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Ultimamente têm passado muitos anos

Rubem Braga
           
            É inútil deixar de confessar que tenho estado cerca de quatro horas por dia vendo futebol na
televisão, e não há esperança de que isso melhore antes de 11 de julho. Suponho que o leitor também esteja
intoxicado de futebol, e então, para variar, vou contar uma partida realizada há quase 37 anos, nesta cidade
do Rio de Janeiro. Aqui está minha narrativa, com pequenos cortes:

  O jogo estava marcado para as dez horas, mas começou quase onze. O time de Ipanema e Leblon
tinha alguns elementos de valor, como Aníbal Machado, Vinicius de Moraes, Lauro Escorel, Carlos
Echenique, e o desenhista Carlos Thiré, e um cunhado do Aníbal que era um extrema-direita tão perigoso
que fui obrigado a lhe dar uma traulitada na canela para diminuir-lhe o entusiasmo. Eu era beque do
Copacabana e atrás de mim o guardião e pintor Di Cavalcanti. Na linha média e na atacante, jogavam um
tanto confusamente Augusto Frederico Schmidt, Fernando Sabino, Orígenes Lessa, Newton Freitas, Moacir
Werneck de Castro, o escultor Pedrosa, o crítico Paulo Mendes Campos. Não havia juiz, o que facilitou
muito a movimentação da peleja, que se desenrolou em três tempos, ficando convencionado que houve dois
jogos. Copacabana venceu o primeiro por um a zero (houve um gol anulado porque Di Cavalcanti declarou
que passara por cima da trave; e, como não havia trave, ninguém pode desmentir). O segundo jogo também
vencemos, por dois a um. Esse um deles foi feito passando sobre o meu cadáver. Senti um golpe no joelho,
outro nos rins e outro na barriga; elevei-me no ar e me abati na areia, tendo comido um pouco da mesma.

  A torcida era composta de variegadas senhoras que ficavam sob as barracas e chupavam melancia.
Uma saída do center-forward Schmidt (passando a bola gentilmente para trás para o center-half) e uma
defesa de Echenique foram os instantes de maior sensação.

  Assim nos divertimos nós os cavalões, na areia. As mulheres riam de nosso "prego". Suados,
exaustos de correr sob o sol terrível na areia quente e funda, éramos ridículos e lamentáveis, éramos todos
profundamente derrotados. Ah, bom tempo em que eu jogava um jogo inteiro – um meio-direita medíocre
mas furioso – e ainda ia para casa chutando toda pedra que encontrava no caminho.

  Depois mergulhamos na água boa e ficamos ali, uns trinta homens e mulheres, rapazes e moças, a
bestar e conversar na praia. Doce é a companhia dos amigos; doce é a visão das mulheres e seus maiôs, doce
é a sombra das barracas; e ali ficamos debaixo do sol, junto do mar, perante as montanhas azuis. Ah, roda de
amigos e mulheres, esses momentos de praia serão mais tarde momentos antigos. Um pensamento
horrivelmente besta, mas doloroso. Aquele amará aquela, aqueles se separarão; uns irão para longe, uns vão
morrer de repente, uns vão ficar inimigos. Um atraiçoará, outro fracassará amargamente, outro ainda ficará
rico, distante e duro. E de outro ninguém mais ouvirá falar, e aquela mulher que está deitada, rindo tanto sua
risada clara, o corpo molhado, será aflita e feia, azeda e triste.

  Atravessarei o ano na casa fraterna de Vinicius de Moraes. Estaremos com certeza bêbados e
melancólicos – mas em todo caso meus amigos, se eu ficar melancólico, farei ao menos tudo para ficar
bêbado. Como passam os anos! Ultimamente têm passado muitos anos. (Dezembro, 1945)

            É verdade. (Junho, 1982)


20/06/1982
Receita de crônica
POR RAUL DREWNICK 12/08/2016

A melhor crônica é quase sempre a que nasce do nada. Quem vai escrevê-la nem está
pensando nela. Pode ser até um profissional, alguém que vive disso: de fazer crônicas para revista
ou jornal. Mas nesse dia, aquele em que escreverá sua melhor crônica, ele não pensa em texto
nenhum.
É sábado e ele acaba de acordar. Abre a janela do apartamento e um sol glorioso, de puro
ouro, o obriga a fechar os olhos por um instante. Ele enche os pulmões com o ar matutino, que lhe
traz o perfume das flores e da grama do jardim do condomínio. Já habituado à claridade, ele
reabre os olhos e vê um passarinho bicando uma flor.
Ah, ele sorri. É seu primeiro dia de férias. Como estava precisando delas. Quando ele diz que
seu trabalho o esgota, ninguém acredita: escrever três crônicas por semana era por acaso uma
epopeia? Três crônicas por semana! E sem precisar sair de casa, sem os incômodos do transporte e
os emaranhados do trânsito. Que problema havia em escrever três crônicas por semana?
Ele, meio bem, meio mal-humorado, dá sempre a mesma resposta. O problema está
exatamente naquilo: em escrever três crônicas por semana. E, fazendo o dedo médio estalar no
polegar, pergunta: pensam que uma crônica nasce assim, por geração espontânea?
Todos imaginam que é assim mesmo: um estalar de dedos e pronto! Só ele sabe o terror que
é conseguir um assunto e desenvolvê-lo. Como é penoso, pensando haver encontrado o tema ideal
e às vezes tendo escrito dez, doze, catorze parágrafos, do primeiro ao último, descobrir que tem
dez, doze, catorze parágrafos, mas não tem uma crônica. Ah, nada como um dia, como uma
semana, como um mês longe do tormento de começar, prosseguir, concluir e novamente começar,
prosseguir e concluir.  Ele suspira: como a vida, sem a obrigação de escrever crônicas, é boa.
Durante esses momentos de divagação, ele tirou sua atenção do passarinho que bicava a
flor. Agora, voltando a olhar para ele, se apavora. Félix, o gato do zelador do condomínio,
aproximou-se felinamente do passarinho e o examina com ar guloso. Mais um instante e a buliçosa
ave vai virar almoço.
Sem ter como agir, o cronista prepara-se para ver uma cena horrível. Mas o que acontece? O
passarinho não parece nada assustado com o gato e, em vez de continuar bicando a flor, canta para
ele, como uma prima-dona na ópera. E Félix, quem diria, o acompanha com miados de barítono.
O cronista está encantado com o espetáculo. E mais encantado ainda fica quando a loirinha
do sexto andar, a mais linda mulher do condomínio, caminha na direção do gato e do passarinho e
abre freneticamente a bolsa. Quando ela puxa o celular, já é tarde. O passarinho voou. O cronista
pode ver, então, como continuam belos os lábios dela, mesmo quando dizem um palavrão.
Alguma coisa maravilhosa e muito terna o faz ir para o micro, como se precisasse. Ele
imagina que a cena do gato e do passarinho talvez possa ser apreciada pelos seus leitores.
Vai escrever a crônica e testá-la, na volta das férias. Faz muito tempo que não se sente
assim. Tem o prazer que tinha quando ainda nem pensava em se tornar um cronista profissional,
quando era um amador. Envolve-o uma sensação de honestidade. Parece justo, isso. Afinal, os
leitores são amadores, não são?

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