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DOSSIÊ

Manuais escolares:
múltiplas facetas
de um objeto cultural

Organização
Heloísa Helena Pimenta Rocha

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Apresentação do dossiê Manuais escolares:
múltiplas facetas de um objeto cultural

Heloísa Helena Pimenta Rocha*, Miguel Somoza**

D
ispositivo fundamental no projeto de difusão da escolari- * Professora do
zação em massa que acompanhou a constituição dos Es- Departamento de Educação
Conhecimento Linguagem e
tados Nacionais, recurso educativo mais presente e mais
Arte (Delart) da Faculdade
cotidianamente utilizado nas salas de aula dos vários cantos do de Educação da Unicamp,
mundo, o livro escolar vem se configurando em objeto de interes- Campinas, SP, Brasil.
heloisah@unicamp.br
se de equipes de pesquisadores de vários países.
Sem desmerecer os trabalhos anteriores realizados por nu- ** Universidad Nacional
merosos pesquisadores individuais, o campo de estudos sobre de Educación a Distancia
(UNED), Madri, Espanha.
os livros escolares iniciou-se, provavelmente, no âmbito de um
dos primeiros programas sistemáticos de pesquisa, coordenado
pelo historiador Georg Eckert, no fim da Segunda Guerra Mun-
dial, com o propósito de analisar os conteúdos desses livros, em
relação, sobretudo, com as identidades nacionais e o ensino do
patriotismo. Sob os auspícios da Unesco, os estudos de Eckert
voltaram-se para a análise do papel dos livros escolares na for-
mação das consciências nacionais, com o fim de contribuir para
a ampliação da compreensão mútua entre os habitantes dos paí-
ses que haviam participado daquele conflito. Tal investimento
teve como alvo a reconciliação e a paz na Europa e, por extensão,
no mundo. Seu legado continua atualmente no Georg-Eckert-
-Institut für internationale Schulbuchforschung (Instituto Georg
Eckert para a pesquisa internacional sobre livros escolares).
Algumas décadas mais tarde, Alain Choppin deu início, na
França, ao projeto Emmanuelle, com o intento de inventariar e
catalogar os manuais escolares utilizados naquele país, desde a
Revolução Francesa até a atualidade. Para isso, criou uma base
de dados informatizada e promoveu estudos sobre esse gênero
de obras. Os eixos gerais do projeto foram se ampliando, me-

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diante acordos com outros grupos de desse inventário e a catalogação das
investigação e países, dando origem, obras destinadas ao uso escolar. Tal au-
entre muitos outros, ao projeto Manes, sência não era, evidentemente, fruto do
na Espanha; ao projeto Les manuels acaso, mas resultava de uma concepção,
scolaires québécoises, no Canadá; ao predominante durante muito tempo, de
projeto italiano Edisco, que reúne pes- que as obras escolares e a literatura in-
quisadores de seis universidades, com fantil em geral eram produtos de escas-
o objetivo de estudar a edição de livros so valor cultural. Como fruto dessa con-
escolares, desde 1800 até o presente; ao cepção, seus títulos não compunham o
projeto Livres, sobre os livros escolares patrimônio bibliográfico de prestígio,
brasileiros; e ao Programa HISTELEA, nem tampouco os poderes públicos se
sobre os manuais de leitura e escrita na preocupavam com o seu registro ou com
Argentina. Foram criados, também, gru- a sua conservação.
pos internacionais com objetivos simila- A realização desses censos trouxe
res, como a International Association for como resultado a criação de bases de
Research on Textbooks and Educational dados nacionais de manuais e livros
Media (IARTEM), e a Internationale Ge- escolares, disponibilizadas posterior-
sellschaft für historische und systema- mente na internet, com acesso livre,
tische Schulbuchforschung (Sociedade tanto para os pesquisadores como para
internacional para a investigação histó- o público em geral, as quais se consti-
rica e sistemática de livros escolares)1. tuem, atualmente, em um instrumento
Uma das dificuldades iniciais com a fundamental para o desenvolvimento de
qual se defrontaram os pesquisadores pesquisas que tomam esses livros como
foi a ausência de um registro ou censo objetos ou fontes.
sistemático das obras escolares utiliza- A base de dados Emmanuelle, por
das em cada país. Para tanto, vários dos exemplo, registra neste momento mais
projetos citados tiveram, como um de de 27.000 títulos, correspondentes a
seus primeiros objetivos, a realização aproximadamente 70.000 diferentes
edições de manuais franceses. A base
1. Para maiores informações sobre os projetos citados, consultar:
Georg-Eckert-Institut: http://www.gei.de/; Emmanuelle: http://www. Manscol, da Universidade de Laval,
inrp.fr/emma/web/index.php; Manes: http://www.uned.es/manesvirtual/ dispõe de 26.000 referências de livros
portalmanes.html; Universidad Laval: http://www.bibl.ulaval.ca/ress/
manscol/; Livres: http://paje.fe.usp.br/estrutura/livres/index.htm; escolares produzidos ou utilizados no
Edisco: http://www.reseducationis.it/edisco/default.aspx; IARTEM:
Quebec, e a base Diaspora des manuels
http://www.iartem.no/index.htm; Internationale Gesellschaft… http://
www.schulbuch-gesellschaft.de/. scolaires, da mesma universidade, con-

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ta com mais de 20.000 títulos de livros transmissão de ideologias dogmáticas
de instrução escolar dos Irmãos das Es- e autoritárias. Segundo essa concepção,
colas Cristãs, congregação fundada por essas obras teriam se configurado, nes-
La Salle. A base de dados Manes reúne se sentido, em veículo de discriminação
atualmente mais de 17.000 registros de social, cultural e de gênero, quer de for-
manuais escolares espanhóis, 7.800 de ma explícita ou implícita.
Portugal, 3.800 da Bélgica e 3.300 de Com o passar dos anos e a renovação
países da América Latina. A base Edisco de metodologias e perspectivas teóri-
contempla mais de 20.000 referências cas, as investigações foram paulatina-
de livros italianos, enquanto o Livres mente abarcando todos os campos das
reúne mais de 10.000 títulos de livros disciplinas escolares, criando possibi-
escolares brasileiros. lidades de análise que não se restringi-
Esta significativa quantidade de in- ram à influência destas na formação das
formação sistematizada põe em relevo consciências individuais ou coletivas,
o árduo trabalho realizado na última dé- mas vêm buscando recobrir a genealo-
cada e aponta para novas e promissoras gia das próprias disciplinas; os fatores
possibilidades de investigação interna- que intervêm na seleção curricular; os
cional comparada. Com o propósito de autores de livros escolares; a história
facilitar este tipo de estudos, foi criado das editoras especializadas neste tipo
também um “metabuscador”, recurso de obra, até chegar, em nossos dias, a
de informática que torna possível, até o uma perspectiva mais geral, que consi-
momento, realizar buscas simultâneas dera tais obras como parte da “cultura
nas bases Emmanuelle, Edisco e Manes, escolar”, por um lado, e como parte dos
com a perspectiva de ampliação futura “meios massivos” de comunicação e en-
às demais bases informatizadas sobre sino, por outro.3 A estes enfoques, há
livros escolares2. que somar também o tratamento do li-
Cabe assinalar que a pesquisa sobre vro de texto em sua materialidade, tanto
livros escolares esteve, em suas origens, como objeto que constitui um patrimô-
centrada nos conteúdos das disciplinas nio cultural valioso, quanto como objeto
humanísticas e das ciências sociais, com
base na crença de que tais conteúdos 2. O endereço desse MultiOpac é: <http://www.historyonline.eu/mul-
tiopac/>.
haviam desempenhado um importan- 3. A este respeito, consultar Meda, J. Mezzi di educazione di massa.
Nouve fonti e nouve prospettive di recerca per una “storia materiale del-
te papel na configuração das identida-
la scuola” tra XIX e XX secolo. History of Education & Children Literature,
des nacionais, sendo utilizados para a v. VI, n. 1, p. 253-279, 2011.

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produzido por agentes específicos, com dificação, interpretação, contestação e
técnicas determinadas, em um contexto apropriação que os alunos realizam, as-
econômico, comercial e de organização sim como as ações de mediação e trans-
da produção; e, portanto, social e histo- formação dos conteúdos originais que
ricamente condicionado4. os educadores e as próprias instituições
A preocupação em relação à meto- escolares produzem, seja de maneira in-
dologia e ao estabelecimento de cate- tencional ou contingente.
gorias teóricas precisas de investigação Certamente, não é casual que estes
evidencia-se em cada congresso, semi- últimos aspectos tenham recebido me-
nário ou encontro de profissionais deste nos atenção: a complexidade dos pro-
campo. Há que reconhecer, no entanto, cessos envolvidos torna conceitualmen-
que os estudos sobre as disciplinas hu- te mais difícil este tipo de investigação,
manísticas e sociais continuam predo- ao mesmo tempo que a metodologia e
minando sobre os que se voltam para os instrumentos de coleta e análise da
disciplinas mais relacionadas com as informação exigem elevados custos,
ciências experimentais ou as matemá- procedimentos cuidadosos e grupos de
ticas. Na mesma medida, a análise do investigação maduros e consolidados.
conteúdo textual continua prevalecen- Mostra-se extremamente difícil saber o
do sobre a análise iconográfica, sendo que e quanto os alunos se lembram ou
ainda escassos os estudos que abor- se esquecem de seus livros escolares
dam ambas as perspectivas de maneira e o grau em que essas leituras podem
integrada e sistemática. Cabe destacar ter participado da conformação de suas
também que, ao privilegiar a análise de subjetividades. Entre outras razões, isso
conteúdos, a maioria das investigações se deve ao fato de que há sempre uma
permanece centrada no momento da distância entre o vivido e o lembrado, na
emissão da mensagem ou do discurso medida em que cada ato de reminiscên-
presente nos livros, sem avançar sobre o cia altera as lembranças; além do que, o
momento da recepção. Assim, perman- passar do tempo e as experiências trans-
cem na penumbra os processos de deco- formam as conexões neurais e adequam
as experiências às necessidades ou con-
veniências do tempo presente, em sua
4. Nas listas bibliográficas do Centro Manes, que reúnem as publicações
sobre manuais escolares dos últimos anos, pode-se observar, pela simples dimensão social ou individual.
leitura dos títulos, o amplo e crescente leque de temas abordados e a va-
Do ponto de vista da produção, cabe
riedade de perspectivas e metodologias utilizadas nas investigações. Cf.
<http://www.uned.es/manesvirtual/ProyectoManes/Bibliografia.htm>. assinalar que os livros escolares estão

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sujeitos a constantes transformações, produzidos por pequenas empresas es-
alternando-se períodos de mudanças pecializadas, para converter-se em alvo
lentas e graduais com momentos de dos interesses de grandes grupos eco-
transformações mais intensas e rápi- nômicos editoriais e/ou de multimídia.
das. Além disso, sofrem a repercussão Nesse sentido, seu alcance ou zona de
dos movimentos de reforma pedagógica influência vem se deslocando, ultrapas-
e das novas metodologias que acompa- sando o âmbito regional ou nacional, por
nham tais movimentos, sendo também meio de uma distribuição e competição
influenciados pelas transformações empresarial em escala internacional. Da
técnicas que afetam a indústria edito- organização linear, sequencial e contí-
rial e pelas mudanças políticas, econô- nua do texto, passa-se à fragmentação e
micas e culturais de alcance nacional à ordem não sequencial, pela utilização
e internacional. A revolução nos meios de múltiplos níveis de texto (principais,
de comunicação, em curso nos últimos secundários, descritivos, explicativos,
anos, e, em particular, as tecnologias reprodução de fontes primárias, etc.) e
digitais e o advento da rede mundial de variados recursos gráficos, como: ma-
computadores já estão exercendo – e, pas geográficos e temáticos, tabelas,
seguramente, exercerão de modo ainda quadros estatísticos, sinopses, esque-
mais contundente, em um futuro muito mas. O foco de atenção do leitor-aluno,
próximo – uma grande pressão sobre o antes centrado em um objeto que o cap-
formato e a produção dos livros escola- turava, amplia-se, dando lugar a uma va-
res, assim como sobre as maneiras de riedade de elementos que o saturam. Os
utilizá-los nas escolas. processos de percepção e decifração da
É fácil comprovar como seu desenho comunicação passam da unicidade dia-
gráfico vem passando, nos últimos anos, crônica à multiplicidade de tipologias e
do predomínio do texto para o das ima- códigos sincrônicos.
gens; da cor única ou do bicolor ao mul- A essas mudanças no modelo im-
ticolorido; do papel de baixa qualidade presso, há que somar o aparecimen-
ao de altíssima qualidade. Quanto à pro- to do manual escolar digital. Em suas
dução editorial, os livros escolares vêm origens, os recursos didáticos digitais
deixando de ser “obras de autor” para complementavam os conteúdos impres-
tornar-se obras de uma “equipe edito- sos, ampliando a informação, por meio
rial”, muitas vezes anônima ou quase; da disponibilização de mais imagens,
ao mesmo tempo, vêm deixando de ser vídeos, mapas, textos, os quais pode-

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riam ser acessados no site da editora. tura em telas pode gerar uma inevitável
Porém, rapidamente, os manuais es- perda da capacidade de leitura e escrita
colares digitais vêm adquirindo feição atenta e concentrada. Dessa maneira,
própria. A crescente facilidade de aces- novas gerações de leitores-navegado-
so às conexões de alta velocidade e aos res superficiais, que somente poderiam
próprios computadores, reforçada, em lidar com textos breves, durante um cur-
muitos países, por políticas públicas to período de tempo, estariam perden-
de doação gratuita de computadores do os recursos intelectuais associados
portáteis aos alunos e de instalação de às “dinâmicas psíquicas” característi-
equipamentos de informática nas esco- cas da cultura escrita: a lógica formal e
las, vai configurando um novo cenário o pensamento analítico5.
de comunicação e aprendizagem. É le- A relação entre a tecnologia e as
gítimo supor que, dentro de não muito mudanças sociais é, obviamente, com-
tempo, os livros escolares impressos plexa, cheia de matizes contraditórios
venham a ser um complemento textual e contingências fortuitas. No entanto,
dos manuais digitais, o que demandará distintamente dos autores vinculados a
procedimentos pedagógicos que, nos essa corrente que postula o “determi-
dias de hoje, são ainda, em boa medi- nismo tecnológico” nos meios de comu-
da, experimentais e provisórios. nicação, é legítimo afirmar que não é a
Passada já a primeira fascinação em tecnologia que determina os rumos dos
relação às supostas infinitas possibi- processos sociais a longo prazo, mas a
lidades da tecnologia, alguns autores, própria tecnologia é um artefato cultural,
transformados agora em críticos pessi- sujeito a condicionantes sociais, econô-
mistas, alertam para o fato de que a lei- micos e políticos. Nesse sentido, e com
todas as precauções e limitações que a
5. Ver, por exemplo, Carr, N. ¿Qué está haciendo Internet con nuestras questão impõe, caberia indagar se e até
mentes? Superficiales. Madrid: Taurus, 2011. Mario Vargas Llosa poderia
ser considerado também un exponente ilustre dessa tendência. Pouco que ponto a internet estaria fatalmente
depois de receber o prêmio Nobel de Literatura, declarou que “el Internet
produzindo gerações de leitores limita-
ha acabado con la gramática, ha liquidado la gramática. De modo que se
vive una especie de barbarie sintáctica”. Sobre os jovens que abreviam dos em suas capacidades cognitivas; ou
as palavras e não respeitam as regras gramaticais, afirmou: “Si escribes
así, es que hablas así: si hablas así, es que piensas así; y si piensas así, se é possível pensar que, ao contrário,
piensas como un mono”. Ver: <http://elcomercio.pe/tecnologia/749462/ sua potencialidade contribuiria para tor-
noticia-vargas-llosa-jovenes-que-chatean-piensancomo-mono>. Em
outro artigo, o próprio Vargas Llosa comenta e assume a tese de Nicholas nar virtualmente possível a existência
Carr, “Más información, menos conocimiento”, El País, 02/08/2011.
de uma sociedade leitora mundial, que
Disponível em: <http://www.elpais.com/articulo/opinion/informacion/
conocimiento/elpepiopi/20110731elpepiopi_11/Tes>. constituiria o ponto mais alto da cultura

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baseada na alfabetização. E mais ain- sentido, que este seria um fator muito
da: aos que prognosticam a perda de mais relevante, a ser considerado na
capacidades intelectuais, poder-se-ia análise do fenômeno da “leitura superfi-
indagar se uma tecnologia de comunica- cial”, do que as supostas características
ção verbal, textual e icônica complexa, intrínsecas do suporte digital6.
como é a internet, não demandaria dos Não há motivos para pensar que os
leitores, por si mesma, capacidades e livros escolares (obras que, por meio de
competências intelectuais maiores, e textos, ilustrações ou sons, desenvol-
não menores, do que as que demanda a vem total ou parcialmente o currículo
escrita em papel. de um período letivo, recebam este ou
Uma questão distinta é que a cultura outro nome) desaparecerão das es-
contemporânea, caracterizada pelo mo- colas em um futuro próximo. Porém, o
vimento, pela velocidade, pela vertigem fundamental, cremos, é que a escola,
e pelo ruído; dominada pelas regras eco- como instituição, sob uma forma ou
nômicas da rápida circulação e da acu- outra, tem muito que fazer na era da
mulação de capital, está presidida pela internet. As tecnologias eletrônicas de-
aceleração do tempo social, de modo vem integrar os processos de ensino e
que a “falta de tempo” se configura na aprendizagem, porque a escola conti-
manifestação vital mais expressiva do nua tendo um papel essencial na aquisi-
“mal-estar da cultura”. Paradoxalmente, ção e na democratização universal dos
quanto mais produtivo se torna o traba- conhecimentos. O cumprimento desses
lho humano, menos tempo livre temos propósitos exige situar a educação e a
para desfrutar dos bens disponíveis. À escola no centro das políticas públicas,
medida que viajamos, nos comunicamos porque, definitivamente, o bem-estar
e produzimos em maior velocidade; as do cidadão e a qualidade da democracia
exigências sociais, econômicas e po- são inseparáveis do cuidado e do apre-
líticas de chegar a maior distância, de ço que concedermos às instituições pú-
acessar mais informação e de conseguir blicas de educação.
maior produtividade são superiores aos O conjunto de artigos reunidos nes-
resultados que podem ser alcançados te dossiê permite refletir sobre algumas
pela tecnologia, gerando uma conduta
social obsessiva e ansiosa, que vem pe- 6. Ver, a esse respeito: Somoza, M. Los saberes letrados en la “sociedad
de la información”. Lectura, soportes y ritmos sociales. In: Cucuzza, R.;
netrando e configurando as subjetivida-
Spregelburd, P. (dir.). Historia de la lectura en Argentina. Del catecismo
des individuais. É possível pensar, nesse colonial a las netbooks estatales. Buenos Aires: Ed. Calderón (no prelo).

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das dimensões hoje tematizadas no es- digital; examina as transformações sofri-
tudo dos manuais escolares, possibili- das pelo livro escolar e os seus impactos
tando pensá-los como objetos culturais sobre as formas de aquisição do conhe-
que encarnam em sua materialidade cimento na era digital, ao mesmo tempo
uma multiplicidade de intenções, obje- que detecta as similitudes e as continui-
tivos, regulações e, ao mesmo tempo, dades entre ambos, explicáveis quando
considerá-los como fontes que infor- se têm em conta as marcas deixadas
mam sobre os valores partilhados em nos leitores pela experiência escolar ou,
uma determinada época; sobre as repre- em outras palavras, o habitus produzi-
sentações sociais; e sobre as práticas do pela escola. Suas análises permitem
escolares. Reunindo artigos de alguns atentar para as dimensões pedagógicas,
dos mais representativos estudiosos do políticas, econômicas e culturais que in-
tema, o presente dossiê, cuja organi- tervêm na produção, seleção e usos do
zação faz parte da agenda de trabalho livro escolar, possibilitando ver no livro,
conjunto entre a Unicamp, o Centro de simultaneamente, um “ícone geracio-
Investigación Manes e o Centro Inter- nal”, um “símbolo nacional”, fortemente
nacional de la Cultura Escolar (Ceince), implicado nas dinâmicas de transmissão
visa propiciar ao leitor elementos para a de uma cultura nacional, e um “supor-
reflexão sobre algumas das perspectivas te curricular”. Assinalando a relevância
mais inovadoras da produção nessa ins- que vem sendo atribuída, nas últimas
tigante área de investigação. décadas, aos manuais escolares como
O artigo de Agustín Escolano, com fonte para a compreensão da “gramá-
o qual abrimos este dossiê, empreende tica da escolarização” e dos modos de
uma análise historiográfica e teórica so- sociabilidade das crianças e jovens, no
bre a identidade do livro escolar, conce- interior das instituições escolares, o ar-
bido como um gênero textual específico, tigo instiga a interrogar, ademais, sobre
oferecendo elementos para pensá-lo no o nascimento do campo intelectual e
âmbito da cultura da escola tradicional, acadêmico da manualística e suas con-
assim como no contexto da revolução tribuições para a análise da identidade
digital. Esquadrinhando as característi- do livro escolar.
cas materiais e formais que participam Kazumi Munakata, por sua vez, exa-
da configuração da identidade do livro mina o livro didático como mercadoria,
escolar, o autor assinala os aspectos procurando compreender os livros des-
que distinguem o livro impresso do livro tinados ao público escolar no interior do

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circuito da indústria cultural, o que lhe menta “cifras astronômicas”. Chamando
permite examiná-los em uma dupla di- a atenção para os múltiplos atores que
mensão, que envolve o seu valor de uso participam da produção do livro, o autor
e o seu valor de troca. Embrenhando-se não se furta à indagação sobre os usos
nos meandros da discussão sobre a in- que professores e alunos fazem dessa
dústria cultural e a atividade editorial, o mercadoria.
autor defronta-se com a recorrente e in- Apresentamos, em seguida, o arti-
quietante indagação: o que é, afinal, um go de Brigitte Morand, em que a autora
bom livro? Questão cujo tratamento não analisa os manuais escolares como su-
é nada óbvio e não radica tão somente porte de representações sociais, inter-
no exame do conteúdo do livro, ou seja, rogando, mais especificamente, acerca
das informações que ele põe em circula- das representações da Guerra Fria nos
ção. Objeto da cultura, o livro é reinseri- manuais franceses de história e geogra-
do nas malhas do mercado e examinado fia destinados aos estudantes do ensi-
como mercadoria. No questionário que no secundário, produzidos entre 1959 e
resulta dos objetivos propostos pelo 2006. Afastando-se de uma análise do
autor, as análises sobre o livro didático manual escolar como suporte de trans-
voltam-se para a interrogação sobre a posição didática, Morand o toma como
sua relevância no conjunto da economia objeto cultural complexo ou como “ob-
livreira, bem como sobre os vínculos en- jeto multipolar”, em cuja produção se
tre a expansão do mercado de livros des- articulam distintas lógicas. Por meio de
tinados à escola, a expansão da escola- um exercício de análise que parte do
rização e os processos de consolidação cruzamento entre os manuais seleciona-
e fortalecimento dos Estados Nacionais. dos e os programas de ensino do perío-
Sem perder de vista as dimensões histó- do, seguido de um exame dos manuais
ricas da produção do livro escolar, o arti- em que se combinam métodos quanti-
go traz importantes contribuições para a tativos e qualitativos, a autora procura
reflexão sobre as atuais políticas adota- compreender o tratamento conferido à
das pelo Estado brasileiro, no que tange temática da Guerra Fria, detendo-se na
à avaliação dos livros escolares; e sobre iconografia das obras examinadas, em
as dimensões econômicas envolvidas suas articulações com o texto. Proce-
no Programa Nacional do Livro Didáti- dimento esse que lhe permite detectar
co, programa esse que, como indicam o lugar assumido pela noção de uma
os dados levantados pelo autor, movi- “partilha do mundo” entre duas grandes

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potências, encenado na iconografia que específico, naqueles que compõem o câ-
percorre os livros do período. none republicano, o autor analisa os pro-
Tal noção, como assinala Morand, en- cedimentos retórico-discursivos que dão
contra rebatimento nas imagens veicula- sustentação à construção dessa carga
das pela imprensa diária, que também dramática e catastrófica. Suas análises
passam a ocupar um lugar de destaque incidem sobre as “narrativas escolares”,
na produção dos manuais escolares. Cir- modelo de leitura que apela aos senti-
cunscrevendo suas análises ao cenário mentos das crianças, visando promover
francês, a autora indaga sobre o papel a sua identificação com os valores pos-
dos manuais escolares e, de modo mais tos em circulação e, por essa via, refor-
específico, dos manuais de história, na çar os laços sociais, interrogando sobre
constituição de representações sobre a os efeitos de aculturação que o recurso
França e o seu lugar no mundo. Chega, à dor e ao sofrimento pode produzir.
por essa via, a uma instigante afirma- Examinando os “pactos de leitura”, or-
ção acerca do caráter muito mais mítico ganizados, como assinala o autor, “sob
que científico das narrativas produzidas o signo da proximidade emocional”; os
pelos manuais. As análises de Morand elementos descritivos; os modos como
contribuem, de modo significativo, para se constrói a narrativa e como se produz
a interrogação acerca das aproximações um mundo ficcional em que deveriam se
entre as lógicas que presidem a produ- inserir as crianças, o artigo oferece ele-
ção dos manuais escolares e o funciona- mentos para a compreensão do trabalho
mento da imprensa, possibilitando, nes- sobre as emoções das crianças, que fez
se sentido, um tratamento dos manuais parte do empreendimento de constitui-
como “mídia de massa”. ção da escola republicana. Nos modos
Antônio Augusto Batista, por seu de construção dos textos analisados,
turno, indaga sobre os efeitos dos livros emergem as representações de uma
escolares no processo de aculturação criança frágil, desprotegida, desampara-
das crianças. Partindo da observação da, sujeita a constantes ameaças, envol-
da recorrência do que denomina “a re- ta em uma atmosfera tensa e dramática,
tórica da infelicidade”, traduzida na pre- cuja conduta deveria ser dirigida e guia-
sença da morte; da tristeza; da dor; do da ou, em uma palavra, governada. Os
desamparo, nos livros escolares de lei- livros escolares examinados por Batista
tura destinados às crianças das escolas inserem-se, nesse sentido, num projeto
elementares brasileiras e, de modo mais de formação do espírito das crianças.

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Analisando o caso espanhol, Anto- comercialização e dos usos dos manuais
nio Viñao Frago propõe uma reflexão escolares e aqueles direcionados para a
sobre os manuais escolares como par- compreensão da história de determina-
te da história das disciplinas escolares, das disciplinas ou atividades. Para além
defendendo a pertinência de pensar a de tal confluência, defende o autor que
constituição das disciplinas escolares a história dos manuais somente ganha
em suas relações com o processo de sentido histórico pleno, quando inse-
profissionalização docente e de for- rida no âmbito da história das discipli-
mação dos professores. Suas análises nas escolares, propondo, desse modo,
tomam como ponto de partida a inda- uma inversão em relação à situação que
gação sobre os motivos da ausência de hoje se observa, em que a investigação
uma reflexão histórica a respeito dos da história destas tem resultado dos in-
processos de disciplinarização das dis- vestimentos no campo da história dos
tintas matérias escolares, atividades ou manuais escolares. Suscita, assim, uma
áreas disciplinares, tanto no currículo de importante reflexão sobre a agenda dos
formação dos professores espanhóis, estudos no campo da manualística.
como na produção veiculada nos princi- Fica o convite aos leitores da revis-
pais periódicos especializados. Adverte, ta Pro-Posições a seguir conosco esta
nesse sentido, para os impactos de tal instigante imersão no universo dos li-
ausência nas possibilidades de reflexão vros destinados ao público escolar, em
dos professores sobre a educação e a diferentes momentos históricos e em di-
escola. Sua defesa da relevância da in- ferentes países, bem como no universo
trodução da história das disciplinas na das investigações no campo da manua-
formação docente apoia-se em aspectos lística e suas promissoras contribuições
ligados ao lugar que ocupam a discipli- para a compreensão da cultura escolar.
na e o nível de ensino, no processo de
profissionalização docente, na consti-
tuição da identidade profissional e na
configuração das culturas escolares. É,
pois, pela via da história das disciplinas
escolares, que Viñao ressalta a impor-
tância da manualística, destacando a
confluência entre os investimentos vol-
tados para a análise da produção, da

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