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“QUANDO A COR PREFERIDA DO MEU FILHO ERA ROSA-CHOQUE”:

RELATOS DE EXPERIÊNCIAS DE SOCIALIZAÇÕES DE GÊNEROS DA ESCOLA

Aldenora Conceição de Macedo1

Resumo: Este relato de experiência tem como objeto a socialização binária de gêneros na escolarização
que, em diálogo com o campo teórico, apresenta uma discussão assentada nas vivências de um menino de
cinco anos ao ingressar na escola e nas experiências vividas durante o primeiro ano do ensino fundamental.
Com apoio teórico da sociologia da infância, dos estudos feministas e de gênero, trago uma reflexão acerca
das pedagogias de gênero, do sexismo vigente nas práticas pedagógicas e a influência que exercem na
constituição das identidades das crianças, assim como também o faz a educação reguladora e disciplinadora
dos corpos, marcadamente presente na passagem da Educação Infantil para o Ensino Fundamental.
Ressalta-se a característica polarizada nas relações entre meninas e meninos e a socialização das
representações heteronormativas como únicas aceitas/desejadas socialmente. A fonte do trabalho – relatos
da criança a sua mãe, ratificam que a presente ideologia da heterossexualidade compulsória e da
masculinidade hegemônica que permeiam as escolas se inscrevem nas vidas de estudantes negando-lhes o
direito à diferença como parâmetro para a igualdade e determinam normas que, no caso das crianças, negas-
lhe até mesmo o direito humano de o serem. A relação entre uma família sensível e atenta às práticas
sexistas e preconceituosas e a escola conservadora é o pano de fundo da discussão teórica, um conflito entre
o alcance da escola na família e da família na escola.
Palavras-chave: Relações de gênero. Práticas pedagógicas. Socialização de gênero. Família. Educação.

Considerações Iniciais

As contestações às práticas sexistas da escola tratadas neste texto se deram porque em nossa família
exercemos uma educação com respeito às diferenças, na qual as desigualdades da nossa sociedade, com
destaque para as questões de gênero, são objetos de constantes reflexões. Não criamos barreiras para as
experiências da infância, abolimos o sexismo desde as brincadeiras aos interesses pessoais. Tal ideia
também constitui minha prática profissional. Como professora de anos iniciais vivencio os dois lados da
relação família e escola. Sempre percebi que minhas práticas inclusivas de gênero nunca foram bem aceitas
entre meus pares. Para as famílias, são objetos constantes de discussões e explicações, algo que considero
necessário, uma vez que, nessa relação, cabe a nós desmistificar a educação para a equidade de gêneros.
Porém, arrisco a afirmar, que o quadro mais comumente encontrado nas escolas é esse em que a
socialização se dá muito mais na (re)produção do sexismo – muitas vezes já trazido de casa - que em sua
desconstrução, como é orientado, tanto em ordenamentos legais quanto educacionais. Do outro lado, as
famílias, exercendo o papel de uma socialização primária, constroem, desde antes do nascimento, um
mundo ideal, uma caixinha cor-de-rosa para as meninas e azul para os meninos, nas quais forjarão suas
identidades sob os comandos da heteronormatividade. Vermos o contrário, ou seja, uma dessas instituições,

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Doutoranda em Educação – UnB. Mestra em Educação em Direitos Humanos e Cultura de Paz - UnB. Especialista em Direitos
Humanos da Criança e do Adolescente – UFG, Especialista em Educação para a Diversidade, Cidadania e Direitos Humanos -
UFG, Especialista em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça - UnB, Especialista em Gestão Escolar - UnB. Licenciada
em Pedagogia. Professora no Governo do Distrito Federal. E-mail: aldenora.acm@gmail.com
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agindo de acordo com o ideal democrático de sociedade, no qual se respeitam escolhas e diferenças, ou
ainda, no qual as crianças são apenas seres em busca de conhecimento de si, e do mundo a sua volta, ainda
é muito raro e, quando isso acontece, há um choque de realidades e interesses.
A ideia para a escrita deste texto surgiu há seis anos, a partir das experiências vivenciadas por minha
família e, especialmente, pelo meu filho, então com cinco/seis anos de idade, ao ingressar no 1º ano do
Ensino Fundamental. Muita coisa tem passado desde então, muitos acontecimentos calcados no sexismo,
mas essas experiências continuam merecendo discussão, não apenas por terem sido tantas e tão bem
demarcadas pelo binarismo de gênero, mas também por terem sido reveladoras para ele, uma vez que a
partir de então passou a entender que “na escola a diferença faz a diferença”2 (BENTO, 2011).

Socialização, Família e Escola: Aprendizagens de Gêneros


Conhecemos por sexismo o ato de tratar as pessoas de maneira diferenciada levando em conta seus
sexos biológicos. Para Montserrat Moreno (1999, p. 23) sexismo é “um dos preconceitos mais graves e
castradores de que padece a humanidade”, pois está impregnado no pensamento científico, filosófico,
religioso e político, há milênios. Quanto a isso, Simone de Beauvoir (1967) ressalta que a socialização é de
extrema importância para tais relações hierárquicas de gênero, por ser, a diferenciação sexual, um produto
histórico, social e político, em que tornar-se diz respeito a um processo de relações com o outro, com os
meios aos quais se faz parte, com as informações que se tem disponíveis e, sobretudo, com a cultura. O
processo de se tornar, portanto, inicia-se desde muito antes do nascimento e segue determinantes que
direcionam para o alcance do objetivo final: constituir um indivíduo condizente com sua biologia.
Nesse sentido, Carrie Paechter (2009) nos explica que quando uma criança é nomeada em termos
de menina ou menino, entra em uma constelação de comunidades locais superpostas de prática de
masculinidade e feminilidade, nas quais aprenderá com as/aos membras/os mais estabelecidas/os no grupo
o que significa ser homem ou mulher em sua comunidade. Comunidades de prática é, desse modo, um lugar
em que, e por meio do qual, os indivíduos desenvolvem suas identidades em relação tanto a outras/os
membras/os da comunidade quanto as/aos de outras. A constelação de práticas de gênero, nesse caso, é o
lugar no qual crianças e jovens aprendem o que é ser mulher ou homem. Um aprendizado que repercute
sobre o que podem pensar de si mesmas/os e que implica sobre o que podem dizer, fazer ou ser.
Simone de Beauvoir exemplifica essa socialização com a passividade caracterizante da mulher
“feminina” para apontar que nada mais é que um traço que se desenvolve nela desde os primeiros anos de
vida por meio da intervenção de outrem. Portanto não se pode “pretender que se trata de um dado

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Preciso ressaltar que os privilégios de ser um menino branco, pertencente a uma família da classe trabalhadora, porém bem
estruturada, instruída e economicamente estável, fazem da trajetória de constituição de si, em uma sociedade extremamente
racista e classista, uma experiência bem menos traumática do que a vivenciada pela grandiosa maioria.
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biológico”, pois “na verdade, é um destino que lhe é imposto por seus educadores e pela sociedade”
(BEAUVOIR, 1967, p. 21). Socializar é, assim, ensinar a ser. Uma ação educativa intencional que se dá
em todos os meios de convivência (igreja, família, escola etc.), em todas as fases da vida (primária,
secundária) e por todas/os agentes educadoras/es (familiares, colegas, professoras/es etc.) que intervém na
constituição da identidade.
Assim, gênero, em acordo com Joan Scott (1995, p. 14), é uma categoria para se analisar a história
das relações sociais considerando mulheres e homens como categorias também construídas historicamente
e imbuídas de simbologias, normatizações, em que devem ser consideradas todas as organizações e
instituições das quais fazem parte e as inter-relações que estabelecem à constituição de suas identidades,
por sua vez, também subjetivas. A ênfase do conceito é desconstruir o determinismo biológico, pois estes
seriam frutos de normativas expressas de diversas maneiras e “tomam a forma típica de uma oposição
binária, que afirma de maneira categórica e sem equívocos o sentido do masculino e do feminino”.
Para Joan Scott (1995, p. 86) gênero é “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primária de dar significado às relações de poder”. A
construção de uma significação cultural dada às diferenças é que as tornam hierarquizadas. Daí
compreende-se que homens também são socialmente construídos e que falar de gênero é falar de mulher e
homem em suas múltiplas conexões, suas hierarquias, precedências e relações de poder. Quanto a isso,
tomo as palavras da pesquisadora Ana Maria Colling (2004, p. 39) ao afirmar que “a história das mulheres
apenas tem sentido se analisarmos na relação ao outro sexo. Também a história dos homens é assim. Por
isto a importância da categoria de gênero, que questiona os papéis sociais destinados às mulheres e aos
homens”. Nessa perspectiva Adriana Piscitelli (2009) ressalta a importância da socialização no debate de
gênero porque, para ela, essa ilumina o caráter de construção social das diferenças sexuais e demonstra
como a estrutura social se conecta à formação de personalidade, ou seja, como acontece a incorporação das
normas sociais relativas ao feminino e ao masculino. Normas ensinadas de diversas maneiras (na família,
na escola, nos locais de sociabilidade) que, uma vez incorporadas - ainda que imperceptivelmente, se
tornam determinantes, porque ao serem atreladas à subjetividade passam a constituir suas identidades.
Assim, socialização, em Berger e Luckmann (1976), divide-se em duas etapas: uma experimentada
na infância, chamada de primária e outra se referindo a toda socialização subsequente, secundária. Giddens
(2005) também faz essa divisão, para ele a socialização primária ocorreria na primeira infância, quando as
crianças aprendem a língua e os padrões básicos de comportamento que servirão como base para os
aprendizados posteriores - nessa fase a família seria o principal agente de socialização, e a socialização
secundária seria sua sequência e viria a partir da infância mais tardia, durando o restante da vida percorrendo
adolescência e maturidade - nesse momento, outros agentes entram em cena e a interação social passa a
fazer parte do aprendizado de valores, crenças e normas que formam os padrões de sua cultura.
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Em minha observação não devemos limitar socialização primária ao tempo biológico ou
cronológico, ou seja, definido pela idade da criança, mas termos ênfase nos ensinamentos e aprendizagens,
considerando que os de base familiar tendem a ser mais significativos para a vida, logo, não se restringem
à primeira infância sendo constituídos pelos ensinamentos que, por toda uma vida, e por diferentes contatos
com a família, serão apreendidos. Defendo, portanto, que a socialização primária diz respeito às pessoas
que dela fazem parte. Nessa perspectiva, a primeira “comunidade de prática” da criança é a família. São os
ensinamentos familiares os primeiros considerados, primeiramente lembrados, seja de maneira positiva ou
não. Um aprendizado que, por ser carregado de sentimentos de afetividade e dependência, será o mais
cristalizado e enraizado pelas crianças. Portanto a interiorização, essa apreensão significativa dos
acontecimentos a nossa volta, é marcadamente forte nessa fase da vida. A socialização primária, destaca-
se, só é possível com essa identificação - repleta de emoção, da criança para com sua família, na qual os
“outros significativos”, ou seja, as pessoas que mantém uma primeira relação de cuidados para com a
criança, são indispensáveis a sua sobrevivência (BERGER; LUCKMANN, 1976).
Já a socialização secundária é estruturada na interiorização de outros mundos além do “mundo
básico” apresentado pela família, ou seja, interioriza-se “submundos” institucionais ou baseados em
instituições” que representam realidades parciais em contraste com o mundo básico adquirido na
socialização primária. Realidades caracterizadas por componentes normativos, mas também afetivos e
cognitivos que podem ou não ser coerentes com as aprendizagens primárias e que estão sempre ancoradas
em um aparelho legitimador (BERGER; LUCKMANN, 1976). Socialização secundária é aqui entendida
como toda aprendizagem existente nas relações sociais - além da família e, por isso, presente em diversas
instituições do cotidiano, dentre as quais, mais importante e mais presente na vida infantil, a escola, que,
para as crianças, vai representar o mundo público, espaço outro que será mais próximo e recorrente. Local
onde irá perceber que o mundo ensinado pela família não é o único existente.
É na escola que a criança irá exercer-se em cidadania, onde aplicará as regras familiares e onde
aprenderá que somente elas não bastarão para a convivência nesse mundo novo e cada vez mais extenso
que a vida privada de seu núcleo familiar. A entrada na escola representa, assim, sua retirada do âmbito
exclusivamente privado e a inserção no mundo público, agora sob a responsabilidade também do Estado e
da sociedade e na qual irá tornar-se integrante de um sistema maior em que lhe será atribuído o “ofício de
aluno”, regido pela “‘norma’ da infância”, com prescrições reguladoras e comportamentais. Uma
normatização que começa a se concretizar, de forma bem mais demarcada, no ingresso ao ensino
fundamental, pois a educação infantil tende a ser uma fase da escolarização na qual ainda se respeita a
ludicidade e a liberdade de ser criança. Afirmação que faço é com base em minhas experiências
profissionais e como mãe que vivenciou, por duas vezes, as rupturas da passagem da educação infantil para
o ensino fundamental. Nessas duas condições foram/são muito facilmente perceptíveis as abruptas
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mudanças pedagógicas, e de socialização, que tornam essa fase um momento de grandes mudanças para as
crianças. Também é nessa nova fase que passarão a experimentar um maior controle corporal e de gênero.

A Escola e as Pedagogias de Gênero: Relatos de Experiências


• MATERIAIS ESCOLARES: Ao receberem o material individual e coletivo do meu filho – entregue
à escola no início do ano letivo, professora e coordenadora chamam minha atenção para o fato de que eu
poderia estar colocando-o em perigo de vivenciar situações vexatórias junto às crianças de sua turma. Seus
materiais escolares, segundo elas, “não condiziam com ele, pois não eram de menino”. Meu filho sempre
gostou de cores diversas. Desenhos, ilustrações, personagens eram escolhidos pela cor, independente se
“feminino” ou “masculino”. Mochila, lancheira, bolsinha de lápis seguiam o mesmo padrão. Materiais tão
“afeminados” deixou a escola, segundo as profissionais, “preocupada” porque ele era um “rapazinho”. Com
tom ameno e ao mesmo tempo professoral, a escola objetivava confirmar se eu mesma havia os comprado
ou se pedi para alguém fazê-lo, pois era fato: um erro havia acontecido! Essa foi a primeira pedagogia de
gênero enfrentada por nossa família naquele ano. A mim coube explicar que a divisão binária defendida
pela escola não era considerada para qualquer escolha do meu filho. Além do que, ele não era um rapazinho,
mas uma criança de apenas cinco anos que tinha a inocência de achar que também na escola poderia
continuar a sê-lo. Os olhares de julgamento voltados a mim pareciam me acusar de o estar corrompendo,
ou melhor, o desvirtuando do caminho correto. Essas pedagogias de gênero são, conforme Guacira Lopes
Louro (1999), ações articuladas e intencionais que reiteram identidades e práticas hegemônicas que
possuem como característica principal o caráter disciplinador. Estão presentes na organização da escola,
nos currículos (prescrito e oculto), nas práticas cotidianas e nos silenciamentos.

• DATAS COMEMORATIVAS: Muitas comemorações são promovidas pela escola ao longo de um


ano letivo. A maioria delas, ressalto, vão contra a laicidade da instituição ao ferirem o direito à pluralidade,
como, por exemplo, a Páscoa, festa junina, natal etc. Além das muitas atividades de cunho religioso
realizadas em razão da Páscoa, destaco o caráter excludente das lembrancinhas que traziam o tão desejado
chocolate. A “embalagem” confeccionada em E.VA, para os meninos, tinha a forma de um boneco todo de
azul e, para as meninas, uma boneca toda em cor-de-rosa. A impossibilidade de, nessa situação, a criança
ter a liberdade de escolher o contrário daquilo que já fora imposto para ela é, sem dúvida, uma atitude de
castração que pode até parecer, mas não é nada sutil. É uma ação de silenciamento. Que menino de cinco
anos vai se levantar e pedir a lembrancinha cor-de-rosa? São nessas determinações que o heterossexismo
vai sendo inscrito em suas identidades. São nesses processos socializadores que os indivíduos vão se
constituindo como mulheres e homens. Relações “atravessadas por diferentes discursos, símbolos,
representações e práticas" (LOURO, 1998, p. 28), em que a representatividade é um dos vários processos
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sociais que constituem a diferenciação sexual, e de gênero. A questão do uso das cores para determinar
papéis sexuais não é algo que possa ser desconsiderado dentro dessa discussão, pois são atitudes como
essas, muitas vezes banalizadas, que estruturam a desigualdade e, sobre as quais, as violências de gênero
vão se potencializando e naturalizando. Em comemoração ao Dia das Mães, a lembrancinha foi uma colher
de pau ornada com lacinhos cor-de-rosa. Para o Dia dos Pais, gilete de barbear ornada com um belo bigodão
de E.V.A e uma base azul para o escrito. Mais à frente, no Dia das Crianças, uma “arminha” de plástico -
imitação de revólver, com balinhas dentro, para os meninos, e uma bonequinha, para as meninas.
O estereótipo de “do lar” atribuído às mães, mesmo em uma sociedade em que nós somos as maiores
provedoras da família, e a virilidade do pai, são aqui bem demonstradas. A escola ratifica, e se aproveita,
muitas vezes, de que mães e pais transmitem um modelo conservador a sua prole. Não ignoro que também
elas/es, enquanto sujeitos socializadas/os sob o véu de uma cultura historicamente patriarcal, por vezes, não
dispõem de muitas outras realidades para oferecer. A lógica binária instituiu diversas práticas sexistas que
constituíam e constituem sujeitos femininos e masculinos e determinam comportamentos ou modos que se
inscrevem como “gravados” em suas histórias de vida. Mulheres e homens que se tornam, como defende
Guacira (LOURO, 1999, p. 25-26), participantes ativas/os na construção de suas identidades e, para tanto,
estão sempre investindo, de forma produtiva, ainda que nem sempre de modo evidente e consciente, “na
determinação de suas formas de ser ou ‘jeitos de vivenciar’ sua sexualidade e seu gênero”. Porém cabe à
escola o avanço frente a essa perspectiva, e não lhe dar continuidade. Questionar com argumentos
científicos o que está posto como universal e inato. Quanto à “arminha” devolvemos à escola junto a uma
boa conversa, pois, a boa intenção de presentear não invisibiliza atitude tão irresponsável. A ordem
patriarcal vigente é negativa também para meninos e homens. O machismo dita severos padrões de
masculinidade. Manter o estereótipo viril, forte, insensível e agressivo afeta diretamente nas escolhas e na
constituição de suas identidades. A masculinidade exigida e ensinada exige grandes esforços e muita
negação. O fato de os meninos serem os que mais fracassam na escola e terem os menores rendimentos
(CARVALHO, 2009) pode servir como um bom exemplo para demonstrar os reflexos em suas ações e
modos de ser. Também podemos relacionar o triste fato de serem eles os maiores alvos da criminalidade e,
como consequência, maiores vítimas de homicídios.

• CORES: Meu filho amava cores, me pedia para pintar suas unhas quando me via fazendo3. Assim,
algumas vezes, eu cedia e as coloria com sua cor preferida, rosa-choque, ou com as cores do Homem-
Aranha, intercalando vermelho e azul. Contudo, em uma segunda-feira, ao voltar da escola, percebo ele
esfregando suas unhas com as mãos na tentativa de tirar o esmalte. Questionado se estaria coçando ou algo

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Destaco que tal prática não é aconselhável e caso aconteça os produtos não devem ser os mesmos que os das pessoas adultas
e, mesmo se hipoalergênicos, não deve ser algo frequente.
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do tipo, me diz que suas/seus coleguinhas riram dele e o chamaram de “menininha”. Ele sentiu um grande
incômodo, talvez pelo modo como falaram na hora, mas até ali não entendia o motivo de usarem a palavra
menina com o intuito de ofendê-lo, afinal, adorava a irmã, a mim, a avó e outras “meninas” de sua vida.
Mesmo não compreendendo, havia muito desconforto. Então expliquei que ao compararem-no a uma
menina estavam, antes de tudo, subjugando-o, e, sobretudo, colocando-o em um lugar considerado
desprezível, o da homossexualidade. O difícil para ele foi entender a participação das meninas, o que me
levou a explicar que essa ideia de superioridade masculina era ensinada também às meninas, e que elas
reproduziam porque assim aprenderam e que, na perspectiva da homossexualidade, elas exerciam uma ideia
de superioridade, pois ser homossexual é como ser um “não ser”, dentro na heteronormatividade.
A reação na escola foi a mesma quando ele foi de sandália lilás para um dia de banho de mangueira.
Essas, e outras, reiterações do que se pode ou não ser, a partir de seu sexo biológico, são, conforme observa
Berenice Bento (2011, p. 552), o que produz a heterossexualidade. Ações vistas, por ela, como
heteroterrorismo, ou seja, um contínuo processo de terrorismo em que cada reiteração normativa tolhe a
liberdade de se transitar entre os gêneros, e que minam as subjetividades. São as repetidas “verdades” que
vão concretizando na mente da criança a ideia de que, para não ser rejeitada, ela precisa não agir daquela
forma, ou seja, “(ainda que não saiba como) agir como uma bicha”. As performances de gênero são os
meios pelo qual “a sociedade controla as possíveis sexualidades desviantes”, afinal é a heterossexualidade
que justifica “a necessidade de se alimentarem/produzirem cotidianamente os gêneros binários, em
processos de retroalimentação”.

• MENINO DE CABELO “GRANDE”? Meu filho sempre adorou seu cabelo. Com cinco anos as
madeixas estavam na altura dos ombros e caiam facilmente sobre os olhos, por isso ele usava tiaras, muitas
vezes, sobretudo, para ir à escola. Aos poucos percebi que não queria mais usar. Ele ia até o portão da
escola e quando estava entrando eu o via tirando e escondendo na mochila. Muitas vezes, ele as esquecia
também embaixo da mesa. Em casa, no calor, usava “rabo de cavalo”. Para ir à escola essa opção até foi
cogitada, mas ele “não tinha coragem”. Sem tiara ou amarrado, ele optava, como me disse, por segurar a
franja enquanto escrevia. Preferia isso a ser hostilizado pelas/os colegas. O seu cabelo “de menina” foi
também objeto de discussão em outra ocasião importante nesse ano. Ao receber em sua agenda escolar um
bilhete que, alertando para os cuidados com a higiene por conta da campanha contra piolhos, recomendava:
às meninas, o uso do cabelo sempre amarrado e, aos meninos, “rebaixar” o corte. Eu entendi, assim que li,
uma vez que os meninos estariam todos com cabelos curtíssimos, que meu filho ia chamar ainda mais
atenção. Minha ida à escola para conversar sobre o bilhete foi inevitável. Precisei problematizar o fato de
que se o problema eram os piolhos e esses que não escolhiam gênero, é correto que tanto meninas quanto
meninos deveriam cuidar da higiene, evitar ficarem muito próximas/os umas/uns das/os outras/os, mas eu
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gostaria de entender que motivos levam a escola a determinar que meninas podem apenas lavar bem os
cabelos e amarrá-los, mas os meninos devem “raspar” a cabeça. Explicar o problema no bilhete após a
resposta sexista foi o que tive de fazer, sobretudo, problematizar a orientação dada aos meninos, pois
aqueles que não rebaixassem o cabelo, provavelmente seriam objetos de aversão tanto para colegas quanto
para as famílias. Solicitei, desse modo, que fizessem uma reconsideração mesmo que apenas junto às
crianças, pois meu filho, e não só, estava exposto, uma vez que não agiria conforme o indicado pela escola.
Sabemos que na família e na escola as crianças convivem com modelos diferentes de gênero. Algo
que, quando não castrado, pode dar espaço a uma constituição de gênero mais fluída: a menina tendo contato
e exemplos do mundo masculino pode ter uma feminilidade menos submissa e o menino, em contato com
a feminilidade pode ter uma masculinidade menos tóxica ou agressiva. Contudo, em nossa sociedade, como
vemos, essa diversidade dos gêneros de uma mesma família, por exemplo – mãe, pai, irmãs e irmãos etc.,
não possibilita que as crianças experienciem diferentes configurações de gênero do mundo feminino e
masculino, ao contrário, como ressalta Marília Graciano (1978), essa “maior riqueza” que poderia fomentar
experiências de gênero e sexualidade diversificadas é suplantada pela criação de “papéis” bem definidos
que trazem muito mais restrição e determinações que possibilidades. A realidade polarizada que hierarquiza
os gêneros e sexos não permite às crianças viver fluidamente o feminino e o masculino na família e
tampouco na sociedade. O trânsito que poderia existir deixando a menina viver também aspectos da
masculinidade e o menino da feminilidade e dar liberdade à constituição das identidades das crianças, ao
contrário, dá lugar à diferença sexual e faz do processo de identificação um condicionamento binário.
Quem, subvertendo essa normatização, de algum modo ainda transita, vai ser constantemente lembrado que
está percorrendo um caminho não aceitável.

• MENINOS CONTRA MENINAS: Muitas das pedagogias de gênero são marcadores bem
delimitados do sexismo. A separação das crianças em filas de meninas e meninos, das “caixas de
brinquedos” também por gênero, o uso punitivo de duplas mistas etc., são apenas algumas das muitas ações
que acontecem na escola. Aqui destaco duas: a competição entre meninas e meninos e o afeto docente
direcionado apenas às meninas. Meu filho sempre ficava muito nervoso e ansioso com essas competições
em sala, sempre reclamava sobre o fato de que os meninos odiavam perder para as meninas e isso fazia com
que houvesse cobrança entre eles mesmos, pois aquele que não contribuísse com a vitória ou que, “errando”,
contribuísse com a perda, era rejeitado e rebaixado ao status de menina. O problema aqui é que essa
separação continuamente realizada pela escola, até como didática, na maioria de suas ações, gera a definição
do sexo, do oposto. Ratifica-o como algo já dado, estanque.
Essa separação inicialmente determinada na escola passa a ser transportada de forma “autônoma” e
inconsciente para os demais espaços sociais. Se os meninos são rivais das meninas como poderão tratá-las
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em igualdade? Se assim aprendem, como agirão de outra forma? Durante a infância e início da adolescência
a separação é bem delimitada, e isso faz com que as relações amistosas não sejam praticadas. Com a
separação também se aprende a dominação masculina por meio da aversão ao feminino. Quando o interesse
“amoroso” força essa aproximação as ideias de exclusão, dominação e superioridade permanecerão, afinal
somente isso foi aprendido. Os relacionamentos, desse modo, não dispõem de ideias de equidade, respeito
e admiração e tornam-se, muitas vezes, tóxicos e violentos.
Corrobora, ainda, com essa ideia de “macho” o tratamento afetivo diferenciado que, às vezes, é dirigido
aos meninos. Algo que vejo acontecer e que foi percebido pelo meu filho naquele ano, levando-o a me
perguntar o motivo de, na despedida da aula, a professora “só beijar as meninas”. Essa ausência de afeto
para com os meninos, não apenas com ele, faz parte das pedagogias de gênero e consideram que
demonstração de carinho é algo do universo feminino, somente às meninas deve ser direcionado. Ou ainda,
demostra uma percepção exacerbada que sexualiza os meninos, se consideramos que professora e aluno são
sexos opostos e que certas aproximações podem despertar a sexualidade nas crianças. Qualquer hipótese
passa pelo sexismo e, tais ações, contribuem para que essa diferenciação fomente as desigualdades.

• BONECA NA MOCHILA: Em um dia de domingo, em casa, estávamos organizando o material


escolar para a aula do dia seguinte e eu pedi para meu filho retirar de sua mochila a toalhinha e trocá-la por
outra limpa. Ele tinha acabado de chegar da casa da avó e havia levado a mochila porque tinha de fazer o
“dever de casa”. Ao abri-la e ver sua boneca bebê lá dentro, começou a chorar desenfreadamente. Eu pensei
que ele a tinha estragado ou algo do tipo, e chorava por medo de me contar, porém não era isso. Ele a coloca
sobre a cama e me diz que “quase ia levar a boneca na mochila para a escola sem querer!” Aquela
possibilidade o deixou com muito medo. Nunca, até ali, nada o tinha feito chorar daquela forma. Na escola
só quem brincava com bonecas eram as meninas, ele me explica, e se ele levasse sem querer os meninos
iriam xingá-lo e até poderiam nem querer mais ser seus colegas. O pavor que vi em meu filho ratifica a
ideia do heteroterrorismo, conforme Berenice Bento. Com certeza ele ouviu, viu e vivenciou tantas
situações que acenderam em sua mente um alerta de autovigilância, afinal, é por meio do gênero, das
expressões, das performances, que a heterossexualidade é controlada e produzida.
Nascemos e somos apresentados a uma única possibilidade de construirmos sentidos
identitários para nossas sexualidades e gêneros. Há um controle minucioso na produção da
heterossexualidade [...] Se meninos gostam de brincar de boneca ou meninas odeiam
brincar de casinha, logo terá um olhar atento para alertar aos pais que seu/sua filho/a tem
comportamentos “estranhos” [...] As “confusões” que uma criança faz ao misturar os dois
mundos (o masculino e o feminino) são interpretadas pelo olhar atencioso das instituições,
como um indicador de uma homossexualidade latente. Nessa hora, entra o controle
produtor: “Isso não é coisa de menino/a!”. Controle produtor porque produz
masculinidades e feminilidades (BENTO, 2011, p. 552).

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Berenice Bento (2011) destaca que esses ensinamentos, essas verdades, passam a ser interiorizadas
por nós desde muito cedo, como “se fossem uma pele, algo que está conosco desde sempre”. Isso fica
bastante evidente em outro episódio contado pelo meu filho. Um dia, ao comemorar a vitória em uma dessas
competições, ele disse ter passado o braço sobre o ombro do colega que estava ao seu lado, uma
demonstração de carinho e felicidade, mas que foi empurrado de lado e chamado de “veadinho”. Essa
atitude do colega é uma ótima ilustração da ideia de que um homem de verdade precisa ser essencialmente
masculino, e a homofobia - consentida e ensinada na escola, “funciona como um importante obstáculo à
expressão da identidade entre meninos e homens”. Por isso, os meninos aprendem logo que “é preciso ser
cauteloso e manter a camaradagem dentro de seus limites, empregando apenas gestos e comportamentos
autorizados para o ‘macho’” (LOURO, 1999, p. 28).

Considerações Finais
Guacira Lopes Louro (1998) chama atenção para a sutilidade do processo de “fabricação”
empreendido por meio das ações cotidianas que envolvem a todas/os e que por isso são tomadas como
naturais. Práticas rotineiras e comuns, gestos e palavras banalizados, afirma ela, precisam tornarem-se alvos
de atenção renovada, de questionamento e, em especial, de desconfiança” (p. 63, grifo da autora). Por isso
optei agir junto à escola, mesmo que isso tenha me custado muita paciência, me deixado triste e, por vezes,
desacreditada. Foram muitas idas à escola durante o intervalo de um ano. Muitas pessoas me orientaram a
transferir meu filho, porém, como conhecedora do dever social da escola, não pude aceitar. À escola não
cabe, à revelia de muitos normativos, (re)produzir intencionalmente práticas excludentes. Trata-se de uma
instituição pública e, como tal, regida por parâmetros legais. Suas pedagogias devem ser embasadas em
conhecimentos científicos, na ética e nos princípios democráticos. “Valores” (quase sempre baseados no
cristianismo) não devem fazer parte dessa instituição.
Assim, mesmo reconhecendo as dificuldades enfrentadas quando a busca é uma educação mais
diversa, plural, sabemos que é de amplo conhecimento o fato de as orientações legais e convenções sociais
para os sistemas de ensino, e para a vida em geral, são voltadas, ao menos formalmente, para uma educação
de qualidade, para todas/os e sem qualquer tipo de discriminação. Desse modo, e talvez por isso, no
ambiente escolar o currículo oculto, ideologias e valores individuais ocupam lugar central. Preciso afirmar
que não se trata de colocar a culpa nas/os professoras/es, mas questionar a quem serve esse ensino
excludente. Sei que para a maioria de nós causa medo contestar valores e papeis já consagrados, mas com
estudo, sensibilidade e autorreflexão é possível reconhecermos a necessidade de tais subversões. Só assim
poderemos também reorganizar as relações de conflito entre família e escola. Tomo como exemplos minhas
experiências, como professora, com as famílias, em que me dedico às explicações sobre a legitimidade e
necessidade de práticas nãos sexistas. Para tanto, acredito que ao enxergar as famílias como aliadas nesse
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processo, se faz necessário também considerá-las como aprendizes, uma vez que o conhecimento formal e
científico, nessa relação, se detém na escola, a qual cabe (in)formá-las, sempre que necessário.
As experiências aqui relatadas ilustram essas colocações e colocam em relevo o fato de que a escola
precisa se reconstruir e acompanhar a evolução cultural e humana, fugir das amarras do tradicionalismo
que, mesmo parecendo mais seguro e confortável para sua comunidade, dão a essa instituição uma
configuração arcaica, violenta e violadora. Em menos de um ano uma criança que genuinamente brincava
com as cores em suas unhas, na pintura do rosto de sua irmã e em si mesma, passa a se autovigiar evitando
punições. Brincar com bonecas, dormir com elas e carregá-las consigo, voltaram a ser ações limitadas ao
núcleo familiar. A ideia de socialização, base da escolarização - a aprendizagem com os pares, passou a ser
motivo de preocupação. Meu filho aprendeu que ser uma criança livre era algo que só podia ser feito em
pequenas doses e de modo mais silente.
Como mãe, ressalto que essas experiências com a escolarização não foram as primeiras. Minha
primogênita, hoje no ensino superior, também vivenciou muitas delas, contudo, em relação ao meu filho,
as proporções foram bem maiores. A construção da masculinidade hegemônica, do “macho”, é, antes de
tudo, desumanizadora. Objetiva retirar, do ser humano, desde muito pequeno, atributos vistos como
femininos que, na verdade, são apenas humanos. Chorar quando se tem medo ou dor, desejar carinho e ser
carinhoso com quem se gosta, gostar de cores e de experenciar aquilo que não é relativo ao sexo ou gênero,
são apenas características humanas, advindas da nossa capacidade única de ter sensações, sentimentos, de
racionalizar. Porém, quando se trata da educação dos meninos parece haver um consenso de que para se
obter êxito é preciso distanciá-lo desse mundo ideologicamente entendido como feminino, ou seja, é
proibido feminizar. Para exemplificar recorro às experiências escolares e convido minhas colegas,
professoras progressistas, mesmo elas, a pensarem em suas práticas para pensarem sobre o alcance dessa
minha afirmação. Não é mais tabu, mesmo no ambiente escolar, permitir que as meninas joguem futebol,
brinquem com carrinhos etc., mas tenho certeza de que o mesmo não acontece com os meninos. Deixar que
meninos brinquem de boneca, de bambolê, dar-lhes “lembrancinhas” em cor-de-rosa etc., até mesmo para
nós – arrisco a afirmar, ainda são ações pouco realizadas, pois, de modo automático, despertam cautela e
receio, seja por causa da própria escola ou da família. A segurança de se agir de acordo com as normas
vigentes é, assim, a opção a ser considerada.
Essas normas de gênero direcionadas às crianças possuem enorme capacidade de intervenção na
construção de suas identidades, pois tende a ser interiorizadas de maneira introjetada, inscrita, uma vez que
não há espaço para problematizações, argumentação ou aprendizagens mais conscientes. O consenso, em
geral, existente entre família e escola, potencializa essa influência. Na maioria das vezes, no ambiente
escolar, as crianças ainda são indivíduos vulneráveis à transmissão de preconceitos e estereótipos
socializados pelo mundo adulto, porém a capacidade de agenciamento não lhes é suplantada. As ações que
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as crianças realizam para lidar com as determinações revelam que participam ativamente da constituição
de suas identidades de gênero, pois o vivem nas mais variadas relações sociais desde muito cedo. Ações
que são carregadas de “agência”, mesmo que as normas do mundo adulto ainda sejam mais fortes nessa
relação de poder em que a escola figura como uma das mais importantes instituições de manutenção do
sistema panoptical. Como tal, é investida na reprodução da cultura dominante, corroborando para a
manutenção dos padrões desejados de feminilidade e masculinidade. Em nosso caso, a escola ocupou um
espaço de contraexemplo. Nossos ensinamentos, nossas representatividades mais progressistas, tanto para
as configurações de mulher como de homem, foram mais significantes.
Considerando comuns a essas duas instituições as relações de conflito e busca por acertos,
considerando os avanços e retrocessos educacionais, como mãe e professora, acredito ainda ser a escola o
local propício de debate, de aprendizagem. Destaco seu potencial emancipador e a reconheço como única
instituição capaz de realmente promover uma transformação social, de promover relações mais equânimes.
À família, por sua vez, destaco a faculdade de cobrar os direitos individuais e coletivos de suas crianças
sempre em prol de uma educação de qualidade e não excludente. É a escola o local mais frutífero para a
socialização das crianças e a mais importante instituição no processo de constituição de identidades, pois é
onde acontecem os encontros e se estabelecem contatos entre pares, entre diferentes e para além da
comunidade familiar. Essa especificidade e a “obrigatória” convivência estabelecida com as novas
realidades são o que despertam nas crianças a capacidade de agenciamento (CORSARO, 2009) a fim de
lidarem com as normas e os padrões novos, ou intensificados. Essa será indispensável para que cresçam
como cidadãs e exerçam-se em um mundo cheio de moralismos e regras opressoras.
Por fim, à revelia de todas as empreitadas sexistas da escola, da mídia, da sociedade, meu filho,
hoje, com 11 anos de idade, tem o cabelo realmente grande - na altura da cintura, e com mechas fantasia na
cor lilás. Usa “rabo de cavalo” e ainda gosta de colorir as unhas. É muito consciente, guardada as devidas
limitações de sua idade, sobre os preconceitos relacionados às determinações de gêneros de nossa
sociedade. Sua cor preferida não é mais rosa-choque, mas é vermelha. Vê seus interesses diversos de modo
natural, mas nesses mais de seis anos aprendeu que não dá para ser tão original na escola. Algumas escolhas
genuínas não podem mais ser executadas. A aprendizagem sexista não o transformou em um menino
machista e preconceituoso, mas lhe tornou mais comedido. Utilizando sua capacidade de agenciamento
entre o que é imposto e o que pode ser escolhido, consegue não ser excluído e assim, mesmo seguindo
algumas regras (para sua própria sobrevivência) da instituição escolar, e da sociedade, vive uma identidade
masculina mais fluída e saudável que a hegemônica, tóxica, convencionalmente já destinada a ele.

Referências

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“WHEN MY SON’S FAVORITE COLOR WAS HOT PINK”:


STORIES OF EXPERIENCES OF GENDER SOCIALIZATIONS IN SCHOOL
Abstract: This experience report has as its object the binary socialization of genders in schooling that, in
dialogue with the theoretical field, presents a discussion based on the experiences of a five-year-old boy when
entering school and the experiences lived during the initial years in elementary school. With the theoretical
support of the sociology of childhood, feminist and gender studies, I bring a reflection on the pedagogies of
gender, the current sexism in pedagogical practices and the influence they exert on the constitution of children's
identities, as well as the regulatory and disciplinary education of bodies, markedly present in the passage from
Early Childhood Education to Primary Education. We highlight the polarized characteristic in the relations
between girls and boys and the socialization of heteronormative representations as the only socially
accepted/desired. The source of the work - reports from the child to his mother, ratify that the present ideology
of compulsory heterosexuality and hegemonic masculinity that permeate schools are inscribed in the lives of
students denying them the right to difference as a parameter for equality and determine norms that, in the case
of children, deny them even the human right to be so. The relationship between a sensitive and attentive family
to sexist and prejudiced practices and the conservative school is the backdrop of the theoretical discussion, a
conflict between the scope of the school in the family and the family in the school.
Keywords: Gender relations. Pedagogical practices. Gender socialization. Family. Education.
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