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27:1-8, 1983.
RESUMO: A atitude negativa de pessoas esclarecidas perante certas abordagens das línguas natu-
rais, e a proliferação de teorias lingüísticas não são necessariamente sinais de ' 'crise" generalizada no es-
tudo científico da linguagem humana. O presente trabalho fornece argumentos para demonstrar que o
funcionalismo ou "lingüstica das línguas" não está, nem esteve nunca em "crise". A visão que o fun-
cionalismo tem do estado atual da lingüística é, portanto, uma visão otimista e promissora.
UNITERMOS: Estado da lingüística; "crise" da lingüística; visão funcionalista da lingüística;
"lingüística das línguas"; gerativismo; neologismos lingüísticos, confusão de níveis.
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fixo para um determinado falante e num tiva para a ciência da linguagem entendi-
determinado momento, é virtualmente in- da como "Lingüística das línguas".
definido e aberto: "non tot quin plura"*) 3.3. A falta de princípios metodológicos
e as relações que nelas se estabelecem en- adequados ao objeto de uma ciência pode
tre significantes e significados constituem também levar essa pretensa ciência a um
um leque de possibilidades que só se atua- estado de "crise". Uma ciência pode ter
lizam nos diferentes contextos em que es- sido bem definida e, inclusive, seu objeto
sas unidades venham a ser empregadas. formal bem delimitado; se, porém, falta-
O fato, porém, de a linguagem ser rem os instrumentos metodológicos para
complexa, dinâmica, imprevisível, não abordar esse objeto, a ciência em questão
faz com que a Lingüística seja uma ciên- ver-se-á facilmente condenada a situações
cia mal definida. Assim como não diría- de crise e confusão. Quais os princípios
mos que a ciência do comportamento hu- metodológicos que norteiam os estudos de
mano, isto é, a psicologia, é uma ciência Lingüística funcional? Mencionemos al-
indefinida e vaga pelo fato de o compor- guns deles:
tamento dos seres humanos ser tremenda-
mente complexo, imprevisível e muitas ve- — A ciência lingüística tem como fim
zes indefinível. precípuo a descrição do modo como as
3.2. O objeto, portanto, da Lingüística línguas permitem ao falante real co-
(da nossa Lingüística), não é a "langue" municar as suas experiências.
saussureana, tão inadequadamente opos- — Essa descrição supõe um ponto de re-
ta à "parole", como bem o demonstrou ferência fundamental, já mencionado
Eugénio Coseriu no seu magistral e defini- antes, a saber, a pertinência
tivo artigo "Sistema, Norma y Habla" (1, comunicativa. A pertinência lingüísti-
p. 11-113). O objeto da lingüística é a ca constitui o ponto de vista teórico
comunicabilidade pertinente da lingua- que dá coerência à Lingüística funcio-
gem humana: tudo aquilo que, de uma ou nal, conferindo-lhe o status de ciência
outra forma, permite a um falante comu- que está ausente das pesquisas ateoré-
nicar alguma experiência ou algum ele- ticas, isto é, daquelas que carecem de
mento da esperiência ao seu interlocutor. uma teoria, ou seja, de uma "maneira
A pertinência lingüística (que é uma de ver as coisas", de um ponto de par-
pertinência comunicativa) constitui-se, as- tida lógico unificador.
sim, em critério fundamental da episte- — Esse ponto de referência tem seu cam-
mologia lingüística. Só será pertinente e, po de aplicação nas línguas humanas
portanto, objeto da Lingüística, o ele- definidas, após cuidadosa observação,
mento de linguagem que desempenhe uma como "instrumentos de comunicação
função comunicativa. O que no uso da social, de natureza oral e duplamente
linguagem nada comunica carece de fun- articulado". Esta definição de língua
ção lingüística e não é, por si mesmo nem não é uma hipótese de trabalho, é uma
em si mesmo, objeto do nosso estudo. Es- constatação baseada nesse "need to
se ponto de vista, que se identifica com o test linguistic hypotheses across a wide
funcionalismo martinetiano e explica ca- range of languages".** A observação
balmente o nome do nosso modelo, é, no dos dados lingüísticos não é contrária
nosso entender, outra contribuição defini- ao desenvolvimento de uma teoria lin-
* "Nem tantas (unidades) que não possa haver maior número (delas)".
** "a necessidade de testar as hipóteses lingüísticas num amplo leque de línguas". (Tomado do folheto informativo sobre
o novo periódico Natural Language & Linguistic Theory da D. Reidel Publishing Company, cujo primeiro volume eslava
anunciado para janeiro/fevereiro de 1983).
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güística (entendida agora como "ex- that pays close attention to natural
plicação racional do funcionamento language data, so as to provide a
das línguas"): "increasig attention to channel of communication between
an ever-widening language data base researchers of diverse points of
has had a positive effect on linguistic view" (ibidem).**
theory development: linguistic hypo-
theses have become more realistically Que mais podemos desejar, como cul-
formulated, and claims about their tores da "lingüística das línguas" do
universality now warrant serious at- que, finalmente, se dê cuidadosa aten-
tention".* ção aos dados das línguas naturais? O
— A "lingüística das línguas" nunca co- funcionalismo nunca ousou abando-
meteu o erro, hoje lamentado por ou- nar esse insubstituível respeito à reali-
tras escolas (como pode facilmente dade das línguas.
adivinhar-se a partir do texto citado),
de lançar-se a trabalhar com hipóteses 3.4. Motivo muito freqüente de confusio-
que carecessem de sólido fundamento nismo e conseqüente "crise" é o abuso de
na realidade das línguas naturais. Daí neologismos nas escolas de lingüística.
as constantes e até contraditórias mu- Muitas vezes não se trata de palavras no-
danças que vêm acontecendo em fa- vas, mas de palavras velhas usadas com
mosos modeos lingüísticos contempo- novos sentidos (7, p. 115-125). Neste últi-
râneos: a falta de respeito aos dados mo caso a situação é, talvez, pior pelas
só podia levá-los a situações de crise inúmeras ambigüidades que se produzem
desnecessárias e evitáveis. Achamos, necessariamente. É o que aconteceu em
por isso, muito sábia a intenção ex- modelos de todos conhecidos que preten-
pressa pelos editores da nova revista deram dar conteúdos, às vezes inespera-
mencionada antes: dos, a palavras corriqueiras da língua...
("Gerar," "explicar", "criar"... não
"It is the purpose of Natural Lan- eram o que todo mundo esperava e pensa-
guage and Linguistic Theory to pro- va. A "superfície" não era bem a su-
vide a forum for detailed and lively perfície e os "casos" não eram propria-
discussion of theoretical research mente casos).
* "a crescente atenção para aumentar cada vez mais as bases (de pesquisa) fundamentadas em dados linguisticos teve um
efeito positivo no desenvolvimento da teoria lingüística: as hipóteses lingüísticas chegaram a ser mais realisticamente formu-
ladas, e as pretensões sobre a sua universalidade justificam agora uma séria atenção" (ibidem).
** "É a intenção da Natural Language and Linguistic Theory fornecer um fórum para uma discussão viva e detalhada sobre
pesquisas teóricas que prestem cuidadosa atenção aos dados das línguas naturais, de modo a fornecer um canal de comunica-
ção entre os pesquisadores de diferentes pontos de vista".
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* Os neologismos mais famosos introduzidos por Martinet sâo: o de sintema que designa uma unidade intermediária entre
monema c sintagma (combinação de monemas). (O termo monema não é original de Marlinel; deve-se a Henri Frei (7,
p.271). O neologismo sintema reserva-se para os complexos de monemas que funcionam como se fossem unidades indi-
visíveis. Outro termo característico do funcionalismo é o de predicatòide que, como a etimologia o indica, refere-se aos ele-
mentos que tem forma de predicado, mas que dentro do enunciado em causa dependem do verdadeiro predicado, aquele que
constitui o núcleo, centro ou elemento independente, e que correspondem a predicados de orações subordinadas na Gramáti-
ca dita Tradicional. Um terceiro neologismo martinetiano è o de AXIOLOGIA para designar o estudo dos significados lin-
guisticos. O termo semântica, ciência dos significados, é, obviamente mais genérico. Outros lermos como autônomo, atuali-
zador, apresentador, modalidade são especificações de termos já existentes e que, na nossa opinião, não têm o risco de gerar
ambigüidades, dado o seu conteúdo conforme fundamentalmente com a etimologia; talvez o mais discutível seja o de
modalidade, pelo fato de não se referir exclusivamente aos modos verbais. Modalidades sào morfemas ( = monemas grama-
ticais) que contribuem para precisar o valor semântico de nomes {modalidades nominais: plural, possessivos, demonstrati-
vos, definidos...) e de verbos (modalidades verbais: as que indicam tempo, modo. aspecto, voz...). Outros termos como
regido, silema não ganharam aceitação universal dentro do funcionalismo e, nesse sentido, nào poderiam constituir um pro-
blema generalizado.
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HOYOS - ANDRADE, R.E. — O estado da linguistica segundo o funcionalismo. Alfa, São Paulo, 27:1-8,
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