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MOVO AS MÃOS QUEIMADAS SOB A ÁGUA

Casé Lontra Marques


DANÇAS, GESTOS, CANTOS
UM

COMENTÁRIO À CALMA:

Não vejo seu corpo estremecer com o próximo passo, incerto do assoalho talvez
inexistente, da terra tantas vezes aberta, de uma pedra

a outra pedra, como uma boca — não falarei de abismo — convidando a uma lenta
queda; não vejo seus olhos pesarem sobre

as imagens, carregando o espaço com uma presença que se desdobra sobre a vastidão
dos móveis; nem vejo

seus dedos hesitarem diante de um objeto, duvidando tanto da consistência das louças
quanto da materialidade das mãos; apesar de desconhecer

o destino do seu silêncio, sei que está segura; a fluência dos gestos — mais próxima do
prazer que do pânico — confirma uma segurança

que não me deixa exagerar quando descrevo como hedionda; atenta a tudo que sua
mudez oculta, não nomearei a lava que ainda leva na língua

[3]
COMENTÁRIO À CATATONIA:

Vozes que nunca me viram já me contaminaram.


Coleciono
Sentenças que se impõem
A mim como
As paredes desta casa,

Cujas
Vértebras, cujas pilastras,

Apesar
De reconstruídas,

Permanecem

Deformadas. Ninguém precisa lembrar


Minhas
Ausências, embora persista

O desconforto
Desta restrita paralisia. Posso

Interrogar o que jamais


Será
Atenção, mas

Sua
Vigilância — prefiro chamar de vigilância —

[4]
Não resiste

A qualquer
Respiração. Alguém

Dirá que

Descrevo o medo, ainda


Que não
Consiga explicar porque,
De
Repente, perderá
O fôlego
Da fala em decomposição.

COMENTÁRIO À CALMA:

não foi o que experimentei desde que nos instalamos aqui


nesta casa
sempre em reforma — neste corpo brutalmente exposto —

tampouco o que presencio

agora com
as armas à mostra — procurando —

[5]
a cada
hora — propor

amparo

a todos que me guardam

COMENTÁRIO À CATATONIA:

Admiro o desequilíbrio que oferta a alguém a oportunidade


de acreditar
na existência da neutralidade;

Desejamos operar um corpo que acompanhe


a fundação dos fatos
prematuramente inofensivos, repelindo

o que não for orquídea

(quando estamos
somente famintos)

porque acolhemos a miséria


mais mesquinha

(sujar as mãos
será o início de uma extensa celebração)

[6]
DOIS

Quem não pode tocar procurará destruir? Aquele que não canta diz: morro quando sou
indiferença, quando estou imune ao mundo (a incerteza instala no dia o vestígio de uma
vida acidamente incisiva). Ao estender sobre o tronco outra fome, penetro, como posso,
o que me reparte, o que nos desvia em direção ao movimento

extremo. Este, sem gesto, insiste, apesar de não saber sustentar o que irá relatar: a figura
aqui manifesta não se faz nomear. Sua voz — um feixe de falas aniquiladas quando
calcificadas — não se deixa depositar sob um dispositivo

preciso, sob uma engrenagem exata. Como descrever a saliva que desliza pela ferida?
Está desperta: saio cega do hospital, ainda consegue dizer, depois de alcançar a calçada,
ainda consegue andar, decido não mais confiar sequer na luz a devastar minha vista
(sigo apenas uma perturbação assídua): exposta

ao sol do desabrigo, talho no tempo — com mãos trabalhadas pelo estímulo ao ritmo —
o rosto que restaurará

meu filho, preenchendo o espaço com alguma possibilidade de presença; embora não
pronuncie um indício de palavra, estremeço com a concentração de tantas vozes
desencontradas (seu silêncio

condensa a cegueira de experiências amputadas tanto de tato

quanto de fala). Sempre

ameaçada por uma pressa, custo a acreditar que persisto

[7]
parada: hesito, apesar de excitada, o próximo passo, continua a dizer, que me depreda,
continua a andar, que me despedaça. Descontaminada do tremor de agora, repousaria a
testa no vidro da janela — num instante

livre do vício de fácil alívio — para aprender

uma manhã desordenadamente

atravessada pela possibilidade de voragem, enquanto configuro a voz com que meu
filho construía suas inquietações, envolvendo

minha atenção num idioma a princípio pausado, logo após efusivo, cujo sentido incitava
as águas do paladar: encontro

a cor dos timbres, o compasso

da respiração, perdendo,

no entanto, a trama de intensidades

que desestabiliza a articulação das expressões mais provisórias: pressinto — mesmo


empedrada — a necessidade de inventar outro modo de tatear: tocada pela velocidade,
abro todas as pálpebras para a violência que invade minhas vozes, que revolve minhas
veias, temendo as marcas

impossíveis de me identificar, a inexistência não dos cortes, mas da pele continuamente


a se lanhar: intrometida na claridade do dia, esqueço

de fazer meus dedos buscarem alguém debaixo da camisa vazia: suspeito sobretudo das
presenças que — insustentavelmente palpáveis — povoam

[8]
as brechas dos meus breves corpos (a persistência

dos ecos de novo refeitos

tritura o junco dos seus joelhos): cubro a garganta com as primeiras mãos da manhã,
como se quisesse deter o percurso

de algo prestes a desaparecer: por mais

que insista

em permanecer inofensiva — embrulhando a garganta

nas mãos — enquanto preparo

as poucas palavras

com que iniciaremos um grito sucinto.

TRÊS

COMENTÁRIO À CALMA:

Reconheço os rancores que sobrevivem da sua voz;


Vejo que
sou estreita; que avivo, cada vez mais ávida,
uma velhice ainda contrita

[9]
Não consigo — com as articulações
recolhidas
entre britas — deixar de suspeitar

da sede que incita


este ressentimento (não faço senão pensar
na nossa
proteção, nutrindo

o organismo
que não
queremos extinto). Questiono

a mudez que desejei


ser não
mais que indiferença, questiono

sua omissão,
sua subsistência,

questiono — quase demolida —


a força
com que corrói nossas ruínas

COMENTÁRIO À CATATONIA:

escuto a chuva que recusa a cólera, que recusa o alívio


restaurando
primeiro o ritmo, prorrogo os riscos de sua sintaxe

[10]
(são águas que não nos devastam
se
ainda nos tocam)

não temo que a casa acabe alagada

apenas
não suporto pisar

os estilhaços da vidraça?

por enquanto, estamos


em estado
de urgente necessidade:

aproveitem

a insônia — em que não há


nem
desistência nem aceitação —

antes
que qualquer

sintoma

de sono erga

[11]
outra

estiagem

COMENTÁRIO À CALMA:

Minha desconfiança possui fronteiras estreitas;


percebo,
já a desmoronar, que meu corpo

evita sua presença (mesmo que jamais


esteja imune

às suas palavras). No entanto, a iminência

de um crime
também me excita,

ainda
que eu — tão remota, tão antiga —

continue
extinta, provocando

algumas iras onde

apenas

[12]
encontraria

atrocidade

COMENTÁRIO À CATATONIA:

Não produzo as vidas que sua vigilância vela:


para
nos poupar do peso da interpretação,

eu explicaria

— apesar
de toda pobreza — a fonte destes frutos,

a natureza
desta terra: apesar de toda pobreza,

entendo que procure dilapidar


qualquer
indício de diálogo: entendo também

que será

exaustivo — para quem


não
costuma senão grunhir —

[13]
a necessidade

de
calar — sem
concessões — por muito

mais
que um minuto, manipulada

pelo
espanto de

uma
perplexidade

quase
esquálida

QUATRO

Ela — com as mãos afastadas da boca — repete que da porta


do hospital pode
perceber, em torno da praça a ser demolida, a cidade
trepidar em reconstrução
compulsiva, combatendo
meu crânio a cada pedra partida;

[14]
diz que o trabalho das máquinas — presente por toda
a quadra, brusco
apesar de previsível — tateia
traumas no meu tórax: o estardalhaço, debruçado
sobre
os tímpanos, confronta

a imobilidade que inutilizará


meus músculos (que abreviará meus braços

sob um circuito
de céus abruptos). Diante de mim, uma mendiga

equilibra, próxima à cabeça protegida por malhas


destroçadas, uma massa
de mãos encardidas, tão concretas quanto a calçada;
escuta: invejo
seus olhos, suas rugas,
seus dedos, suas mágoas; escuta: talvez a manhã prove
minha pele, quase
aterrorizada, como quem esmiuçasse
um fruto; escuta: contra a potência da repulsa,
faço sua respiração

retornar a meu rosto; escuta: o calor pouco


a pouco expelido
condensa o suor que
queremos maciço, compondo um espaço
à parte para
o contato agora provável. Aquele

[15]
que não canta diz: dissipo algumas asfixias ao simular a pausa
que anuncia uma fala;
depois de ganhar um gole
de fôlego, deixo o diafragma intacto até um resquício

de ruído despontar. Este,

sem gesto, murmura que o movimento


da língua, mesmo ao largo

de alguma voz, agita um sinal

de saliva que ainda


consigo chamar de vida. A brutalidade

suspende o silêncio, suspende o debate: a brutalidade — quando

impõe
sua presença — expõe a impossibilidade

do pensamento, a brutalidade que, sufocando


o som, amanhece
sob a inanição? Ela — com os braços
distantes
do corpo — repete que mantém a tensão

[16]
trancada entre os dentes, capaz de umedecer a argamassa
do cansaço;
diz que pode fazer a mendiga desaparecer, que pode dispersar
suas marcas,
incinerar seus ossos; escuta: posso afogar
nossas falhas;
escuta: posso inventar
um vento
incisivo, uma presença assídua;

escuta: posso inventar uma manhã unânime; escuta: posso


fabricar a imagem
de meu filho, recortando as retas do rosto,
explorando

as imperfeições da pele, enquanto semeio — minuto

a minuto — as feridas
que tentarei cicatrizar. Apesar do ritmo

produzido pelo
súbito exercício, acompanhar

o corpo a caminhar não anula

a violência da imobilidade vinculada


tanto à paralisia
quanto à velocidade; pensa: a inanição,

[17]
ciente da nossa vigília, prorroga a quietude que, contornando
as têmporas, pressiona
o pânico; pensa: às vezes, quando esqueço o silêncio que
já chega
em chaga, mergulho no corpo
algumas palavras, até que
o espanto, expandindo
os pulmões,
estremece as vigas entre os vãos da visão.

CINCO — REABILITAÇÃO DO PALADAR

(A) PELA CISÃO DO SILÊNCIO:

PRIMEIRO EXERCÍCIO

Carrego do meu ser de sobrevivência


a poeira
de perturbações cuja

incidência sustenta as misérias


que formam
suas forças

com
minuciosa ferocidade, carrego

do meu
ser de concisão os escombros

[18]
que restituem minhas mãos
ao
chão onde

preparo — à volta
de uma escrita

talvez
desmedida —

as horas que extraem


da
aragem as fagulhas

de
fôlego cedidas

às
sendas

distribuídas

pelas

feridas

[19]
SEGUNDO EXERCÍCIO

Quando o pânico petrifica o passado


(quando
o pânico amputa

a potência do passo)

Quando a mudez recobre a pele


(quando
a mudez esfacela

a fibra da febre)

reafirma — apesar da exaustão,


apesar da letargia —

que acredita na água,


na
ferida — viva —

da
palavra

— cada
vez
mais — ávida:

uma
forma de fala —

[20]
uma
língua na lâmina

— cada
vez
mais — híbrida

TERCEIRO EXERCÍCIO

a caixa
craniana

aberta
ao
impacto

produzido

pelo
pulmão

dentro

do
granito

[21]
a caixa
craniana

recupera
do
silêncio

entre
os ossos

a ansiedade

que
não

a incinera

a caixa
craniana

alerta
como a pedra

que
pesa

[22]
num

grão
de
grito

como
a chuva

que
busca

a boca
durante

a luta

a caixa
craniana

desperta

sobre
a extensão

do tédio

que
retém

[23]
as tensões

por
onde

o tempo
tentará

voltar
a
oscilar

(B) PELA PULSAÇÃO DO PULMÃO:

QUARTO EXERCÍCIO

a reocupação do pulso
sob
a febre — que a vertigem reverbera —

sua
áspera ossatura

(uma cisão)

ao
oceano — agora

implanta

[24]
(pelo
canto)

o paladar:

desde
o cerne

— como um pomo de pus —


rastros

de claridade

(pela
arcada)

despejada

rente
ao
chão roído

por

mais

[25]
um

urro

QUINTO EXERCÍCIO

Quando o dia desidrata a vigília


(quando
o dia mutila

as iras da pupila)

Quando a noite inutiliza a paisagem


(quando
a noite desativa

as engrenagens da voragem)

reafirma — contra a coação,


contra a covardia —

que acredita no corpo


em
combate — um corpo de desvios,

de afetos,
de lapsos,

de rangidos — acredita
neste corpo

[26]
ainda
vivo, por entre

ares
tantas

vezes
rarefeitos

um
corpo inscrito

na acidez

onde
ressoam signos

de

aproximação

SEXTO EXERCÍCIO

(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)

uma memória que represa


trevas,
que restaura ritos?

[27]
(DE SOBREAVISO)

apesar da distância, sei que avanço


por
uma sombra;

desconheço,
no entanto, a noite

que a envolve,

o dia
que a habita

(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)

às vezes, continuo a caminhar


porque
não quero me interrogar;

porque guardo
as mãos mutiladas,

sem poder

criar
o que pretendo

lembrar?

[28]
(DE SOBREAVISO)

duvido do que há para


rever,
do que há
para
recordar

(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)

nossa visão não consolida


nenhum
contato porque

recusa
qualquer colisão

(DE SOBREAVISO)

ainda assim, vivo algumas


imagens;
são vigas erguidas

nas retinas,

[29]
que
impedem

o cansaço

de se instalar

(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)

o que há para
rever,
o que há
para
recordar?

(DE SOBREAVISO)

invado uma visão inventada,


cuja
instabilidade não prejudica

minha
elaboração,

pois a faço
nascer não do esforço,

mas
do fracasso

[30]
da precisão; uma visão

que
atiro ao atrito,

que
lanço à laceração;

uma visão

de que me destituo
para
a manter em constante

conflito,

em
constante

construção,
como
o murmúrio

a que me vinculo

quando
intrometo

o meu
desconhecimento,

[31]
a minha
insuficiência

no intervalo
de um tempo

dedicado — apesar de escasso —

à extensão,
tentando ver,

tentando
mastigar o que também

puder se doar,
depois
de penetrar o abandono,

a incompreensão,

o que
também

puder se expor

a um ritmo
quando

muito intuído,

[32]
que
nos sobreleva

enquanto
respiramos

apenas
coagidos

[33]
DA FÚRIA PELA FALA
A.

CORO: O CORO — TRECHOS DE UM CORO MAIOR —

Ainda percorreremos paisagens que descrevemos


como desoladas por não querer
desperdiçar qualquer delicadeza

O destino
da nossa andadura

será definido? Quem tentará instruí-lo


como
a um cão escorregadio?

Os sistemas que se deslocam


estacam
quando circulados pela

imprecisão dos passos não mais


conciliados
às sombras da clareza
em
que se deita

por

inanição. Pede-se repouso — não fôlego —


para
a manutenção do desconforto. Pede-se

[35]
com o rosto encontrado
entre dunas de calcário

Descemos pela cicatriz


no dorso
da insistência: o solo

que nos solidifica costuma aceitar


o lençol
das manhãs após
lavar suas lesões
nos lagos
sulcados na nossa saliva

CORO — DOS QUE SABEM O ESQUECIMENTO? —

Suas paisagens não anunciam nenhum


indício
seja de ordem seja

de linguagem. Suas paisagens: percebemos

que apodrecem apesar


de persistirem
atravessadas — como pilastras —

nas vias
da vigília

cada vez mais contrita

[36]
(Desenterramos os pomos que desprezam
escavando
sob a brita descarregada
onde
descobriríamos seus rastros)

Ouça-se
o que erguemos

ao enfurecimento:

Ouça-se
o que não

será monumento:

Guardamos
nas
frestas da pele

as vozes

que
nos ferem

entregando

[37]
o tórax
ao estalo

de
outros talhos

CORO: O CORO — TRECHOS DE UM CORO MAIOR —

Também o apodrecimento incita à insistência


(por mais
que procure
despencar do desalento)

Embora combalidos, não apodrecemos

sobre
os gestos

com que perturbamos o tempo —

sobre
as frases com

que
consumimos

o desconhecimento

(as ruidosas
referências convergem

[38]
para
o vértice que expõe

a vida
ao
ventre

de nossas vertentes)

CORO — DOS QUE SABEM O ESQUECIMENTO? —

Para poder persistir com a coluna deslocada?


porque
as vértebras — já violadas — vociferam
das
ferragens impostas à tempestade

Ouça-se
o que erguemos carregando

as vigas
do vento

Ouça-se — apesar do estrago —

o quanto
não cedemos

Atrás
das estradas da sede:

[39]
não
preservaremos

as suturas

que sustentam

o punho
quando

suspendermos

suas

fraturas

B.

Carrego do meu ser de insistência


O canto
Onde deitar a instabilidade que

Arranca
Das
Águas um braço

De
Sarcasmo

[40]
Carrego
Do meu ser de sigilo

Carrego

Por
Seus silêncios

Por
Suas fissuras

O campo
Onde propagar a precariedade

Que insere
Na sintaxe

O rangido de um bulbo

Revolvido
Pelas raivas

De
Um vício

Ainda

Propício

[41]
C.

AQUELA QUE DIZ: TAMBÉM TENHO MEUS ÓDIOS:

Precisamos não estender os silêncios, não abreviar


as palavras. Podemos
apreciar sua sensatez, jamais arruinar
seu rigor. Meu ódio
não nos conduz a nenhuma cólera. Repudio

o rancor que não se cala, decidindo não colaborar


com o desconforto
que contamina esta casa. Ao buscar o esquecimento,

percebo que tenho acumulado


a memória
de incessantes assombros. Ainda

procuro contornar a catástrofe. Não criei


o crime que cresce
entre nós, enterrando
estacas nos pontos onde apoiamos as omoplatas.

PRIMEIRA INTERSEÇÃO:

dirá: Entendo que não encontrará plenitude, mas alegria; dirá: Uma alegria que não
receia a euforia, uma alegria tão apática quanto a catatonia; dirá: Entendo a alegria de
não andar, de não dormir, de não correr, de não cair; dirá: Entendo, apesar de
desconhecer a solidão que ressoa, como uma víscera, assim que lançada à fuligem

[42]
COMENTÁRIO À CATATONIA:

Rigor não se reduz a contenção;


Sua geometria
Compreende tanto a dispersão

Quanto a disciplina. Contra


Todo
O meu esforço, tenho admitido

Um grunhido
Que não quer cessar; conceba,

Como puder,
Esta
Conciliação: cansei de pisar

Os escombros
De uma ainda improvável

Comunicação;
Claro
Que sou desagradável: não confio

Em quem
Não se afaste

Dos meus prazeres,

[43]
Em quem
Não se afaste

Dos meus males:

Aceito, no entanto, aqueles que

— Incapazes
De concordar —

Dedicam o dia a uma

Demorada
Desorganização: diante

Da sua paralisia, —
Presença
Que me retifica, —

Estou

Próxima — não hesito


Em
Concluir — de acordar

Sempre
Mais estilhaçada

[44]
SEGUNDA INTERSEÇÃO:

dirá: Amanheceremos afogadas


em palavras
claras; dirá: Nossos
sons
não nos alcançam, nossas
chuvas
não nos assediam
porque
ainda nos assolam

até
conseguir emitir — já a ampliar o paladar —

a experiência da paz
que
regressa

(como
uma dança)

ao nervo

da
devastação

[45]
D.

Carrego do meu ser de insuficiência


as unhas
fincadas na raiz das ramagens

impostas
ao medo que desarma

as vidas
dedicadas

à voragem

Carrego
do meu ser de solidão

o alarme
que povoa a carne

junto

ao enigma
que
multiplica

[46]
suas
vigas pelas

veias
da exaustão

E.

Levanto com a coluna castigada, de novo decidida


a reconstituir
o rosto do meu filho; preciso acolher
suas
misérias; preciso observar suas precariedades,
prever
seus medos; preciso reafirmar
suas vontades. Seria
inútil preparar o punho para

um golpe de cólera, para uma revolta


cujo
alvo — agora arredio — pretendo
fazer viver no meu
corpo
mais pacífico? Aquele que não canta

diz: quando o sol recusa a queimadura


acesa pela
minha cabeça inteira, perscruto
a manhã

[47]
atrás da fresta onde aninharei
uma
sobrevivência da mesma
maneira
que a andorinha
aninha sua cria (protegendo
sobretudo
a estridência de uma frágil

intensidade). Este, sem gesto, insiste


que a figura
aqui manifesta, animada pela iminência
da formação
de um afeto, murmura, talvez

dedicada ao inaudível, as sílabas de um nome


quase
imprevisto, que se esfacela,
já inativo, antes de fabricar
a faísca de uma ferocidade. Nada ferirá
o rosto
que resguardo para oferecer

a meu filho, o rosto repousado sob


a claridade
que recrudesce
o contato
a ser restaurado (como não deseja

[48]
provocar a vista, identifica apenas um vestígio
de vozes
no instante em que, destituído
dos sentidos, o que resta

do corpo se dispersa por uma violência


tanto
mais vasta
quanto
mais deserta). Aquele

que não canta diz: começo a reaprender


o burburinho
do sangue sob a perplexidade da pele
exposta
a um sol incisivo; diz: manuseio
meus
músculos com a delicadeza

do espanto diante
da
destreza, capaz

[49]
de explorar a força que me permitirá
construir
o vento para voltar
a avançar. Este,
sem gesto, insiste
que a figura aqui manifesta,
animada
pela iminência

da formação de um afeto, murmura, talvez dedicada


ao inaudível,
as sílabas
de um nome quase remoto,
que
ressuscito — com os lábios

deformados — depois de reunir


seus
detritos. Escuta: entre as lâminas
de luz
que perfuram minhas

pupilas, adivinho a criança cujos dedos crescem


pelos
meus cabelos. Escuta: experimento
o sopro
que arranco da letargia, contra

[50]
os escombros

do abandono,
contra
as ferragens da apatia,

palmilhando — pelo dorso da solidão —


vidas
próximas da alegria,
vidas a que dedicaremos
o nosso
cansaço, a nossa euforia,

mesmo quando consumidos, porque não traio


meu filho
ao aceitar outros lapsos, outros abrigos,
outros cuidados,

outros rangidos, sua imagem, como ainda


podemos
verificar, como ainda
podemos perceber, persiste

no meu corpo

mais sadio,
espancando

as comportas de minhas córneas.

[51]
F.

Por que estas palavras atiradas à superfície da fala?


uma
ave — talvez água — ávida:

concedemos à sonolência
dos
seres

de sono escasso

o rumor
de uma memória em que

o medo,

a areia, o êxtase,
a sede,
o palco compõem

a ponte

para
outro

[52]
descompasso. O texto

do
encontro. Inventa

o retorno,
o avanço. O rastro: vigio

ao redor do mutilado, tateando

por
entre a poeira; narro

— quando
não
nos ouço — o necessário

sobre
seu passado. Corrijo:

sua voz — seu corpo, híbrido —

inventa
o relato,

o fôlego: esmaga, com

as mãos
retesadas, o espaço

[53]
que
repousa

nos joelhos,

o espaço
despejado

pelo dia que o silencia,

pela
noite

que o cega, o espaço

resignado a qualquer

ausência,
a qualquer

afago, resignado porque

não se quer
derrotado (apesar de combalido),

nem
interrogado

[54]
(apesar

de
compulsivo),

reconfigurando — depois

de aliciar
o aleatório, depois

de
elucidar o latente —

o espaço: para
o parto; o espaço: para a paralisia;

o espaço:

para restaurar — ruidosamente restaurar —


a saliva,
o bulbo, a cica, o sopro que

forma
o fogo; o espaço:

para
apascentar

a apatia;

[55]
o espaço: de uma língua
de
alumínio: o espaço:

de um crânio

de
cobre:

o espaço: como um trinco


na
traqueia: o espaço: como

uma teia

de
válvulas

nas
veias,

como uma teia (uma trama

não
de atalhos,

de trincheiras) que

[56]
estende
o
circuito

(pelo

signo) de novo

nítrico

do sangue

[57]
TUDO QUE AINDA TOCA?
UM

AQUELA QUE DIZ: TAMBÉM TENHO MEUS ÓDIOS:

Experimento um gole da sua angústia, expondo a garganta ao desassossego sem


qualquer perspectiva de receio; experimento um gole da sua angústia porque ainda não
descobri um modo de não me reformar, de não me reconhecer nas cinzas das sentenças
que nos consomem quando não são proferidas. Não confundo nossos corpos, nossos
gestos, nossos atos: aproximo, no entanto, nossas experiências — suportando o calor
que começa a pulsar na nuca (ao alcance de uma força que não quero oculta) sempre
que nos preencho, sempre que nos combato (não pretendo inutilizar a atrocidade
eliminando seus estragos). Reafirmo, com a voz quase nula, nossas omissões, nossas
violências, nossos pactos, apesar de desejar — nestas circunstâncias — a dissolução
deste contato, até pressentir na pele — como um cancro — o halo do seu hálito.

COMENTÁRIO À CATATONIA:

Tenho necessidade de solidão, apesar de poder


Ignorar
Sua corrosão; tenho necessidade
De saber
Que percorro os móveis como a única

Presença a projetar

Alguma sombra sobre o assoalho


Sem precisar
Contornar os corpos que

[59]
Recusam sua ausência: não quero

Recordar a presteza
Dos passos, a persistência

Das lembranças com

Que começamos a nos desorganizar,


Estimulando
Um mínimo apuro, ainda que

Desconheça nossa destreza;

Insisto,
Talvez tarde, na ceia:
Comam
Até o fim,
Com
As mãos da desinibição

AQUELA QUE DIZ: TAMBÉM TENHO MEUS ÓDIOS:

nossa ligação independe de escolha,


assim
como a sombra

[60]
sem força que me impede, contudo,
de suportar
sequer os planos para um passo

de que adianta,
então, colecionar recusas; de que

adianta
satisfazer, durante a ceia,

esta áspera placidez?

não precisa calar, não precisa emudecer


ao me negar,
ao me esquecer, ao me eliminar

como compreender sua solidão


em vez
de reconhecer — com um rigor já penitente —

a dor que
sua angústia não pode

explicar, a consistência
não apenas

da indiferença
mas, sobretudo, do torpor

[61]
COMENTÁRIO À CALMA:

Erraríamos ao pensar tanto em pretensão


quanto
em opulência. Nossa solidão, com
a medida agora
concisa,
não procura — distante
de todo excesso —

nem
o isolamento

nem a aniquilação. Não aceitaremos mais


o que
ainda for angústia;

a dor — alheia ao nosso


asco — irromperá

de qualquer
movimento —

de qualquer

[62]
omissão. Deter seu inchaço será
uma maneira
de ceder à exasperação,

por mais que nos empenhemos


em submergir

— dia
após dia — na calma

comum

à covardia; desprezamos
o tédio,
reacendendo, no entanto,
aquilo
que nos ancora
pelo
menos à distração.

DOIS

O atrito do tato em torno do toque poderá dilapidar o desamparo


Que mantemos
Intacto? Aquele que
Não canta diz: também em vão preparo
Um grito,
Porque ainda não concordaria com a interrupção do exercício;

[63]
Condicionado ao deslocamento
Contínuo, removo, do desprezo, os entulhos,

Os destroços do desapego. Este, sem gesto, pergunta, com a voz


Que reconhece
Sempre que a lança da boca mais abrupta: planejo, contra um provável

Desaparecimento, os traços que permitirão a meu filho


Inaugurar um rosto

Frente a qualquer ferida? Ela — erguendo o arco


Das
Espáduas — depara o desvelo

Dos cães de novo


Em seu corpo, soldando a pele a um surto

Sem fraturas,
Enquanto a manhã sobrevoa nossa fome

Com as mesmas mãos que manipulam


Outro fruto
Sobre a mesa há pouco
Exposta; apesar das costelas

Cravadas nas minhas canelas, estendo a necessidade

De novos espaços, diante da insistência


De obstáculos
Obstinados, pois compartilhamos

[64]
Prazeres intensificados pela surpresa
De um contato
Em princípio de espasmo? Ela — esticando a haste
Do
Pescoço — retoma,

Mais uma vez, o diálogo, depois de extirpar

— Com os braços enterrados


No tórax
Do sarcasmo —

Outros miasmas de mudez, outros coágulos


De cansaço. Quantas
Vezes, escuta, quantas vezes perturbei o sossego
Da espera,
Quantas vezes encontrei,
Escuta, quantas vezes
Encontrei no seu silêncio
Um sinal
De luta? Apesar
De distante,
Escuta: pressinto uma fagulha

[65]
De palavra ainda não infeccionada,
Uma fagulha
Atenta a qualquer estímulo
Que nos permita angariar
Um ganido
Em meio à aberração
Da falta
De fala; escuta: não aceito a impossibilidade

De pronunciar

Algum murmúrio, porque ultrapasso


Minhas
Cegueiras, meus ensurdecimentos,
Porque
Ultrapasso o que me quer
Esquálida,
Porque
Arrasto as mãos pelo chão,
Aprendendo
Sua aspereza, sua espessura,

[66]
Porque arrasto a cara pela água, observando
Sua densidade,
Sua desenvoltura, porque
Não combato
Apenas pela vibração
De uma ausência
Recente
Repelindo a pulsação
Da dor que
Ignoramos
Ao calcular
Os estragos mais evidentes.

TRÊS

AQUELA QUE DIZ: TAMBÉM TENHO MEUS ÓDIOS:

Confio em suas palavras, mesmo que ameaçada de cegueira; confio em seus atos,
reduplicando inclusive um gesto quase ríspido; discordo apenas de que nossa solidão
admita medida; embora não assedie nenhum excesso, desconheço o que seja suficiente.
Por isso, bebo outro gole da angústia

instituída: bebo, com a boca escancarada, para que o caldo escorra, veementemente, até
pousar num ponto entre meus eixos. Posso absorver

uma expressão de pânico; um esgar, uma náusea; sem perder a dor diante do desprazer.
Neste jogo

de júbilo, o lábio — mais uma vez

[67]
estilhaçado — estala, tão seco quanto a sede que persegue — pelas frestas da gengiva
— o último sinal de saliva. Porque um crime cresce

entre nós, latejando em nossas

têmporas; cresce além do crânio; cresce com medo; entre sutilezas, entre atrocidades;
cresce como

cresce uma crueldade; porque um crime

cresce não busco traçar

nenhum limite. Caso pudesse andar, eu teria

o que combater, o que tatear,

o que apreender; sei que

seria pouco, contudo,

o que empunharia ao me arriscar.

PRIMEIRA INTERSEÇÃO:

dirá: Não possuímos o privilégio de invadir o vento; dirá: Somos, sem nossas marcas,
sem nossas feridas, uma malha de brisas abstratas; dirá: Lutamos, no entanto, por
alguma vida; dirá: Nossas armas não são nem o esquecimento nem a brutalidade; dirá:
Nossas armas são as faces que nos sustentam quando estamos à espera, tateando, entre
detritos de paciência, a paisagem intrometida nas fendas da expectativa

[68]
COMENTÁRIO À CALMA:

Decompomos os ombros
submetidos
a uma mudez assídua

(Decompomos
os ombros que não deixamos

demolidos

sob o aço
do nosso asco)

imprimindo
obstáculos à passagem

inutilmente
tumultuada (à passagem

inóspita,
apesar de restaurada)

Com
a arcada já desnecessária

(Com
a arcada reconstituída

[69]
depois

de calcinada) mantenho
as mãos
incapazes de alcançar

a cisão
que devasta

nossa visão

(a cisão
que infecciona

a vista
revolvida pela

pulsação
na
água da pupila)

SEGUNDA INTERSEÇÃO:

dirá: Pode ser que eu tenha sido ofensiva, participando


do que procurava
nos limitar; dirá: Pode ser que eu tenha
sido ofensiva,
recompondo a capacidade que temos de nos dispersar

[70]
até
conseguir engolir — com um trinado nos dentes —

um pouco de paz
bebida na pétala

(rompendo
o pulso)

em profusão

dirá: Pode ser que aprenderemos


da
cor — sua espessa

ossatura; dirá: Pode ser que

sorveremos
do
som — seu exílio

mais
incisivo

até
conseguir demolir

[71]
— depois de decalcar o gesso do suor —

as paredes
que preservam a paz (com

um ramo

de
rumos) na rota refeita

para
o deslocamento noturno

QUATRO

De uma tentativa de narrativa, lê-se por todo o dorso; no chão do chamado, no chiado da
dispersão; conheço um céu incontrolável: neste instante insidioso, permitirá que os
braços se amontoem embalsamados? O que volta ao vértice de uma vibração violenta. O
que retorna à origem de um ritmo
híbrido: o degrau do delírio, que condensará as larvas (uma medula de larvas) em cada
pedra na brasa (no bulbo da brasa), nas convulsões da claridade
que revolve o mármore: uma pele
de espasmos? Reparto
meus corpos entre os cães; imagino, no entanto, que não me mastigarão (sou difícil de
deter nos dentes): cada um contará, não concluo se satisfeito, com sua cota de carne,
com sua fração de afeto; todas magras — mas medidas: assistirei quando, em qualquer
quadra da cidade, arrancarão

do embrulho de fibras

[72]
uma efusão de violência pronta para fruição, reconhecendo que o cessar inesperado do
som antes ensurdecedor, em vez de provocar qualquer alívio, restaura o deserto em
redor, envolvendo a ausência revivida a cada palmo, a cada metro mapeado por uma
visão concentrada em rastrear

sinais de inanição. Lê-se por todo o dorso; uma falsa ferocidade, uma rara rarefação?
Seu sangue desliza
pela estrada — até a espinha, por onde escorre a cólera — num golpe: como descrever
sua textura? (calculando
coágulos): a figura (grafa-se sua voz): na estrofe — uma engrenagem
de grave carnadura — estaca; na grade
da esganadura: que não a retém (sua imagem — quando estala — modifica o silêncio —
incipiente sob a água — sabendo infiltrar

na fome esta faísca

de asfixia). Respirando contra o cansaço, acompanho os animais desmembrarem o


grupo prematuramente impelidos por uma súbita implosão; depois de partirem acho que
desconfiados acerca da nossa oportunidade

de contato, seguirão de alguma forma fendidos pelo desconforto que nos reunirá em
oferta a meu filho. Dança, fora de hora; mas dança: agora, em que

conserva — nas órbitas mais sucintas — paisagens


incendiadas;
agora, em que — além de trilhar

corpos também carbonizados — percorrerá cidades onde seu filho a associará ao sol
mais insensato: prestes a ficar paralisada, faço o que posso a fim de afastar meu filho;
escondo

[73]
minha repulsa; escuta: apesar de eivada de vontade, escondo minha repulsa; não quero
criar conflito; contudo, preciso; escuta: preciso da sua inexistência

para respirar; preciso ruir para me armar, com incerta


consistência, mantendo
os dentes, os olhos, as línguas, os ossos na luz;

escuta: há o tempo

consumido (a que não se consulta);

escuta: há a saliva — lapidando o urro —


que
nos debulha, como a uma pupila,

em torno
do hálito que excita a ferida,

que incita os dedos

à dor, mesmo quando submetido à paralisia.

[74]
CINCO — REABILITAÇÃO DA AUDIÇÃO

(A) PELA CONSTRUÇÃO DA MÃO:

PRIMEIRO REINÍCIO

Não pertenço mais à minha dor. Afasto de mim este coágulo


coagido. No entanto,
não alcancei
ainda o corpo que preparo, de um modo que não compreendo,
para
o canto, supondo
que tenho
tempo; digo: aceito o movimento

convulsivo; digo: o movimento


convulsivo que impediria

a escrita — não fosse o fluxo


que dissolve,
que despedaça — mais uma vez —

a paciência

para o que nos calcinaria (mergulhando


uma palavra
na medula da mudez que a ameaça)

[75]
SEGUNDO REINÍCIO

(APÓS UMA PAUSA)

todos os sinais atuais perfuraram a poeira que logo os petrificaria, sem que se
dissolvesse o sono de repente inóspito; pertencem também à nossa ossatura —
implodindo a palavra a que estamos expostos: finalmente ignoramos as gravuras que
gravitam na garganta — como traçar novas rotas: como suscitar novos ritmos se as
cidades que habitamos são as mesmas que demolimos?

(ANTES DO SOBREAVISO)

com o futuro encolhido sob a sombra de um passado improvável, de um passado


soterrado apesar de ausente (diante da impotência de um tempo cauteloso, de um
presente antevisto prolixamente): alguém responde, sem espanto; alguém que não
consegue calar: nem corroer nem consultar: o passado definido, o passado imobilizado
para o fascínio — inofensivo — de um pânico também calcificado

TERCEIRO REINÍCIO

Na imagem pela voragem da linguagem


outra margem
para a imagem da voragem

na palma
da paisagem

a erupção da aragem

[76]
na veia
da voragem

a linguagem manipulando a margem

imersa
na imagem

da aragem

a colisão como engrenagem


da viagem
pela voltagem da voragem

que interroga
a linguagem

como gangrena
na paisagem

expulsa da aragem

outra imagem
como
paisagem na gangrena

da linguagem

que
interroga

[77]
a engrenagem

da voragem
na
clavícula

da viagem

voltada
à voltagem

(B) PELA FISSÃO DA FALA:

QUARTO REINÍCIO

Carrego do meu ser de violência


a voz
com que reconstruo sua
lenta permanência;

carrego
do meu ser de desabrigo

a fenda
onde instalo

o fogo

para
a formação

[78]
de
outra fúria,

a fenda

que
emerge como

o lábio

no caule
de
uma colisão

QUINTO REINÍCIO

O vazio na vertigem: fluxo que revigora


Corre
pelo halo

da corola — símbolo
silente — recompõe

a corrosão
(da memória): Um lapso

no espelho — deforma
sua
hora —

[79]
um
claro lapso

(Desde
o vértice — revirado) —

sóis
interrogados pela

inquietude

de
um pássaro intacto

SEXTO REINÍCIO

Pelo tempo de possuir aquilo que renasceu,


aquilo
que vemos na areia do vidro a vibrar
rente
às retinas, colhidos
pelo
espanto, antes de alcançarmos

o desperdício, aquilo que repartimos porque


ainda
questionamos o que percebemos,

[80]
porque ainda abrigamos, como parte do braço,

do fêmur, como parte do baço,


do silício,
do aço em nosso fígado,

porque ainda repelimos, porque ainda violentamos

o que acolhemos; pelo tempo


de
possuir aquilo que renasceu

atravessamos — com as espáduas


mais
próximas das chagas — a ausência

do frio
que nos infecciona,

do calor
que nos corrói: atravessamos,

sobre a água,

[81]
seus rangidos, torcendo
estacas
enterradas até o torpor,
ante
um silêncio

excessivo,
silabicamente arremessados

a uma fala
que nos massacra,

a um balbucio
que nos confina (exceto quando o despedaçamos)

num ritmo inativo

(cujos núcleos reativamos


sempre
que nos mantemos vivos): ao deslocar

a coluna

pela úlcera, duvidamos da materialidade


da
manhã,

[82]
da densidade da noite que, distantes
de
toda bruma, alavancamos
do marasmo, já a prever

o rumor de um ato
árduo,
que de repente atinge

uma
intensidade imprevista,

apesar de permanecer circunscrito


ao
próprio limiar, o rumor

que se abstém de produzir

qualquer
estupor, que se abstém,

portanto, de expandir
a força que o afronta,

enquanto
ocultamos nossos diálogos

[83]
— do modo que faríamos
com
as fuselagens de um desastre —

para

antecipar a partilha
dos
vestígios, sobretudo

quando
detemos a deterioração

da
desordem: entre olhos

destituídos

de
delírio: pois buscamos

mais do que o aspecto


sadio
cuja face concedesse

[84]
acesso
ao sossego

em que nem o desconforto

nem
o desespero fossem

somados ao espelho

de onde

descolamos os joelhos

[85]
2010

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