudo, mas
confortador como descobrir um melhor amigo. Depois surgiu um canto
longo, vogais extendidas, leves e de altura crescente. Então, e só então,
veio o palestrante.
Quando o ser surgiu de dentro do aquário, Mago nem mesmo esboçou
reação, pois seus olhos já não eram iguais aos meus, aos seus, à maioria
dos que habitam essa galáxia. A criatura era humanóide, mas não possuía
olhos, boca, orelhas, mamilos, orgãos sexuais, cabelo, tendências à auto-
destruição ou qualquer dessas coisas. Em frente ao rosto, na altura de
onde teria um nariz, uma esfera girava lentamente. Os dedos saíram do
vidro como se atravessassem lama, a mão se virou chamando para um
passeio. Mago aceitou.
Centenas de peixes rodearam os dois enquanto desapareciam na
escuridão das águas.
6
‘’Eck!’’
Imploro perdão pela onomatopéia, mas esse foi exatamente o barulho
que a esfera de Danilo fez quando chocou-se com seus dentes. Não se
lembrava de como havia se perdido de Alan, ou o que sucedera até ali,
pois não parecia tão importante mais. Alvo de inúmeras injustiças
durante a vida, limitou-se a se sentar na escadaria e observar os jardins
suspensos. Caixas seguravam plantas numa seriedade digna de juízes,
poderiam bater martelinhos a qualquer instante que ninguém ousaria
estranhar.
- Oh...
Não havia reparado naquela arquitetura curiosa, rara, de degraus
atravessando nuvens, tampouco na falta de paredes, o que tornava os
jardins não só suspensos, como voadores. Não vinha medo,
estranhamento, tristeza, alegria, nada, estava apenas ali, sentado, uma
criatura mediana de carne, sangue e inconstância, largando os traços de
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sua espécie e caminhando para o centro exato da mente, onde não haviam
decepções, deleites, dias bons e ruins. Naquele estado, só ele, nomeado
como Danilo num dia pouco importante do século vinte, olhando para si
mesmo a partir de todos os ângulos possíveis.
Levantou-se.
As escadas começaram a se mover, mas os pés não precisavam fazer
nada, se adaptavam à inclinação conforme a estrutura sem início e fim
lhe colocava de ponta cabeça. Sentiu uma vontade singela de olhar para o
próprio corpo, o corpo, a única insegurança que todos os seres vivos
carregam consigo. Assim se viu nu, e depois de nu se viu perdendo a
pele, e enxergou urubus por cima de um hospital, e se uniu com a luz, até
voltar como um soco, se enxergando mais uma vez, encarando o próprio
sistema circulatório de cima a baixo. Sentiu o vento das asas que se
aproximavam.
Os pés do humanóide explodiram os degraus, seus dedos literalmente
entraram na estrutura. Visto de frente, uma esfera perfeita girava, de
lado, tornava-se uma reta, fina como uma folha de papel.
Danilo - agora um sistema circulatório perfeito - encaixou suas linhas
com os dedos do sujeito e, assim, voaram juntos para dentro das nuvens.
Abaixo do azul celeste, o domingo seguia sereno e preguiçoso. Não há
tanto barulho lá fora, poucos carros querem correr, os sons mais notáveis
que chegam - antes da tarde apontar - partem de soldados, cowboys,
camisas 10, reis e rainhas. Crianças. Brincando como se o sol os
refrescasse. Nas casas, as outras pessoas acordam um pouco mais tarde.
Fazem o seu café, abrem geladeiras, encaram geladeiras, pensam em
qualquer coisa. Depois passam para a janela, repousam cotovelos,
observam atentos a vida ir e voltar. Há uma tranquilidade pelo ar, um
silêncio que nem mesmo existe, mas que o dia carrega bem ao seu lado.
Pessoas correm, mantêm-se devidamente saudáveis, e os olhos
sonolentos enxergam vários outros pelas redondezas.
À tarde, virá a rodada do futebol. Gritos serão gritados, xingamentos
serão forjados, cervejas cairão e voltarão aos copos. Depois retorna a
calmaria. A noite chega, o amanhã dá um olá meio envergonhado,
cabeças e cabelos e nucas e orelhas beijam os mais diferentes tipos de
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travesseiros. Janelas se fecham. Janelas se abrem. A lua segue frente à
estrelas que já morreram.
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Alan quase caiu para trás quando se deu conta de que estava sozinho
na sala. Diferente dos outros dois, estranhava tudo.
- Mago! – chamou, nenhuma resposta veio. – Danilo! – muito menos.
Agora reparara que o piso organizava-se em triângulos dentro de
triângulos, uma ilusão de infinidade, levando até um minúsculo no centro
exato. Também via que as paredes acompanhavam a forma geométrica,
dando a certeza de que não estava no mesmo lugar. Girando o corpo,
olhando para os desenhos, sentiu-se natural mais uma vez.
Foi para a porta, onde havia uma estátua. Era uma mulher de vestido
longo (um real, de seda) e braços erguidos, como quem pede ajuda ou
comemora a vinda da chuva. De lá seguiu para fora. O corredor era bem
grande, não se lembrava dele, ou daquele barulho metálico e constante
que as paredes emitiam. Essas eram completamente enfeitadas por uma
pintura belíssima, digna de exposições, paisagem que mostrava lírios
intermináveis abaixo da seguinte frase: ‘’Quanto mais a vós, homens de
pouca fé?’’. Esse pequeno trecho se repetia até a saída, e, nela, Alan
explodiu sua esfera no ombro.
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Nada mudou. Olhou para um lado, olhou para o outro, não sentia
absolutamente nada. Se viu mais uma vez na sala em que aprenderam
sobre a esfera, sozinho, nem uma única alma viva servia de companhia,
apesar de que a estante soava como uma presença. Partiria em breve,
apesar da calmaria.
- Balela... – disse, mas disse baixo, com medo de que escutassem. –
Tudo balela.
A partir daí esperou. Não foi para outras salas, pois não sentia vontade,
não se sentou, nem deitou, nem gritou pelos mestres. Só caminhou de um
extremo ao outro por dez minutos.
- Cadê?! – quase gritou. – Eu viajei tudo isso pra NADA?
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Sentia-se excessivamente sincero, de personalidade forte, como dizem
aqueles sujeitos que adoram se definir assim para mascarar as próprias
indelicadezas. O problema é que as coisas nem sempre são como as
nossas mães dizem, aquela coisa da verdade sempre valer a pena... Não...
Às vezes, um 1%, você se ferra de maneiras magistrais justamente por
bancar o paladino.
- Por que veio?
Essa voz rouca parecia sair dos poros de sua face, e sentia as ondas
sonoras, um incômodo similar a agarrar uma panela quente com mãos
nuas. Obviamente, começou a gemer e se debater.
- PARE! PARE!
- Por que veio?
Um berro de angústia lançou-o ao chão, um tormento, a voz não parava
de atravessar sua carne.
- EU VIM PELO EFEITO. PELO EFEITO! Queria... Deus... – chorou.
– Queria ver como era...
- Pois faça.
Dessa vez não havia doído. Alan se levantou.
- O que eu devo fazer?
- Esqueça.
Se as outras palavras, em dor, eram frases inteiras, essa solitária valeu
como um Guerra e Paz. Não havia resistência, Alan caiu para trás e, lá, a
estante se quebrou.
As dezenas de esferas caindo sobre seu corpo.
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O nariz de Alan se arrastava, esmagando, a visão não via nada além de
um chão que já se unia ao rosto. Tudo era excessivamente iluminado,
alternando entre um colorido aterrador e um cinza absoluto. Pessoas
corriam, algumas divididas em dois pedaços, cada um com vida própria.
- AH!

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O grito veio da parede, de onde Mago emergiu e disparou como um
turbilhão pela sala, submergindo do outro lado. Havia uma menina no
canto, desenhou um olho em um papel e o colocou na própria testa.
Metade do rosto já estava do outro lado, via apenas por um dos olhos.
Imagens estranhas nasciam em flashs, coisas desconexas, elementos que
não deviam estar juntos.
Humanóides caminhavam com suas esferas frente ao rosto, muitos
deles. Observavam... Observavam tanto... Danilo explodiu em penas, os
olhos de diamante e as unhas orbitando os dedos.
A mocinha largou o papel, e lá estava, como mágica, um olho perfeito
nascido de um desenho. Fechado.
- Me... Ajude... – foi o que Alan conseguiu dizer. Pouco restava da
boca.
Veio a criança à seu encontro, dois olhos abertos.
- Me... Aj...
Agachou-se, olhou para Alan com um sorriso indefinido. O terceiro
olho se abriu.
- Esqueça.
Lá dentro, onde deveria guardar o globo ocular, repousava um planeta.
Alan enxergou tudo, viu as pessoas... Tão estranhas... Tão iguais... As
árvores, os montes, montanhas, a história, a forma como morriam e como
viviam.
Assim cessaram as visões. Mago e Danilo ouviam um mestre,
saudáveis, felizes como nunca. Bebiam água, conversavam sobre
assuntos interessantes, mas ninguém lhe enxergava, nem sabiam que
Alan um dia existira.
Sentiu um lírio caindo sobre o rosto. Uniu-se com a luz.

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