Você está na página 1de 52

Sumário

coluna
Francisco Bosco
Marcia Tiburi

entrevista Paulo Mendes da Rocha

reportagem
Nas instâncias do poder

dossiê Deslocamentos de Hegel


Apresentação
Inéditos: sentenças, aforismos, notas e fragmentos
O trabalho da sentença
Ideia e realidade
Hegel, Gramsci e o elemento transformador da dialética
Paul Ricoeur leitor de Hegel
A autorreflexão da periferia
Hegel e os inéditos de Lima Vaz
Por um novo ciclo de interpretações do Brasil

ensaio
Política de cartoon

livros
Retorno a Marx
Uma antropologia para além do humano

literatura
De Qinghai para o mundo

artigo
Um frágil diagnóstico sobre Marilena Chaui e as esquerdas

colaboraram nesta edição


coluna

Antinomias do amor contemporâneo


FRANCISCO BOSCO

Conversando recentemente com uma amiga psicanalista, ela me contou, um tanto surpresa, que mesmo
nesses tempos sombrios da vida social brasileira o problema das relações amorosas permanecia
hegemônico na sua clínica. Seguimos conversando sobre o momento político, mas silenciosamente
registrei sua observação. Não porque ela tenha me surpreendido, e sim porque confirmava o sentido de
algumas ideias que venho estudando e desenvolvendo. A equação do amor moderno, que possivelmente
se forma, quanto a suas características decisivas (uma conciliação entre a exaltação passional, a
afirmação dos desejos sexuais e o casamento), no século 17, com Rousseau, essa equação se ergue sobre
uma antinomia fundamental. Mais ainda, com o passar dos séculos, e notadamente devido a uma grande
mutação cultural do século 20, ela produz tensões cada vez mais intensas com traços dominantes das
subjetividades contemporâneas. Essas tensões podem ser descritas na forma de uma série de antinomias.
Eis as principais.
PAIXÃO X CASAMENTO
Como se sabe, Denis de Rougemont tem uma tese controversa sobre a influência do catarismo, uma das
seitas gnósticas que surgiram no primeiro milênio do cristianismo, no fenômeno do amor cortês. Para
ele, a valorização sem precedentes da paixão que podemos ler nos textos em langue d’oc dos séculos 11
a 13 é uma influência direta da perspectiva religiosa dos cátaros (que, do grego, significa puros). Essa
tese, em si, já foi bastante problematizada, e os argumentos de seus críticos me parecem convincentes.
Permanece pertinente, entretanto, no meu entender, a arqueologia religiosa que Rougemont faz da paixão
e do casamento, esses dois paradigmas fundamentais da experiência amorosa do Ocidente.
Para ele, o amor-paixão e a instituição casamento remontam a duas tradições religiosas
fundamentalmente diferentes: o paganismo e o cristianismo. Segundo a perspectiva dualista de algumas
religiões pagãs, pré-monoteístas, Deus não criou o mundo da imanência, com as suas imperfeições, entre
elas a humanidade. Só a transcendência é divina, consequentemente só ela pode ser amada, logo o amor
deve aspirar à fusão com Deus. “A que aspira a ascese ‘oriental’? À negação da diversidade, à absorção
de todos no Uno, à fusão total com o Deus”. Esse elemento da fusão é que, traduzido para o amor entre
as pessoas, vai propiciar a ideia e a prática da paixão, que é uma experiência (imaginária) de fusão entre
o eu e outro.
Já no cristianismo Deus é o criador de todas as coisas, da imanência e da transcendência, e seu filho,
Jesus, encarnou como humano. Essa figura da encarnação de Deus em um humano, verdadeira revolução
metafísica, dignifica a espécie humana, torna-a digna de ser amada. Por isso o amor cristão é antes de
tudo ágape (ou caritas, em latim), isto é, amor ao próximo. É dessa tradição, logo fundamentalmente
diferente da pagã, que surge o casamento. “O próprio amor humano se encontra assim transformado.
Enquanto os místicos pagãos o sublimavam até torná-lo um deus e simultaneamente o consagravam à
morte [pois a matéria é depreciada, não é digna de ser amada, só Deus o é], o cristianismo o restitui à sua
ordem e então o santifica pelo casamento.”
Com o passar dos séculos, tanto o amor-paixão quanto o casamento se estabeleceram como valores
principais da experiência amorosa ocidental. Nós esquecemos o fosso que os separa na origem, mas
acabamos por herdar essa divisão na prática: paixão e casamento são duas grandezas opostas. A paixão é
efêmera e intensa. O casamento é duradouro e sereno. Aquela aspira à fusão. Esse é aproximação (e
distanciamento) infinita. A cultura, na sua dimensão ostensiva, de massas, não cessa de propor a
valorização simultânea de ambos, e tende a recalcar a contradição fundamental que isso implica (é daí,
como observa ainda Rougemont, que surge o gênero do happy end, como uma necessidade de o
entretenimento recalcar esse problema incontornável).
EU X OUTRO (IDENTIDADE X ALTERIDADE)
Inúmeras teorias, egressas de diversos campos das humanidades – sociologia, filosofia, psicanálise etc.
–, convergem para o diagnóstico de um traço forte das subjetividades contemporâneas: o narcisismo. Ao
longo do século 20, devido a uma articulação entre a lógica do capitalismo (que visa ao interesse
particular, por definição) e uma revolução técnica que fez surgir uma “sociedade do espetáculo”, isto é,
uma cultura das imagens, as subjetividades foram se tornando cada vez mais narcisistas. O princípio da
alteridade (ou do altruísmo) foi sendo esvaziado, enquanto se privilegiava um princípio da identidade (ou
de um “capitalismo do eu”).
Pensemos na diferença entre a cultura cristã, com sua ética do amor ao próximo (não importa aqui o
quanto a Igreja traiu essa ética), seu cuidado com os pobres etc., e nossa era dos reality shows e paus-de-
selfie. A mutação histórica entre uma cultura mais dedicada ao outro e uma cultura que privilegia o eu é
nítida (também não cabe aqui entrar no mérito do sentido que Nietzsche dá a essa “moral do outro” em
suas investigações genealógicas).
Ora, se o amor, como disse Lacan, é “a mais radical das relações humanas”, penso que essa
radicalidade se deve à abertura profunda da identidade à alteridade que uma relação amorosa exige.
Amar é abrir-se à totalidade do outro – e criar um mundo em comum com ele. Mas isso, justamente, vai
contra o discurso inconsciente da cultura, contra a lógica do capital e do narcisismo. E produz uma
contradição entre esses princípios do eu e do outro.
Essa contradição é intensificada, ainda, pelo processo de conquistas de direitos que houve no século
20, sobretudo a partir dos anos 1960, notadamente no campo dos gêneros. A progressiva igualdade de
direitos dos gêneros tornou, por assim dizer, o outro muito mais outro. Uma mulher contemporânea, por
exemplo, é uma alteridade muito mais radical no interior de uma relação, porque sua liberdade se efetiva
de maneira muito mais ampla e profunda. Assim, é justo no momento em que o eu se torna mais eu que o
outro se torna mais outro.
Uma tendência forte de resposta a essa contradição, diga-se de passagem, é a extrema valorização do
sexo: o sexo é narcísico, imaginário, protege os sujeitos de uma relação, no sentido da exigência de
abertura à alteridade. É daí, como se sabe, que vem a famigerada frase de Lacan: “não existe relação
sexual”.
MONOGAMIA X CONSUMO
A monogamia é um valor intrínseco ao casamento cristão (o adultério era, ao contrário, valorizado no
contexto do amor cortês, em que se sistematizou historicamente o amor-paixão). Seu princípio é, claro, o
da exclusividade – que é o princípio do amor: toda relação amorosa é única, insubstituível.
Ora, o princípio do capitalismo de consumo é, ao contrário, o da substituição – que é o princípio do
desejo: todo objeto faz parte de uma série infinita. Como, portanto, sustentar o valor da monogamia
quando a cultura, em massa, não cessa de propor a lógica do consumo como modelo de vida?
FAMÍLIA X LIBERDADE
Se, por um lado, vivemos a “era da infância”, em que os filhos são valorizados como o maior bem
emocional que um sujeito pode ter, por outro, a cultura afirma igualmente o valor da “liberdade”,
entendida, no sentido do capitalismo, como mobilidade, indeterminação, descompromisso. Ora, não há
nada mais “pesado” que uma família. Nós contemporâneos somos divididos entre o maior e mais
exigente amor do mundo (filhos) e a insustentável leveza do ser.
SENTIMENTO X SENSAÇÃO
Até o século 19 as subjetividades eram formadas por uma temporalidade muito mais lenta, duradoura,
densa. Pensemos nas heroínas dos romances do século 19, todas extasiadas e/ou adoecidas gravemente
por amor. Pensemos no tempo das cartas, e em como esse tempo impacta na experiência sentimental.
Agora avancemos subitamente século 20 adentro e o que temos? Uma cultura das sensações, da
fragmentação, da leveza, do efêmero, da materialidade. De novo, a lógica do sentimento é a do amor; a
das sensações, a do desejo.
AMOR X DESEJO
Aqui não se trata, a meu ver, de uma contradição histórica, mas sim fundamental: o amor tende à
intimidade absoluta, se alimenta do conhecimento total do outro, almeja a estabilidade, o doméstico, a
tranquilidade; já o desejo deseja o desconhecido no outro, ele precisa de algum nível de idealização, ele é
intensidade, movimento, aventura.
Se o amor triunfa plenamente, ele aniquila o desejo. Se o desejo triunfa plenamente, não se chega
sequer a estabilizar uma relação, e aí o amor não sobrevive. Todo mundo tenta se virar num equilíbrio
tenso entre essas duas variáveis opostas do pêndulo.
coluna

A política dos sem-política


MARCIA TIBURI

Políticos foram eleitos no último pleito sustentando um discurso, no mínimo, estranho. Alegavam que
não eram políticos. Os que votaram neles, aprovando o ato, sem a mínima atenção a essa estranheza,
caíram em uma armadilha. Tivessem feito uma pergunta simples “o que alguém faz quando se filia, se
candidata e faz campanha, senão política?”, estariam libertos dela.
Ora é impossível não fazer política pelo fato de que todos os nossos atos humanos só são humanos
porque são políticos. Fazemos política consciente ou inconscientemente, o tempo todo, por ação ou
omissão. Mais ainda quando participamos ativamente das instituições e organizações políticas.
Aqueles que se elegeram a partir do discurso antipolítico fizeram política enquanto, ao mesmo tempo,
a negaram. Venceram em uma zona estranha, a da contradição, e da autocontradição, onde, em política,
como na vida em geral, se joga o jogo das relações humanas na posição do cínico ou do otário. No
primeiro caso, usa-se a contradição a seu favor; no segundo, cai-se nela achando que se leva alguma
vantagem. É a velha dialética do senhor e do escravo que assumiu uma nova forma: ela foi substituída
por uma espécie de dialética cínica negativa e sem solução.
A antipolítica é a redução da política à propaganda contra a política. A propaganda esconde a
contradição, e a política se aproveita dela. Despolitização é um nome parcial para falar do esvaziamento
publicitário da ação política produzido e intensificado pelos discursos e pelas instituições. Esse
esvaziamento publicitário da política é a nova política, a política despolitizada pela publicidade.
PARA QUE ELIMINAR A POLÍTICA?
O número imenso de votos nulos e brancos, muitas vezes maior do que os números dos primeiros
colocados nas disputas nas cidades, é um sinal claro do que se passa na cultura política profundamente
alterada pela publicidade.
A rejeição à política não é espontânea. Ela foi construída com a colaboração de discursos e práticas
de todas as instituições. Mas de que serve eliminar a política? Ou a quem serve o abandono da política?
Se prestássemos atenção, perceberíamos que há indivíduos e grupos que contribuem com discursos e
práticas para a deterioração do sentido da política, mas que não se afastam dela. Permanecem fazendo
política: candidatam-se, elegem-se, lutam pelo poder mesmo desdenhando da política. Jogam o jogo
político do lado cínico. Ao povo reserva-se o lugar de otário.
Há casos curiosos de pessoas que se elegeram com maioria de votos, pessoas que dependiam
justamente do voto do povo, a maioria da população, e que, no entanto, em nada representam o povo. O
sentido da democracia como governo do povo é, evidentemente, deixado de lado pelo próprio povo,
conduzido a crer que “sem política” é melhor. Ao afirmarem que sem política é melhor, ao se
desocuparem dela, não deixam de fazer política, só fazem “a política dos sem-política”.
A política não pode ser destruída, pois ela é constitutiva da condição humana. Destruí-la é destruir o
que há de humano na espécie. O modo de vida humano como um todo é político. Todas as pessoas,
querendo ou não, participam politicamente do mundo, estão inscritas nas relações de poder que definem
a política. Que a política nos tempos de seu esvaziamento se coloque na forma da “política dos sem-
política” quer apenas dizer que a dimensão política da antipolítica está sendo ocultada. A mentalidade
antipolítica não deixa de ser política.
Ilude-se quem pensa que a despolitização nos livraria da política. Ela só nos coloca numa relação
com seu esvaziamento sempre útil aos poderosos. Útil é o povo despolitizado, capaz de negar sua própria
cidadania, outro nome que damos à condição política da pessoa. Despolitizado, sem culpa nem
responsabilidade, o povo é quem pagará a conta do poder que ele foi ensinado a deixar de lado.
entrevista Paulo Mendes da Rocha
Um dos paradigmas da arquitetura é evitar o desastre
ANGÉLICA DE MORAES

Paulo Mendes da Rocha costuma ser identificado como arquiteto. Engano. Muito além de suas
magníficas obras de arte em concreto e das revigorantes intervenções em prédios históricos, está em ação
o tempo todo um filósofo. Um filósofo nos moldes pré-socráticos, que vai tecendo seu pensamento em
diálogo generoso com o outro, somando a isso uma vivência de leituras pontuais para traçar o
pensamento contemporâneo. Como ele próprio afirma nesta entrevista concedida à CULT em seu
escritório, na região central de São Paulo, “o grande tema da arquitetura não é o edifício como fato
isolado, mas sim a construção da cidade”. No caso, a construção do conhecimento de cidadania.
Paulo – ele detesta o tratamento cerimonioso e insiste na conversa plantada na planície – vive um
momento especial. É o arquiteto brasileiro mais premiado de todos os tempos. Entre os inúmeros
prêmios, há os famosos Mies van der Rohe, mais importante da arquitetura europeia, e o Pritzker,
considerado o Nobel da arquitetura. Em 2016, aos 87 anos de idade e em plena atividade – ele inaugurou
o monumental Museu dos Coches, em Lisboa, Portugal, no ano passado –, Mendes da Rocha ganhou três
importantes prêmios outorgados por instituições de prestígio na Itália, no Japão e na Inglaterra.
Recebeu o Leão de Ouro, em maio, pelo conjunto da obra, na Bienal de Arquitetura, em Veneza.
Mais tarde, em setembro, o Praemium Imperiale Prize, outorgado em Tóquio pela Japan Art Association.
Finalmente, coroando um “grande slam” do circuito da arquitetura, recebeu, no mesmo mês, a Royal
Gold Medal, concedida pelo Royal Institute of British Architects (RIBA), em Londres. No texto que
acompanhou este prêmio está a expressão “living legend”, ou seja, “lenda viva”. Os britânicos,
usualmente tão comedidos, foram de uma precisão cirúrgica ao usar essa expressão. Esta entrevista
mostra o porquê.
Certa vez você afirmou que o lucro não pode ser a única razão de construir e que a cidade não
pode ser produto do puro mercado. A especulação imobiliária é o maior problema urbanístico das
cidades brasileiras?
Sem dúvida nenhuma é, mas também seria interessante responder que não é por si. É na maneira
degenerada com que o liberalismo do não planejamento age, o liberalismo da incompetência dos órgãos
públicos que seriam responsáveis pela regulação dessas questões. É absurdo dar total liberdade para o
puro mercantilismo. A população tem que exigir a cidade competente, uma cidade para todos porque
uma cidade onde ficam os pobres e outra onde ficam os ricos é uma besteira. O conhecimento e a técnica
são patrimônio da humanidade.
O arquiteto como agente político de transformação da cidade teria perdido o jogo para as
corporações de construtores e para essa aliança que sempre fazem com o poder público?
Esta é justamente a dimensão política de qualquer forma de conhecimento e a mais dramática de nosso
tempo é em relação à física quântica: a ideia dos cientistas nunca foi produzir a bomba atômica, mas a
contrariedade frequenta permanentemente essa visão dialética entre conhecimento e aquilo que vai se
fazer. Porque a arquitetura como forma de conhecimento sabe dizer que, se não sei exatamente como
fazer aquilo, sei perfeitamente o que não deve ser feito. Um dos paradigmas da arquitetura, no sentido de
ocupação do território para torná-lo habitável, é evitar o desastre.
Certa vez você se referiu à sabedoria da construção das catedrais góticas como um exemplo disso.
Sim. O exemplo mais dramático da história da humanidade talvez seja o empilhamento maravilhoso das
catedrais góticas, feitas de pedras sobre pedras. Pedra sem nenhum adesivo, sem nenhum cimento. É só a
geometria que contraria as leis inexoráveis da natureza. Aquilo que faz a pedra cair é justamente a força
que mantém, com a geometria adequada, as pedras em pé em uma catedral. Há quem diga, com muita
propriedade, que as palavras estão para um literato, um poeta, um escritor, como as pedras estão para
uma catedral. Construir um raciocínio com as palavras é arrumá-las de maneira construtiva. Isso para
alimentar uma divagação em torno da ideia de projeto.
Já que o objetivo da arquitetura é, como você defende, “evitar o desastre”, seria agora a
arquitetura mais do que nunca uma ferramenta civilizatória no debate que surge diante de um
país cindido, em crise e falta de rumos? Como vê o Brasil hoje?
O que se vê na América, e muito particularmente neste grande território que é o Brasil, é a falta de
planejamento fundamental. Isso envolve transformação da natureza. É necessário planejar, por exemplo,
no campo particular do território americano, o sistema de navegação pluvial. Há que fazer as ligações
desejadas do Atlântico com o Pacífico. Hidrovias e ferrovias, com certeza. O que traria grande progresso
para a América Latina e principalmente à ideia implícita de que não teríamos que invadir outros países
porque os rios saem de um país e atravessam outro, e essas ferrovias também assim o fariam. Um
planejamento que exige parceria entre vários países. A aplicação do conhecimento humano sobre nossas
ações são instrumentos da construção da paz na América Latina, da construção da solidariedade entre os
povos. A falta desse planejamento básico faz com que a iniciativa industrial, de modo geral, seja liberada
para uma simples especulação mercantilista, o que só pode resultar em desastre, haja vista a cidade de
São Paulo. Basta observar o que aconteceu com as águas aqui e o desastre do sistema de transportes. O
que se vê é degenerescência, o mau uso ou o uso errático das virtudes do conhecimento.
Sim, porque gasta-se muito dinheiro para fazer algo e depois se destrói ou se abandona isso tudo.
Uma constatação interessante é considerar as virtudes da verticalização. Na medida em que concentra a
população, ela favorece o transporte público e a convivência das pessoas. Eis o quadro da cidade
moderna: adensada, concentrada. O conhecimento da mecânica dos solos, a invenção do elevador... O
que se podia chamar de moderno em relação aos novos tempos, a verticalização, não pode ser imaginada
para ser aplicada sobre a matriz anterior, que são os pequenos lotes feitos para construir casinhas.
Portanto, você tirar uma casinha aqui e fazer um prédio e tirar outra casinha acolá e fazer outro prédio só
pode dar em grande desastre. É aplicar o novo na matriz antiga. Para verticalizar é preciso recompor o
desenho do território. Foi o que aconteceu na implantação do Edifício Copan, que contempla o espaço do
pedestre e o espaço do solo urbano na sua fruição, tornando público o chão do pedestre. É o que não
aconteceu na avenida Paulista. O único quarteirão da avenida Paulista onde você pode flanar, passear, é
o quarteirão do Conjunto Nacional porque esse projeto foi feito em uma quadra inteira. Ali ficam
evidentes as virtudes de se possuir um largo espaço e transformar a questão básica da nova implantação
de edificações em uma cidade contemporânea. O grande tema da arquitetura não é o edifício como fato
isolado, mas sim a construção da cidade.
Trata-se de percepção do que é espaço público e espaço privado, não?
Há uma arquitetura que ofende, que agride a convivência cotidiana do cidadão, porque a cidade foi feita
principalmente para que possamos conversar uns com os outros. A cidade é sempre, por si, uma
universidade, uma escola. Um arquiteto, diante do conceito de espaço, deve se obrigar a ver que não há
espaço privado. Se é espaço, já é por si público.
Certa vez você falou que “o condomínio fechado é o ovo da serpente”. A arquitetura de
especulação imobiliária reduziu a arquitetura a uma simples questão de metros quadrados de
quarto, banheiro, terraço gourmet, guarita de segurança?
Sim, esses são exemplos claros de degenerescência do que poderia ser a dimensão atual do homem.
Esses edifícios de até trinta andares com terraço gourmet em cada unidade parecem churrascos gregos
em que se empilham carnes e se tiram fatias. Para um homem urbano, a graça do churrasco não é comer
carne feita na brasa, mas sim frequentar uma churrascaria, conviver com o outro. O tal terraço gourmet é
uma anedota. É como uma piscina diante da praia e do mar. É uma coisa ridícula.
Gostaria de seu comentário sobre aquela imagem, muito divulgada na imprensa, da família de
favelados que assiste, do morro, à abertura das Olimpíadas no Maracanã. Essa imagem define o
Brasil de hoje?
Define e muito bem. Porque naquele instante, aquilo que era tido como precário, a favela, mostra-se
extremamente virtuoso. São as famosas lajes, alugadas para turistas no réveillon. São as contradições que
revelam a maneira errática como tudo isso evoluiu diante das idiossincrasias da especulação imobiliária.
Como é mais dispendioso construir em algo que não seja horizontal, abandonaram as encostas, que
foram ocupadas pelas favelas. No fundo, é casa-grande e senzala. Aqueles edifícios feitos para a classe
mais abastada não funcionariam sem o contingente serviçal de porteiros, faxineiros, babás. Então foi
concedida, como se ninguém estivesse vendo, aquela ocupação que acabou configurando esse quadro
que você descreveu. É uma imagem deliciosa em suas contradições porque ela nos faz ver agora, com as
lajes, o quanto é invejável morar na favela. Sob certos aspectos, é claro.
O aspecto da paisagem basicamente, não?
Do desfrute do horizonte, sim. Porque a questão do banditismo que está se passando lá é outra questão.
Degenerescência, aliás, que acontece em qualquer edifício burguês também. Degenera por dentro, aqui
ou ali, na favela ou no prédio de alto padrão. O problema não está na localização, mas no
comportamento. A questão é de civilização. Hoje tudo isso vem à luz com muita clareza. Você vê a
dificuldade da Europa em construir, em estruturar bem aquilo que ela mesma se propôs e não está
conseguindo: a União Europeia. É uma questão de civilização como um projeto para ser construído e não
algo que possa haver por si. Não é à toa que nunca se falou simplesmente em paz, mas sempre se fala em
construção da paz. Porque essas supostas virtudes que imaginamos para nós jamais aconteceriam
naturalmente. São projetos humanos.
Você é o arquiteto brasileiro mais premiado de todos os tempos. Esse reconhecimento
internacional a seu legado arquitetônico pode ajudar a restaurar, preservar e manter íntegros os
projetos que construiu?
Eu não tenho nenhuma responsabilidade pelo fato em si das premiações. Eu só fiz o meu trabalho. Se há
um argumento para me sentir feliz com essas premiações é que a decisão é do outro. E isso, para quem,
como eu, trabalha há quase setenta anos, não deixa de ser estimulante. Eu nasci em 1928 e trabalho
desde os vinte anos. É estimulante você pensar que o seu trabalho pode continuar e contribuir para o
conhecimento universal, como todos esses prêmios estão dizendo. O Leão de Ouro da Bienal de Veneza
é um prêmio particularmente delicioso para os arquitetos, porque é a figura do leão alado que, além de
estar na Piazza San Marco, é uma lindíssima quimera, animal mitológico que pode ser entendido como
metáfora da invenção.
Seu trabalho falou por si e conquistou os prêmios.
São os outros que estão dizendo. A própria existência desses prêmios talvez seja uma questão
interessante de cogitar, porque mostra que essas instituições sabem que é verdade aquilo que dizem os
filósofos e que eu gosto muito: se cada um de nós sabe que vai morrer, no entanto sabemos também que
não nascemos para morrer, que nascemos para continuar.
Isso abrange toda a produção humana. O homem produz para continuar, seja na obra
arquitetônica, na obra literária...
Qualquer forma de conhecimento – dos bailarinos, dos físicos, dos poetas – é uma política de ação
humana. É o que se chama transmissão do conhecimento enquanto experiência, que é um privilégio do
homem, essa concomitância entre consciência e linguagem. A linguagem foi inventada entre nós para
dizer ao outro aquilo que acabei de perceber. Nos dias atuais, esse raciocínio mostra que é um absurdo
transformar o ensino em mercadoria. Escola paga não pode existir. O ensino tem que ser grátis, o ensino
tem que ser público.
Até porque o ensino público permite convivência entre diversas camadas da população.
É para todos. O acesso ao ensino precisa ser livre, porque é um privilégio do homem.
Você é um otimista?
Todo homem que trabalha imagina o êxito do que está fazendo. Isso não é otimismo: é uma condição
humana. Se você bate com um martelo em um prego, você pretende que algo fique pregado. Mas, se
bater no dedo, é o que chamamos de desastre. Se construirmos uma mesa, diremos que é um êxito.
Portanto, é outro paradigma da arquitetura. Não há como dizer qual é o objeto da arquitetura. São
infinitos os seus horizontes. Porém, por graça, pode-se dizer que é exibir o êxito da técnica.
E da arte, não?
Quando você diz exibir já está na dimensão da arte. Porque arte é seduzir o outro. Portanto, você tem que
usar na linguagem da forma algo sedutor. Essa é a dimensão artística que inventa a linguagem. Nós
estamos condenados a transformar ideias em coisas. Se a ideia está em sua mente, ninguém pode ler isso
a não ser que se transforme em uma coisa. Entendendo que o poema também é uma coisa, que deve estar
escrita com palavras.
Você diz que a arquitetura deve amparar a imprevisibilidade da vida, e que ela não é feita para
determinar o que você deve fazer. Como vê essa declaração de princípios na supremacia da
liberdade de pensamento e ação nesta época em que cada vez mais se acirram ideias sectárias?
Como vê o recrudescimento do pensamento totalitário hoje no Brasil?
O século 20, como já disseram grandes historiadores da atualidade, foi um século de horrores. O que se
espera é que esse tipo de antagonismo, por experiência, não se repita mais naquilo que se chama projeto
do homem. A repetição daqueles horrores só mostra a urgência da convivência entre nós, diante da
consciência de que somos todos habitantes do planeta Terra. Quando se fala em amparar a
imprevisibilidade da vida, quero relativizar a ideia de funcionalidade e os programas que se fazem para
este ou aquele edifício funcionar. Quero relativizar a ideia de que aquilo seja uma forma que vai se
tornar, no edifício construído, um modo inexorável de viver. Quando você faz uma casa, nunca pode
dizer que é para aquela determinada pessoa. Isso é só um argumento inicial, porque amanhã a casa
poderá ser de qualquer outro.
Você concorda que o recente vandalismo ao Monumento às Bandeiras demarca o surgimento dos
neotalibãs, que querem a destruição dos símbolos mesmo que estes sejam patrimônios culturais da
população? A condenação dos bandeirantes como escravagistas de índios, análise histórica mais do
que correta, justificaria a agressão a essa obra artística?
Não parece uma ação política digna do conhecimento atual que se tem sobre as ações políticas. O
vandalismo, de modo geral, já é uma atitude retrógrada. Pode-se ficar de acordo com o significado do
ato, mas em desacordo com a forma como ele foi feito. Porque aquele ato foi um desprezo muito grande
pelo trabalho do outro, do escultor que fez aquilo. O problema não é ficar contra a ideia do ato mas ficar
contra essa forma de exprimir ideias hoje. É má política.
O protesto podia ser feito, com foto do monumento modificada digitalmente, por exemplo, e
distribuída amplamente na internet. Algo que exprimisse a necessária defesa dos direitos
indígenas, mas não atentasse contra a obra de arte de Brecheret.
Claro. A gente fica chocado quando vê que alguém pode ter coragem de fazer aquilo com algo que um
artista esculpiu meticulosamente na pedra, durante anos. Feito de pedra porosa, frágil. Jogar tinta nesse
monumento é arriscar que a tinta não saia ou que ela saia com prejuízo do monumento. No Rio de
Janeiro, por exemplo, picharam o Museu Nacional de Belas Artes, na frente do Teatro Municipal. Todas
aquelas guarnições são de granito e nesse material há uma absorção daquelas tintas vagabundas que não
saem nunca mais. É uma grande tolice fazer isso. Melhor se organizar politicamente para ter voz junto às
instituições. Buscar ações que possam ter mais efeito na república. Vejo como altamente positivas, por
exemplo, as ocupações de prédios desabitados. Algo que faz parte da transformação da cidade: novos
usos para a mesma coisa, diante da urgência da questão habitacional. Ocupação não é destruição, é
reutilização. Um edifício precisa ter utilidade, ter uma função desejada por todos.
reportagem
Nas instâncias do poder
AMANDA MASSUELA

Dos 57.691 vereadores eleitos no dia 2 de outubro deste ano, 7.790 são mulheres, segundo o Tribunal
Superior Eleitoral (TSE). Isso significa que, a partir de 2017, elas representarão 13,5% das câmaras
municipais brasileiras, percentual que praticamente se manteve o mesmo desde as eleições de 2012,
quando chegaram a 13,3%.
Embora representem 51% da população, as mulheres brasileiras enfrentam um dos piores cenários
mundiais em termos de representação política. Estamos atrás de países como Afeganistão e Arábia
Saudita quando o assunto é presença feminina no Congresso, como mostra o ranking da União Inter-
Parlamentar (UIP): entre 193 nações, o Brasil aparece na 155º posição. Nas estatísticas da Comissão
Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), temos o menor índice de participação de mulheres
nas Câmaras em toda a América do Sul.
“A partir do momento em que tivermos a paridade de gêneros [nas Câmaras e no Congresso], temas
como aborto, violência contra a mulher e ampliação das creches, entre outros pontos ignorados pela
bancada masculina, passarão a ser debatidos com maior entusiasmo”, afirma Karina Kufa, pesquisadora
do assunto e advogada especialista em direito eleitoral.
Com base nos resultados das últimas eleições, o cenário ideal citado por Kufa está longe de se
concretizar. Das 5.570 cidades brasileiras, 1.290 não elegeram nenhuma representante feminina para o
legislativo, segundo levantamento do G1 com base em dados do TSE. Outros 1.963 municípios terão
apenas uma vereadora e em apenas 23 elas serão maioria a partir do ano que vem.
NAS CÂMARAS
Na maior cidade brasileira, no entanto, o número de vereadoras eleitas passou de cinco para onze, ou
seja, mais que dobrou. Para Patricia Bezerra (PSDB), 45, o aumento é digno de comemoração, ainda que
a nova bancada feminina da Câmara de São Paulo represente apenas 20% do total de postos. “É motivo
para pular de alegria”, diz. “O que precisa acontecer agora, nesta Casa, é a legitimação da presença da
mulher, porque aqui dentro somos vítimas de preconceito.”
Em seu segundo mandato, Patricia foi a mulher mais votada da cidade, com mais de 45 mil votos,
depois de 16 homens. Pastora da igreja Comunidade da Graça, na zona leste de São Paulo, ela se
considera uma “feminista equilibrada”. “Luto pela igualdade. Existe um segmento feminista que é
exacerbado e que quase busca uma similaridade com o homem. Como se eu só pudesse exercer o poder
se ele tiver uma cara masculina”, critica.
É de sua autoria o texto da lei que desde 2013 institui o “parto humanizado” na rede municipal de
saúde, com uso garantido de anestesia e presença obrigatória de um acompanhante. Aprovado em 2015,
outro Projeto de Lei de sua autoria prevê multa para estabelecimentos que possam constranger ou proibir
mães durante o ato da amamentação. Ela afirma já ter sido ridicularizada por outro vereador durante uma
sessão, e que são comuns casos em que as mulheres são alvo de “sansões” na Câmara de São Paulo.
“Comissões café com leite são para onde nos mandam, comissões relevantes para a cidade mulher não
preside. Não adianta estarmos aqui e sermos tratadas como se não estivéssemos”, afirma.
Das cinco vereadoras eleitas ouvidas pela reportagem, Lucimar Vieira Martins (PTC), mais votada
em Fortaleza, e Marcelle Moraes (PV), mais votada em Salvador, disseram não sofrer com nenhum tipo
de preconceito, seja na Câmara ou durante a campanha. “Comigo não aconteceu porque eu faço valer”,
diz Lucimar, 64, conhecida apenas como Bá. Eleita com mais de sete mil votos para o segundo mandato,
ela trabalhou para a aprovação de um PL que pleiteava a inclusão de ônibus cor-de-rosa na frota do
transporte público da cidade com a intenção de que fossem utilizados apenas por mulheres em horários
de pico. “Já andei muito de ônibus por essa Fortaleza e vi o quanto a mulher sofre para apanhar um
transporte. São lotados, horríveis”, diz a vereadora, que afirma fazer um mandato voltado à periferia,
onde cresceu e ainda vive.
Marcelle Moraes, 23, pretende levar para a Câmara de Salvador a “bandeira animal”. “É claro que eu
vou apoiar a causa da mulher ou diversas outras que venham a somar, mas o que eu vou defender são os
animais, é para isso que eu fui eleita, minha plataforma política é muito clara”, afirma. Com 15.727
votos, Marcelle foi a terceira vereadora mais votada em Salvador, primeira entre as mulheres candidatas
na cidade e também nas regiões Norte e Nordeste do país. Apenas outras seis foram eleitas para
preencher os 43 postos disponíveis na Câmara.
“A gente não pode querer transformar o mundo de um dia para o outro”, diz Marcelle. “Estamos
galgando o nosso espaço na sociedade ao longo do tempo e estamos conseguindo, graças a Deus,
devagar e sempre.” Ela não gosta de usar a palavra “feminista” para se definir. Prefere “democrática”.
“Acredito em direitos iguais, e não em direitos a mais.” A advogada e pesquisadora Karina Kufa afirma
que a eleição de mulheres para cargos eletivos não garante, necessariamente, qualquer avanço no campo
dos direitos femininos. “Não adianta ser mulher e não ter compromisso com a pauta da igualdade”,
afirma.
Para Luciana Ramos, pesquisadora da FGV-SP e membro da ONG Mulheres do Brasil, o ideal seria
mesmo que fossem eleitas mulheres engajadas na pauta feminista. Ainda assim, ela defende que a mera
quantidade, por si só, independentemente de posicionamento ideológico, importa. “O olhar e a
perspectiva de vida da mulher é diferente dos homens que, em geral, ocupam esses espaços. E essa visão
é fundamental para qualquer espaço de tomada de decisão”, afirma.
Aurea Carolina (PSOL), 32, concorda. Feminista negra e ativista com histórico de militância em
movimentos sociais, ela recebeu mais de 17 mil votos em Belo Horizonte e se elegeu como a vereadora
mais votada entre todos os candidatos. Outras três mulheres ocupam, a partir do ano que vem, as 41
vagas da Câmara de Belo Horizonte, onde por enquanto há apenas uma, Elaine Matozinhos (PTB).
DIAGNÓSTICO
Ramos atribui a falta de mulheres nas Câmaras e no Congresso à resistência dos próprios partidos
políticos em nomear candidatas que tenham chances reais de serem eleitas. Desde as eleições de 2012, os
partidos são obrigados, por lei, a reservar 30% de suas candidaturas a um dos sexos – que, claro, acaba
sendo o da mulher. Neste ano, a legislação de fato garantiu 31% de candidatas, mas apenas 13,5% se
elegeram.
“A atual legislação é facilmente fraudável”, afirma Karina Kufa. “A obrigação de apresentar
percentual de candidaturas femininas possibilita aos partidos e coligações indicarem candidatas
‘laranjas’, as quais somente emprestam o nome e não conquistam, em alguns casos, o próprio voto.”
Pesquisa feita pelo Instituto Patricia Galvão mostra que muitas vezes as mulheres são chamadas pelos
partidos um ou dois meses antes das eleições apenas para cumprir a cota mínima. E quando são, de fato,
reais, as candidatas enfrentam outras dificuldades: a falta de financiamento e tempo na TV.
Levantamento da Folha de S.Paulo concluiu que os homens candidatos às Câmaras neste ano receberam
30% a mais de verba do fundo partidário do que as mulheres, decisão que obviamente parte da direção
do próprio partido – geralmente presididos por “homens brancos em seus 50 anos”, diz Luciana Ramos.
Aurea Carolina, que pretende defender a ampliação de vagas na educação infantil e o funcionamento
de creches em período integral em Belo Horizonte, enxerga sua vitória tão expressiva logo na primeira
disputa eleitoral como consequência de uma possível mudança na percepção do eleitorado que, aos
poucos, começa a buscar outros perfis de representação. “Essa primavera feminista que já está há um
tempo se consolidando no Brasil teve o sentido de reorganizar as forças de esquerda nessas eleições”,
diz. Candidatas assumidamente feministas também se elegeram em outras capitais: Sâmia Bonfim
(PSOL), em São Paulo, e Fernanda Melchionna (PSOL), em Porto Alegre, por exemplo.
No Rio de Janeiro, 46.502 votos elegeram Marielle Franco (PSOL), 37, como a segunda mulher mais
votada para a Câmara depois de Rosa Fernandes (PMDB), eleita para seu sétimo mandato. Marielle, que
também disputou sua primeira eleição, é feminista negra, moradora da favela da Maré e coordenadora da
Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) desde 2012. Como
Aurea Carolina, ela diz que suas causas são pautadas pela interseccionalidade entre gênero, raça e classe.
“Eu espero ampliar o diálogo. Espero que os debates com relação ao genocídio da juventude negra, a
desigualdade na favela e a valorização da vida das mulheres possam avançar. E não só com as mulheres,
porque não se rompe com o machismo se os homens não estiverem junto”, afirma.
A pesquisadora Luciana Ramos diz que o momento é de um “despertar da consciência para saber que
é preciso ter maior diversidade nos espaços de poder e de tomada de decisão” na política institucional.
“Não faz sentido restringir as possibilidade de mulheres serem eleitas. Nós conseguimos o voto, mas
também o direito de sermos votadas.”
dossiê Deslocamentos de Hegel

Apresentação

Assim como acontece com a dialética moderna, o seu reconhecido inventor nem sempre responde pelo
nome.
No mais das vezes, Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) certamente parece se dar por achado:
desde o nascimento na região da Suábia até o momento em que ele teria se tornado, afinal, hegeliano,
indo a coincidir consigo mesmo ao longo de temporadas formadoras. Em Tübingen (1788-1793), onde
adota, por exemplo, o lema “hen kai pan” (uno e todo), ao formar com Schelling e Hölderlin o grupo que
se autodesignou “Religião Invisível”. Em Berna (1793-1796), onde opera a negação da religião
institucionalizada, graças à mobilização crítica do conceito de positividade, e concebe um programa
político com base na ética dos antigos. Em Frankfurt (1797-1799), quando desenvolve reflexões sobre o
destino, uma filosofia do amor e da vida, e onde, fazendo suas primeiras leituras de economia política,
diz ter atingido “o ponto noturno da contradição de seu ser”. Em Iena (1800-1807), onde não apenas dá
prosseguimento a seus estudos anteriores como assume um objetivo de longo prazo, a elaboração de um
sistema, culminando naquela que será a sua primeira obra madura, em certa medida, último fruto de sua
juventude, a Fenomenologia do espírito (1807).
Ademais, Hegel se insinua em avessos por vezes inesperados. Por causa dos papéis assumidos pela
dialética na “recomposição do sistema” (carta a Schelling, 02/11/1800), aparece já no movimento de
passagem a seus contrários, emerge na hora e na vez de seu exato oposto e comparece nos contraditórios,
junto àqueles que com ele se puseram em diálogo: por exemplo, na Alemanha, na França, na Itália, no
Brasil.
Embora em diferença, a singularidade desse pensamento excede em significações – relativamente a si
mesmo e no campo de batalha de seus próprios antípodas. Ao darem testemunho de cisões sociais,
bloqueios políticos, aporias teóricas, jamais cancelam a exigência de “superação”, se considerarmos
atentamente a “nervura ética da história”, como diz Franklin Leopoldo e Silva noutro contexto destes
deslocamentos de Hegel.
Os leitores da CULT estão convidados a refletir, hoje, sobre os anos de formação, o aprimoramento e
o deslocamento desta prosa crítica.
Inéditos: sentenças, aforismos, notas e fragmentos
Entre 1803 e 1806, Hegel manteve um caderno de apontamentos onde se alternam notas de leitura
e reflexões pessoais. Mais tarde, foram reunidas por seu primeiro biógrafo, Karl Rosenkranz, e,
nos anos 1960, editadas criticamente por Friedhelm Nicolin. Especialmente para a CULT, Mathias
Möller e Silvio Rosa Filho selecionaram e traduziram os textos a seguir – inéditos em português

20
Para o escrupuloso, pode-se dizer que a certeza moral é uma lanterna: só ilumina o bom caminho;
andando no mau, apaga-se a lanterna.
22
Na Suábia, de algo há muito acontecido, dizem: já faz tanto tempo que logo deixará de ser verdadeiro.
Assim faz tanto tempo que Cristo morreu por nossos pecados que logo isso deixará de ser verdadeiro.
32
A leitura do jornal pela manhã é um tipo de bênção diária, realista. Com ela se orienta a postura diante
do mundo, para Deus ou para aquilo que o mundo é: ambos trazem a mesma segurança – a de saber em
que pé se está.
66
Estudar significa considerar como verdadeiro o que outros pensaram.Mas ir logo descartando algo como
falso, assim não se conhecem as coisas.
88
A divindade é adorada na obra de arte, na ruim como na excelente. Os tremores da divindade,o
aniquilamento do singular, invadem a assembleia. Mas logo ela retoma o fôlego, olha ao redor até os
seres vivos, desperta para um sentimento da vida. Eles se reconhecem como vida, cantam-na uns para os
outros, agarram-se pelas mãos, tocam-se e passam ao movimento,à dança. A exultação há de se
transformar em harmonia, em pluralidade de imagens e de pensamentos. A medida do compasso se torna
a contenção do subjetivo, do arbitrário. Os indivíduos vêm a ser membros da unidade objetiva. Tal como
Cibele, a grande mãe dos deuses, ela própria toca os címbalos, ou senão age por meio de uma força
silenciosa e inconsciente. Assim desfruta a divindade de si mesma, e o homem com ela se identifica.
Esse gozo é sobrepujado ao comer-se a divindade, mas isso exprime profundamente a dor infinita, a
completa fratura do mais íntimo. Deus se oferece ao sacrifício, entrega-se ao aniquilamento.O próprio
Deus está morto; o supremo desespero do completo desamparo de Deus.
90
Antes, a classe inferior do povo expulsava alguns membros da família como bode expiatório; sobre eles
pesava até a loucura o fardo da privação, da penitência e da autoalienação; o próprio povo, no
entanto,saía ileso e obtinha a reconciliação por meiode tais sacrifícios. Hoje, porém, ele tomou sobre si a
própria penitência.
93
Necessidade de leis contra a usura. Como o singular desconhece as oportunidades e os indivíduos com
os quais se pode fazer dinheiro, isso parece mais escasso do que é. O Estado, no entanto, deve estar
ciente do conhecimento sobre a escassez e a abundância de dinheiro. Sua taxa sobre os juros suplementa
a consequência da qual surgiria essa tentação, a opinião de haver maior escassez e com isso o surgimento
de juros mais elevados. Além disso, assim como todo rumor de guerra e paz, previsão de granizo e assim
por diante têm influência sobre o preço dos cereais, a mesma flutuação incidiria sobre o dinheiro. Essa
instabilidade é que faz o preço subir, pois a esperança de vender por preço mais alto, ou pelo menos não
inferior, é mais forte que o medo de seu contrário, e aquela esperança, mais fortemente do que este
medo, provoca a liquidação a qualquer preço. Por isso a necessidade das taxas sobre o pão, a carne etc.
95
Não há país como a Alemanha, onde tudo o que lhes vem à mente é logo transformado em universal,
amoldado em ídolo do dia e assentado para a prática da charlatanice; de modo que rapidamente também
é esquecido e assim se perde o fruto que daria, caso fosse mantido em seus limites. Seria então
reconhecido em sua medida e apreciado e utilizado no que lhe é próprio, ao passo que do outro modo,
com inchaço impróprio,ao mesmo tempo ele é inteiramente emurchecido e, como se disse, esquecido.
O trabalho da sentença
SILVIO ROSA FILHO

Numa personalidade filosófica tão abrangente como a de Hegel, o que salta à vista é mesmo a
singularidade do “sistema”, apresentado pela primeira vez na Fenomenologia do espírito (1807) e
exposto mais tarde na Enciclopédia das ciências filosóficas (1830). Hegel seria dos últimos, se não o
último, a levar a cabo um modo de pensar que timbra pela completude, emergindo das páginas, com
relevo inconfundível, a totalidade em presença.
Em Hegel, no entanto, há igualmente lugar para notações fugidias, o traçado fragmentário, um
cuidado no torneio das frases, por vezes, um andamento cujo ritmo imanente se aproxima da forma
aforismo. Menos então para contrariar expectativas usuais ou para rasgar horizontes inusitados da
experiência, o avesso da dialética nem sempre lhe foi adverso – como mostram sem grande alarde alguns
textos do próprio Hegel; e, por extensão, o pensamento daqueles que com ele trataram de se medir.
Pensamos especialmente no período em que o filósofo residia no ducado de Weimar, cidade de Iena,
sobretudo nos anos que vão de 1803 a 1806, quando Goethe e Schiller residiam nas vizinhanças.
Apontamentos feitos num caderno começaram a dar notícias de um crescente afastamento em relação a
Schelling e encurtaram as distâncias que ainda separavam Hegel de si mesmo. De modo que, ao
privarmos da companhia do filósofo, ora sentado em sua mesa de trabalho, com esse caderno de
apontamentos se compõe uma atmosfera íntima e pouco habitual: laboratório de ideias, ateliê de
conceitos, na caracterização de certos especialistas; officina artigiana, nas palavras de Remo Bodei.
Dela colhemos oito fragmentos. Frequentados com alguma assiduidade, eles revelam um pensador
em movimento, a proceder por tateios e tentativas, no período em que as partes do sistema não estavam
reunidas explicitamente, quando o verdadeiro ainda não se tornara o Todo.
DO MAIS COTIDIANO
Primeiramente, são situações amenas e acompanhadas de oposições bem manifestas. Numa delas,
especificamente o fragmento 20, transparece a posição do filósofo sobre a certeza moral (Gewissen).
Esta ilumina de si mesma o bom caminho da ação, diferentemente da personagem escrupulosa que, pelo
claro-escuro de sua hesitação, ou se vai achar na iminência de apagar a chama da “candeia moral”, ou já
se vai tomando o mau caminho. Em causa, portanto, o risco que corre a ação ética no tempo presente
mais imediato, por inflação de moralismo.
Nessas resumidas linhas, o leitor da Fenomenologia logo entrevê a crítica das antinomias da
moralidade e uma prefiguração de seu resultado: para muito além dos deslocamentos e dissimulações do
moralismo, para muito além dos escrachos do cinismo nascente (FE, §§ 616-632). No caderno, porém,
cortadas pela brevidade da escrita, as frases cintilam na evidência de que o melhor é fazer o que se há de
fazer: fiar-se na certeza moral é lançar-se, em cada caso concreto, no agir que assume a forma da ação
efetiva. De saída, entretanto, o filósofo não recusa toda legitimidade às dúvidas do escrupuloso;
posiciona-se, inversamente, como quem deixa que ele vá se pôr à prova e dê o passo que traz à luz a
verdade de sua própria certeza moral. Na Fenomenologia (§§ 632-671), a certeza moral vai se
autodissolver como certeza, a autoafirmação do escrúpulo vai se negar pelo “mau caminho” e confessar
esse “mal” no agir e pelo agir. Já no caderno, a moral atinge o seu grau supremo no “enterro da culpa e
dos sofrimentos”, ao “fazer do coração o túmulo do coração”, no fragmento 63.
Por contraste com esse instantâneo da certeza moral, o fragmento 22 nos remete à sabedoria que se
difunde em provérbios populares, se registra em paremiografia nativa e joga luz sobre o campo das
relações entre acontecimento dado e memória coletiva: de um lado, a morte de Cristo, de outro, a
necessidade de sua inscrição na prosa da história. Também na Fenomenologia (§ 787), o acontecimento
se evapora, por mais verdadeiro ou decisivo que fora, sem a consciência que lhe confere atualidade,
acentuando-se o aspecto evanescente de toda verdade meramente dada ou acontecimental. É essa
intuição profunda que aqui se traduz do falar regional dos suábios e que alguns anos mais tarde será
transposta e cifrada na crítica da verdade contingente, isto é, dada na forma do “puro Si mesmo
exterior”, que é o tempo.
Deixando o tempo imediato do aqui e agora moral e o tempo a longo prazo que irradiava da
sabedoria popular, o tempo forte de outro fragmento, o de número 32, nos leva de volta à anotação –
quase etnográfica – da vida diária. Assistimos à cena moderna que aponta para o futuro iminente: hora
do café da manhã, mesa posta, um personagem faz a leitura do jornal; a orientação prosaica que ali se
obtém (saber em que pé se está neste mundo) redunda numa segurança questionável.
A primeira parte desse fragmento foi muito citada, com razões bastantes para valorizar a atenção à
atualidade e ao realismo hegelianos; na Europa de 1716, por exemplo, estima-se em 140 o número de
jornais publicados; em 1790, a Alemanha já contava com 240. Nada obstante, por exponencial que tenha
sido o crescimento da imprensa escrita nos séculos 18 e 19, o que está em jogo não é a mera substituição
de uma prece matinal pela leitura do jornal, algo passavelmente estranho, mas o entrelaçamento de
ambas, ponto em que o fenômeno cotidiano da alienação se produz por oposição aos tempos lentos da
vida contemplativa: decerto, prestes a se inserir no dia presente, a ação já se enquadra em cenário
repetidamente pré-moderno. Pelo tipo de inversão “realista” que é inerente a estas sentenças e pela parte
de ironia objetiva que as caracteriza, pergunta-se: a vitória conjuntural da oração jornalística anuncia
uma derrota estrutural da esfera pública? Imediatamente é verdade, essa bênção diária não se mostrava,
na época, aparentada a uma maldição.
Presente imediato, passado remoto e futuro iminente – todos oferecem testemunho de uma
obsolescência que compromete o teor contemporâneo da vida ativa. Se não promovem uma reedição da
vida contemplativa, dela conservam um vestígio essencialmente elevado, o que aparece na definição
exemplar do que ainda significa a palavra estudar (§ 66).
As proposições transcrevem, nesse registro, experiências e ressonâncias de uma sabedoria avessa à
pressão de temporalidades aceleradas; dizem não à credulidade, convidam à prática do exame demorado
(Cf. FE, § 76); recusam a tomada prematura de posições e valorizam a conduta que dá acolhida à
alteridade. Nesse sentido, “considerar como verdadeiro o que outros pensaram”é uma definição da ação
estudiosa, a partir da qual a suspensão dos juízos de valor segue documentando toda uma ética dos
estudos, em particular, na voz do professor que falará mais alto nos discursos que pronunciar a suas
turmas de ginásio, em Nüremberg (de 1809 a 1815).
Dissemos haver situações amenas, nas quais as oposições manifestas revelam outras, latentes. Há
todavia lugar para irrupção de situações extremas que, descritas sob perspectiva histórica específica,
exibem um filósofo concernido por atualidades de mais longa duração, sem prejuízo de escalas distintas
e comparáveis de tempo – uma espécie de discernimento bem formado para “fusos históricos”, na
expressão certeira de Paulo Eduardo Arantes.
Ao comparar as religiões pagã e cristã, rememorando o gozo e o entusiasmo da primeira, expondo a
dor e a infelicidade da segunda, o fragmento 88 começa pela descrição do bom encontro entre arte e
religião no culto pagão. Não estamos ainda no momento fenomenológico em que aparecem a essência
luminosa na religião natural ou o próprio Zeus na tragédia revisitada (FE, §§ 684, 733 e seguintes). O
que estará situado no elemento mais estrito da representação religiosa, no caderno, se transpõe aos
campos da imagem e da intuição, essa vivência da ipseidade em ato pelo qual o espírito se coloca
livremente como sendo o seu próprio conteúdo; no limite, prefiguração imaginativa da encarnação e
pressentimento da passagem de uma assembleia à comunidade espiritual. Da apresentação plástica e
estática da escultura – deus cativo na pedra – até a apresentação dinâmica em que o deus surgia na
coreografia de um reconhecimento tão lúdico quanto recíproco, o hino pagão entrelaça o instantâneo e o
sucessivo, conferindo sentido à matéria da linguagem.
No mesmo instante em que a cena antiga passa de um ambiente para outro, nem por isso o que ali
havia de arcaico se desfaz de todo: mudando os personagens nem sempre se muda o sacrifício. Se a
ruptura parece intrigante e algo misteriosa, se por efeito de anamorfoses a figura retoma os rumos do
argumento e do conceito, a originalidade da suspensão, no fragmento 88, não reside necessariamente na
ultrapassagem para uma dialética pacificadora. O leitor poderá constatá-lo no vocabulário colhido ao
campo da tradição religiosa (Eli, Eli, lama, em Mateus 27, 46), à seara da especulação mística de Mestre
Eckhart e Jacob Böhme, mais diretamente, ao canto luterano que proclama a “morte de Deus”. Poderá
também o leitor demorar-se no vai e vem de letra e sentido, binômios que se vão tornando operadores
descritivos de ambientes conflitantes e de desambientações extremas. Na “completa fratura do mais
íntimo”, por exemplo, a polissemia da locução não impede que se atine para o alcance expressivo da
imagem que, precisa, súbito aproxima o mais semelhante do mais dissemelhante; figura rigorosamente
dialética, portanto, em que pese a exigência de jamais se dar por satisfeito com reconciliações abstratas
nem, tampouco, com irreconciliações extorquidas.
O mesmo prolongamento de temas arcaicos em fenômenos históricos comparece no fragmento 90,
aproximando o tema bíblico do bode expiatório (Levítico 16, 20-22) do tema grego, o pharmakos em
Atenas, quando um homem, geralmente oriundo de camadas populares, era escolhido pela “pólis” para
ser a vítima oferecida em sacrifício e expiação das culpas acumuladas durante o ano findo. Mas importa
observar que, na passagem do tema do sacrifício de um membro do povo para o autossacrifício do
próprio povo, a posição da questão manifesta é deposta pela formulação do problema que nela só
comparecia de modo latente, tornando-se compreensível a sua retomada em nova chave; o que há de
estranho ou enigmático na mudança de assunto resulta da viravolta qualitativa. Deixemos ao leitor o
cuidado de estudar as relações desses momentos da identidade obtida ao preço da exclusão da alteridade,
seja na Fenomenologia, quando a “bela alma” se afigura na consciência que, deslocada até a loucura, se
dissipa na consumpção nostálgica (FE §), seja nos chamados Manuscritos Wanenmann, nos quais a
expulsão das contradições da sociedade civil burguesa se traduz como “exportação das contradições”.
SINAIS PRECURSORES DO QUE ESTÁ EM MARCHA
O fragmento 93 configura, prospectivamente, a breve atividade jornalística de Hegel como redator da
Gazeta de Bamberg, ao passo que atesta, retrospectivamente, as suas preocupações críticas com a
articulação e o condicionamento recíprocos de economia e de política, desde os anos passados em
Frankfurt, quando o filósofo descobriu os economistas escoceses de tonalidade mercantilista, como
Stewart, ou “clássicos” como Ferguson, Smith e Ricardo. Limitemo-nos a dizer que, em termos menos
remotos, esse pequenino esboço de crítica da economia política combina dois eixos, o de política
orçamentária, ou fiscal, e o de política monetária; que, ao concentrar o foco de sua atenção na mitologia
da escassez do dinheiro e no paralelo das taxas sobre juros e sobre produtos, Hegel tem olhos para ver –
e muito além do valor de face dos ados e informações “objetivas – o cerne de uma instabilidade
estrutural, bem antes dos debates que vão opor, no século 20, monetaristas e keynesianos.
Um exemplar, por fim, das apreciações sobre o comportamento de seus conterrâneos. Sem nenhuma
complacência, após ter apontado refúgios no moralismo ou no analfabetismo econômico-político, uma
anotação de etnofilosofia no fragmento 95. Diferentemente dos ingleses, economistas praticantes, ou dos
franceses, praticantes da política, o retrato desfavorável dos alemães aparece abruptamente pelo viés de
seu cotidiano extremismo teórico. No tema tradicional das relações entre universal e particular, a
universalização indébita é posta em causa, ora acenando para o que mais tarde será entrevisto como
formalismo inflado ou criticável como “universal abstrato”, ora ainda como indeterminação do particular
que se esquece da marcha rumo à universalidade concreta. No fragmento 41, o enredamento de
particularismos em universais desse tipo era apresentado com o auxílio de uma imagem do esquecimento
que neles opera: como fios tênues de uma teia em estado de evaporação, a transparência formalista não é
cancelada simplesmente por ser falsa; antes, como “transparência aracnídea”, ela arrepanha as idolatrias
filosofantes na autoprodução de seus pontos cegos.
Hoje sabemos que tais tendências regressivas não seriam inteiramente vencidas pelos avanços da
Revolução Francesa nem tampouco da utopia napoleônica. Em ampla medida, de seu senso de extremos
e proporções, o aprimoramento da prosa crítica – forma latente do conceito, conteúdo manifesto da
história – joga luz ao campo de suas próprias invisibilidades. O brasileiro Lima Vaz designou certa vez,
numa expressão feliz, o lugar onde se pode hospedar o leitor: “agora histórico”. Em duas palavras,
portanto, o trabalho da frase já foi solidário do trabalho do conceito.
Ideia e realidade
RODNEI NASCIMENTO

Na célebre carta endereçada ao pai, em 1837, Karl Marx, então um jovem estudante de direito e filosofia,
ao mesmo tempo em que presta contas de suas tarefas acadêmicas, formula o mote que irá inspirar toda
sua evolução intelectual. Depois de um ano de dedicação febril – no sentido literal inclusive, visto que
adoece ao final do período – à elaboração de uma Filosofia do Direito e à tentativa de fundamentá-la
filosoficamente, Marx revela sua enorme frustração com os resultados alcançados, considerando-os uma
enorme e frágil construção idealista: “O pano caíra, meu santuário se desmoronara; era, então, necessário
elevar novos deuses aos altares”. E indica, na sequência, o novo rumo que teve de imprimir à sua vida
filosófica: “Abandonando o idealismo, que, diga-se de passagem, fora comparado e nutrido pelo de Kant
e de Fichte, dediquei-me a buscar a ideia na própria realidade. Se, antes, os deuses moravam sobre a
terra, agora se tornaram o centro dela”, escreve em Carta ao pai, de 1837.
Não será um programa de fácil execução, como pode imaginar o leitor, mas aí já se anuncia, em
poucas palavras, o impulso inicial de todo o projeto intelectual marxista desde os seus primeiros escritos
até sua crítica da economia política madura: “buscar a ideia na própria realidade”. Não se trata tampouco
de um percurso linear, mas de um combate de vida inteira, com soluções sempre provisórias, que
ressurge a cada etapa da experiência intelectual de Marx. Não por acaso, em momentos cruciais de sua
obra, vemos Marx às voltas com a necessidade de “acertar as contas com sua consciência filosófica
anterior”, para usar a expressão consagrada de ideologia alemã. Ou, ainda, no momento de redação de O
capital, quando Marx afirma ter-lhe “por acaso” caído nas mãos um volume da Lógica de Hegel, que lhe
ajudou a resolver as dificuldades de uma exposição crítica das categorias econômicas.
A fim de se proporcionar um quadro um pouco mais exato do sentido e dos percalços desse novo
programa filosófico fiquemos com dois dos momentos mais relevantes do primeiro ciclo dessa tentativa
de encontrar o modo de produção da ideia pela própria realidade: a Crítica da filosofia do direito de
Hegel (1843) e os Manuscritos econômico-filosóficos (1844).
HEGEL AL PARI DO ESTADO MODERNO
Como se sabe, em sua Filosofia do direito, Hegel pretende demonstrar que o Estado moderno é a
realidade efetiva da Ideia de liberdade. Ou seja, somente no âmbito do Estado nós conseguiríamos
conciliar a busca pela satisfação das necessidades privadas e conflitantes, próprias da esfera privada
como a família e a sociedade civil, com o interesse racional e ético da comunidade. Entre os diversos
mecanismos por meio dos quais os interesses particulares adquirem um sentido universal, sobressai a
forma de representação dos diferentes estamentos da sociedade civil em corporações de ofício que
organizam a diversidade das carências particulares, elevando-as à esfera política na qual assumem a
forma de uma norma ou lei que deve ser examinada e executada pelo poder soberano. Desse modo,
sempre de acordo com Hegel, o Estado é capaz de acolher em si o extremo da individualidade para si
sem se dissolver na multidão das carências finitas, conferindo um significado ético e racional à vida
política moderna.
Mas não seria essa demonstração da constituição da Ideia de liberdade a partir do modo de
organização da sociedade civil e do funcionamento das instituições políticas a realização do programa
filosófico de Marx? Não estaríamos aqui diante da demonstração de como uma ideia surge através da
própria realidade? Sem dúvida, Marx reconhece o mérito de Hegel por ter apreendido a verdadeira
natureza do Estado moderno ao expor a sua efetivação a partir da separação entre a esfera da vida social
e a da vida política. Mas, por outro lado, acredita que Hegel falseia a realidade ao apresentar o Estado
como uma instância ética e racional capaz de unificar a cisão entre a esfera social e a política.
Interessa a Marx, mais do que confrontar a concepção política hegeliana com a experiência histórica
do seu tempo, identificar o fundamento filosófico dessa ilusória apresentação do Estado como realidade
efetiva da Ideia de liberdade. De fato, ele sustenta que o Estado hegeliano só pode aparecer como algo
racional porque, no fundo, é concebido como produto da Ideia e não da realidade social em si mesma. O
Estado é, verdadeiramente, produto da família e da sociedade civil, mas na filosofia de Hegel ambas
aparecem como formas finitas da própria Ideia, que nelas se desdobra como momentos necessários,
porém transitórios, do seu próprio desenvolvimento. Ou seja, a família e a sociedade produzem o Estado,
mas são apresentadas como produzidas pela Ideia de liberdade. O que ocorre, portanto, no idealismo
hegeliano é um processo de inversão da constituição da realidade, no qual a Ideia, que é produzida pela
realidade, é tomada como princípio do próprio real. Inspirado na crítica de Ludwig Feuerbach à
alienação religiosa, Marx denomina esse procedimento especulativo como uma inversão sujeito-
predicado, do qual nos oferece um pequeno exemplo na seguinte passagem de Crítica da filosofia do
direito de Hegel (p. 31):
“Família e sociedade civil são partes reais do Estado, existências espirituais reais da vontade; [...];
família e sociedade civil se fazem, a si mesmas, Estado. Segundo Hegel, ao contrário, elas são
produzidas pela Ideia real. [...]; por isso, são também determinadas como ‘finitude’, como a finitude
própria da ‘Ideia real’. O fato é que o Estado se produz a partir da multidão, tal como ela existe na forma
dos membros da família e dos membros da sociedade civil. A especulação enuncia esse fato como um
ato da Ideia, não como a ideia da multidão, senão como o ato de uma ideia subjetiva e do próprio fato
diferenciada”.
Para levar adiante, portanto, o projeto de busca da ideia na realidade será necessário proceder a uma
inversão materialista da filosofia especulativa, como sugeria Feuerbach. Mas, para Marx, essa inversão
vai assumir não a forma de uma filosofia antropológica, como no caso de Feuerbach, mas sim a de uma
crítica da economia política, uma vez que é esta matéria que nos oferece a “anatomia da sociedade civil-
burguesa”, como diz no famoso trecho autobiográfico do prefácio aos Grundrisse.
Os primeiros resultados dos estudos de Marx sobre economia política são justamente os Manuscritos
econômico-filosóficos de 1844, publicados apenas postumamente e que consistem muito mais num
conjunto de anotações de leitura do que numa obra sistemática e acabada. Os dois capítulos mais
importantes do volume são aqueles dedicados ao conceito de trabalho alienado e, mais uma vez, a uma
crítica a Hegel, só que representado dessa vez pela Fenomenologia do espírito.
O conceito de trabalho alienado é derivado nos Manuscritos a partir de uma crítica dos fundamentos
da economia política clássica. Adam Smith e David Ricardo haviam chegado à conclusão de que o
trabalho humano é a verdadeira fonte de toda riqueza e valor produzidos pelo homem, para além do
comércio e da terra, como pensavam os mercantilistas e fisiocratas respectivamente. Tomando como
pressuposto a teoria do valor trabalho dos clássicos, Marx extrai dela as consequências práticas que eles
não foram capazes de tirar. O trabalhador produz toda a riqueza social e, no entanto, “torna-se tanto mais
pobre quanto mais riqueza produz. O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto mais
mercadorias cria”, afirma em Manuscritos (Boitempo, p. 80). O trabalho não é, portanto, apenas fonte do
valor, mas também de alienação para o homem, na medida em que ele não se apropria do que produz e
se transforma num objeto vendável, como uma mercadoria.
No capítulo sobre a Fenomenologia do espírito (p. 245-46), Marx afirma, de um modo que não deixa
de ser surpreendente, que Hegel já havia alcançado o mesmo ponto de vista da economia política:
“A grandeza da Fenomenologia hegeliana e de seu resultado final [...] é que Hegel toma a
autoprodução do homem como um processo, [...] como alienação e superação da alienação. [...]; é que
compreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo como o resultado de seu próprio
trabalho. Hegel se coloca no ponto de vista dos modernos economistas políticos. Ele apreende o trabalho
como a essência. [...] mas vê somente o lado positivo do trabalho, não seu lado negativo. O trabalho é o
vir-a-ser para si do homem no interior da alienação ou como homem alienado. O trabalho que Hegel
unicamente conhece e reconhece é o trabalho abstrato do espírito”.
Com efeito, a Fenomenologia expõe o processo de formação da consciência filosófica como um
processo, ao mesmo tempo, de alienação do indivíduo, de perda da consciência nas diferentes figuras de
si, nas quais entretanto não se reconhece. Igualmente, na experiência que a consciência faz de si mesma
até sua figura mais acabada, o saber absoluto, o trabalho possui uma importância fundamental, como no
caso da famosa passagem conhecida como dialética do senhor e do escravo, em que este último, na luta
de vida e de morte contra o seu senhor, busca o reconhecimento por meio do seu trabalho. Para Marx, no
entanto, o trabalho aqui é o trabalho do espírito, ou seja, a experiência da consciência é comandada, em
última instância, pelo movimento de autoposição da razão universal; é um momento do trabalho do
espírito no caminho de sua autorrealização. Assim, o sentido ou a “ideia” do trabalho surgem não a partir
de sua própria realidade, mas do desdobramento sobre si do conceito da consciência.
DA ALIENAÇÃO AO FETICHISMO DA MERCADORIA
A análise da alienação do trabalho começa a revelar justamente como as abstrações da Ideia que vimos
até aqui – a cisão da vida social e política e sua dissolução no Estado ou a perda do produto do trabalho
num objeto no qual o homem não mais se reconhece e se volta contra ele como um poder estranho – são
produzidas no interior da e pela própria realidade social: “A alienação não se mostra somente no
resultado, mas também, e principalmente, no ato da produção, dentro da própria atividade produtiva”
(Manuscritos, p. 82). A questão que se coloca, portanto, é a de saber em que consiste afinal esse “ato de
produção” que dá origem à alienação do trabalho. A questão põe em jogo evidentemente todo o
programa filosófico de Marx, que não se abstém entretanto de formulá-la: “Em que consiste, afinal, a
alienação do trabalho?” (Idem, p. 82).
Sabemos que Marx, a essa altura, não possui o domínio necessário sobre a lógica da produção
econômica capitalista capaz de responder com precisão a essa pergunta. Mas é capaz de vislumbrar sua
origem, na medida em que identifica na propriedade privada do produto do trabalho o princípio que
simultaneamente impulsiona e realimenta a alienação: a propriedade privada “por um lado, é produto do
trabalho alienado e, por outro, o meio através do qual o trabalho se aliena, a realização da alienação”
(Idem, p. 87). A resposta é, contudo, insuficiente, a começar pelo fato de que se refere à propriedade dos
resultados da produção e não, como seria mais exato dizer, à propriedade dos meios de produção, um dos
traços distintivos do modo de produção capitalistas. Falta igualmente a identificação do outro traço
peculiar do capitalismo, que vem acompanhado do primeiro: a transformação do trabalho humano em
força de trabalho, isto é, uma mercadoria que pode ser comprada e vendida “livremente”. Mas qual seria
o caminho que leva dos pressupostos da produção capitalista à alienação do trabalho humano? Para obter
a resposta, Marx terá ainda longos anos de enfrentamento com a economia política e só a encontrará
definitivamente na análise do fetichismo da mercadoria em O capital. Na mercadoria, um objeto
“sensível-suprassensível” (assim como em todas as categorias econômicas) depara-se novamente com a
dimensão metafísica do social, compreendida agora como uma “abstração real”, provocada por um
sistema fundado na produção de valor.
Hegel, Gramsci e o elemento transformador da dialética
ALEX CALHEIROS

A filosofia hegeliana talvez seja a doutrina filosófica mais duradoura e importante da cultura
contemporânea. Foi Heidegger quem disse certa vez que qualquer recomeço na filosofia não seria
possível sem o devido acerto de contas com a filosofia de Hegel: estava justamente dizendo, em última
análise, que a filosofia hegeliana era a filosofia de nosso tempo.
De fato, abstraindo de idiossincráticas afinidades, desde o seu surgimento até hoje, a filosofia de
Hegel não cessa de produzir diálogos e debates com autores de diversas tendências e em diversas
disciplinas do conhecimento. Através de décadas, sua fertilidade tem dado frutos tanto para aqueles de
declarada filiação quanto para autores de tendências filosóficas que por muito tempo foram a ela
refratários ou imunes. Indistintamente, com efeito, o hegelianismo tem abarcado as filosofias ditas
continentais, mas também aquelas de corte analítico. Prova inconteste de sua potência, o hegelianismo
possui muitos adversários e, igualmente, muitos seguidores; vista assim, sua recepção se torna um
capítulo muito particular, e não menos importante, nas muitas páginas da história de suas interpretações.
Para além do fato de que há aqueles que se perfilam a favor e outros contra, e que de seu legado são
produzidas interpretações, às vezes muito díspares, especialmente entre aqueles que se dizem, de algum
modo, seus herdeiros, não seria exagero afirmar que há muita coisa interessante e instigante naqueles que
a ele se filiam e que entre si se desentendem. Interpretações, é bem verdade, são, muitas vezes, erradas,
porém, são certamente vivas, como lembrou-nos um hegeliano de credo heterodoxo.
Nesse sentido, o caso italiano não é um caso à parte, e faz perfeitamente jus a essa pequena anedota,
embora na lembrança em questão ela se refira mais diretamente ao caso francês: em particular ao Hegel
de Kojève, errado mas vivo. Parte importante das questões mais pertinentes da vida filosófica italiana,
desde os momentos das batalhas que prepararam o risorgimento até o pós-guerra, parece estar ligada às
disputas, infidelidades e percalços produzidos pela recepção do idealismo alemão no pensamento
nacional.
REVOLUÇÃO PASSIVA: EXPLICITAÇÃODO CONSERVADORISMO ITALIANO
Foi pelas mãos do filósofo Bertrando Spaventa que o hegelianismo apareceu como um sistema filosófico
fatto a posta, pois acabava dando, ao país em formação, a possibilidade de se revitalizar a partir da
experiência intelectual dos países de pensamento mais avançado na Europa, como a Alemanha; fornecia,
também, as ferramentas necessárias para produzir o ingresso da Itália no curso da história, operando a
tão sonhada ultrapassagem, já que no processo de constituição de um estado nacional, última moda
naquela época, a Itália era uma retardatária. Este propício contato possibilitaria um alinhamento ao que
havia de mais moderno e avançado, fazendo-a deixar para trás os traços de subdesenvolvimento e atraso.
Dava forma, em suma, às necessidades daquele projeto de nação e plasmava uma nova etapa na marcha
histórica pela liberdade.
Na Itália, de todo modo, o hegelianismo desembarcou num momento particularmente importante de
sua história política nacional. Tratava-se, embora com o mencionado atraso em relação aos outros países,
de uma mudança histórica radical, marcada pela derrocada de estruturas econômicas e políticas mais
próximas do feudalismo do que do brilho das luzes que resplandeceram na França, na América e, com
nuanças muito particulares, na Alemanha. Mesmo sendo possível dizer que a modernidade ensejada
pelas ideias francesas de liberdade tenha sofrido uma acentuada atenuação na leitura de Hegel, não há
dúvidas de que na Itália, mais ainda, sua aparição não passou de um brilho esmaecido, luz opaca nos
salões frequentados por uns poucos intelectuais desapegados de qualquer ideal de emancipação local.
Idealistas por conveniência, tratava-se de um estranho caso de cosmopolitismo descrito com brilho nas
páginas carcerárias de Antonio Gramsci, quando fizer uma investigação sobre o caráter dos intelectuais
italianos, desde o humanismo até os momentos que antecederam a ascensão do fascismo ao poder.
Enfim, a filosofia hegeliana serviu de lente, através da qual filósofos como Spaventa acreditavam ver a
história se fazendo diante de seus olhos. Tornou-se famosa uma sua expressão que dizia: fazer Hegel ser
entendido na Itália significaria refazer a Itália. Está já aqui a importância, para tais intelectuais, da leitura
e da aplicação da filosofia de Hegel na compreensão da história italiana, especialmente a história recente,
uma filosofia apta a fornecer os elementos necessários para provocar um desenlace da recidiva questão
nacional, isto é, a necessidade de uma reforma intelectual e moral. Entretanto, como bem salientou
Antonio Gramsci em seus Cadernos, denunciando a leitura parcial sobre a história empreendida por eles
a partir de Hegel: a chave de leitura do Cura com tiques de maître à penser fora claramente reacionária,
como também seria a de Benedetto Croce e de Giovanni Gentili. Figuras também importantes na vida
intelectual nacional, malgrado a insistência numa leitura que, segundo Hegel, interpretava
equivocadamente o sentido da dialética hegeliana, ao mesmo tempo que perpetuava o elitismo intelectual
típico italiano. Será justamente com Benedetto Croce, filósofo napolitano, que a filosofia hegeliana
ganhará na Itália o status de filosofia oficial, e, para bem e para mal, também por sua causa é que a
expectativa de transformação continuará ressoando no ouvido de muitas cabeças e por muito tempo
ainda. Por um lado, manterá a questão em aberto, já que sua proposição não apontava realmente para a
renovação das instituições sociais e políticas, nem produzirá a vida moral necessária aos novos tempos.
A Itália liberal teve vida breve, e o fascismo triunfou. Croce, em sua crença obstinada no futuro, não
atentou para a gravidade do evento, nem percebeu sua inevitabilidade. O fascismo era para ele uma
doença passageira, um acidente, um parêntese histórico, afirmaria ele quando na Itália começou-se a
assistir a seus primeiros eventos. Gentili, como se sabe, embora muito menos influente que Croce, tendo
aderido ao fascismo, tornou-se responsável pela reforma educacional promovida pelo governo de
Mussolini, e talvez pela primeira vez os ideais de transformação ultrapassaram círculos intelectuais
restritos e se tornou política de Estado; por outro lado, será justamente esta má formação intelectual, o
tema dominante nas décadas seguintes. O fascismo não foi um parêntese histórico, mas ao contrário,
dadas as características particulares, podia-se ler certa coerência nessa marcha absurda. O pós-guerra
italiano foi então um período de rara efervescência cultural, um momento no qual os intelectuais
ousaram sair em massa de suas torres de marfim.
Benedetto Croce foi por muito tempo o mestre de muitas gerações, inclusive Antonio Gramsci. Ele
próprio um discípulo de Croce na juventude, muito cedo, alinhou-se ao pensamento marxista, em grande
medida via Antonio Labriola, renovando-o completamente, justamente com sua leitura não conservadora
de Hegel, atentando para o fato de que, na leitura de tais pensadores, considerava-se, não sem propósito,
aliás, em causa própria, apenas o polo positivo da formulação da dialética hegeliana. A compreensão de
que na dialética a Tese, ou seu polo positivo, é dominante, produz o aniquilamento da antítese, seu
elemento transformador, tornando, portanto, a história comum incessante repositor do elemento
conservador dessa polaridade constitutiva. A síntese necessária produzida no embate Tese e antítese não
se realizava nunca, repondo o velho como se fosse o novo. Não queriam atentar, ao fim e ao cabo, para a
importância do trabalho do negativo na história, o que acabava no final das contas por revelá-los,
explicitando seu conservadorismo e dando, ao mesmo tempo, os elementos necessários para perceber
que não se tratava de casos isolados, mas de um modo de funcionamento. Aqui seria possível dizer que,
para além de Hegel, o que está se repondo é uma forma de vida intelectual resiliente, uma inteira
linhagem de intelectuais italianos que ele classificará como sendo de tipo tradicional. Aliás, foi também
Antonio Gramsci quem apontou para o caráter postiço de tais transformações, ao denunciar que os ares
benfazejos do espírito absoluto não trouxeram às instituições italianas a tão esperada modernização, pois
foi uma operação feita pelas classes dominantes, sem efetiva participação das classes populares, o
transformismo da velha aristocracia reposta nas estruturas aparentemente renovadas da república. Esse
processo será denominado por ele, revolução passiva. Portanto, aquilo que ocorrera no período da
unificação vai se repetir no momento da ascensão fascista e, com a queda do regime, no período pós-
bélico, momento em que as esperanças se renovarão, mas novamente o futuro estaria no passado.
Pasolini, outro grande intelectual italiano – que talvez de Hegel nada entendesse, mas que foi leitor
atento de Gramsci –, disse que no avanço do capitalismo de consumo no pós-guerra italiano revivia-se a
mesma cena da mesma velha história. Toda a esperança contida nos passos daqueles garotos romanos
após o heroico fuzilamento do padre no filme Roma, cidade aberta (1945), de Roberto Rossellini, tendo
ao fundo “ercupolone”, deu, novamente, em nada. Radicalizando a tese gramsciana de que filosofias não
produzem filosofias e que ideias não produzem ideias, se não que filosofias e ideias encontram uma
forma, revolucionária ou regressiva que seja, a fim de expressar de modo concreto e histórico uma
interpretação da realidade, podia-se perceber, na história, as suas marcas bem impressas. Eis por que o
outro nome para revolução passiva é de acordo com o poeta das cinzas, mutação antropológica, processo
operado pela burguesia e reproduzido efetivamente nos corpos dos homens. De fato, na instituição do
corpo, mais que nas instituições políticas, as marcas nefastas dessa história podem ser percebidas, pois
elas criam efetivamente uma ética própria.
NO RUMO DE UMA VERDADEIRA REFORMA INTELECTUAL E MORAL
Exatamente por isso, Gramsci buscará reconstruir a trajetória de uma forma de organização intelectual
que fosse portadora e expressão das transformações operadas na história, como o foram, embora
derrotados. Nas lutas garibaldinas e todos os levantes populares sufocados no período da unificação, nos
Conselhos de fábrica e na resistência, momentos em que para Gramsci pode enxergar a história se
fazendo verdadeiramente – na medida precisa em que a liberdade só se torna consciente de si enquanto
se torna consciente de seu oposto, identificando os verdadeiros intelectuais, pois suas vidas foram
páginas da história. Mais uma vez, não mais na forma, mas certamente no projeto, tentava-se perceber a
trajetória de uma reforma intelectual e moral, até hoje projetada nas promessas de um destino que teima
em não se realizar.
Na carta que escreveu à sua cunhada Tania, em 25 de março de 1929, Gramsci se refere ao
hegelianismo como a forma do pensamento historicamente concreto. Mas é apenas mais tarde, na
polêmica contra uma noção de dialética mecanicista que ele depurará sua interpretação, concluindo que o
equívoco de Spaventa, Croce e Gentili, e até da esquerda, apontando também para seus erros, é uma
compreensão do processo histórico que não leva em conta a necessidade do conflito para que o processo
seja justamente progressivo. A tão falada dialética dos opostos só faz pleno sentido se se considerar que
é justamente no elemento crítico que o processo histórico se desenvolve. Gramsci aponta para o fato de
que eles desconsideravam completamente o trabalho do negativo, portador do novo, afirmando sempre,
ao contrário, o velho.
Ao afirmar a Tese e despotencializar a antítese, o passado é reposto e tudo permanece como é,
justamente como ocorre na descrição desse momento histórico encenada por Luchino Visconti em O
leopardo, de 1963. Do filme inspirado no romance homônimo de Lampedusa, quem não se recorda da
antológica frase de Tancredi, quando diz: “é preciso que tudo mude para que as coisas permaneçam
como são”. A expressão que materializa o processo histórico italiano, colocada em contraste com as
expectativas filosóficas e políticas do mais entusiasta idealista, como foi Croce, confirma a análise
gramsciana que percebe no processo histórico italiano tão somente um processo ideológico, jamais um
processo revolucionário. A tal marcha inexorável da história, às vezes, andava sim em linha reta, mas
para trás, ou melhor, o que parecia era um tipo de reversão na qual o futuro andava para o passado – uma
leitura gramsciana da história do fracasso da revolução na Itália. Gramsci terá compreendido muito bem
Maquiavel, o secretário fiorentino que fora um dos modelos de pensamento político para o jovem Hegel:
é com a experiência de nossas derrotas que aprendemos os ensinamentos para as ações que farão a
história do nosso futuro. É bastante conhecida a assertiva de Gramsci na qual ele diz que “A crise
consiste precisamente no fato de que o velho está morrendo e o novo ainda não pode nascer. Nesse
interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Mas ele aponta também saídas, e a
política, justamente em momentos de obscuridade, tem essa nobre tarefa.
Paul Ricoeur leitor de Hegel
ABRAHÃO COSTA ANDRADE

O que significa o dito comum segundo o qual o Espírito Absoluto, do qual Hegel fez uma apresentação
histórico-biográfica, pressupondo, pois, sua existência de fato, tenha se quebrado e se dissipado depois
da morte do filósofo? Para responder a essa questão difícil, acompanhemos, por um desvio, a leitura feita
por Paul Ricœur (1913-2005) da fenomenologia hegeliana. A Fenomenologia do espírito traçou o
movimento pelo qual a consciência de si encontra-se consigo na efetivação da história e pelo qual, ainda,
esta última se define como consumação da consciência de si; traçou esse movimento chamando esta
mútua imbricação de “Espírito” (Geist) – absoluto.
O Espírito hegeliano seria a totalidade inquebrantável, subjacente às mediações entre o particular e o
universal, entre a teoria e a práxis, entre consciência e história, indivíduo e comunidade, totalidade posta
a garantir a identidade já não somente das diferenças, mas da relação mesma entre diferença e
identidade, segundo o que seria chamado por Hegel de “proposição especulativa”. Ricœur, apesar de
acreditar, à maneira da fenomenologia hegeliana, na possibilidade de certa relação também entre
consciência e história, e isto no interior de uma identidade (a por ele chamada identidade narrativa), essa
identidade ricœuriana, ao contrário da hegeliana, não se deixa encerrar, por uma questão de época, num
sistema fechado de pensamento.
À maneira da fenomenologia hegeliana, dissemos, Ricœur acredita na possibilidade de pensar, ainda
hoje, uma identidade entre consciência e história no limiar de uma experiência possível. Mas objetar-se-á
que a identidade, em Hegel – e de um modo feliz –, é encontrada na efetividade do Espírito absoluto,
história cristalizada no pensamento e, entrementes, para o próprio Ricœur, o Espírito hegeliano não pode
mais ser pensado hoje como um recurso válido à filosofia, já que esta, como diria outro Adorno, perdera
“seu momento de realização”. Objeção procedente, sem dúvida; mas, então, que significa à maneira de
Hegel?
À MANEIRA DE HEGEL
Não, evidentemente, que ele pense essa identidade da mesma forma dialética (autoconfiante) de Hegel, e
sim que, tal como um dia Hegel, Ricœur hoje também deseja pensar a identidade, porque salvo engano
pensá-la é a única maneira de ainda fazer-se filosofia. Essa identidade não se dá, para Ricœur, como algo
já assente, ela é simplesmente possível, não historicamente efetiva; não partimos dela, nos
encaminhamos para ela, pensando, imaginando, agindo. Pode-se sem dúvida dizer, a favor de Hegel, que
também ele não acreditava que já tivéssemos encontrado a realização da filosofia na Alemanha
dominada pelo Estado prussiano, visto que esta afirmação é o resultado de uma leitura malfeita de sua
filosofia do direito, mas há um compromisso muito mais sério, em Hegel, que é inclusive o que
possibilitou, ao menos uma vez, essa má interpretação, a saber: o compromisso ontológico segundo o
qual ser e pensar são o mesmo.
A efetividade do ser é o pensamento, o Espírito, e não adianta constatar que o mundo lá fora destoa
do Espírito, porque isso é abstração do entendimento. Se o mundo, que é história, que é Espírito, não se
reconhece no Espírito, isto é um problema do mundo, não do Espírito. Mas que nos importa se o Espírito
encontra-se conciliado, se ele é a própria conciliação, quando o mundo, que nos interessa mais de perto,
continua mergulhado no caos da irracionalidade? Nisto que reside a grandeza de Hegel (sua coerência
interna que o faz manter-se firmemente no âmbito cerrado do Espírito, que é Razão, logos), habita
também o seu fiasco, pois é exatamente esse descompasso, que é o problema do mundo, o que se trata
de, uma vez mais, pensar. Este, com efeito, foi o ponto de fuga a partir do qual surgiram todas as
filosofias da diferença, desde Feuerbach e Karl Marx. O que acontece quando o ser, que deve ser o
mesmo que pensar, é justamente o seu contrário, a sua diferença? O que acontece, em outros termos,
quando o mundo se subtrai ao Espírito, e lhe permanece órfão? Esta – vale lembrar – já era desde muito
a questão fundamental de Hegel, quando “a cisão é a fonte do estado de necessidade da filosofia” (Cf.
Diferença entre os sistemas de Fichte e de Schelling).
Se no pensamento hegeliano é o Espírito absoluto o que subjaz às mediações entre a história e a
consciência, como o segredo desvelado no final para que afinal descubramos que a história sempre fora a
história da consciência e a consciência sempre fora consciência da história, em Ricœur o pensamento se
move na convicção de que essas mediações são necessariamente quebradas, inconclusas, abertas, uma
aposta sem segurança de ganho, e sempre prestes a ser reformulada no jogo indeciso da política da
experiência, e da experiência da política. A identidade ricœuriana seria o que se busca no interior do
confesso descompasso entre história e consciência, indivíduo e comunidade histórica; aliás, é esse
próprio descompasso a fonte da demanda por interpretação que exige, por sua vez, uma experiência
hermenêutica.
Desse modo, a identidade não é postulada para dizer que já a temos de antemão, no Espírito, mas
porque precisamos dela para breve, na ação, no mundo da ação, cujo tecido simbólico, temporal e de
valores perfazem um campo de frágeis experiências.
Gostaríamos, no entanto, de insinuar que isso decorre da própria identificação de história e
consciência com a temporalidade e com a imaginação. Pois se história e consciência fossem já
totalizáveis – isto é, se fossem passíveis de participar (com igualdade de condições) de um mesmo
sistema de correlações em que a liberdade do indivíduo não se colidisse com a justiça social nem a
justiça como lugar da sociabilidade sufocasse as pretensões dos indivíduos livres, se a consciência
reconhecesse a história como coisa sua e a história se efetivasse como a realização da consciência –, não
se veria como a ação do tempo afetaria o curso do mundo e dos homens no mundo, nem como se poderia
imaginar algo diferente do que o já existente; nada poderia ser feito “contra a potência cega do efetivo”,
segundo a expressão sempre feliz de um Nietzsche.
Isso atestaria não só que existe um único tempo, ou seja, que se pode postular a unicidade do tempo
como identidade sempre presente de consciência e história, como ainda que o mundo, nessa
reciprocidade perfeita, encontrar-se-ia em tal ordem que, pela conformidade de consciência e história,
indivíduo e comunidade, tudo estaria bem tal como está, sem mais possibilidade (nem sequer
necessidade) de mudanças ou transformações. Implicaria o fim da história como também da filosofia, já
que anularia as contradições presentes do mundo dos seres humanos quando – ao que tudo indica – o
motor da filosofia, como o da história, seria aquela contradição entre liberdade e justiça... Justamente
aquela contradição escondida no não recobrimento efetivo de história como realização do espírito e
consciência como realização da liberdade, de práxis e teoria, ou, nos termos de Ricœur, de mundo da
ação e mundo do texto, que ele reconhece sem, contudo, aceitar como projeto de uma experiência por
vir, ainda que seja muito reticente quanto a como seria essa possível experiência.
Isso é assim porque, em Ricœur, a questão da unicidade do tempo ou da temporalidade originária se
transforma na questão de uma identidade que, para atestar sua fragilidade, Ricœur a chamou de
“narrativa”. Em todo o caso, a resposta a como esta última se forma – pela leitura – constitui-se em
preparação da abordagem do problema da totalização. Mas, com a posição da imaginação produtora
como expressão e, sobretudo, como passagem do tempo narrado pelo escritor (de história como de
ficção) ao tempo vivido pelo leitor, teríamos a justificativa da proclamada “renúncia a Hegel”, intentada
por Ricœur no final do terceiro tomo de seu Tempsetrécit. Todavia, ninguém renuncia ao que jamais
tomou posse; se Ricœur “desiste” de Hegel é porque sem dúvida já o assumiu alhures.
Com efeito, se essa renúncia implica a substituição do Espírito absoluto pela imaginação produtora, e
isso nos tenta a situar Ricœur antes ao lado de Fichte ou de Schelling que ao de Hegel, o fato é que,
feitas todas as contas, é na esteira de Hegel que Ricœur permanece. Pode-se dizer que sua solução tem
algo de schellinguiano, algo de fichteano, mas seu problema permanece um problema hegeliano.
Schelling tentou pensar a identidade do subjetivo e do objetivo justamente como imaginação (Eins-
bildungskraft), a “força-de-formação-em-um”, de acordo com certa rigorosa tradução, o poder de captar
em uma “unidade plural”, segundo a ousada expressão ricœuriana, a multiplicidade implicada na
dissociação do universal e do particular, bem como quanto Fichte desce os porões da filosofia kantiana
para encontrar a imaginação como doutrina-da-ciência, isto é, como fundação de todo saber por meio da
produção autoconsciente do Eu, que é também força-de-formação-em-um, imaginação.
INSCRITO NO TEMPO DA AÇÃO
Nessas perspectivas (como força de captar em uma unidade o múltiplo disperso), a imaginação
recolheria justamente, para Ricœur, o tempo, o tempo da consciência na ficção e o tempo do mundo na
historiografia, mas também o tempo fundamental inscrito no mundo da ação, o mundo do leitor.
Esse tempo fundamental, todavia, não seria o tempo natural, mas um tempo filtrado pela experiência
da leitura e, por isso mesmo, seria um tempo revisitado, examinado, acolhido num ponto explicitado
como o presente de uma iniciativa, a iniciativa que se toma no sentido de explodir o que simplesmente é,
a fim de que o que simplesmente seja não fique tal como está, segundo uma aspiração pedagógica
similar, não a Schelling, não a Fichte, mas justamente àquela implicada no conceito de “negação
determinada”, da Fenomenologia do espírito, de Hegel, segundo a qual a verdade de uma figura do
espírito não se encontra antes, mas depois de sua consumação em outra figura, num mesmo
“desenvolvimento”, do mesmo Espírito.
A diferença, talvez mínima, está aqui. O que, em Hegel, é saber absoluto, “a luz conceitual no seio da
qual todo conhecimento mundano, toda expressão cultural e finalmente toda representação religiosa vem
a pensar a si mesma”, em Ricœur é imaginação como força de abertura para a ação transfiguradora desse
mesmo “mundo” que conhecemos, dessa mesma “cultura” a que pertencemos, dessa mesma
“representação”, que reconhecemos como nossa; mundo, cultura e representação abordados não mais
para receberem sua mais cristalina apreensão na vida do pensamento, o que caracterizaria o chamado
idealismo de Hegel, porém para serem implodidos em direção a uma sua nova experiência, uma
experiência de transcendência, de elevação. O que em Hegel é pensamento especulativo, em Ricœur é
imaginação como potência do agir.
A maior proximidade entre Hegel e Ricœur, por sua vez, encontra-se talvez quando se pensa na
constante necessidade, alegada por Ricœur, de não se queimarem etapas, de fazer-se um longo caminho,
de pensar mediada e laboriosamente, de não determinar de uma vez por todas o que é preciso fazer,
ainda que fazer algo seja urgente e preciso. Desse modo, se é Hegel quem, na Fenomenologia, escreve
esta frase: “a impaciência pretende o impossível, isto é, a obtenção da meta sem os meios”, é Ricœur
quem, por sua vez, não acredita que para transformar o mundo seja necessário destruir o mundo; para
transformar as instituições, danificá-las; para inovar as tradições, ignorá-las. Sem dúvida, isso seria
tentar atingir a meta desdenhando os meios, pois para nosso filósofo é no interior do mundo, das
instituições e das tradições que se pode refazer o mundo, as instituições e as tradições. Para uma
humanidade que deixa o século 20 decepcionada com certas experiências revolucionárias, e para a qual,
ao que parece, não se coloca mais a alternativa entre reforma e revolução, sem dúvida existe nesse
pensamento uma forte lição para a construção inteligente do próximo século.
A autorreflexão da periferia
GIOVANNI ZANOTTI

No final da Dialética negativa, Adorno escreve que depois de Hegel a filosofia da história “se aproxima
da historiografia” e que, por sua vez, a historiografia “não é mais possível senão enquanto filosofia”.
Trata-se, a despeito de qualquer interpretação contrária, de um programa para o marxismo teórico; e
pode-se afirmar com certeza que o programa nunca foi levado a cabo, nem por Adorno, nem por outros.
Mas, sobretudo, o problema nem sequer chegou a ser posto de novo: ao menos não no “centro”
filosófico do pensamento europeu e norte-americano. Por isso, o encontro com a filosofia brasileira
contemporânea produz, sobre o observador externo, o perturbador efeito do colapso de um recalque. O
que segue aqui é propriamente nada além de impressões superficiais de alguém que, tendo vindo ao
Brasil há algum tempo, teve a sorte de colocar os pés (literalmente ao chegar, graças a um amigo
perspicaz) em uma livraria filosófica – onde o olhar, quase que por acaso, deparou-se com os livros de
Paulo Eduardo Arantes.
Antes dessa viagem, um outro amigo italiano – e marxista – acertadamente me disse: “Seis semanas?
É quase tempo suficiente para entender algo”. Não sei se o presságio se realizou; certamente, meu juízo
sobre o pensamento de Arantes se funda, por ora, apenas sobre um conhecimento muito resumido e
parcial de seus trabalhos, para não dizer do debate filosófico brasileiro. Isso no que se refere ao
conteúdo. Quanto à ênfase, o entusiasmo de fora sempre tem algo de suspeito, desde os tempos da
viagem de Goethe à Itália. É verdade, entretanto, que uma realidade objetiva existe, e às vezes é deveras
eloquente.
MARXISMO E FILOSOFIA
A primeira sensação da leitura – sem nenhum exagero – pode ser enunciada assim: Marx e Hegel ainda
vivem. Mais precisamente: ainda existe o gênero literário “crítica da ideologia”. Assim efetivamente diz
também Bento Prado Jr. em seu esplêndido prefácio à obra-prima de Arantes, o Ressentimento da
Dialética: a sua virtude consistiria, para além da ilusão (burguesa) de “originalidade”, na “reativação da
empresa da crítica da ideologia, já que esta, como o gato, tem sete vidas”. A formulação, entretanto,
pode prestar-se a alguns equívocos. O que significa, após o ostracismo universal do materialismo
histórico, submeter às suas categorias os próprios agentes deste ostracismo – a Ideologia Francesa, a
teoria da ação comunicativa, a filosofia pós-analítica? Ruy Fausto assinala precisamente o risco de que
as análises não buscariam, e não encontrariam, “nada de novo sob o sol”, que aplicariam abstratamente
as categorias de um “marxismo” rígido e dispensado dogmaticamente da crítica (sumária) à “filosofia”
enquanto tal. A bela e severa resenha de Fausto já pressupõe muito daquilo que, entrementes, foi
esquecido na Europa. Parece-me, todavia, que a acusação erra o alvo. Não se trata, penso, de contrapor
“marxismo” e “filosofia”, mas de notar a mudança irreversível que o primeiro impôs à segunda. Se o
mote “socialismo ou barbárie” também vale na imanência científica, a necessidade prática se reproduz
nesta imanência como um problema interno seu. Não por nada, há quase dois séculos a filosofia
burguesa se atormenta – em vão – sobre a contingência. A tensão interna de todo esforço, mesmo
intelectual, em direção de uma “vida sem medo” – segundo a expressão simples e comovente de Arantes
– coincide com o dever epistemológico do sujeito de refletir sobre seus próprios condicionamentos. Por
isso a filosofia autoconsciente tende irresistivelmente à história. Esta é o próprio ponto de cruzamento
entre a teoria e seu alvo irrecusável, a transformação do mundo; e, além disso, é o lugar onde
propriamente se revela o “novo”, o que ainda não se sabia. Talvez o “primado do objeto” seja não apenas
o primado do trabalho sobre o espírito (cf. a resenha de Wolfgang Leo Maar), mas também, por assim
dizer, o primado da história sobre o conceito – e, em cada um desses casos, é de sua limitação que o
segundo termo adquire propriamente sua legitimidade.
AVENTURAS DA HISTORIOGRAFIA DIALÉTICA
Assim o é em Arantes. Como poucos outros escritores contemporâneos, ele realiza o teorema hegeliano:
é filosófico – ou ao menos dialético – não o que “se estabelece na esfera do geral” (Adorno), mas o que
se move livremente na perspectiva do todo. E a concretude dessa perspectiva se comprova, por sua vez,
somente na precisão – ainda expressiva – da análise singular. Isso, no entanto, não quer dizer que se
possa despachar seu pensamento com o elogio, sempre difamatório, do aperçu genial.
Parece-me que pode ser encontrada uma continuidade nos escritos de Arantes; e, se não estou
enganado, esta gira em torno do conceito de periferia. Das análises do “ciclo alemão” da intelligentsia
europeia no Ressentimento, aos ensaios de crítica da filosofia contemporânea, às mais recentes
intervenções histórico-políticas recolhidas no Novo Tempo do Mundo, o fulcro da reflexão é, na esteira
de Lukács e Adorno (e depois Braudel e Arrighi), o diagnóstico marxista do “desenvolvimento desigual
e combinado” da modernidade capitalista, e daí a centralidade – paradoxal – das situações de “atraso”
histórico: na Alemanha e na Rússia, mas também na França (e na Itália) e, naturalmente, na América
Latina. A reversão da “desvantagem” real em uma “vantagem” de perspectiva dá o sentido da dialética
que aqui opera.
A propósito da recepção brasileira da Ideologia Francesa, Arantes fala de uma “câmara de decantação
na periferia”, e se refere à “fatalidade imposta do lugar periférico que o país ocupa no concerto
inexistente das nações civilizadas”. Aqui, a palavra-chave parece-me esta: “inexistente”. A natureza
contraditória do processo, a mesma que institui a hierarquia real entre centro e periferia, permite revelar
a verdade oculta do primeiro a partir da segunda. Assim, por exemplo, a estrutura do modo de produção
capitalista, triunfante nos países avançados, é alcançada a partir da posição de “desequilíbrio” do
intelectual na Alemanha “atrasada” do século dezenove; o “trabalho sujo” é efetuado hoje nas situações
de “exceção” em razão das exigências de funcionamento da “normalidade” etc. (cf. o segundo ensaio do
Novo tempo do mundo e o prefácio de Marildo Menegat). Mais ainda: a própria possibilidade cognitiva e
prática de um autor funda-se sobre a consciência que ele possui da própria posição descentralizada.
Arantes cita o “falso dilema de sempre” da periferia diante das teorias importadas: “desprovincianizar-se
tomando carona […] ou dar as costas ao frenesi internacional, correndo o risco de ficar mesmo para
trás”?
A resposta de Arantes à aporia é a única possível: refleti-la; interrogar-se sobre a realidade que a
gerou. Desta maneira, mesmo a estrutura lógica interna das teorias “metropolitanas” revela traços
inesperados – antes de tudo a Ideologia Francesa, poderosa “manobra diversionista” internacionalizada
(cf. a magistral Tentativa de identificação da Ideologia Francesa, verdadeira peça de bravura analítica –
e polêmica). Este é o velho truque de Münchhausen, e sempre funciona. Do intelectual “periférico”, o
gesto dialético por excelência – fazer da necessidade virtude – é empurrada até às consequências mais
radicais, porque refletido, por sua vez, em sua plena concretude histórica e geográfica. A contradição
reconduzida a si própria torna-se produtiva, cumpre-se a estranha prestidigitação da negação
determinada, através da qual o pensamento, ao desdobrar-se, sai de si; e, na autorreflexão, o
conhecimento limitado torna-se universal, como todo conhecimento objetivo. Assim, do ângulo visual da
“câmara de decantação”, emergem linhas de tendência mundiais, processos históricos, resultando visível
– certamente por tentativa: e não poderia ser de outra maneira – algo de novo sobre nosso presente.
Adorno a chamava “a extraordinária liberdade, a superioridade quase lúdica que o pensamento dialético
contém”.
É possível que as declarações liquidatórias de Arantes no confronto da “filosofia” não sejam as mais
adequadas para explicar seu próprio trabalho. Aliás, como o próprio Adorno dizia, certas posições, pela
força que desdobram, seriam verdadeiras ainda que fossem falsas. A estas indubitavelmente pertence o
gesto antifilosófico, impaciente, de A ideologia alemã. Mas os clarões que fulguram um após outro nas
páginas de Arantes são aqueles com os quais a melhor dialética, de Hegel em diante, sempre fez brilhar
os objetos. No estilo corrosivo, que queima ao contato com a coisa, transluz uma cintilação familiar, que
desperta sentimentos antigos. É o olhar saturnino de Walter Benjamin. E é motivo de satisfação para a
“periferia” – e também uma confirmação da exatidão das teses de Arantes – que alguém da periferia da
Europa possa cruzar com seus livros e perceber jamais ter lido, na literatura contemporânea das ideias,
algo similar.
Tradução de Francisco López Toledo Corrêa
Hegel e os inéditos de Lima Vaz
MANUEL MOREIRA DA SILVA E LEONARDO ALVES VIEIRA

Falar de Hegel no Brasil significa, em grande medida, falar de Henrique Cláudio de Lima Vaz. Nascido
em 24 de agosto de 1920 e falecido em 23 de maio de 2002, Padre Vaz, como também era conhecido,
contribuiu de maneira decisiva para a formação das primeiras gerações de estudiosos brasileiros de
Hegel. Professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais, entre 1964 e 1986, Vaz estudou
rigorosa e profundamente as principais obras de Hegel, em especial a Fenomenologia do espírito e a
Ciência da lógica. Por diversos motivos, enfim, não publicou em vida nenhum escrito especificamente
sobre Hegel.
IMAGEM DISCRETA
A imagem que muitos leitores e estudiosos de Hegel fazem de Lima Vaz é ainda aquela do tradutor da
versão parcial da Fenomenologia do espírito, publicada na Coleção Os pensadores, em 1980. Tradução
parcial, mas genial, pois capta em profundidade o ritmo, o rigor e a elevação do movimento dialético da
consciência em sua experiência rumo à Ciência. Tendo em vista, à época, a impossibilidade de uma
tradução integral da Fenomenologia e o fato de que uma antologia de pequenos textos mutilaria essa
grande obra, Padre Vaz apresenta o Prefácio e a Introdução, segundo ele, textos capitais para a
inteligência do método de Hegel e da sua concepção da filosofia; assim como os dois primeiros capítulos
da seção denominada Consciência. Estes, no dizer de Vaz, menos citados do que outras passagens
célebres da Fenomenologia, constituem, pela concisão e exatidão, paradigmas perfeitos do estilo e do
método que Hegel se propôs a seguir em sua obra. Tais palavras se mostram como um guia para a
própria obra de Vaz, iniciada sistematicamente com o majestoso Ontologia e história (1968; 2001), no
qual o périplo hegeliano do autor se mostra em pleno exercício. Embora se abra sob o signo de Platão,
com “A dialética das ideias no sofista” (1954), também já homenageado com a tese Contemplação e
dialética nos diálogos platônicos, defendida em 1953, publicada em 2012 e vertida do latim para o
português por Juvenal Savian Filho, Ontologia e história se fecha com o belo e inédito “O Absoluto e a
história” (1968), de clara inspiração hegeliana. Digna de nota nesse sentido é a segunda parte
(sistemática) da Ética filosófica (2000).
É motivo de alegria, portanto, sobretudo para os estudiosos de Hegel, assim como para os
admiradores e investigadores da obra de Lima Vaz, o esforço dos pesquisadores vinculados ao Memorial
Padre Vaz e ao Grupo de Pesquisa CNPq-FAJE: Edição da obra filosófica de Henrique de Lima Vaz,
coordenados por João A. MacDowell, os quais ora investigam o espólio do Pe. Vaz e buscam estabelecer
e publicar seus inéditos.
ETHOS, MORALIDADE, CIÊNCIA DA LÓGICA
A edição de Análise do texto de Fenomenologia do espírito de G. W. F. Hegel, A moralidade, Espírito
(Cap. 6) tem por base setenta páginas transcritas de exposições orais gravadas em disciplinas ministradas
por Lima Vaz no Departamento de Filosofia da UFMG em torno do sexto capítulo da Fenomenologia do
Espírito. As exposições obedecem a um estilo oral e não foram revistas pelo autor; no entanto,
constituem uma análise muito fecunda do referido capítulo, bem como proporcionam uma rica discussão
com teorias sobre o ethos desenvolvidas ao longo da já extensa história da ética, a ciência do ethos, na
cultura ocidental. O rigor da análise, bem típico do filosofar de Vaz, não é prejudicado pelo estilo de
exposição oral e, nesse sentido, a edição deste texto procura conciliar tanto aquele rigor quanto esta
exposição. A importância da presente edição não se resume somente ao estudo de um tema da
Fenomenologia do espírito que até então tem recebido menos atenção do que outros dessa obra, mas
também compreende o tema mesmo ali discutido: o sentido da moralidade para indivíduos que não mais
procuram justificar seu agir apelando para Deus, tradição, natureza e destino.
A tradução parcial de Ciência da lógica, o ser (1812) se constitui como um contributo inestimável
para a pesquisa sobre Hegel no Brasil e mostra-se fundamental para a compreensão do pensamento do
próprio Lima Vaz. No primeiro caso, por não haver ainda uma tradução completa da Ciência da lógica
em língua portuguesa e pelo fato de todos os esforços, ora em andamento, se concentrarem na segunda
edição da Doutrina do ser; o mesmo valendo para a tradução parcial de Marco Aurélio Werle (2011),
que se limita a traduzir o primeiro capítulo da seção Qualidade segundo a edição de 1832; assim,
elementos importantes da primeira edição são deixados de lado. No segundo caso, tal descoberta pode
constituir-se em um marco e em um redimensionamento da obra mesma de Vaz, pois, ao desenvolver
uma dialética que não passa à Objetividade, mas que se circunscreve à Subjetividade, Lima Vaz não
assume os riscos da relação sujeito-objeto, típica dos modernos, e, ao não partir do Singular, não precisa
suprassumir o ser-aí para além de uma relação objeto-sujeito. Lima Vaz não necessita, pois, de uma
dialética que determine o elemento recíproco ou comum entre aquelas relações; ao permanecer no
Universal e em sua passagem ao Singular, nos limites de uma relação sujeito-sujeito, sobretudo na Ética
filosófica (2000) e na Antropologia filosófica (1992, 1993), tem que mostrar apenas em que medida a
reciprocidade entre os sujeitos se apresenta como tal. Daí, por exemplo, a estrutura do agir ético a um
tempo subjetiva, intersubjetiva e objetiva.
A Introdução ao pensamento de Hegel se apresenta nesse quadro como uma obra imprescindível para
a compreensão da Fenomenologia do espírito e da Ciência da lógica, bem como do curso Dialética da
história em Hegel. Trata-se da consideração de uma exigência epocal, que começa com Hegel e chega
aos nossos dias com toda a sua força, a necessidade premente do estabelecimento de uma lógica própria
da metafísica. Essa lógica se mostra necessária já na Fenomenologia do espírito e como tal subjaz por
detrás da consciência, cabendo, portanto, ao filósofo, investigá-la e estabelecê-la de modo que ela se
apresente à própria consciência como o elemento determinante de sua ação. Ora, essa também a lógica (e
a dialética) presente nas estruturas investigadas na parte sistemática da Antropologia filosófica e
especialmente da Ética filosófica, caso em que não só a tradução da Doutrina do ser por Lima Vaz, mas
também seus estudos da Fenomenologia do espírito e da Ciência da lógica, tal como apresentadas em
Introdução ao pensamento de Hegel, se mostram constituintes de seu próprio pensar.
Dada a influência de Lima Vaz em um número crescente de pesquisadores em diversas áreas do
conhecimento no Brasil, a edição de sua obra inédita se reveste de uma importância capital. Para um país
e uma língua que ainda estão nascendo para a filosofia, colher os frutos de um de seus filhos mais
genuínos é especial convite à degustação e ao pensar filosóficos. Ao banquete!
Por um novo ciclo de interpretações do Brasil
PAULO ARANTES

O convite para esse depoimento foi marcado algum tempo atrás, mas faz apenas uns dois ou três dias que
comecei a pensar no assunto e cheguei à conclusão de que era evidente esse enfrentamento democrático
com o projeto desenvolvimentista. Durante o século 20, três projetos nacionais disputaram a hegemonia,
o poder no Brasil, sendo que um deles nunca esteve no poder.
Um desses três esteve no poder durante longo período, começando no fim da era imperial, e consistia
num ideal de integração harmoniosa da elite brasileira na divisão social, na divisão internacional do
trabalho estabelecida pelo centro cíclico hegemônico daquele momento (pax brithannica, depois pax
americana), falando de internacionalização, abertura e sendo, enfim, monetarista, fiscalista e assim por
diante. Esse projeto esteve no poder durante toda a República Velha e foi apeado involuntariamente nos
anos 1930 pela crise e a guerra, que fizeram começar espontaneamente uma industrialização incipiente,
numa espécie de desenvolvimentismo, implicando protecionismo. Isso se deu a partir do segundo
Getúlio; foi o que se poderia chamar de nacional-desenvolvimentismo e era essencialmente conservador.
Foi um atalho que as elites se viram obrigadas a fazer, porque o mercado internacional se fechou e a
integração britânica ruiu. Depois, sob o guarda-chuva da primeira hegemonia americana do pós-guerra, o
Brasil se industrializou de maneira fechada tanto pelo Estado como pelas multinacionais que começaram
a chegar aqui porque tinham mercado protegido, podiam pagar salários baixos etc., além de encontrarem
os cidadãos assalariados fora do poder político e fora inclusive da propriedade, principalmente da
propriedade fundiária, que era fundamental. Esse, portanto, foi um poder de Estado e exerceu o poder
político efetivo no Brasil.
A outra tradição que de vez em quando tangenciava a tradição desenvolvimentista conservadora era a
tradição que eu agora estou chamando de radical, reformista, e era alimentada em parte pelo pensamento
estrutural histórico, em parte por grandes funcionários públicos e grandes agentes estatais reformadores,
em parte pela concepção que tinham os comunistas e em parte por movimentos populares, movimentos
sindicais, que aparecem já na República Velha. Essa tradição sempre pressionou, principalmente em
momentos de crise, mas nunca esteve no poder. Era como se as classes subalternas dissessem: “Estamos
aqui. Até agora estávamos na cozinha, mas vamos abrir as portas e entrar na sala de jantar”. Isso se
chama democracia, industrialização, modernização – mas num outro sentido. O discurso que acompanha
esse empuxe reformista radical é o discurso que eu enumerei aqui nas três vertentes, as duas do ISEB e a
da AP. Aquela tradição liberal imperial voltou num momento de crise do desenvolvimentismo
conservador nos anos 1990, está aí e devastou o país em dez anos. Mas também se esgotou; por isso é
que perdeu as últimas eleições [as presidenciais de 2002]. O que se vê agora é que está de volta aquela
tradição radical reformista, decapitada em 1964.
A mesma tradição está de volta, mas não se trata simplesmente de um predomínio das classes
subalternas; é uma incorporação em que se muda o condutor do processo. Isso é democracia. Para mim,
portanto, é algo muito especial fazer a evocação do Vaz nesse momento. Não sabemos no que vai dar. E
é claro que eu olho tudo isso como marxista, embora eu não esteja aqui para falar do meu clube. Eu
estou aqui para falar do meu primeiro clube e tenho uma dívida de gratidão eterna com o Padre Vaz,
como pessoa, pelo que ele foi e pelo que fez na minha juventude, que, em certo sentido, politicamente,
foi o momento mais feliz da minha vida.
Eu me pergunto, então, o que seria esse novo discurso filosófico completo que pudesse apresentar
categorialmente o processo cujas comportas estão sendo abertas no Brasil. O que uma pessoa que se
inspira no pensamento do Padre Vaz poderia pensar e fazer agora? Eu falo como marxista, embora
metade dos marxistas esteja cega.
A questão é: como uma filosofia da história poderia se formular agora no Brasil? Enquanto marxista,
não é isso que eu penso, mas eu acho que a contribuição que um discurso inspirado na obra do Pe. Vaz
para pensar e construir o momento atual do Brasil (e que seria muitíssimo bem-vindo) seria uma teoria
da luta pelo reconhecimento, isto é, da regulação moral dos conflitos sociais. Essa teoria vai renascer
também dos movimentos sociais – os movimentos sociais estão encharcados de filosofias da história
implícitas, a maioria com inspiração místico-profética. Queiramos ou não, isso é um fato. Se a gente
pensar, não é isso mesmo que está ocorrendo? O que as pessoas esperam do líder popular que foi eleito?
Solidariedade, justiça, igualdade, fim da humilhação, fim do desprezo. O que é isso senão a ideia de
formação do sujeito por meio da ideia de reconhecimento?
Essa terceira abordagem está aí, implicitamente, em tudo o que está acontecendo. Ela será
moderníssima, porque o seu paradigma é o da comunicação, não mais o da produção. A gente pode ver
que o presidente eleito não fala de economia; ele deslocou o debate essa semana. Ele não fica falando de
mercado, de presidente do Banco Central e coisas assim. O problema agora é a fome. Deslocou-se o
foco. Alguma coisa nova está acontecendo. Mas a referência nacional do tipo de uma filosofia
nacionalista pode voltar também. Por quê? Porque, com o fiasco e a tragédia social que foi a hegemonia
daquela tendência liberal-imperial, a reconstrução nacional que se avizinha vai suscitar um novo tipo de
referência, de pensamento sobre o Brasil. Mas também voltam aquelas três vertentes radicais. A primeira
tarefa será reverenciar os clássicos da tradição crítica brasileira, mas passar adiante, porque o Brasil, de
tragédia em tragédia, de década perdida em década perdida, é um outro país agora, e precisa ser
reconstruído. Isso vai suscitar, novamente, um ciclo de interpretações sobre o Brasil.
É, portanto, nessas circunstâncias, nessa convergência histórica sobre a qual eu nunca pensei antes,
que eu evoco com enorme prazer e muita saudade o Padre Vaz.
A forma oral do depoimento foi mantida. O depoimento sobre Padre Vaz pode ser lido na íntegra
em:
http://bit.ly/2epqSXB
ensaio

Política de cartoon
EDUARDO SOCHA

Às vezes temos a impressão de que personagens políticos como Donald Trump e João Doria Júnior
saíram do universo dos desenhos animados. O topete bem diagramado de um, o cashmere sobre os
ombros de outro, atuando como marcadores fálicos e cool da distinta classe econômica, parecem
atualizações do pince-nez do Tio Patinhas. Ambos glorificam suas fortunas, suas frases são pontuadas
por interjeições desmedidas – it’s gonna be huge! repete um, bárbaro, o máximo!, diz a versão
paulistana. A caricatura precede a personalidade política, não o inverso. Trata-se da caricatura do bom
empresário e comunicador televisivo que resolve botar a casa em ordem e a quem se admite alguma
selvageria, alguma extravagância “politicamente incorreta”, já que, na liturgia neoliberal, a imagem de
gestor ousado, dinâmico e bem-sucedido comporta excentricidades. Um eleitor da zona leste de São
Paulo votou em Doria porque “é novo, é um Russomano aprimorado, com requinte”. Antes, votava no
PT.
Como se sabe, a novidade política dos gestores-celebridades consiste no fato de que a publicidade
eleitoral de suas imagens fundamenta-se no rechaço à política partidária (“não sou político, sou
administrador”). Disseminado com todas as letras do marketing político, o desprezo pela política
institucional – de resto, um desprezo historicamente popular e intensificado pelos escândalos de rotina –
esteve no centro de suas campanhas, forjando a aberração de políticos que não são mais políticos, ou
melhor, políticos que politicamente recusam sua imagem de políticos. A própria campanha de Trump
desde o início o apresentou orgulhosamente como “uma ameaça real ao establishment político”. Como
prevalece a imagem construída na campanha, pouco importa se tais empresários, como é o caso de
Doria, já tivessem ocupado cargos públicos anteriores.
A fórmula do gestor-celebridade com recado antipolítico parece antiga, mas não tanto. Lembremos
que celebridades como Ronald Reagan ou Arnold Schwarzenegger, e mesmo o legislador Tiririca, nunca
recusaram o qualificativo “político”. Nem que fosse pela graça da derrisão, o título caía bem. Além
disso, celebridades que até hoje ingressam por atacado no mercado eleitoral dificilmente são vendidas
com o selo de “bom gestor”. Os atuais “bons gestores”, por sua vez, não costumam proceder das fileiras
do espetáculo. O médico e bom samaritano Geraldo Alckmin, por exemplo, hoje alçado a paradigma de
“gestor eficiente” na administração pública (com o perdão da piada), não era conhecido quando
arregaçou as mangas de político.
A fusão gestor-celebridade realmente traz uma novidade. A fórmula usada por Trump e Doria
confirmaria não apenas a tendência de esgotamento do modelo tradicional de atores eleitorais, com suas
mensagens bem-intencionadas porém desinteressantes sob a luz do espetáculo. Mais do que isso,
mostraria que o mito da eficácia empresarial, agora em aliança com o show – o talk-show de Doria
chamava-se Show business, um pleonasmo para dar o que falar –, esse mito finalmente encontrou lugar
na política institucional ao se posicionar como a própria negação desta. Os empresários da eficácia
entram para a política recusando-a. Para isso, exaltam suas idiossincrasias e enfatizam os traços caricatos
do management privado. O aspecto quase surreal, semelhante a um cartoon, desses atores políticos não é
acidental, mas constitui a essência do novo fenômeno.
II
No pavilhão austríaco da Bienal de Veneza de 2013, havia apenas uma obra de arte: Imitação da vida, do
artista visual Mathias Poledna. Passando pelo cubo branco do hall principal, entrava-se na sala onde era
projetado continuamente um desenho animado em 35 mm. O vocabulário visual e sonoro da animação
era prontamente reconhecível. Sua linguagem reproduzia a mesma atmosfera dos filmes da Disney dos
anos 1930 e início dos 1940, de longa-metragens como Branca de neve, Pinóquio, Dumbo. À maneira de
um pastiche, a obra de Poledna utilizava as mesmas texturas e palheta de cores, os mesmos ritmos e
movimentos daqueles produtos que impulsionaram a cultura de massas e que se transformaram em parte
constitutiva do imaginário do século 20. Nada de particularmente interessante acontecia no cartoon, que
durava apenas três minutos. Trazia como protagonista um melancólico e desconhecido burro, vestido de
marinheiro como Pato Donald, perdido no meio de uma floresta, dançando e cantando I’ve Got a Feeling
You’re Fooling Me, um hit dos musicais dos anos 1930. Embora o estilo remetesse ao universo da
Disney do período, o personagem e o storyboard do desenho foram elaborados por Poledna em 2013.
Era, portanto, uma obra “autêntica”. Mas sua aparência ingênua, isenta de qualquer nostalgia, não
provocava estranhamento algum no espectador. Era só um desenho animado qualquer, que poderia ter
sido criado décadas atrás. Ao sair da sala de projeção, um cartaz mostrava os créditos da obra.
Descobria-se que, para a realização dos três minutos de Imitação da vida, tinham sido utilizadas técnicas
de animação à mão dos anos 1930 (hoje superadas pela computação gráfica comercial), mobilizando
recursos e uma equipe de produção consideráveis. O processo estava longe de ser artesanal. Ao lado do
cartaz, eram exibidos layouts, esboços feitos à mão, telas de fundo pintadas a guache, células de
animação que fizeram parte do filme.
O efeito de estranhamento não parecia estar no cartoon propriamente, mas em seu lugar de exibição.
A animação era o único representante do pavilhão austríaco de uma das exposições mais significativas
da arte contemporânea. Estava ocupando, por assim dizer, um espaço no qual não seria autorizado a
entrar: o domínio sagrado das artes visuais, reservado ao questionamento de nossos esquemas
perceptivos, templo da “cultura de vanguarda”. Pela sua simplicidade inexpressiva e deslocada, o
trabalho na Bienal parecia então objetivar o tipo de deslocamento intencionado pelos ready-mades de
Marcel Duchamp ou pelas Brillo Boxes de Andy Warhol. A animação seria um ready-made feito de
materiais visuais já desgastados da indústria de entretenimento, uma colagem baseada em referências
sedimentadas de uma linguagem-mercadoria específica da cultura de massas, à qual seria atribuída a
dignidade de “obra de arte”. Como o urinol de porcelana ou as caixas de sabão em pó colocadas em
museu, o desenho animado de Poledna saía da condição imediata de mercadoria, para, no contexto da
Bienal, se integrar ao circuito da dita “arte séria”, “autêntica”. Contestava, assim, uma noção resiliente
de “arte séria”. Tratava-sede uma obra de arte que artisticamente recusava a imagem de obra de arte.
Até aí, sem muita novidade. Afinal, esse tipo de procedimento vanguardista deixou de causar
estranhamento, pelo menos desde que a própria arte institucional passou a assimilar o princípio do
choque e da denegação de sentido como um de seus procedimentos rotineiros. O que antes era escárnio,
hoje é tratado com seriedade no mundo institucional das galerias e de exposições internacionais como a
Bienal. Entretanto, aquilo que Poledna, um artista historicamente avisado, parecia ressaltar era o vínculo
estrutural entre o imaginário dos desenhos animados da Disney e a organização industrial correspondente
para sua realização. Era na complexa divisão do trabalho, estampada detalhadamente nos créditos, que a
obra de Poledna adquiria seu efeito. A racionalização taylorista da força de trabalho, os altos custos
envolvidos na produção de uma simples animação de três minutos, desenhada praticamente à mão, eram
tão surpreendentes quanto o resultado e o imaginário que dele derivava.
III
Estamos tão próximos da iconografia dessas primeiras animações da Disney que não somos capazes de
distinguir sua semântica delirante. Não intuímos tão facilmente, por exemplo, que neles a vida é criada a
partir de um esquema fixo e repetitivo. Tudo parece possível, até o inanimado adquire vida: com efeito,
em um trabalho pioneiro dos estúdios Disney, Skeleton Dance (1929), os mortos ganhavam vida,
esqueletos saíam do túmulo e dançavam. Sua gestualidade, entretanto, era maquinal, simétrica, como se
fossem as tillergirls da mesma época, aquelas dançarinas em perfil, lado a lado, cuja coreografia
sincronizada assemelhava-se à marcha militar. Nos desenhos, os fenômenos naturais perdem sua
substância, regras são subvertidas, mas apenas para que criaturas, plantas, personagens, objetos
inanimados se coordenem através da imposição racionalizada de outra ordem. A lei da gravidade pode
não existir, árvores e animais adotam expressões e feições humanoides, as pernas do personagem podem
se alongar exageradamente ao tentar fugir de pânico. Mas essa vida recriada deve obedecer a uma
mecanização precisa; a fantasia permanece subordinada a um esquema fixo. Nesse sentido, apesar da
aparente irrealidade e da infinita plasticidade, os desenhos animados constituem um prolongamento do
mundo do trabalho. Representam, em sua inocência programada, não só a mecanização da vida reduzida
à ordem do trabalho, mas também a naturalização do sofrimento social, convertido em pretexto para o
riso: “assim como o Pato Donald nos cartoons, assim também os desgraçados na vida real recebem a sua
sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem”, diziam Adorno e
Horkheimer nos anos 1940. Mesmo o antropomorfismo de animais nos desenhos deve seguir um padrão
maquinal. No artifício de seus movimentos, seja do cão Pateta, do Pato Donald ou do Panda Po, o
elemento propriamente humano se volatiza. Geralmente prevalece nesses personagens humanoides
apenas uma característica humana. Toda sua corporeidade e dinâmica se reduz à caricatura desse traço
único. Personagens de desenhos animados não são personalidades, mas caricaturas de um traço já
destituído de qualquer organicidade.
IV
Curiosamente, encontramos no universo das animações algo muito semelhante ao que ocorre no universo
eleitoral. Todo personagem político sabe que deve lidar com uma contradição a fim de fortalecer sua
imagem. Por um lado, deve articular um alto grau de generalidade, promover certa despersonalização
para se colocar como o representante mais conveniente a um segmento do eleitorado. Mas, se sua figura
for totalmente capturada pela generalidade, sua imagem perde força. É vista como “imagem política”,
carregada de artificialismo hipócrita, tornando-se eleitoralmente ineficaz. O populismo procura resolver
a equação, conciliando a universalidade da abstração representativa com a particularidade do elemento
familiar, seja a do pai, a da mãe, do parente próximo. No populismo, o carisma atenua a tensão entre
despersonalização pública e familiaridade privada. A fórmula às vezes dá certo; ultimamente, não muito.
De todo modo, para resolver a contradição, toda figura política requer um traço que facilite o trânsito de
sua imagem entre o espaço público e o privado; um traço que estabeleça a identificação rápida com o
eleitor.
Como na produção de simples animações, uma infraestrutura complexa, envolvendo uma rígida
divisão do trabalho, é imprescindível para promover o show eleitoral. A comunicação política adota o
mesmo princípio de sedução dos desenhos: a ênfase na caricatura. Para o eleitor que, guiado pela
brutalidade da doutrina neoliberal, deve rechaçar toda iniciativa de interesse público por considerá-la
ineficaz e corrupta de antemão, que deve exercer a gestão privadade si mesmo, independentemente de
sua posição na sociedade, haveria caricatura mais convincente, mais sedutora, do que o próprio show
business encarnado, espetacularizado, “aprimorado, com requinte”? Em São Paulo, os eleitores
decidiram escolher não um “bom prefeito”, mas um “bom gestor”. Por mais que o aparato publicitário
tenha insinuado a equivalência entre os termos, o abismo conceitual que os distancia é grande demais
para ser ignorado. Algo da mesma natureza vale para a bufonaria de Trump.
Não chega a surpreender que, nessa nova antropologia do gestor, sua expressão mais crua seja a do
manager de topete e cashmere que promete, sem pudores, cortar impostos e reduzir a máquina pública,
que promete privatizar estádios, mercados, ciclovias, faixas de ônibus (!), o que vier pela frente, com ou
sem “parcerias público-privadas”. Antes, o traço caricato na política dependia do suporte de uma
personalidade. Hoje, sobra apenas um significante excêntrico do manager. Repúdio à iniciativa pública e
louvor à “gestão”: esse é o preceito da racionalidade que você, sob a tecnocracia do neoliberalismo, deve
aceitar e aprender – seja por meio do guia de lifestyle da revista GQ, seja por meio da palavra revelada
no Jornal Nacional ou no culto da igreja em São Miguel Paulista. A fórmula desumana e caricata dos
empresários-celebridades na política tem tudo para ser, como dizem, “grande”, “o máximo”. O lado bom
é que ainda podemos desligar a TV e deixar de imitar a vida.
livros
Retorno a Marx
ROGÉRIO BETTONI

Conhecido em duas áreas aparentemente distintas, a geografia urbana e o pensamento marxista, David
Harvey lançou pela Boitempo Editorial, no final de setembro, a obra 17 contradições e o fim do
capitalismo – segundo ele, o livro mais perigoso que já escreveu. “Espero ter mostrado por que a única
posição política racional na nossa época é a posição anticapitalista e esboçado em termos bem gerais o
que implicaria essa política”, afirma, em entrevista por e-mail à CULT.
Talvez a obra seja a mais madura de Harvey, aquela em que se observa a excelência de um teórico
envolvido há muito tempo com uma crítica que não se esgota, mas que se renova a cada dilema
enfrentado na contemporaneidade desde Karl Marx: as crises do sistema capitalista. Para se renovar, no
entanto, olhar para o problema partindo de um ou outro ponto de vista não é o bastante: é preciso
também olhar para trás e voltar a Marx.
Em primeiro lugar: por que precisamos voltar a Marx?
A resposta mais simples seria: por que não? A economia dominante claramente fracassou no projeto de
entender não só a crise de 2007-08, mas também as muitas crises que a antecederam, como as que
atingiram o Sudeste Asiático e a Rússia em 1997-98, e a América Latina em 2000-01. Também
fracassou por não dar explicações convincentes sobre o caráter volátil e as mudanças recentes nas
fortunas econômicas no mundo todo, e ainda sobre como a desigualdade social disparou desde 2008-09.
Além disso, a aplicação de certas ortodoxias econômicas, como a austeridade neoliberal, descaradamente
fracassou em seu projeto de estabilizar o bem-estar econômico para a massa da população mundial.
Países que estavam indo bem de repente afundaram em recessões – e vocês aí, no Brasil, sabem do que
estou falando. Pensando nisso tudo, nós precisamos explorar quadros alternativos do pensamento
econômico. Marx é o principal teórico da formação de crises dentro do capitalismo. Por isso precisamos
estudá-lo com cuidado para descobrir o que ele pode nos ensinar.
Por que o senhor considera 17 contradições e o fim do capitalismo o livro mais perigoso que já
escreveu?
Eu diria que o contexto de desintegração econômica e política é parcialmente responsável pelo fato de
não se acreditar mais na opinião geral. Nesse livro, espero ter mostrado não só que o que estamos
vivendo pode ser atribuído às contradições internas do capital, mas também que a única saída possível é
contestar todo o sistema capitalista enquanto meio de vida. Espero ter mostrado por que a única posição
política racional na nossa época é a posição anticapitalista e esboçado em termos bem gerais o que
implicaria essa política.
Em 17 contradições, o senhor fala sobre algumas ocasiões em que os Estados Unidos apoiaram
golpes contra líderes eleitos democraticamente em diversos momentos históricos, como na
Guatemala, no Chile e na Venezuela. Gostaria que comentasse sobre o impeachment de Dilma
Rousseff e sobre qual poderia ter sido o papel de outros países nesse processo. O senhor acredita
que pedir por novas eleições diretas seria uma saída neste momento?
Como quem vê de fora, reluto muito em comentar detalhadamente o que acontece em países grandes e
complexos como o Brasil, e reluto ainda mais em dar qualquer conselho direto sobre como a esquerda
deveria reagir a problemas específicos. Mas a política antineoliberalista que tem se espalhado na
América Latina nos últimos 12 anos ou mais sempre ameaçou se desenvolver em uma política
anticapitalista, e estou certo de que os detentores do poder nos Estados Unidos, bem como nas
instituições internacionais apoiadas pelos principais interesses da Europa, foram bem eficazes em usar
toda a influência que tinham para reprimir os movimentos políticos de esquerda e para fomentar os
movimentos de direita. Esse esforço se complicou ainda mais com o aumento da influência da China na
região – no Equador, por exemplo, ela domina o investimento estrangeiro. Mas o boom da China perdeu
potência nos últimos três anos, diminuindo a demanda de matéria-prima, o que provocou um impacto
bem sério em toda a América Latina, inclusive no Brasil. A culpa pelas dificuldades econômicas, como
costuma acontecer, é sempre colocada no governo daquele momento, e essas guinadas para a direita, na
Argentina e no Brasil, e que vemos também em outros países com governos de esquerda menos
influentes, mostram que é possível um retorno ao neoliberalismo nu e cru. Não acho que a esquerda
tenha acabado por causa disso, acredito que possa reaver o espaço perdido se ela se organizar e
reorganizar politicamente. E acho que a pressa de Mauricio Macri e até de Michel Temer em tentar
mudar as coisas mostra que eles sabem que não vão ficar no poder durante muito tempo, então parecem
determinados a provocar o máximo de prejuízos que puderem às causas populares e, ao mesmo tempo,
entregar o máximo que podem às classes altas e às corporações internacionais.
O senhor acha que estamos vivendo, especialmente no Brasil, uma crise política, econômica,
democrática, ou todas ao mesmo tempo?
Acho que as três formas de crise estão acontecendo juntas e se influenciando mutuamente. Também diria
que as coisas estão um tanto malucas em quase todos os lugares; vejamos o que está acontecendo nos
Estados Unidos agora! Estamos vendo uma crise econômica estrondosa quase no mundo todo, mas com
alguns pontos críticos, como o Brasil nesse momento. Os déficits democráticos estão em todos os
lugares, há revoltas populares em todos os lugares, muitas delas pendendo na direção de um
nacionalismo populista de direita, e a confiança nas instituições políticas sofre, em todos os lugares, a
maior baixa que já vimos. Mas também acredito que o momento seja uma oportunidade para a esquerda,
se ela conseguir desenvolver uma política solidária. Vejo uma política assim começando a surgir em
diferentes partes do mundo, como no sul da Europa, e em alguns casos vejo se articular uma política que
vai além da austeridade antineoliberalista e começa a envolver uma política anticapitalista em termos
mais gerais. É dessa mudança que tento falar.
Em 17 contradições o senhor fala sobre os problemas da educação, que está sendo transformada
em um “grande negócio” privado, cujo resultado é uma força de trabalho afogada em dívidas de
créditos educativos e financiamento estudantil. Além de vermos o mesmo problema no Brasil,
passamos por uma tentativa de mudança na estrutura da educação como um todo, decisão que
parece ser claramente vantajosa para as escolas particulares e para a classe dominante. Quais
seriam as soluções políticas ideais para uma boa educação?
A reestruturação corporativista e neoliberal da educação tem acontecido com bastante rapidez no mundo
todo, e ela visivelmente atende aos interesses privados, tanto em forma quanto em conteúdo. Se a
esquerda não tiver poder político para reverter essa mudança, terá de desenvolver estratégias para
subvertê-la. Os alunos aprendem tanto com outros alunos quanto com o ensino formal e com critérios de
qualificação que muitas vezes não fazem o menor sentido. A organização de grupos de estudo, grupos de
leitura e grupos de ação entre os estudantes é constante, e acredito que essas reformas vão enfatizar
muito mais essas formas de subversão, gerando um interesse maior nesse tipo de ação. Pode ser muito
estimulante participar desses grupos, e os movimentos historicamente estudantis, como nos anos 1960,
por exemplo, acabam se tornando coerentes e fortes o suficiente para se transformar em uma força de
liderança política.
No ano passado, vimos algumas fotografias do senhor apoiando os estudantes que ocuparam
diversas escolas no Brasil. Poderia falar um pouco sobre o papel das ocupações como reivindicação
dos direitos do povo?
Uma das táticas de subversão, principalmente quando um movimento ganha força suficiente, é a
ocupação, seja de uma fábrica, das ruas, de uma escola, da universidade, de instituições do governo, etc.
Há muita atuação política sendo conduzida pelas redes sociais, porém, quando nos reunimos fisicamente
num espaço específico, essa presença do movimento político é consolidada. Mas é preciso destacar o
seguinte: é fundamental que o movimento garanta algum nível de apoio popular para a ocupação, bem
como uma declaração bem elaborada de seus propósitos e objetivos. Quanto maior o apoio popular, mais
chances terá a ocupação de realizar o que reivindica.
No livro, o senhor também diz que há diferentes movimentos e resistências sociais surgindo no
quadro do desenvolvimento geográfico desigual do capital e cita algumas cidades, incluindo São
Paulo, afirmando que todos esses movimentos visam a um futuro anticapitalista. Se o capitalismo
não é mais a resposta, onde podemos encontrar solução e por que o senhor acha que todos esses
movimentos deveriam se juntar?
Acho que, se eu tivesse a resposta completa para essa pergunta, não estaria conversando com você sobre
o assunto. As questões são fundamentais, mas não sei quais são as respostas. Precisamos encontrar –
talvez “tatear às cegas” seja uma boa expressão para isso – um caminho para agir dentro de um ambiente
incerto e imprevisível. Alguns dos melhores aprendizados vêm da ação, e alguns dos melhores ativismos
vêm do que aprendemos com outros ativismos, com a história, com a experiência, e, é claro, com os
livros. Tenho aprendido uma coisa muito importante com o capital, que é ser flexível. Essa é uma das
vantagens intelectuais que o capital cultiva coletivamente com grande efeito. A esquerda precisa
aprender isso, em vez de ficar presa ao dogma ou emperrada pela crítica contra o “oportunismo”,
acusação clássica contra outras pessoas de esquerda. Não vamos chegar a lugar nenhum na luta
anticapitalista se não encontrarmos maneiras de sermos fluidos, flexíveis, movediços, ágeis e adaptáveis.
O dogma e a rigidez são um obstáculo para tudo isso.
Slavoj Žižek disse recentemente que um dos passos para solucionar o problema atual dos
refugiados seria uma mudança econômica que abolisse as condições sociais que os criam, e que o
grande causador dos refugiados seria o capitalismo global. O senhor acredita que devemos
reinventar o comunismo para resolver esse tipo de problema?
Dando continuidade à última resposta, a reinvenção da ideia de comunismo é muito importante na nossa
época. Eu uso o termo anticapitalismo em parte para preparar o terreno para o debate sobre o que poderia
significar o comunismo, mas esse debate não pode partir de uma posição doutrinária específica. Muito
me agrada a abordagem de Marx sobre o tema. Ele não gosta de falar em termos de utopia, mas define o
que poderíamos chamar de “futuro anterior”do comunismo, as condições que seriam necessárias para
construir uma sociedade comunista por vir. Em O capital, define essa ideia da seguinte maneira: “Por
fim, imaginemos uma associação de homens livres, que trabalham com meios de produção coletivos e
que conscientemente despendem suas forças de trabalho individuais como uma única força social de
trabalho”. Nessa circunstância de não alienação, “as relações sociais dos homens com seus trabalhos e
seus produtos de trabalho permanecem aqui transparentemente simples, tanto na produção quanto na
distribuição”.
Mas, no meio de tudo isso que falamos até agora, existe a possibilidade de Trump ser eleito nos
Estados Unidos. Quando vejo seus argumentos, penso que estamos testemunhando o crescimento
de uma forma fascista de pensar – inclusive no Brasil, onde as pessoas começam a perder direitos
conquistados numa luta de décadas. A esquerda não soube lidar com o poder que teve nas mãos?
A esquerda de fato tem uma longa história de se atrapalhar com as próprias oportunidades quando chega
perto do poder, e existem alguns exemplos em que a frustração com a inércia e o fracasso da esquerda
acabou levando a algo como o fascismo. A esquerda não tem sido ágil o suficiente. Mussolini, por
exemplo, começou como socialista, mas se viu frustrado com a inação. Obama chegou ao poder
prometendo uma mudança real, mas as pessoas nos Estados Unidos estão frustradas depois de oito anos
sem ver mudanças positivas reais em suas vidas, e acredito que o fascínio popular por Trump como
homem de ação, e que se danem o que os outros digam, tem algo a ver com o legado de Obama. O ponto
fraco de Hillary é ela se posicionar como candidata da continuidade, e isso não atrai mais ninguém nesse
momento, nem a mim. Há muitas razões mais profundas que levaram Obama a não cumprir e não poder
cumprir suas promessas, mas essas razões se dão num nível de pensamento com o qual a maioria das
pessoas não está preparada para se envolver. Podemos fazer um paralelo disso com o Brasil? Imagino
que sim.
Em 17 contradições o senhor cita Henri Lefebvre e o modo como o governo e o Estado intensificam
seus poderes impondo práticas de planejamento urbano que geram uma paisagem geográfica sem
alma, racionalizada, contra a qual as pessoas se revoltam periodicamente. O grafite, a arte de rua
e a pichação estariam incluídas nessas revoltas? Essas ações são uma forma de a juventude
reivindicar seu “direito à cidade”?
Movimentos desse tipo desafiam as configurações atuais do poder político e simbolizam o objetivo mais
amplo de retirar a cidade da mão das classes dominantes e das forças da lei e da ordem, deslocando esses
direitos para a mão das pessoas. Mas esses começos simbólicos, em algum momento, têm de ser
consolidados politicamente em movimentos de massa que enfrentem o fracasso do capital em
proporcionar uma vida decente em um ambiente com condições de vida decentes para todas as pessoas.
Vejo esses movimentos e ativismos que você cita como precursores de algo maior, como os tremores que
antecedem um terremoto que pode ou não se materializar. Também acho que a questão de tomar para si
o controle dos espaços na cidade é fundamental para os movimentos revolucionários, e por isso aplaudo
ações desse tipo porque sinalizam as condições de possibilidade de algo diferente.
livros

Uma antropologia para além do humano


RODRIGO PETRONIO

Em linhas gerais, duas matrizes da filosofia confluem para o pensamento de Peter Sloterdijk: a
fenomenologia e a ontologia. Dentro de uma tradição que vai de Hegel a Husserl e deste a Heidegger,
Sloterdijk articula fenômeno e ser, manifestação e realidade, emergência e devir. A partir dessa tensão
entre fenômeno e ser, entre ser e forma, e apoiando-se em autores como Oswald Spengler, Jakob von
Uexküll, Gaston Bachelard, Niklas Luhmann, Francisco Varela e Humberto Maturana, Sloterdijk
sintetiza algumas vertentes importantes do pensamento do século 20, tais como a morfologia, a teoria
dos sistemas e a metabiologia. Essas linhas de força confluem para um breve livro intitulado No mesmo
barco, de 1995, obra que estabiliza o conceito de hiperpolítica e que pode ser lida como um plano piloto
de seu opus magnum: a trilogia Esferas, iniciada em 1998. Quase vinte anos depois, a obra começa a ser
publicada no Brasil: o primeiro volume, Bolhas, foi lançado no final de setembro pela Estação
Liberdade. Além do restante da trilogia Esferas, a editora também planeja publicar, no próximo ano,
outros dois títulos do filósofo alemão: Você precisa mudar sua vida, de 2009, e Os terríveis filhos dos
novos tempos, de 2014.
Todos os fenômenos vivos e não vivos, humanos, transumanos e meta-humanos, orgânicos e
inorgânicos podem ser compreendidos a partir de suas manifestações formais. O método descritivo, a
suspensão [epochē] e as intuições eidéticas, essenciais à fenomenologia, possibilitam esse acesso
transversal às formas da vida e à vida das formas, para além do bem e do mal, que regem o regime
intramundano dos entes. Essa perspectiva possibilita captar processos de longa duração. E aqui se
encontra uma das originalidades da obra de Sloterdijk: a exploração da zona fronteiriça entre filosofia e
antropologia.
A partir dessa fronteira, torna-se possível a criação de grandes narrativas sobre a domesticação dos
seres. Ademais, Sloterdijk descreve o horizonte amplo da constituição das tecnologias conceituais
empregadas pelo homo sapiens nessa odisseia da antropotecnia, da qual a filosofia seria apenas uma
ramificação. Esse aspecto de seu pensamento pode ser identificado em obras como Regras para o
parque humano, de 1999, A domesticação do ser, de 1998, e Você precisa mudar sua vida, de 2009. A
trilogia Esferas é a consumação desse mapeamento da grande narrativa das relações entre vida e forma,
das domesticações e das imunizações do sistema-vida.
EXISTÊNCIA E COEXISTÊNCIA
Qual a hipótese da teoria das esferas? O acoplamento estrutural sistema-meio, desenvolvido pela teoria
dos sistemas, torna-se na obra de Sloterdijk uma díade ontológica interior-exterior, ou seja, a base de
todos os níveis atuais ou virtuais de relacionalidade dos seres. A busca da simplicidade foi o sonho
fracassado da metafísica. Todos os seres orgânicos e inorgânicos coexistem, em ininterruptas e novas
composições. E todas as substâncias do mundo são compostas e definidas apenas a partir dos modos e
das atualizações de suas composições.
Apagam-se as fronteiras entre natureza e técnica, entre substância e acidente, entre propriedades e
atributos, entre constituído e constituinte, entre conteúdo e continente. Não existem seres isolados. Ser é
sempre sem-com. Ser é sempre relação. Ser um é sempre ser-dois. O mundo é a constante emergência de
novas composições, hibridismos, multiplicidades. Como diz Sloterdijk, não é a existência que precede a
essência, mas a coexistência é que precede a existência. A partir desse ponto de vista, duas categorias
sobressaem: forma e relação. Essa relacionalidade radical funda um projeto estruturalmente
interdisciplinar. Funda-se aqui também uma morfologia, uma filosofia da forma compreendida em um
campo expandido. Todos os fenômenos são fenômenos de intervalo e de emergência: fenômenos
relacionais. E a partir desse ser-entre e dessa ontologia dos intervalos, fruto também de um diálogo com
o pensamento de Jacques Derrida, podemos compreender todos os demais conceitos agenciados por
Sloterdijk ao longo de sua obra.
Desse modo, há quatro aspectos cardeais para compreendermos a totalidade de sua obra e,
especialmente, a trilogia Esferas: Nietzsche, Heidegger, a antropologia e a psicanálise. A partir de uma
articulação desses campos de conhecimento e desses autores, Sloterdijk promove novos deslocamentos
no xadrez do pensamento. Podemos dizer que, a partir de cada um desses vetores, sua contribuição seja
filosoficamente original em quatro aspectos, e o que os une é a centralidade dessa ontologia relacional e
um amplo e radical projeto anti-humanista, espinha dorsal de todo o pensamento de Sloterdijk, cujo
objetivo é reformular as antigas categorias por meio das quais o humano fora definido ao longo de
séculos.
NIETZSCHE E HEIDEGGER
Um primeiro aspecto dessa travessia anti-humanista é o papel desempenhado por Nietzsche. Nietzsche é
um autor que percorre toda a obra de Sloterdijk de modo difuso. Ele chegou a dedicar ao autor de A gaia
ciência duas monografias: O pensador no palco: o materialismo de Nietzsche, de 1986, e O quinto
evangelho, de 2000. Inspirado na antropologia de Nietzsche, Sloterdijk retira a centralidade da filosofia.
Passa a pensá-la como resultado de um longo processo de domesticação e de sedentarismo dos conceitos.
A filosofia não seria um modo privilegiado de compreender o humano. Ela seria apenas uma das tantas
tecnologias de domesticação desenvolvida pelo antropos, cuja finalidade é incorporar o não próprio ao
próprio, o não sentido ao sentido, o puro exterior ao puro interior. Em outras palavras, criar sistemas de
imunidade.
Esse processo de imunização ocorre em um primeiro momento com a criação de tecnologias de
sobrevivência e, em um segundo momento, como uma força de transvaloração e de superação do
ressentimento. Nas palavras de Sloterdijk: a passagem da inibição à desinibição. Nisso consiste a
odisseia antropoesferológica da espécie. As esferas narram essa jornada, em um continuum que descreve
sistematicamente as diversas concepções que o ser humano tem de si mesmo. As esferas não se ocupam
apenas da emergência do sapiens na cena mundana em termos biológicos. Elas consistem em uma
incessante autocompreensão e autoapreensão da estrutura ontológica paradoxal do antropos. Essa
perspectiva para além do bem e do mal também lhe possibilita descrever todos os fenômenos como
fenômenos de inibição e desinibição, para além da transformação do ressentimento em moralidade, da
moralidade em valor e do valor em dever. O devir do sapiens se encontra em plena expansão, e a
antropotécnica recobre vastas eras da experiência e do empreendimento humanos, um horizonte sempre
em transformação.
O segundo aspecto diz respeito a Heidegger, um autor nuclear justamente por ter possibilitado essa
renovação da questão do ser a partir da fenomenologia de Husserl. Trata-se de um autor presente em
toda a obra de Sloterdijk e ao qual este dedicou um ciclo de conferências e ensaios, posteriormente
publicado no livro Sem salvação: os vestígios de Heidegger, de 2001. Sloterdijk altera alguns conceitos
nucleares do pensador de Freiburg e os extrapola, desdobrando-os por sua vez em uma antropologia.
Como se sabe, Heidegger havia postulado o ser como condição de uma existência fora de qualquer
substância: existir é ek-sistere. Existir é manter-se exilado de toda permanência. Estamos desinstalados
de toda predeterminação. Fomos jogados para fora de quaisquer entificações. Somos res derelicta,
lançados nas praias da existência, como pura finitude e como ser para a morte [Sein zum Tod]. O
humano não é nem objeto [objectum] nem sujeito [subjectum]. É projectum: projeto e projétil, ente
arremessado que jaz fora do mundo, exilado do ser e excêntrico às determinações intramundanas. Por
isso, para Heidegger, o ser-aí [Dasein] é a condição de possibilidade do mundo e a estrutura primordial
da facticidade. Desde que haja uma distinção entre o ente humano e os demais seres vivos, à medida que
o ente humano é o único ente capaz de desvelar seu próprio ser.
Relendo Heidegger à luz da topologia e da metabiologia de Jakob von Uexküll que o mesmo
Heidegger denegara, Sloterdijk desloca o acento heideggeriano do ser-aí [Dasein] para o ser-com
[Mitsein], do mundo [Welt] para o meio-circundante [Umwelt]. A partir dessa ontologia diádica, a
relacionalidade humana de Heidegger adquire o estatuto de relacionalidade das diversas composições
humanas, meta-humanas ou transumanas do ser. E essa região de emergência passa a ser a estrutura
fundamental dos seres, humanos e não humanos. A humanidade do ser humano consistiria justamente
nos infinitos media diádicos imunológicos que o antropos cria para conseguir se preservar de maneira
eficaz da indiferença da natureza em relação à espécie. A humanidade do ser humano residiria
justamente na sua capacidade de criar sistemas imunologicamente eficientes contra o atravessamento das
forças extra-humanas. Esses sistemas de imunização são as esferas.
A domesticação dessas forças extra-humanas, a incorporação do exterior ao interior, descreve um
princípio vivo e não apenas humano. Uma metabiologia e não apenas uma antropologia. Todos os seres
vivos são vivos à medida que conseguem realizar essa homeostase interior-exterior. A morfologia dessa
sucessão de figuras de acoplamento dual dentro-fora assume três dimensões, concernentes aos três
volumes do projeto Esferas. O primeiro aborda as bolhas, relações fortes de intimização entre os seres.
Descreve a microesferologia. O segundo se concentra nos globos, translações dessa intensidade
ontológica dos processos primários para domínios de vastas extensões quantitativas, como reinos e
religiões evangelizadoras. São também chamados de ontologias imperiais e recobrem o campo da
macroesferologia. E o terceiro consiste na morfologia das espumas. Estas, por sua vez, representam o
colapso da imunologia. São as pluriesferologias ou as esferologias plurais. As espumas descrevem as
chamadas sociedades de paredes finas. São sistemas cofrágeis e não holistas, pois inviabilizam a
construção de grandes totalidades-globos e não podem ser subsumidas a grandes unidades
transcendentes de sentido.
Embora alguns regimes de esferas sejam preponderantes em alguns tempos e espaços, essas
dimensões das esferas são morfológicas e ontológicas, não cronológicas. Por exemplo, a incapacidade de
produzir sistemas de imunização encontra-se em declínio na modernidade. A definição mesma de
modernidade seria nesse caso o processo de explicitação do ser e de ascensão de imunodeficiências
estruturais. Para usar a bela imagem de Pierre Hadot, cada vez mais a ciência rasga o véu de Ísis da
natureza. Ou seja: produz uma explicitação incessante dos mecanismos do universo, esvaziando-o de
sentido oculto. Por seu turno, a morte de Deus não seria apenas um problema religioso ou uma
tautologia, se concebermos que Deus nunca esteve efetivamente vivo. A morte de Deus passa a ser vista
como a falência de um dos mais poderosos sistemas imunológicos jamais criados. E isso em nada altera
o processo antropológico ou o devir do sapiens. Novas narrativas, como as ideologias modernas, as
ciências e as tecnologias, assumem as funções imunizadoras exercidas pelas antigas crenças religiosas
para suprir o vazio do colapso imunizador da morte do sistema-Deus.
ANTROPOLOGIA E PSICANÁLISE
Um terceiro aspecto a ser ressaltado é o que diz respeito a essa singular antropologia desenvolvida por
Sloterdijk a partir de diversos autores, como Hans Blumenberg, Jakob von Uexküll, Hans Driesch, Adolf
Portmann, na fronteira entre as ciências naturais e as humanas. Paradoxalmente, não estamos diante de
uma antropologia do além-humano [Übermensch], mas de uma antropologia para além do humano.
Nesse sentido, a conexão entre a teoria das esferas e a teoria do ator-rede de Bruno Latour é inequívoca.
Em um seminário em Harvard, Latour chegou a dizer que havia nascido sloterdijkiano. Abrem-se aqui
diversas camadas e nuances de um amplo debate estabelecido entre Sloterdijk e algumas das correntes
mais avançadas da antropologia contemporânea, representadas por autores como Annemarie Mol,
Eduardo Viveiros de Castro, Tim Ingold, Isabelle Stengers, Philippe Descola, Marilyn Strathern, Donna
Haraway. Esses autores se alinham cada qual a seu modo a uma das mais marcantes transformações que
têm ocorrido no pensamento contemporâneo em diversas áreas do conhecimento, sobretudo na filosofia
e na antropologia: o chamado ontological turn. A partir dessa virada, a antropologia tem conseguido
dirimir alguns problemas relativos a definições de conceitos como cultura, agente, agência, humanidade,
pessoa, objeto, sujeito, natureza, entre outros. A obra de Sloterdijk encontra-se no âmago dessas
investigações e realiza de modo amplo aquela tarefa de criar conceitos que define o coração da filosofia,
como queria Deleuze.
Por fim, um quarto aspecto se refere à importância da psicanálise, presente desde A árvore mágica,
de 1985, até o ensaio de psicopolítica Ira e tempo, de 2006, e Temperamentos filosóficos: de Platão a
Foucault, de 2009, além da presença central de psicanalistas como Winnicott e Dolto em Esferas.
Sloterdijk amplia a narrativa da psicanálise. Identifica-a aos processos psicagógicos anteriores a Freud,
dotando-os de um novo estatuto epistemológico. Transferência e contratransferência, espaços de
animação e espaços transicionais, processos primários e cenas da origem, inobjetividade e não objetos,
simbólico, imaginário e real, reconhecimento, genitalidade e espelhos, dejetos, circularidade e
excrementos: a partir da leitura de Sloterdijk, esses conceitos adquirem uma valência distinta daquela
que possuem no âmbito clínico.
Transformam-se em operadores coletivos de sentido, relativos a uma dimensão cultural e ao devir da
hominização, poder-se-ia dizer. A função transferencial desempenha um papel decisivo na teoria das
esferas, radicalmente distinto do valor que possui nas psicoterapias. Concebida como maneira de traduzir
o exterior em interior, de domesticar o puro exterior em um puro interior, o amor transferencial é o
modelo por excelência de uma action in distans por meio do qual o sapiens consegue não apenas habitar
o seu mundo, mas colonizar outros mundos. Ou seja: a transferência se encontra na ontogênese do
humano e, ao mesmo tempo, na gênese das tecnologias, entendidas como o conjunto global de meios de
domesticação do ser. A travessia desses meios emergentes, ao longo de bilhões de anos, fez da vida o
que a vida veio a ser e fez a vida poder vir a ser tudo aquilo em que a vida possa se tornar. A partir dessa
composição de formas, o sapiens trouxe e continua trazendo em si a potência de ultrapassar suas
determinações e caminhar em direção a um horizonte infinito e vazio.
literatura

De Qinghai para o mundo


FRANCESCA CRICELLI

Ir à China, pela primeira vez, quando tudo parece apontar à impossibilidade, requer um ato laico de fé:
na vida, na sorte, no acaso e sobretudo na poesia. Há de se fazer o silêncio, para refazer os planos e
evitar a madrugada no aeroporto de Istambul após um atentado devastador, e, ainda assim, querer partir.
Não sei se foi um delírio profético, mas escapei da madrugada de 15 de julho, quando deveria estar no
aeroporto Ataturk, durante a tentativa de golpe na Turquia. Teria estado lá à espera da conexão para
Pequim. Enfim, embarquei via Roma, fui-me para o Fórum de Poesia em Qinghai, no centro da China,
coração irrigado pelo rio Amarelo, entre o Tibete e a Mongólia.
Ali estive por cinco dias com quatorze poetas de diversos países e línguas e outros trinta poetas
chineses, daquele e de outros estados. Tento apresentar aqui algo do que lá encontrei, traduzindo alguns
poemas via outras traduções em inglês e espanhol.
Pouco menos de vinte e quatro horas após a chegada a Pequim, embarcarmos todos para Xining,
capital de Qinghai, guiados pelo mítico Mr. Homer, que não nos revelou seu nome chinês. Em duas
horas e quarenta minutos sobrevoamos desertos e montanhas. A província carrega o nome do grande
lago de águas salgadas que está em seu centro. Por trás da organização do evento, um encontro de poesia
que acontece a cada dois anos, há o governo local da província de Qinghai, particularmente um
funcionário que é também poeta e defensor das minorias étnicas que povoam a China, Jidi Majia, e um
investidor inusitado, uma marca de água mineral, Jinghdu, cuja fonte nasce entre as verdejantes e
semiesféricas montanhas de Hunan, um traço macio no horizonte sobre o azul límpido sem sombra de
nuvens, a grama pulverizada com pequenas flores roxas e amarelas, pasto para os magníficos iaques,
bovinos peludos que vivem entre os três mil e cinco mil metros de altitude.
Qinghai possui aproximadamente cinco milhões de habitantes, sua população é composta das etnias
han, tibetana, tu, hui e mongol. A viagem se estendeu, partindo de Xining, por nove longas horas
percorridas de ônibus entre as montanhas e pagodes. Costeando o rio Amarelo, cumprimos o percurso
em duas etapas, até chegarmos às tendas – yurts – que abrigaram nosso encontro. Cada um leu, além de
seus poemas, um depoimento em prosa sobre sua relação com a água, com os rios de seus países de
origem.
É raro pronunciar-se a respeito dos recursos hídricos a partir da voz da poesia. Não éramos técnicos,
mas estávamos num fórum e tentávamos, cada um carregando seus rios, suas margens, suas enchentes e
topografias hídricas, internas e externas, cada um com um punhado de histórias, ressignificar aquela
importância. Estar num lugar remoto, num planalto silencioso, no seio de uma civilização nômade,
trocando palavras e vivências, na medida do possível, nas línguas francas que tínhamos à disposição, nos
fez inaugurar uma nova intimidade ditada pela necessidade de forjar algo fraterno que intermediasse
tamanha vastidão de terras, de desconhecido e de novidade. Assemelha-se a esta experiência a escuta do
canto difônico. Canto dos pastores tibetanos e mongóis, conta com uma técnica usada também por outros
povos, inclusive pelos cantores sardos. Dois ou mais sons são cantados em concomitância por uma única
pessoa, e nessa maestria em se manipular a cavidade bucal ressaltam-se os harmônicos. Inaugura-se uma
nova experiência de escuta diante desta cantoria, algo como o espanto provocado pelo encontro de tantas
poéticas que se juntaram para ouvir e para falar de versos e de águas. Faz-se necessária uma escuta vasta
como um oceano, para citar um poema de Julia Panadés.
O desconhecido deve ser penetrado com delicadeza, como na cena do excelente filme “Samsara” do
diretor Pan Nalim, filmado numa paisagem que remete ao local onde estive, em que um grupo de
monges – iguais aos que também participaram do festival – entram numa caverna e acordam um outro
monge que ali estava, há muito tempo, em meditação. Abrem-lhe as mãos e os dedos, um a um, afastam
do seu rosto empoeirado os longos cabelos e tocam, com sutileza e proximidade ao ouvido, o sino-tigela,
típico da região. Como sair de um estado de introspecção profunda para voltar ao mundo? E de que
forma deixar para trás o mundo em que vivemos, por alguns dias, para ouvir e falar de versos e águas? É
como se existissem duas Arcádias concomitantes, uma remota e outra moderníssima.
A PERSISTÊNCIA DOS BURROS
[Tarek Eltayeb, Egito/Sudão/Áustria]
Com corpos de burros
suportamos as chicotadas,
carregamos a loucura de chumbo,
subimos a montanha com uma tocha
na escuridão do caminho.
Arquejamos e nos arrastamos de quatro.
Ladram os cães.
Atiramo-lhes um livro,
os cães fogem e não se aproximam mais.
Subimos sobrecarregados,
quebram-se nossas costas,
gastam-se os cascos,
os lobos uivam.
Atiramo-lhes um livro,
mas eles se aproximam.
Atiramo-lhes outro livro,
despedaçam-no, rosnam,
cercam-nos e mordem-nos as pernas,
enfurecidos e vorazes
pelo sabor de tapa embainhado no couro.

O LAGO
[Mathura, Estônia]
Sou um lago
dentro do seio da terra,
sou um formigueiro
enxameado e grande;
uma canoa
de árvore do mundo,
a cavidade da água,
sou quem a vida não abandona
e só você
sabe meu nome.

PRIMEIRA CHAMADA
[Jorge Ortega, México]
É urgente contar o que ocorre
não acima da linguagem
e da sua crosta de espuma
mas abaixo, onde
a chama se dobra
ou treme a raiz.
É urgente inverter o cone
e denunciar seu fundo
atrair o clamor das areias
que a corrente submarina
ondula.
Respira e mergulha.
Ascende e recupera o que viste
para o alívio dos que esperam
no espelho da superfície.
Muita tinta correu
e continuamos em suspensão.
Clareia um pouco mais tua circunstância,
aproxima a lanterna do abismo
para buscar a chave entre rochedos.

A QUIETUDE FALA
[Mbali Vilakazi, África do Sul]
a forma da vida no fluxo e refluxo
e estes talvez voltarão à costa
o agora, o sempre, somente
uma quietude que fala
atraindo
puxando para dentro
ouvindo.
artigo

Um frágil diagnóstico sobre Marilena Chaui e as esquerdas


Com o intuito de promover a livre circulação de ideias na esfera do jornalismo cultural e de
debater publicamente algumas questões muito caras à vida social do país, a CULT publica o texto
a seguir, assinado por seis docentes da Universidade de São Paulo que contestam as críticas feitas
recentemente na imprensa pelo professor emérito da USP Ruy Fausto à filósofa Marilena Chaui,
professora titular da mesma universidade

A tentativa do articulista Ruy Fausto – na revista piauí de outubro – de diagnosticar e purgar “um certo
número de doenças” que teriam acometido (e que estariam apodrecendo) a esquerda brasileira,
empunhando, com o uso de metáforas biológicas, a causa do combate às “infecções de ideias que
prejudicam o movimento”, nos deixou perplexos. Não pretendemos comentar esse artigo, mas fazer
observações sobre alguns de seus pontos.
Começamos lembrando a tipificação das patologias degenerescentes – medidas por um obscuro
paradigma de uma “esquerda autêntica” – a que o artigo procede. Ele as identifica em três figuras: 1) a
“peste totalitária” dos núcleos pró-castristas (sobretudo de petistas) e admiradores brasileiros de Žižek e
Badiou (além dos ativistas das universidades, principalmente da USP); 2) a patologia do adesismo
“cardosista” ao neoliberalismo e, por fim, 3) “a que mais nos atinge; a mais grave no momento
presente”, o populismo, não só representado por uma figura, mas encarnado mesmo – para nosso espanto
– na pessoa da professora Marilena Chaui.
É nesse último e principal alvo de seu esforço purgativo que queremos nos deter. E, é preciso dizer
claramente, que nos pronunciamos aqui também porque o artigo nos visa diretamente (e a grande
número de colegas acadêmicos), ainda que de forma difusa: “não se trata de fazer carga gratuitamente
contra Chaui, mas ela dá o tom para seus pares”, segundo escreve, para nos designar “brutalmente” como
“beócios” de esquerda.
Pensamos que o articulista se equivoca, também “brutalmente”, sobre o significado da figura
intelectual e política de nossa colega Marilena Chaui e sobre o teor de suas tomadas de posição, que
compartilhamos, nesta conjuntura lastimável da vida brasileira. Ele a acusa: 1) de “tomar a defesa do PT
sem crítica ao partido e sua direção”; 2) de “deslegitimar” de maneira ardilosa todo projeto de autocrítica
petista; 3) de desmistificar a operação Lava Jato (que você enaltece, “apesar dos erros e desmandos de
alguns de seus operadores”); 4) de insistir no “caráter ‘fascista’ da pequena burguesia”; 5) de se utilizar
da sedução retórica (ponto em que, diz, “a posição dos populistas é infelizmente muito parecida com a
dos totalitários”). Façamos, então, algumas observações necessárias sobre cada um destes pontos, que
repetem, aliás, as acusações que têm sido insistentemente repetidas contra a professora por aqueles que o
articulista assinala como os “ideólogos da direita”.
1. Comecemos pela ausência de crítica ao PT e sua direção: uma acusação originalmente formulada
por editoriais da grande imprensa por ocasião do chamado “mensalão”, quando Marilena Chaui foi a
primeira a reclamar por uma reforma política. Para que a acusação se mostre infundada, que se leia a
“Mensagem ao Partido: pela refundação do PT”, texto coletivo publicado em 2006, ou a palestra “A
crise do PT: tarefas não cumpridas”, de 2007, para a bancada federal do PT, registrada nos anais da
Câmara Federal. E não se pode também deixar de evocar, no mesmo sentido, toda a longa trajetória de
crítica diretamente política da professora, que vem desde a criação da revista Desvios, em 84, e se
prolonga em inúmeros textos, pronunciamentos públicos, entrevistas (a Caros Amigos, Brasil de Fato,
Teoria e Debate, Crítica Social, Mouro) em que críticas – autocríticas – ao PT são constantes. Tome-se
ainda, por exemplo, a entrevista de Marilena no livro de Juarez Guimarães, Leituras da Crise, diálogos
sobre o PT. Diz ela: “O PT só poderá ser o principal sujeito político contra a despolitização se recuperar
sua ligação originária com os movimentos sociais e todas as formas de auto-organização da sociedade,
na medida em que são eles os criadores de direitos [...] O PT só poderá ser sujeito político republicano se
o aparelho burocrático e eleitoral em que se converteu for destruído de cima a baixo, se suas direções e
suas ações forem públicas e de pleno conhecimento público, pois só poderá refazer os laços com os
agentes democráticos se ele próprio estiver estruturado democraticamente”.
2. Sobre a tentativa de “deslegitimar a autocrítica petista”. O artigo se refere a um debate bastante
recente (ocorrido na Faculdade de Filosofia em 30 de junho deste ano, é importante lembrar), no qual
intelectuais fortemente críticos dos governos petistas exigiam “autocrítica” por parte do PT exatamente
no momento em que se consumava, como o próprio articulista escreve, “o processo, duvidoso no seu
conteúdo, [...] visivelmente viciado em termos morais e políticos, senão jurídicos, pela forma como foi
encaminhado” do impeachment da presidente Dilma. Esse momento, no qual, ainda nas suas palavras,
“apoiada por um movimento de massas com base nos setores de classe média [...] a direta obteve a
denúncia de Dilma por parte da Câmara dos Deputados”, pareceria um momento politicamente adequado
para se dizer que o uso do termo golpe servia para “vitimizar” Dilma e o PT e para exigir a “autocrítica”
petista? Postas as coisas em seu contexto, não é um tanto descabido aproximar o discurso de uma assídua
leitora d’As aventuras da Dialética das “posições totalitárias” e dos procedimentos dos “velhos líderes
stalinistas que [...] defendiam mais seu partido do que a causa da esquerda”?
3. Sobre as acusações, “sem provas”, à operação Lava Jato, é preciso, em primeiro lugar, lembrar que
nossa professora não é membro do Ministério Público ou de qualquer órgão do Estado encarregado de
investigações (o que, é claro, não exime nenhum cidadão de fazer imputações fundadas). Depois,
devemos lembrar também que tais órgãos do Estado é que têm frequentemente, no âmbito desta
operação, feito acusações sem verdadeiras provas, buscando resguardar-se sob figuras juridicamente
muito controversas como o oxímoro “provas indiciárias” (confira-se entrevista do delegado da PF,
Márcio Anselmo, na Folha de S. Paulo em 10 de outubro) ou o recurso perigoso ao “domínio do fato”,
apresentados como normais e legais, ainda que vizinhos, para dizer o menos, do arbitrário. E é preciso
observar que Marilena não disse nada, nada, que já não tenha sido dito por parlamentares da oposição no
Congresso Nacional, por manifestações de associações da sociedade civil, ou pelo que resta de
comunicação independente – considerações que não deveriam ser desqualificadas ligeiramente e sem um
exame mais acurado.
4. Quanto à volta do artigo ao tema do caráter fascista da pequena burguesia, não nos parece correto
relembrar a polêmica que a questão ensejou (conhecida como “eu odeio a classe média”), sem fazer
menção aos inúmeros esclarecimentos públicos de Marilena Chaui sobre o sentido da sua crítica. Todos
sabemos que ela é inseparável de um debate, bastante anterior à atual crise política, em que, num evento
público do PT (transmitido por internet), Chaui criticou o governo, as lideranças e a direção petistas por
aceitarem e difundirem o mito do surgimento da “nova classe média” durante os anos Lula-Dilma.
Combatendo a abstração da apresentação da sociedade como uma pirâmide em que as classes sociais são
definidas por critérios de renda, escolaridade, profissão e consumo e enfatizando, ao contrário, que uma
classe social se define pela forma da propriedade, a filósofa buscava destacar que o que ocorreu no
Brasil, por meio dos programas sociais, valorização do salário mínimo, pleno emprego, etc., não foi uma
ampliação da classe média, mas uma expansão da classe trabalhadora. Em A Nova Classe Trabalhadora:
enigmas?, Chaui nos explica:
“Por sua posição no sistema social, a classe média tende a ser fragmentada, raramente encontrando
um interesse comum que a unifique. Todavia, certos setores, como é o caso, por exemplo, dos
estudantes, dos funcionários públicos, dos intelectuais, de lideranças religiosas, tendem a ser organizar e
a se opor à classe dominante em nome da justiça social, colocando-se na defesa dos interesses e direitos
dos excluídos, dos espoliados, dos oprimidos; numa palavra, tendem para a esquerda e, via de regra, para
a extrema esquerda e o voluntarismo. No entanto, essa configuração é contrabalançada por outra,
exatamente oposta. Fragmentada, perpassada pelo individualismo competitivo, desprovida de um
referencial social e econômico sólido e claro, a classe média tende a alimentar o imaginário da ordem e
da segurança porque, em decorrência de sua fragmentação e de sua instabilidade, seu imaginário é
povoado por um sonho e por um pesadelo: seu sonho é tornar-se parte da classe dominante; seu pesadelo
é tornar-se proletária; para que o sonho se realize e o pesadelo não se concretize, é preciso ordem e
segurança. Isso torna a classe média ideologicamente conservadora e reacionária e seu papel social e
político é o de assegurar a hegemonia ideológica da classe dominante. É sob esta perspectiva que se pode
dizer que a classe média é a formadora da opinião social e política conservadora e reacionária”.
Não somente essas palavras de Marilena Chaui explicam com clareza meridiana os motivos de seu
horror diante da difusão entre os trabalhadores da ideologia de classe média, como também desmentem
que a filósofa tenha uma visão uniforme e abstrata da própria classe média. Lembremos que a questão do
papel político das classes médias está na pauta dos estudos de Marilena Chaui desde 1974
(“Apontamentos para uma crítica da razão integralista”, recentemente republicado no volume
Manifestações ideológicas do autoritarismo brasileiro, Ed. Autêntica). E se sabe que não está sozinha na
sua crítica; ela está muito bem acompanhada em suas análises: a interpretação clássica do fascismo como
ideologia de classe média vem de há muito, à esquerda (Luigi Salvattorelli, Nazionalfascismo, 1923) ou
entre os conservadores (Renzo de Felice ou S. M. Lipset, por exemplo). E a historiografia dos últimos 40
anos repõe constantemente a tese – mesmo que se considere que o fascismo não é uma ideologia “da
classe média”, ele recebe, entretanto, a adesão firme e constante das classes médias por seu
conservadorismo e autoritarismo. E é preciso lembrar, por fim, que os comentários de Marilena não
operam com uma classe média abstrata; tomam-na historicamente no Brasil: na mobilização integralista
dos anos 1920 e 1930, no apoio ao golpe de 1964, nas manifestações anticorrupção que se seguiram às
“jornadas de junho”.
5. Marilena é censurada no artigo por fazer de suas intervenções na cena pública “uma peça de pura
retórica” e de se mostrar “seduzida demais pelo aplauso dos auditórios”. O articulista estava presente em
algumas das ocasiões nas quais Marilena se manifestou, de forma contundente, a respeito de questões
graves que se passavam na cena pública do país, como foram os fatos políticos recentes que levaram à
destituição da presidente eleita ou suas manifestações escritas em outros episódios, como o massacre de
mulheres no Manicômio Judiciário, em 1984, o do Carandiru em 1992, sendo ela uma das primeiras a se
manifestar e a denunciar, tendo testemunhado diretamente, com a Comissão Teotônio Vilela, o horror do
acontecido. Ora, desde a Antiguidade, a manifestação política se dá num quadro de aliança com a
retórica; trata-se de agir na cidade e não apenas de observar com uma pretensa superioridade o que
fazem os outros. É parte da tradição do pensamento republicano associar política e retórica, em oposição
tanto a uma certa tradição liberal, que deseja reduzir o ato político às suas manifestações no interior das
instituições legais, quanto ao pensamento daqueles que se sentem aptos a curar a doença social dos
outros do ponto de vista de uma suposta superioridade moral. O articulista já participou de debates
acadêmicos com Marilena e testemunhou não apenas o alcance de seu pensamento, mas também sua
grande abertura para a contradição e o debate.
Por fim, uma observação sobre o “populismo” de Marilena Chaui. Como é amplamente sabido, ela
conhece bem o tema, se pronunciou frequentemente e escreveu sobre ele (por exemplo, em “Raízes
teológicas do populismo no Brasil”, em Brasil anos 90, organizado por Evelina Dagnino). Devemos
saber que ela caracteriza o populismo como uma forma de poder da classe dominante que procura uma
relação imediata entre governante e governados, sem as mediações políticas, afastando instituições
políticas (as instituições do Estado republicano, os partidos políticos e formas políticas de organização
da sociedade civil). Essa relação direta, segundo ela mostra, assume a forma do favor e da tutela, em que
o governante se apresenta como aquele que detém não só o poder, mas também o saber sobre a sociedade
e sobre a lei e, portanto, priva os governados do conhecimento do mundo sociopolítico, podendo, assim,
tutelá-los. Finalmente, o populismo busca produzir uma indistinção entre o poder e o seu ocupante, que o
preenche com sua pessoa, sendo por isso um poder autocrático.
Não parece, assim, difícil aplicar, no registro teórico, o conceito de populismo à autora de tal
desenvolvimento conceitual? Mas, sobretudo, não é extravagante, no registro prático, projetar e
concentrar em sua pessoa a responsabilidade pela derrota da esquerda (“a fala populista irresponsável
diante da verdade nos condena à derrota”, segundo o articulista), como se, para a esquerda, não fosse a
materialidade das classes sociais, dos movimentos sociais e populares com suas organizações a força
responsável por fazer história?

Professores
Homero Santiago
Luis César Oliva
Maria das Graças de Souza
Newton Bignotto
Paulo Sérgio Pinheiro
Sérgio Cardoso
colaboraram nesta edição

Abrahão Costa Andrade é professor de Filosofia da UFPB

Alex Calheirosé professor de Filosofia da UNB

Angélica De Moraes é crítica de artes visuais e jornalista

Eduardo Socha é doutor em Filosofia pela USP

Francesca Cricelli é poeta e tradutora

Francisco Toledo López Corrêa é mestre em Filosofia pela UNIFESP

Franklin Leopoldo E Silva é professor livre-docente de Filosofia da USP

Giovanni Zanotti é doutor em Filosofia pela Universidade de Pisa

Homero Santiago é professor de Filosofia da USP

Leonardo Alves Vieira é professor de Filosofia da UFMG e membro-fundador da Sociedade Hegeliana


Brasileira

Luis César Oliva é professor livre-docente da USP

Manuel Moreira Da Silva é professor de Filosofia da UNICENTRO/PR e membro-fundador da


Sociedade Hegeliana Brasileira

Maria das Graças de Souza é professora titular de Ética e Filosofia Política da USP

Mathias Möller é mestrando em Filosofia na UNIFESP

Newton Bignotto é professor titular de Filosofia da UFMG

Paulo Eduardo Arantes é professor aposentado de Filosofia da USP

Paulo Eduardo Soares Gonçalves é professor titular do Departamentode Economia da USP

Paulo Sérgio Pinheiro é professor titular aposentado da USP

Rodrigo Petronio é escritor e professor de pós-graduação da FAAP

Rogério Bettoni é tradutor e editor

Rodnei Nascimento é professor de Filosofia da UNIFESP

Sérgio Cardoso é professor e Filosofia da USP

Silvio Rosa Filho é professor de Filosofia da UNIFESP, autor do livro Eclipse da moral: Kant, Hegel e
o nascimento do cinismo contemporâneo (Discurso Editorial)

Você também pode gostar