Você está na página 1de 8

Alfa, Sào Paulo

27:1-8, 1983.

O ESTADO DA LINGUÍSTICA SEGUNDO


O FUNCIONALISMO

Rafael Eugênio HOYOS-ANDRADE *

RESUMO: A atitude negativa de pessoas esclarecidas perante certas abordagens das línguas natu-
rais, e a proliferação de teorias lingüísticas não são necessariamente sinais de ' 'crise" generalizada no es-
tudo científico da linguagem humana. O presente trabalho fornece argumentos para demonstrar que o
funcionalismo ou "lingüstica das línguas" não está, nem esteve nunca em "crise". A visão que o fun-
cionalismo tem do estado atual da lingüística é, portanto, uma visão otimista e promissora.
UNITERMOS: Estado da lingüística; "crise" da lingüística; visão funcionalista da lingüística;
"lingüística das línguas"; gerativismo; neologismos lingüísticos, confusão de níveis.

INTRODUÇÃO entre as pessoas cultas: elas rejeitam, em


geral, as abordagens linguisticas dos fatos
São certamente esclarecedoras, para da lingua, aborrecidas pelas insistentes in-
o assunto que nos ocupa, as seguintes cursões do gerativismo ao longo dos últi-
afirmações de André Martinet, em carta mos 25 anos.
de 15/02/83 endereçada ao autor deste Devemos perguntar-nos qual é a ra-
ensaio: zão dessa atitude negativa de que fala
"En matière de grammaire, chacun Martinet. Noutras palavras, por que o ge-
estime être plus malin que les autres. rativismo tem
Et, surtout, le public cultivé a été ab- traproducente?produzido essa reação con-
solument dégoûté par le générativis- sobre este assunto elaborandoestender-nos
Poderíamos
me et réagit négativement à toute lin- de motivos pelos quais achamosuma que
lista
te-
guistique. Il faut être patient"**. nham sido tais os efeitos do gerativismo a
O contexto em que se inserem estas longo prazo. Não se trata, porém, aqui de
afirmativas é o da acolhida que as Gramá- criticar o gerativismo sistematicamente,
ticas Funcionais do francês vêm receben- pois o assunto, embora ligado intimamen-
do por parte do público estudioso: trata- te ao mal-estar criado pelo gerativismo, é
se de uma acolhida cautelosa que se expli- mostrar como os funcionalistas vêem a si-
ca, não só pelo fato de existirem diferentes tuação atual da lingüística, situação fre-
enfoques gramaticais (cada um de cujos qüentemente qualificada de critica. Con-
autores se considera "mais sabido do que vém, não obstante, antes de darmos a
os outros"), mas especialmente pelo efei- nossa visão positiva do assunto em pauta,
to negativo que o gerativismo tem deixado resumir rapidamente as razões desse esta-
* Departamento de Linguistica - Instituto de Letras, História e Psicologia -UNESP -19.800 - Assis - S P .
** "Em se tratando de gramática, cada um pensa ser mais sabido do que os outros. E, sobretudo, o público culto tem fica-
do completamente desgostoso por causa do gerativismo e reage negativamente a qualquer linguistica. É preciso ser pacien-
te".

1
HOYOS - A N D R A D E , R.E. — O estado da lingüística segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo,
27:1-8, 1983.

do de insatisfação produzido pelo gerati- verso da lingüística cheios de dinamismo e


vismo entre o público culto, não só da entusiasmo.
França, mas de muitas outras partes do
mundo. Reduzem-se a três os termos que 1. Com efeito, quando se fala de "crise"
nos permitem sintetizar as causas dessa da lingüística é necessário distinguir clara-
reação: "arbitrariedade", "formulis- mente dois lados do problema. De um la-
mo", "imperialismo". O público culto do está o aspecto aparentemente confuso
não aceita facilmente imposições arbitrá- dos estudos da linguagem em sua globali-
rias baseadas em apriorismos indemons- dade, devido à multiplicação de teorias,
tráveis (como o "Language Acquisition escolas e modelos; multiplicação esta que
Device" e a "Deep Structure", entre ou- para quem está de fora, para quem não é
tras) e apresentadas como soluções lingüista, dá a impressão de crise, confu-
científicas objetivas, graças a um impres- são e desordem; de outro lado está o as-
sionante, porém abusivo, emprego de pecto relativamente sereno (que não é
fórmulas quase-matemàticas. Pior ainda,difícil de descobrir) de determinadas esco-
essas soluções teriam o caráter de "úni- las onde, apesar da confusão reinante em
cas" (dai o "imperialismo") até o ponto volta delas (real ou aparente), continua-se
de se excluir completamente da "linguisti- a pesquisar com calma, com segurança e
ca" quanto não levar o selo do gerativis- com a convicção de que essa aparente
mo. Essa exclusão deu-se inclusive aqui confusão não é nada mais do que uma fa-
no nosso Brasil: rejeitavam-se, em certos se, uma espécie de crise de "adolescên-
ambientes marcadamente gerativistas, co- cia" que o próprio tempo encarregar-se-á
municações e trabalhos que não seguissem de superar. Já se percebem claros sinais de
a inspiração chomskyana. O próprio Mat- que Martinet falava profeticamente quan-
toso Câmara chegou a ser vítima dessa in- do, em pleno auge do gerativismo, atre-
justa marginalização, segundo testemu- veu-se a predizer que, depois de passada a
nho de pessoas que viram com pesar co- tempestade, a noção de função iria ser a
mo, nos últimos anos do grande mestre, base de consenso entre as diferentes esco-
seus cursos de lingüística eram pouco fre- las (5, p.3).
qüentados pelo fato de não se dar neles
cabida à nova doutrina "revolucioná- Não negamos, porém, que tenha ha-1
ria"... vido e ainda haja "lingüistas em crise". A
avalancha de teorias e contrateorias afe-
Os funcionalistas foram obrigados tou, sem dúvida, muitos jovens lingüistas
também, durante alguns anos, ao ascetis- que, sem ainda possuírem uma funda-
mo da espera. Uma espera paciente e pro- mentação sólida em linguistica geral e sem
veitosa, porque lhes permitiu consolidar ainda terem optado seriamente em favor
as próprias posições graças a uma profun- de uma ou outra teoria lingüística, prefe-
da revisão, estimulada pelos embates vin- riram deixar de lado aquele aparente
dos da nova corrente, apresentada como "maromagnum da linguagem", para
opção exclusiva. Mas isto já pertence, fe- abordar assuntos menos trilhados e me-
lizmente, à história. Hoje o funcionalis- nos agitados pelo fluxo de correntes en-
mo em geral, não só o funcionalismo de contradiças. Tal é o caso, na nossa opi-
inspiração martinetiana, está em pleno vi- nião, dos estudiosos da lingüística que
gor e na primeira página da atualidade: aqui no nosso Brasil — para não ir muito
funcionalismos como o de M.A.K. Halli- longe - dedicam-se agora com entusiasmo
day (Inglaterra), o de Simon C. Dik (Ho- (e muitas vezes com sucesso) à semiótica,
landa), o da Tagmêmica ou do Estratifi- à pragmática e inclusive a análises con-
cacionalismo norte-americanos e vários teudísticas (que pouco ou nada têm a
outros mais (10), apresentam-se no uni- ver com a verdadeira lingüística) de dife-
2
HOYOS - A N D R A D E , R.E. — O estado da linguistica segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo,
27:1-8, 1983.

rentes tipos de "discurso" (discurso mentalmente um "instrumento de comu-


político, discurso eclesiástico, discurso nicação", mas não se reduz a isso. Por-
jurídico, etc). tanto, repetimos que o que é observável e
manifesto não constitui o objeto de uma
ciência hipotética. Não que não se possam
2. A verdadeira lingüística, a "lingüística e devam formular hipóteses a respeito de
das línguas", cujo objeto não é outro do diferentes aspectos da linguagem, mas
que "determinar de que modo as pessoas não se pode basear tudo em hipóteses de
conseguem comunicar-se linguisticamen- valor relativo. A concretitude da lingua-
te" (7, p.114), não está nem nunca esteve gem dá margem a afirmações incontestá-
em "crise". Jamais os funcionalistas se veis de natureza absoluta e definitiva.
sentiram tão abalados pelas "descober-
tas" e afirmações dos novos gramáticos
(New Grammarians, em termos de Ian 3. Podemos aduzir agora razões positivas
Robinson, (8)) até o ponto de declararem- para provar que a "lingüística das
se em estado de convulsão e aporia. As in- línguas" não está (nem nunca esteve) em
cursões gerativistas, justificáveis, em "crise".
grande parte, no ambiente positivista
norte-americano em que nasceram, não 3.1. Uma das freqüentes razões das "cri-
atingiram as sólidas bases de uma linguis- ses", em qualquer área do conhecimento,
tica amadurecida, segura de si mesma e costuma ser a indefinição crônica dos ob-
convencida da sua validade, a lingüística jetivos e métodos da disciplina em causa.
funcionalista, herdeira confessa das con- Não é esse, porém, o caso da Lingüística
tribuições definitivas de Saussure e Tru- (pelo menos daquela que nós cultivamos):
betzkoy no terreno da linguistica geral e consideramos que, pelo menos desde
da fonologia geral. Não faltará quem Saussure, a Lingüística obteve status de
ache estranho nós falarmos de ciência suficientemente bem definida, em-
contribuições definitivas numa época em bora subsistissem (e subsistam ainda hoje)
que o mais refinado relativismo impera discussões em torno do objeto formal des-
em todos os campos do conhecimento e sa ciência. A ciência da linguagem passou
do comportamento humanos. Repetimos, a ser, como todos sabem, "a ciência-
porém, conscientes da gravidade e do al- piloto das ciências humanas". A relativa
cance de nossas afirmações, que a "lin- indefinição que afeta o objeto dessa ciên-
güística das línguas" nos oferece hoje cia liga-se ao fato de a linguagem humana
uma série de contribuições de natureza ser um sistema de signos "mal definido"
indutivo-dedutiva (porque baseadas na ("ill-defined"), como nos diz Paul Garvin
observação e na lógica) que devem ser(4, p. 86). Note-se que o "mal definido" é
consideradas definitivas. A lingüística o sistema de signos que constitui a lingua-
não é uma ciência de natureza puramente gem e não propriamente a ciência que es-
hipotética porque seu objeto, a lingua- tuda essa linguagem. Trata-se de um siste-
gem, é a manifestação de um comporta- ma "mal definido" porque não é redutí-
mento social humano; a linguagem não é vel a um simples código. Os verdadeiros
simplesmente um comportamento, mas a códigos são sistemas de signos bem defini-
manifestação concreta, observável e, dos, em com unidades em número finito e pa-
certo modo, mensurável de um dos aspec- ra as quais existe uma relação determina-
tos (talvez o mais importante) da comuni- da e reversível entre significantes e signifi-
cação humana, sem que, porém (e aí está cados. As línguas humanas possuem, por
a sua grande riqueza e complexidade), se sua vez, unidades em número indetermi-
limite a ser um simples processo de comu- nado (caso dos lexemas ou monemas lexi-
nicação humana. A linguagem é funda- cais, cujo número, embora aparentemente
3
HOYOS - A N D R A D E , R.E. — O estado da linguistica segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo,
27:1-8, 1983.

fixo para um determinado falante e num tiva para a ciência da linguagem entendi-
determinado momento, é virtualmente in- da como "Lingüística das línguas".
definido e aberto: "non tot quin plura"*) 3.3. A falta de princípios metodológicos
e as relações que nelas se estabelecem en- adequados ao objeto de uma ciência pode
tre significantes e significados constituem também levar essa pretensa ciência a um
um leque de possibilidades que só se atua- estado de "crise". Uma ciência pode ter
lizam nos diferentes contextos em que es- sido bem definida e, inclusive, seu objeto
sas unidades venham a ser empregadas. formal bem delimitado; se, porém, falta-
O fato, porém, de a linguagem ser rem os instrumentos metodológicos para
complexa, dinâmica, imprevisível, não abordar esse objeto, a ciência em questão
faz com que a Lingüística seja uma ciên- ver-se-á facilmente condenada a situações
cia mal definida. Assim como não diría- de crise e confusão. Quais os princípios
mos que a ciência do comportamento hu- metodológicos que norteiam os estudos de
mano, isto é, a psicologia, é uma ciência Lingüística funcional? Mencionemos al-
indefinida e vaga pelo fato de o compor- guns deles:
tamento dos seres humanos ser tremenda-
mente complexo, imprevisível e muitas ve- — A ciência lingüística tem como fim
zes indefinível. precípuo a descrição do modo como as
3.2. O objeto, portanto, da Lingüística línguas permitem ao falante real co-
(da nossa Lingüística), não é a "langue" municar as suas experiências.
saussureana, tão inadequadamente opos- — Essa descrição supõe um ponto de re-
ta à "parole", como bem o demonstrou ferência fundamental, já mencionado
Eugénio Coseriu no seu magistral e defini- antes, a saber, a pertinência
tivo artigo "Sistema, Norma y Habla" (1, comunicativa. A pertinência lingüísti-
p. 11-113). O objeto da lingüística é a ca constitui o ponto de vista teórico
comunicabilidade pertinente da lingua- que dá coerência à Lingüística funcio-
gem humana: tudo aquilo que, de uma ou nal, conferindo-lhe o status de ciência
outra forma, permite a um falante comu- que está ausente das pesquisas ateoré-
nicar alguma experiência ou algum ele- ticas, isto é, daquelas que carecem de
mento da esperiência ao seu interlocutor. uma teoria, ou seja, de uma "maneira
A pertinência lingüística (que é uma de ver as coisas", de um ponto de par-
pertinência comunicativa) constitui-se, as- tida lógico unificador.
sim, em critério fundamental da episte- — Esse ponto de referência tem seu cam-
mologia lingüística. Só será pertinente e, po de aplicação nas línguas humanas
portanto, objeto da Lingüística, o ele- definidas, após cuidadosa observação,
mento de linguagem que desempenhe uma como "instrumentos de comunicação
função comunicativa. O que no uso da social, de natureza oral e duplamente
linguagem nada comunica carece de fun- articulado". Esta definição de língua
ção lingüística e não é, por si mesmo nem não é uma hipótese de trabalho, é uma
em si mesmo, objeto do nosso estudo. Es- constatação baseada nesse "need to
se ponto de vista, que se identifica com o test linguistic hypotheses across a wide
funcionalismo martinetiano e explica ca- range of languages".** A observação
balmente o nome do nosso modelo, é, no dos dados lingüísticos não é contrária
nosso entender, outra contribuição defini- ao desenvolvimento de uma teoria lin-

* "Nem tantas (unidades) que não possa haver maior número (delas)".
** "a necessidade de testar as hipóteses lingüísticas num amplo leque de línguas". (Tomado do folheto informativo sobre
o novo periódico Natural Language & Linguistic Theory da D. Reidel Publishing Company, cujo primeiro volume eslava
anunciado para janeiro/fevereiro de 1983).
4
HOYOS - A N D R A D E , R.E. — O estado da linguística segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo, 27:1-8,
1983.

güística (entendida agora como "ex- that pays close attention to natural
plicação racional do funcionamento language data, so as to provide a
das línguas"): "increasig attention to channel of communication between
an ever-widening language data base researchers of diverse points of
has had a positive effect on linguistic view" (ibidem).**
theory development: linguistic hypo-
theses have become more realistically Que mais podemos desejar, como cul-
formulated, and claims about their tores da "lingüística das línguas" do
universality now warrant serious at- que, finalmente, se dê cuidadosa aten-
tention".* ção aos dados das línguas naturais? O
— A "lingüística das línguas" nunca co- funcionalismo nunca ousou abando-
meteu o erro, hoje lamentado por ou- nar esse insubstituível respeito à reali-
tras escolas (como pode facilmente dade das línguas.
adivinhar-se a partir do texto citado),
de lançar-se a trabalhar com hipóteses 3.4. Motivo muito freqüente de confusio-
que carecessem de sólido fundamento nismo e conseqüente "crise" é o abuso de
na realidade das línguas naturais. Daí neologismos nas escolas de lingüística.
as constantes e até contraditórias mu- Muitas vezes não se trata de palavras no-
danças que vêm acontecendo em fa- vas, mas de palavras velhas usadas com
mosos modeos lingüísticos contempo- novos sentidos (7, p. 115-125). Neste últi-
râneos: a falta de respeito aos dados mo caso a situação é, talvez, pior pelas
só podia levá-los a situações de crise inúmeras ambigüidades que se produzem
desnecessárias e evitáveis. Achamos, necessariamente. É o que aconteceu em
por isso, muito sábia a intenção ex- modelos de todos conhecidos que preten-
pressa pelos editores da nova revista deram dar conteúdos, às vezes inespera-
mencionada antes: dos, a palavras corriqueiras da língua...
("Gerar," "explicar", "criar"... não
"It is the purpose of Natural Lan- eram o que todo mundo esperava e pensa-
guage and Linguistic Theory to pro- va. A "superfície" não era bem a su-
vide a forum for detailed and lively perfície e os "casos" não eram propria-
discussion of theoretical research mente casos).

* "a crescente atenção para aumentar cada vez mais as bases (de pesquisa) fundamentadas em dados linguisticos teve um
efeito positivo no desenvolvimento da teoria lingüística: as hipóteses lingüísticas chegaram a ser mais realisticamente formu-
ladas, e as pretensões sobre a sua universalidade justificam agora uma séria atenção" (ibidem).
** "É a intenção da Natural Language and Linguistic Theory fornecer um fórum para uma discussão viva e detalhada sobre
pesquisas teóricas que prestem cuidadosa atenção aos dados das línguas naturais, de modo a fornecer um canal de comunica-
ção entre os pesquisadores de diferentes pontos de vista".

5
HOYOS - A N D R A D E , R.E. — O estado da linguistica segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo, 27:1-8,
1983.

Achamos, no entanto, que a "lingüística tente entre funções sintáticas e valores


das línguas" procurou sempre evitar esses axiológicos, distingue, teórica e metodo-
riscos, o que, obviamente, a levou a ser logicamente, as duas abordagens, forne-
colocada, algumas vezes na lista das lin- cendo definições precisas de cada uma de-
güísticas "superficiais" e "ingênuas" por las e estabelecendo os pontos de confluên-
parte dos audaciosos New Grammaríans, cia; os chamados monemas autônomos,
pródigos em "descobertas" e terminolo- por exemplo, são unidades significativas
gias. Não tivemos, portanto, a crise termi- em que a semântica substitui, em certo
nológica da qual ainda não se viu livre, sentido à sintaxe, já que as relações desses
por exemplo, a glossemática, condenada, elementos com o resto do enunciado care-
na nossa opinião, a um triste desconheci- cem de marcas propriamente sintáticas
mento devido, em grande parte, à fecun- (posição, funcionais). Esses casos, porém,
didade terminológica de Hjelmslev.* são relativamente marginais nas línguas.
3.5 Outra fonte de possível "crise" é a de Aridade
sintaxe está intimamente ligada à linea-
confundir, inclusive metodologicamente, pretensas"superficial" do discurso e não a
estruturações profundas e uni-
os diferentes níveis da descrição lingüísti- versais de natureza mais semântica do que
ca, concretamente fonologia com relacional. A "lingüística das línguas"
morfologia, numa pretensa
morfofonologia rejeitada desde há muito pretende explicar essa linearidade tal co-
tempo, com razões lúcidas, pelo próprio por trás ee não
mo ela é,
que
as fórmulas que estariam
mediante transformações
Martinet (ver Elementos de Lingüística inverificáveis produziriam o discurso li-
Geral, por exemplo), ou semântica com near final.
sintaxe numa pretensa "estrutura profun-
da" de natureza sintático-semântica, co- 3.6 O marasmo de uma doutrina sem fu-
mo os famosos casos de Fillmore, ou co- turo pode, às vezes, gerar "crises" insus-
mo as próprias regras sintáticas ("regras tentáveis. Não é também o caso do fun-
de subcategorização") de Chomsky em cionalismo que é, como bem diz Denise
que, por exemplo, "animado" vs. "inani- François, um "modelo em construção"
mado" figuram inexplicavelmente como (3, p.31). Temos ainda muito caminho
traços sintáticos. As lingüísticas psicológi-que andar, não só no que se refere à des-
cas ou lógico-matemáticas vivem um con- crição funcionalista das diferentes línguas
fusionismo muito grande nessa área e pa- do mundo, mas no aperfeiçoamento e de-
rece que a tendência seria a de separar ca- senvolvimento do modelo em termos de
da dia menos esses dois aspectos da des- lingüística geral: o estudo das relações en-
crição das línguas. A "lingüística das tre sintaxe e axiologia (por exemplo, quais
línguas", sem negar a complexidade do as interdependências que existem entre
problema, devida à íntima relação exis- funções e valores); o aprofundamento da

* Os neologismos mais famosos introduzidos por Martinet sâo: o de sintema que designa uma unidade intermediária entre
monema c sintagma (combinação de monemas). (O termo monema não é original de Marlinel; deve-se a Henri Frei (7,
p.271). O neologismo sintema reserva-se para os complexos de monemas que funcionam como se fossem unidades indi-
visíveis. Outro termo característico do funcionalismo é o de predicatòide que, como a etimologia o indica, refere-se aos ele-
mentos que tem forma de predicado, mas que dentro do enunciado em causa dependem do verdadeiro predicado, aquele que
constitui o núcleo, centro ou elemento independente, e que correspondem a predicados de orações subordinadas na Gramáti-
ca dita Tradicional. Um terceiro neologismo martinetiano è o de AXIOLOGIA para designar o estudo dos significados lin-
guisticos. O termo semântica, ciência dos significados, é, obviamente mais genérico. Outros lermos como autônomo, atuali-
zador, apresentador, modalidade são especificações de termos já existentes e que, na nossa opinião, não têm o risco de gerar
ambigüidades, dado o seu conteúdo conforme fundamentalmente com a etimologia; talvez o mais discutível seja o de
modalidade, pelo fato de não se referir exclusivamente aos modos verbais. Modalidades sào morfemas ( = monemas grama-
ticais) que contribuem para precisar o valor semântico de nomes {modalidades nominais: plural, possessivos, demonstrati-
vos, definidos...) e de verbos (modalidades verbais: as que indicam tempo, modo. aspecto, voz...). Outros termos como
regido, silema não ganharam aceitação universal dentro do funcionalismo e, nesse sentido, nào poderiam constituir um pro-
blema generalizado.

6
HOYOS - A N D R A D E , R.E. — O estado da linguística segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo, 27:1-8,
1983.

axiologia e o estabelecimento de uma sabê-lo. O que conta é a conquista de um


lexkologia funcional; a delimitação dos espaço no universo da LINGUÍSTICA
campos da axiologia e da semântica; as re- dentro do qual o funcionalismo ou "lin-
lações entre a "lingüística das línguas" e güística das línguas" possa efetivamente
ciências afins, como a psico-lingüística, a operar, sem ser teimosamente marginali-
sócio-lingüística, a pragmática e, inclusi- zado por modelos rivais que se autodefi-
ve, a semiologia, focalizando essas rela- nem como superiores e até como exclusi-
ções sob o ponto de vista da pertinência vos. É freqüente encontrar artigos ou en-
funcional... saios e, inclusive livros, em que se simpli-
É um universo de pesquisa aberto ao ficam ingenuamente as tendências lin-
nosso estusiasmo. Trata-se de um univer- güísticas contemporâneas reduzindo-as a
so real, porque as estruturas da lingua- três (p.e estruturalistas, transformacio-
gem, embora não se identifiquem com a nalistas e semântico-gerativistas (2), ou
realidade "nua e crua", não se reduzem tradicionalistas, estruturalistas e gerativis-
também a uma pura construção do espíri- tas (9). O funcionalismo de inspiração
to (7, p. 59-68). Um ponto de vista co- martinetiana não pode enquadrar-se em
mum nos guia, aquele já várias vezes cita- nenhum dos três grupos mencionados e
do neste breve ensaio, o da pertinência co- não se diga que é menos importante do
municativa: ele unifica os nossos estudos que qualquer um deles. A tagmênica, o es-
e justifica o nome dado ao nosso modelo. tratificacionalismo, o funcionalismo de
Halliday ou o de Simon Dik também não
se enquadram nesses esquemas e não ê sé-
CONCLUSÃO rio atribuir-lhes menor importância...
A visão, portanto, que a lingüística^ Não pretendemos ser os detentores
funcional tem do estado da lingüística ho- da verdade lingüística, nem desejamos um
je é uma visão otimista. Sinais pensamento lingüístico unificado que se-
multiplicam-se, por toda parte, de uma ria pernicioso para o desenvolvimento
aceitação, que às vezes é apresentada co- científico. Acreditamos, porém, na ade-
mo descoberta "original" (10, p.104), dos quação do funcionalismo como teoria lin-
princípios funcionalistas da pertinência güística, na coerência e objetividade de
comunicativa e fidelidade aos dados. seus métodos e na validade de suas análi-
Trata-se de um retorno, de uma supera- ses para explicar (no sentido de "oferecer
ção, de uma síntese (conseqüente a uma argumentos razoáveis e objetivos") o fun-
tese e a sua correspondente antítese), de cionamento das línguas naturais como
uma revolução no sentido kuhniano (2)? veículo por excelência da comunicação so-
Em realidade não nos interessa muito • ial entre os seres humanos.

H O Y O S - A N D R A D E , R.E. - The state of linguistic according to functionalism. Alfa, São P a u l o ,


27:1-8, 1983.
ABSTRACT: Cultured people's rejection of linguistics and the proliferation of linguistic theories
are not necessarily signs of a generalized "crisis" in the scientific approach of language. This paper of-
fers evidences that functionalism is not and never was in a state of "crisis". The view of functionalism
of today's linguistics is therefore an optimistic and promising one.
KEY-WORDS: The state of linguistics; the "crisis" of linguistics; functionalism's view of linguis-
tics; "linguistics of languages"; generativism; neologisms; confusion of levels.

1
HOYOS - ANDRADE, R.E. — O estado da linguistica segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo, 27:1-8,
1983.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. COSERIU, E. — Sistema, norma y habla. In: 6. MARTINET, A. — Elementos de linguística
. Teoria dei lenguaje y linguistica geral. Trad, de Jorge Morais Barbosa. Lis-
general. Madrid, Gredos, 1962. p.11-113. boa, Sá da Costa Ed., 1964.
2. DASCAL, M. — As convulsões metodológicas 7. MARTINET, A. — Estúdios de sintaxis
da lingüística contemporânea. In:
. Concepções gerais da teoria funcional. Madrid, Gredos, 1978.
lingüística. Sâo Paulo, Global, 1978. p. 15-8. ROBINSON, I. — The new grammarian's fu-
43. neral. A critique of Noam Chomsky's
3. FRANÇOIS, D. — De l'autonomie fonction- linguistic. Cambridge, University Press,
1975.
nelle. La Linguistique, iJ:31-42, 1970. 9. ROULET, E. — Teorias lingüísticas, gramáti-
4. GARVIN, P. — The structural properties of cas e ensino de línguas. São Paulo, Pionei-
language. Revista de Letras, Í8.-81-100, 10. ra, 1978.
1976. , SAINT-JACQUES, B. — Les tendences fonc-
5. MARTINET, A. — A functional view of tionnelles des théories syntaxiques post-
language. 2. ed. Oxford, Clarendon Press, transformationnelles. La linguistique,
1965. 77:103-111, 1981.

Você também pode gostar