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humanos
NavaNEthem Pillay
Boaventura de
Sousa Santos
Leonardo Sakamoto
Marcus Barberino
Silvia Pimentel
Nilmário Miranda
José Geraldo de
Sousa Júnior
Horácio Costa
Paulo Betti
02
junho 2009
Direitos Hum
o desafio
Boaventura de Sousa Santos
A
forma como os Direitos Humanos
se transformaram, nas duas últimas
décadas, na linguagem da política
progressista, em quase sinônimo de eman-
cipação social causa alguma perplexidade.
De fato, durante muitos anos, após a Se-
gunda Guerra Mundial, os Direitos Humanos
foram parte integrante da política da guerra
fria, e como tal foram considerados pelas
forças políticas de esquerda. Duplos crité-
rios na avaliação das violações dos Direitos
Humanos, complacência para com ditadores
amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos
Direitos Humanos em nome dos objetivos
do desenvolvimento – tudo isso tornou os
Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro
emancipatório.
Quer nos países centrais, quer em todo
o mundo em desenvolvimento, as forças
progressistas preferiram a linguagem da re-
volução e do socialismo para formular uma
política emancipatória. E no entanto, perante
a crise aparentemente irreversível desses pro-
Boaventura de Sousa Santos é professor
jetos de emancipação, são essas mesmas for-
catedrático da Faculdade de Economia da
ças que recorrem hoje aos Direitos Humanos
Universidade de Coimbra, distinguished legal
para reinventar a linguagem da emancipação.
scholar da Faculdade de Direito da Universidade
É como se os Direitos Humanos fossem in-
de Wisconsin-Madison e global legal scholar da
vocados para preencher o vazio deixado pelo
Universidade de Warwick. É diretor do Centro de
Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos
10 Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
emancipatórios. Poderão realmente os Direi-
diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da
Revista Direitos Humanos
o escopo global como a legitimidade local, gua inglesa em língua franca, a globalização
para fundar uma política progressista de Di- do fast food americano ou da sua música
reitos Humanos – Direitos Humanos concebi- popular, ou seja a adoção mundial das leis
dos como a energia e a linguagem de esferas de propriedade intelectual ou de telecomu-
públicas locais, nacionais e transnacionais nicações dos EUA. “A globali
atuando em rede para garantir novas e mais
intensas formas de inclusão social.
À segunda forma de globalização chamo
globalismo localizado. Consiste no impacto
processo
específico de práticas e imperativos transna- determinad
Acerca das globalizações cionais nas condições locais. Tais globalis-
Muitas definições de globalização cen- mos localizados incluem: desflorestamento ou entidade l
tram-se na economia. Privilegio, no entanto,
uma definição mais sensível às dimensões
e destruição maciça dos recursos naturais
para pagamento da dívida externa; tesouros
a sua infl
sociais, políticas e culturais. Não existe es- históricos, lugares ou cerimônias religio- todo o
tritamente uma entidade única chamada glo- sos, artesanato e vida selvagem postos à
balização, mas, em vez disso, globalizações, disposição da indústria global do turismo;
termo que, a rigor, só deveria ser usado no “compra” pelos países do Terceiro Mundo
plural e que, como feixes de relações sociais, de lixos tóxicos produzidos nos países capi-
envolvem conflitos, vencedores e vencidos. talistas centrais para gerar divisas externas;
Frequentemente, o discurso sobre globaliza- conversão da agricultura de subsistência
ção é a história dos vencedores. em agricultura para exportação como parte
Proponho, pois, a seguinte definição: a do “ajustamento estrutural”; alterações le-
globalização é o processo pelo qual deter- gislativas e políticas impostas pelos países
minada condição ou entidade local estende centrais ou pelas agências multilaterais que
a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, eles controlam; uso de mão de obra local
desenvolve a capacidade de designar como por parte de empresas multinacionais sem
local outra condição social ou entidade rival. qualquer respeito por parâmetros mínimos
Aquilo que chamamos globalização é de trabalho (labor standards). A divisão in-
sempre a globalização bem-sucedida de ternacional da produção da globalização as-
determinado localismo. Em termos ana- sume o seguinte padrão: os países centrais
líticos, seria correta a utilização do termo especializam-se em localismos globaliza-
localização em vez de globalização para dos, enquanto aos países periféricos cabe
designar a presente situação. O motivo da tão só a escolha entre várias alternativas de
preferência para o último termo é basica- globalismos localizados. O sistema-mundo
mente porque o discurso científico hege- é uma trama de globalismos localizados e
mônico tende a privilegiar a história do localismos globalizados.
mundo na versão dos vencedores. À terceira forma de globalização de-
Distingo quatro modos de produção da signo por cosmopolitismo, conjunto muito
globalização, os quais, em meu entender, vasto e heterogêneo de iniciativas, movi-
12 dão origem a quatro formas de globalização. mentos e organizações que partilham a luta
A primeira forma de globalização é o localis- contra a exclusão e a discriminação sociais
Revista Direitos Humanos
O conceito de Direitos Humanos assenta A dualidade entre uma “política de invisi- reitos Humanos sobre universalismo e rela-
num bem-conhecido conjunto de pressupos- bilidade” e uma “política de supervisibilida- tivismo cultural. Todas as culturas são relati-
tos, todos claramente ocidentais e facilmente de” correlacionadas aos imperativos da polí- vas, mas o relativismo cultural, como posição
distinguíveis de outras concepções de digni- tica externa norte-americana foi denunciada filosófica, é incorreto. Por outro lado, todas
dade humana em outras culturas. por Richard Falk (1981), ao citar a ocultação as culturas aspiram a preocupações e valores
A marca ocidental liberal do discurso total pela mídia das notícias sobre o geno- válidos independentemente do contexto de
dominante dos Direitos Humanos pode cídio do povo maubere em Timor Leste ou a seu enunciado, mas o universalismo cultural,
ser facilmente identificada em muitos ou- situação dos cerca de duzentos milhões de como posição filosófica, é incorreto.
tros exemplos: na Declaração Universal “intocáveis” na Índia, bem como a exuberân- A segunda premissa da transformação
de 1948, elaborada sem a participação da cia com que os atropelos pós-revolucionários cosmopolita dos Direitos Humanos é que
maioria dos povos do mundo; no reconhe- dos Direitos Humanos no Irã e no Vietnã fo- todas as culturas possuem concepções de
cimento exclusivo de direitos individuais, ram relatados nos Estados Unidos. dignidade humana, mas nem todas elas a
com a única exceção do direito coletivo à Mas essa não é toda a história das políti- concebem em termos de Direitos Humanos.
autodeterminação; na prioridade concedida cas dos Direitos Humanos. Muitas pessoas e A terceira premissa é que todas as cultu-
aos direitos civis e políticos sobre os direi- organizações não governamentais têm luta- ras são incompletas e problemáticas nas suas
tos econômicos, sociais e culturais; e no do pelos Direitos Humanos, correndo riscos concepções de dignidade humana. Se cada
reconhecimento do direito de propriedade em defesa de grupos oprimidos vitimizados cultura fosse tão completa como se julga,
como o primeiro e, durante muitos anos, o por Estados autoritários, por práticas econô- existiria apenas uma só cultura. Aumentar a
único direito econômico. micas excludentes ou por políticas culturais consciência de incompletude cultural é uma
A história dos Direitos Humanos no pe- discriminatórias. Tais lutas emancipatórias das tarefas prévias à construção de uma con-
ríodo imediatamente posterior à Segunda são, por vezes, explícita ou implicitamente cepção multicultural de Direitos Humanos.
Guerra Mundial nos leva a concluir que as anticapitalistas. Creio que a tarefa central da A quarta premissa é que todas as culturas
políticas de Direitos Humanos estiveram em política emancipatória do nosso tempo con- têm versões diferentes de dignidade humana,
geral a serviço dos interesses econômicos e siste em transformar a conceitualização e a algumas mais amplas do que outras, algumas
14 geopolíticos dos Estados capitalistas hege- prática dos Direitos Humanos, de um loca- com um círculo de reciprocidade mais largo
mônicos. Um discurso generoso e sedutor lismo globalizado num projeto cosmopolita. do que outras, algumas mais abertas a outras
Revista Direitos Humanos
sobre os Direitos Humanos coexistiu com Identifico três premissas dessa transfor- culturas do que outras.
atrocidades indescritíveis, as quais foram mação. A primeira premissa é a superação Por último, a quinta premissa é que
avaliadas de acordo com revoltante duplici- do debate intrinsecamente falso e prejudicial todas as culturas tendem a distribuir as
dade de critérios. para uma concepção emancipatória dos Di- pessoas e os grupos sociais entre dois
“Um discurso generoso e
sedutor sobre os Direitos
Humanos coexistiu com
atrocidades indescritíveis”
princípios competitivos de pertença hierár- A hermenêutica diatópica baseia-se na reitos Humanos, o dharma também é incom-
quica. O princípio da igualdade e o princí- ideia de que os topoi de uma dada cultura, pleto, dado o seu enviesamento fortemente
pio da diferença. Embora na prática os dois por mais fortes que sejam, são tão incom- não dialético a favor da harmonia, ocultando,
princípios se sobreponham frequentemente, pletos quanto a própria cultura a que perten- assim, injustiças e negligenciando totalmen-
uma política emancipatória dos Direitos cem. Tal incompletude não é visível a partir te o valor do conflito como caminho para
Humanos deve saber distinguir entre a luta do interior dessa cultura, uma vez que a as- uma harmonia mais rica. Além disso, o dhar-
pela igualdade e a luta pelo reconhecimen- piração à totalidade induz a que se tome a ma não está preocupado com os princípios
to igualitário das diferenças, a fim de poder parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica da ordem democrática, com a liberdade e a
travar ambas as lutas eficazmente. diatópica não é, porém, atingir a completude autonomia, e tende a esquecer que o sofri-
Essas são as premissas de um diálogo – objetivo inatingível – mas, pelo contrário, mento humano possui uma dimensão indi-
intercultural sobre a dignidade humana que ampliar ao máximo a consciência de incom- vidual irredutível: não são as sociedades que
pode levar, eventualmente, a uma concepção pletude mútua, por meio de um diálogo que sofrem, mas sim os indivíduos.
mestiça de Direitos Humanos, uma concep- se desenrola, por assim dizer, com um pé A mesma hermenêutica diatópica pode
ção que, em vez de recorrer a falsos univer- numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o ser ensaiada entre o topos dos Direitos Huma-
salismos, se organiza como uma constelação seu caráter dia-tópico. nos e o topos da umma na cultura islâmica,
de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, Um exemplo de hermenêutica diatópi- que se refere sempre à comunidade étnica,
e que se constitui em rede de referências nor- ca é a que pode ter lugar entre o topos dos linguística ou religiosa de pessoas que são
mativas capacitantes. Direitos Humanos na cultura ocidental, o to- o objeto do plano divino de salvação. Vista a
pos do dharma na cultura hindu e o topos partir do topos da umma, a incompletude dos
A hermenêutica diatópica da umma na cultura islâmica. Vistos a partir Direitos Humanos individuais reside no fato
Podemos compreender topoi como do topos do dharma, os Direitos Humanos de, com base neles, ser impossível fundar os
lugares comuns retóricos mais abrangen- são incompletos, na medida em que não laços e as solidariedades coletivas, sem as
tes de determinada cultura, que funcionam estabelecem a ligação entre a parte (o indi- quais nenhuma sociedade pode sobreviver,
como premissas de argumentação que, por víduo) e o todo (o cosmos). Vista a partir do e muito menos prosperar. A dificuldade da
sua evidência, não se discutem e tornam dharma, a concepção ocidental dos Direitos concepção ocidental de Direitos Humanos 15
possíveis a produção e a troca de argu- Humanos está contaminada por uma simetria em aceitar direitos coletivos de grupos so-
Revista Direitos Humanos
mentos. Compreender determinada cultura muito simplista e mecanicista entre direitos ciais ou povos é um exemplo específico de
a partir dos topoi de outra cultura é tarefa e deveres. Apenas garante direitos àqueles a uma dificuldade muito mais ampla: a dificul-
muito difícil, para a qual proponho uma her- quem pode exigir deveres. Por outro lado e dade em definir a comunidade como arena
menêutica diatópica. inversamente, visto a partir do topos dos Di- de solidariedades concretas, campo político
artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
dominado por uma obrigação política hori- fontes do Islamismo, que relativiza o con-
zontal. Esta ideia de comunidade, central para texto histórico específico em que a Sharia
Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, foi criada pelos juristas dos séculos VIII e
que reduziu toda a complexidade societal à IX. No contexto atual, haveria todas as con-
dicotomia Estado/sociedade civil. dições para uma concepção mais alargada
Mas, por outro lado, a partir do to- da igualdade e da reciprocidade a partir das
“No contexto pos dos Direitos Humanos individuais, é fontes corânicas. Estaria inclinado a sugerir
fácil concluir que a umma sublinha de- que, no contexto muçulmano, a energia mo-
muçulmano, masiadamente os deveres em detrimen- bilizadora necessária para um projeto cos-
Sharia histórica a exclusão das mulheres e perspectiva da cultura ocidental dos Direi-
dos não muçulmanos do princípio da reci- tos Humanos. Este é provavelmente o úni-
procidade, propõe a “Reforma Islâmica”, co meio de integrar na cultura ocidental a
assentada numa revisão evolucionista das noção de direitos coletivos, os direitos da
natureza e das futuras gerações, bem como
a noção de deveres e responsabilidades para
com entidades coletivas, sejam elas a co-
munidade, o mundo ou mesmo o cosmos.
As dificuldades da
interculturalidade progressista
Que possibilidades existem para um di-
álogo intercultural quando uma das culturas
em presença foi moldada por massivas e
continuadas agressões à dignidade humana
perpetradas em nome da outra cultura? O
dilema cultural que se levanta é o seguinte:
dado que, no passado, a cultura dominante
tornou impronunciáveis algumas das as-
pirações à dignidade humana por parte da
cultura subordinada, será agora possível
pronunciá-las no diálogo intercultural sem,
ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a
subordinação?
Um dos mais problemáticos pressupos-
tos da hermenêutica diatópica é a concepção
das culturas como entidades incompletas. como pressuposto da hermenêutica diatópi- Condições para uma
Pode se argumentar que, pelo contrário, só ca, é um exercício macabro, por mais eman- interculturalidade progressista
culturas completas podem participar em di- cipatórias que sejam as suas intenções. As seguintes orientações e imperativos
álogos interculturais sem correr o risco de O dilema da completude cultural pode transculturais devem ser aceitos por todos
ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas ser assim formulado: se uma cultura se os grupos sociais e culturais interessados no
por culturas mais poderosas. Uma variante considera inabalavelmente completa, então diálogo intercultural.
desse argumento reside na ideia de que so- não terá nenhum interesse em envolver-se 1. Da completude à incompletude. O
mente a uma cultura poderosa e historica- em diálogos interculturais; se, pelo contrá- verdadeiro ponto de partida do diálogo é
mente vencedora, como é o caso da cultura rio, admite, como hipótese, a incompletude o momento de frustração ou de desconten-
ocidental, pode atribuir-se o privilégio de que outras culturas lhe atribuem e aceita tamento com a cultura a que pertencemos.
se autodeclarar incompleta, sem, com isso, o diálogo, perde confiança cultural, torna- Esse sentimento suscita a curiosidade por
correr o risco de dissolução. Assim sendo, a se vulnerável e corre o risco de ser objeto outras culturas. A hermenêutica diatópi-
ideia de incompletude cultural será, afinal, o de conquista. Por definição não há saídas ca aprofunda, à medida que progride, a
instrumento perfeito de hegemonia cultural fáceis para esse dilema, mas também não incompletude cultural, transformando a
e, portanto, uma armadilha quando atribuída penso que ele seja insuperável. Tendo em consciência inicial de incompletude, em
a culturas subordinadas. mente que o fechamento cultural é uma es- grande medida difusa e pouco articulada,
As culturas dos povos indígenas das tratégia autodestrutiva, não vejo outra saída numa consciência autorreflexiva. 17
Américas, da Austrália, da Nova Zelândia, da senão elevar as exigências do diálogo inter- 2. Das versões culturais estreitas às ver-
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Índia, dentre outras, foram tão agressivamen- cultural até um nível suficientemente alto sões amplas. As culturas têm grande varieda-
te amputadas e descaracterizadas pela cul- para minimizar a possibilidade de conquista de interna, e a consciência dessa diversidade
tura ocidental que, recomendar-lhes agora cultural, mas não tão alto que destrua a pró- aprofunda-se à medida que a hermenêutica
a adoção da ideia de incompletude cultural, pria possibilidade do diálogo. diatópica progride. Das diferentes versões de
artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade
transformá-lo na fachada benevolente sob a An-na’im, Abdullahi A. (1992) (org.), Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadélfia:
qual se escondem trocas culturais muito desi- University of Pennsylvania Press.
guais. Da mesma maneira, o estabelecimento Huntington, Samuel (1993), The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, 72(3).
unilateral do fim do diálogo intercultural é di-