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PÀR LAGERKVIST
ENCONTRO
COM O MAR
- 1
Traduzido do inglês por
JU V E N A L JA C IN T O
no navio pirata, que devia levá-
D e p o is de e m b ak c a e
lo à Terra Santa, o peregrino encontrou descanso,
e não mais foi perturbado por nenhuma espécie de
temor. Uma sensação de paz, como jamais conhece
ra, desceu sôbre êle quando se deitou no beliche, no
ventre do barco, as mãos trançadas no peito, antes
com tanta freqüência inquieto. Fora, o vento e o mar
rugiam, Não ignorava que o navio era um velho e
mísero casco e a tripulação uma escória sem prés-
timo; e no entanto, surpreendentemente, sentia-se
em segurança; entregava-se totalmente àqueles ho
mens e aos agitados elementos. Pagara sua passa
gem ; dera-lhes tudo o que possuía — todo o seu di
nheiro mal-havido — e os homens o tinham contado
furtivamente, sem conceder nenhuma importância
às nódoas de sangue. Agora cavalgavam as ondas
revoltas, com destino à terra para onde háviam pro
metido levá-lo. Acreditava nisso; por alguma ra-'
zão, sentia-se mais confiante do que jamais aconte
cera em sua vida. Embora se lembrasse da explo
são de gargalhadas dos tripulantes quando larga
ram do cais, estava despreocupado, e não duvidava
de que o conduziriam para aquele país distante, pe
lo qual tanto ansiava. - .:)í
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cê. Mas você não se parece, com êles. Não tem jeito
de peregrino.”
— Que mãos peludas você tem! Ferrante tem as
mãos assim, embora os cabelos sejam pretos. Cui
dado com êle. É o único de quem precisa acautelar-
se; os outros são gente boa (todos êles) conforme
já lbe disse. O único que deve vigiar é o das mãos
peludas como as suas. Fácil de lembrar.
Fêz uma pausa, mas continuou a observar Tobias
com tanta atenção como antes.
— Porque interessa a você. Foi como disse. E é
por isso que não está com o bando geral, o rebanho
comum de ovelhas que segue aquela cruz, possuindo
uma alma em comum, por assim dizer/^ocâ vem só.
Faz peregrinação por conta própria, à sua maneira.
Provavelmente nem sequer tem uma cruz... ou se
rá que tem? Nem tanto como um rosário com uma
cruzinha. Sim, eu vi logo que não tinha. Nada le
vava nas mãos. Estavam vazias. Não, uma cruz não
se harmonizaria com mãos como essas. . . como as
de Ferrante/
“ Quer ser um peregrino. Quer ir à Terra Santa.
Qual a razão ? Que tem que fazer lá um homem co
mo você?
“ Se está tão decidido quanto a isso, naturalmen
te que o levaremos lá. Não é preciso dizer. Have
mos de levá-lo de um ou de outro jeito, tal como o
capitão prometeu. Quando empenhamos nossa pa
lavra, cumprimo-la: somos assim. E você pagou. En
ENCONTRO COM O MAR 9
Calou-se.
Não sabia o que ela dissera, nem o que eu respon
dera— se é que respondera. Creio que não respon
di; só poderia ter escutado, anelante, através da
grade. Nossos hálitos se haviam encontrado atra
vés daquela grade... sem palavras, sem terem em
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i
O seu comportamento era tal que também me tor
nei irascível — e mesmo, posteriormente, furioso.
Entramos em choque repetidas vêzes, e o nosso lar,
dantes tranqüilo, encheu-se de disputas e cenas de
violência. Por certo, ambos tínhamos culpa; mas
sua maneira de encarar o meu abominável escân
dalo, conforme chamava o caso, e a depravada cria
tura que me desencaminhara — tôda essa vergo
nhosa e torpe ligação — era-me tão repugnante que,
sem a mínima compreensão ou piedade, condenei-a
como um ente vil e desprezível. Passei a detestá-la;
não tinha em nenhuma consideração que fôsse mi
nha mãe e que dantes os meus sentimentos por ela
tivessem sido inteiramente diferentes. Pelo contrá
rio, acredito que isso me amargurava mais ainda.
Nela, tudo agora me parecia repulsivo, e a minha
tendência para perceber o lado burlesco e tolo de
seu comportamento e de seus discursos tornava-me
tão maligno e tão maldosamente crítico como ela
própria. Não me furtava a nenhuma ocasião de ti
rar-lhe a máscara, e ainda me lembra o júbilo que
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