COMENTÁRIO À CALMA:
Não vejo seu corpo estremecer com o próximo passo, incerto do assoalho talvez
inexistente, da terra tantas vezes aberta, de uma pedra
a outra pedra, como uma boca — não falarei de abismo — convidando a uma lenta
queda; não vejo seus olhos pesarem sobre
as imagens, carregando o espaço com uma presença que se desdobra sobre a vastidão
dos móveis; nem vejo
seus dedos hesitarem diante de um objeto, duvidando tanto da consistência das louças
quanto da materialidade das mãos; apesar de desconhecer
o destino do seu silêncio, sei que está segura; a fluência dos gestos — mais próxima do
prazer que do pânico — confirma uma segurança
que não me deixa exagerar quando descrevo como hedionda; atenta a tudo que sua
mudez oculta, não nomearei a lava que ainda leva na língua
[3]
COMENTÁRIO À CATATONIA:
Cujas
Vértebras, cujas pilastras,
Apesar
De reconstruídas,
Permanecem
O desconforto
Desta restrita paralisia. Posso
Sua
Vigilância — prefiro chamar de vigilância —
[4]
Não resiste
A qualquer
Respiração. Alguém
Dirá que
COMENTÁRIO À CALMA:
agora com
as armas à mostra — procurando —
[5]
a cada
hora — propor
amparo
COMENTÁRIO À CATATONIA:
(quando estamos
somente famintos)
(sujar as mãos
será o início de uma extensa celebração)
[6]
DOIS
Quem não pode tocar procurará destruir? Aquele que não canta diz: morro quando sou
indiferença, quando estou imune ao mundo (a incerteza instala no dia o vestígio de uma
vida acidamente incisiva). Ao estender sobre o tronco outra fome, penetro, como posso,
o que me reparte, o que nos desvia em direção ao movimento
extremo. Este, sem gesto, insiste, apesar de não saber sustentar o que irá relatar: a figura
aqui manifesta não se faz nomear. Sua voz — um feixe de falas aniquiladas quando
calcificadas — não se deixa depositar sob um dispositivo
preciso, sob uma engrenagem exata. Como descrever a saliva que desliza pela ferida?
Está desperta: saio cega do hospital, ainda consegue dizer, depois de alcançar a calçada,
ainda consegue andar, decido não mais confiar sequer na luz a devastar minha vista
(sigo apenas uma perturbação assídua): exposta
ao sol do desabrigo, talho no tempo — com mãos trabalhadas pelo estímulo ao ritmo —
o rosto que restaurará
meu filho, preenchendo o espaço com alguma possibilidade de presença; embora não
pronuncie um indício de palavra, estremeço com a concentração de tantas vozes
desencontradas (seu silêncio
[7]
parada: hesito, apesar de excitada, o próximo passo, continua a dizer, que me depreda,
continua a andar, que me despedaça. Descontaminada do tremor de agora, repousaria a
testa no vidro da janela — num instante
atravessada pela possibilidade de voragem, enquanto configuro a voz com que meu
filho construía suas inquietações, envolvendo
minha atenção num idioma a princípio pausado, logo após efusivo, cujo sentido incitava
as águas do paladar: encontro
da respiração, perdendo,
de fazer meus dedos buscarem alguém debaixo da camisa vazia: suspeito sobretudo das
presenças que — insustentavelmente palpáveis — povoam
[8]
as brechas dos meus breves corpos (a persistência
tritura o junco dos seus joelhos): cubro a garganta com as primeiras mãos da manhã,
como se quisesse deter o percurso
que insista
as poucas palavras
TRÊS
COMENTÁRIO À CALMA:
[9]
Não consigo — com as articulações
recolhidas
entre britas — deixar de suspeitar
o organismo
que não
queremos extinto). Questiono
sua omissão,
sua subsistência,
COMENTÁRIO À CATATONIA:
[10]
(são águas que não nos devastam
se
ainda nos tocam)
apenas
não suporto pisar
os estilhaços da vidraça?
aproveitem
antes
que qualquer
sintoma
de sono erga
[11]
outra
estiagem
COMENTÁRIO À CALMA:
de um crime
também me excita,
ainda
que eu — tão remota, tão antiga —
continue
extinta, provocando
apenas
[12]
encontraria
atrocidade
COMENTÁRIO À CATATONIA:
eu explicaria
— apesar
de toda pobreza — a fonte destes frutos,
a natureza
desta terra: apesar de toda pobreza,
que será
[13]
a necessidade
de
calar — sem
concessões — por muito
mais
que um minuto, manipulada
pelo
espanto de
uma
perplexidade
quase
esquálida
QUATRO
[14]
diz que o trabalho das máquinas — presente por toda
a quadra, brusco
apesar de previsível — tateia
traumas no meu tórax: o estardalhaço, debruçado
sobre
os tímpanos, confronta
sob um circuito
de céus abruptos). Diante de mim, uma mendiga
[15]
que não canta diz: dissipo algumas asfixias ao simular a pausa
que anuncia uma fala;
depois de ganhar um gole
de fôlego, deixo o diafragma intacto até um resquício
impõe
sua presença — expõe a impossibilidade
[16]
trancada entre os dentes, capaz de umedecer a argamassa
do cansaço;
diz que pode fazer a mendiga desaparecer, que pode dispersar
suas marcas,
incinerar seus ossos; escuta: posso afogar
nossas falhas;
escuta: posso inventar
um vento
incisivo, uma presença assídua;
a minuto — as feridas
que tentarei cicatrizar. Apesar do ritmo
produzido pelo
súbito exercício, acompanhar
[17]
ciente da nossa vigília, prorroga a quietude que, contornando
as têmporas, pressiona
o pânico; pensa: às vezes, quando esqueço o silêncio que
já chega
em chaga, mergulho no corpo
algumas palavras, até que
o espanto, expandindo
os pulmões,
estremece as vigas entre os vãos da visão.
PRIMEIRO EXERCÍCIO
com
minuciosa ferocidade, carrego
do meu
ser de concisão os escombros
[18]
que restituem minhas mãos
ao
chão onde
preparo — à volta
de uma escrita
talvez
desmedida —
de
fôlego cedidas
às
sendas
distribuídas
pelas
feridas
[19]
SEGUNDO EXERCÍCIO
a potência do passo)
a fibra da febre)
da
palavra
— cada
vez
mais — ávida:
uma
forma de fala —
[20]
uma
língua na lâmina
— cada
vez
mais — híbrida
TERCEIRO EXERCÍCIO
a caixa
craniana
aberta
ao
impacto
produzido
pelo
pulmão
dentro
do
granito
[21]
a caixa
craniana
recupera
do
silêncio
entre
os ossos
a ansiedade
que
não
a incinera
a caixa
craniana
alerta
como a pedra
que
pesa
[22]
num
grão
de
grito
como
a chuva
que
busca
a boca
durante
a luta
a caixa
craniana
desperta
sobre
a extensão
do tédio
que
retém
[23]
as tensões
por
onde
o tempo
tentará
voltar
a
oscilar
QUARTO EXERCÍCIO
a reocupação do pulso
sob
a febre — que a vertigem reverbera —
sua
áspera ossatura
(uma cisão)
ao
oceano — agora
implanta
[24]
(pelo
canto)
o paladar:
desde
o cerne
há
rastros
de claridade
(pela
arcada)
despejada
rente
ao
chão roído
por
mais
[25]
um
urro
QUINTO EXERCÍCIO
as iras da pupila)
as engrenagens da voragem)
de afetos,
de lapsos,
de rangidos — acredita
neste corpo
[26]
ainda
vivo, por entre
ares
tantas
vezes
rarefeitos
um
corpo inscrito
na acidez
onde
ressoam signos
de
aproximação
SEXTO EXERCÍCIO
(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)
[27]
(DE SOBREAVISO)
desconheço,
no entanto, a noite
que a envolve,
o dia
que a habita
(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)
porque guardo
as mãos mutiladas,
sem poder
criar
o que pretendo
lembrar?
[28]
(DE SOBREAVISO)
(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)
recusa
qualquer colisão
(DE SOBREAVISO)
nas retinas,
[29]
que
impedem
o cansaço
de se instalar
(DURANTE A VOCIFERAÇÃO)
o que há para
rever,
o que há
para
recordar?
(DE SOBREAVISO)
minha
elaboração,
pois a faço
nascer não do esforço,
mas
do fracasso
[30]
da precisão; uma visão
que
atiro ao atrito,
que
lanço à laceração;
uma visão
de que me destituo
para
a manter em constante
conflito,
em
constante
construção,
como
o murmúrio
a que me vinculo
quando
intrometo
o meu
desconhecimento,
[31]
a minha
insuficiência
no intervalo
de um tempo
à extensão,
tentando ver,
tentando
mastigar o que também
puder se doar,
depois
de penetrar o abandono,
a incompreensão,
o que
também
puder se expor
a um ritmo
quando
muito intuído,
[32]
que
nos sobreleva
enquanto
respiramos
apenas
coagidos
[33]
DA FÚRIA PELA FALA
A.
O destino
da nossa andadura
por
[35]
com o rosto encontrado
entre dunas de calcário
nas vias
da vigília
[36]
(Desenterramos os pomos que desprezam
escavando
sob a brita descarregada
onde
descobriríamos seus rastros)
Ouça-se
o que erguemos
ao enfurecimento:
Ouça-se
o que não
será monumento:
Guardamos
nas
frestas da pele
as vozes
que
nos ferem
entregando
[37]
o tórax
ao estalo
de
outros talhos
sobre
os gestos
sobre
as frases com
que
consumimos
o desconhecimento
(as ruidosas
referências convergem
[38]
para
o vértice que expõe
a vida
ao
ventre
de nossas vertentes)
Ouça-se
o que erguemos carregando
as vigas
do vento
o quanto
não cedemos
Atrás
das estradas da sede:
[39]
não
preservaremos
as suturas
que sustentam
o punho
quando
suspendermos
suas
fraturas
B.
Arranca
Das
Águas um braço
De
Sarcasmo
[40]
Carrego
Do meu ser de sigilo
Carrego
Por
Seus silêncios
Por
Suas fissuras
O campo
Onde propagar a precariedade
Que insere
Na sintaxe
O rangido de um bulbo
Revolvido
Pelas raivas
De
Um vício
Ainda
Propício
[41]
C.
PRIMEIRA INTERSEÇÃO:
dirá: Entendo que não encontrará plenitude, mas alegria; dirá: Uma alegria que não
receia a euforia, uma alegria tão apática quanto a catatonia; dirá: Entendo a alegria de
não andar, de não dormir, de não correr, de não cair; dirá: Entendo, apesar de
desconhecer a solidão que ressoa, como uma víscera, assim que lançada à fuligem
[42]
COMENTÁRIO À CATATONIA:
Um grunhido
Que não quer cessar; conceba,
Como puder,
Esta
Conciliação: cansei de pisar
Os escombros
De uma ainda improvável
Comunicação;
Claro
Que sou desagradável: não confio
Em quem
Não se afaste
[43]
Em quem
Não se afaste
— Incapazes
De concordar —
Demorada
Desorganização: diante
Da sua paralisia, —
Presença
Que me retifica, —
Estou
Sempre
Mais estilhaçada
[44]
SEGUNDA INTERSEÇÃO:
até
conseguir emitir — já a ampliar o paladar —
a experiência da paz
que
regressa
(como
uma dança)
ao nervo
da
devastação
[45]
D.
impostas
ao medo que desarma
as vidas
dedicadas
à voragem
Carrego
do meu ser de solidão
o alarme
que povoa a carne
junto
ao enigma
que
multiplica
[46]
suas
vigas pelas
veias
da exaustão
E.
[47]
atrás da fresta onde aninharei
uma
sobrevivência da mesma
maneira
que a andorinha
aninha sua cria (protegendo
sobretudo
a estridência de uma frágil
[48]
provocar a vista, identifica apenas um vestígio
de vozes
no instante em que, destituído
dos sentidos, o que resta
do espanto diante
da
destreza, capaz
[49]
de explorar a força que me permitirá
construir
o vento para voltar
a avançar. Este,
sem gesto, insiste
que a figura aqui manifesta,
animada
pela iminência
[50]
os escombros
do abandono,
contra
as ferragens da apatia,
no meu corpo
mais sadio,
espancando
[51]
F.
concedemos à sonolência
dos
seres
de sono escasso
o rumor
de uma memória em que
o medo,
a areia, o êxtase,
a sede,
o palco compõem
a ponte
para
outro
[52]
descompasso. O texto
do
encontro. Inventa
o retorno,
o avanço. O rastro: vigio
por
entre a poeira; narro
— quando
não
nos ouço — o necessário
sobre
seu passado. Corrijo:
inventa
o relato,
as mãos
retesadas, o espaço
[53]
que
repousa
nos joelhos,
o espaço
despejado
pela
noite
resignado a qualquer
ausência,
a qualquer
não se quer
derrotado (apesar de combalido),
nem
interrogado
[54]
(apesar
de
compulsivo),
reconfigurando — depois
de aliciar
o aleatório, depois
de
elucidar o latente —
o espaço: para
o parto; o espaço: para a paralisia;
o espaço:
forma
o fogo; o espaço:
para
apascentar
a apatia;
[55]
o espaço: de uma língua
de
alumínio: o espaço:
de um crânio
de
cobre:
uma teia
de
válvulas
nas
veias,
não
de atalhos,
de trincheiras) que
[56]
estende
o
circuito
(pelo
signo) de novo
nítrico
do sangue
[57]
TUDO QUE AINDA TOCA?
UM
COMENTÁRIO À CATATONIA:
Presença a projetar
[59]
Recusam sua ausência: não quero
Recordar a presteza
Dos passos, a persistência
Insisto,
Talvez tarde, na ceia:
Comam
Até o fim,
Com
As mãos da desinibição
[60]
sem força que me impede, contudo,
de suportar
sequer os planos para um passo
de que adianta,
então, colecionar recusas; de que
adianta
satisfazer, durante a ceia,
a dor que
sua angústia não pode
explicar, a consistência
não apenas
da indiferença
mas, sobretudo, do torpor
[61]
COMENTÁRIO À CALMA:
nem
o isolamento
de qualquer
movimento —
de qualquer
[62]
omissão. Deter seu inchaço será
uma maneira
de ceder à exasperação,
— dia
após dia — na calma
comum
à covardia; desprezamos
o tédio,
reacendendo, no entanto,
aquilo
que nos ancora
pelo
menos à distração.
DOIS
[63]
Condicionado ao deslocamento
Contínuo, removo, do desprezo, os entulhos,
Sem fraturas,
Enquanto a manhã sobrevoa nossa fome
[64]
Prazeres intensificados pela surpresa
De um contato
Em princípio de espasmo? Ela — esticando a haste
Do
Pescoço — retoma,
[65]
De palavra ainda não infeccionada,
Uma fagulha
Atenta a qualquer estímulo
Que nos permita angariar
Um ganido
Em meio à aberração
Da falta
De fala; escuta: não aceito a impossibilidade
De pronunciar
[66]
Porque arrasto a cara pela água, observando
Sua densidade,
Sua desenvoltura, porque
Não combato
Apenas pela vibração
De uma ausência
Recente
Repelindo a pulsação
Da dor que
Ignoramos
Ao calcular
Os estragos mais evidentes.
TRÊS
Confio em suas palavras, mesmo que ameaçada de cegueira; confio em seus atos,
reduplicando inclusive um gesto quase ríspido; discordo apenas de que nossa solidão
admita medida; embora não assedie nenhum excesso, desconheço o que seja suficiente.
Por isso, bebo outro gole da angústia
instituída: bebo, com a boca escancarada, para que o caldo escorra, veementemente, até
pousar num ponto entre meus eixos. Posso absorver
uma expressão de pânico; um esgar, uma náusea; sem perder a dor diante do desprazer.
Neste jogo
[67]
estilhaçado — estala, tão seco quanto a sede que persegue — pelas frestas da gengiva
— o último sinal de saliva. Porque um crime cresce
têmporas; cresce além do crânio; cresce com medo; entre sutilezas, entre atrocidades;
cresce como
PRIMEIRA INTERSEÇÃO:
dirá: Não possuímos o privilégio de invadir o vento; dirá: Somos, sem nossas marcas,
sem nossas feridas, uma malha de brisas abstratas; dirá: Lutamos, no entanto, por
alguma vida; dirá: Nossas armas não são nem o esquecimento nem a brutalidade; dirá:
Nossas armas são as faces que nos sustentam quando estamos à espera, tateando, entre
detritos de paciência, a paisagem intrometida nas fendas da expectativa
[68]
COMENTÁRIO À CALMA:
Decompomos os ombros
submetidos
a uma mudez assídua
(Decompomos
os ombros que não deixamos
demolidos
sob o aço
do nosso asco)
imprimindo
obstáculos à passagem
inutilmente
tumultuada (à passagem
inóspita,
apesar de restaurada)
Com
a arcada já desnecessária
(Com
a arcada reconstituída
[69]
depois
de calcinada) mantenho
as mãos
incapazes de alcançar
a cisão
que devasta
nossa visão
(a cisão
que infecciona
a vista
revolvida pela
pulsação
na
água da pupila)
SEGUNDA INTERSEÇÃO:
[70]
até
conseguir engolir — com um trinado nos dentes —
um pouco de paz
bebida na pétala
(rompendo
o pulso)
em profusão
sorveremos
do
som — seu exílio
mais
incisivo
até
conseguir demolir
[71]
— depois de decalcar o gesso do suor —
as paredes
que preservam a paz (com
um ramo
de
rumos) na rota refeita
para
o deslocamento noturno
QUATRO
De uma tentativa de narrativa, lê-se por todo o dorso; no chão do chamado, no chiado da
dispersão; conheço um céu incontrolável: neste instante insidioso, permitirá que os
braços se amontoem embalsamados? O que volta ao vértice de uma vibração violenta. O
que retorna à origem de um ritmo
híbrido: o degrau do delírio, que condensará as larvas (uma medula de larvas) em cada
pedra na brasa (no bulbo da brasa), nas convulsões da claridade
que revolve o mármore: uma pele
de espasmos? Reparto
meus corpos entre os cães; imagino, no entanto, que não me mastigarão (sou difícil de
deter nos dentes): cada um contará, não concluo se satisfeito, com sua cota de carne,
com sua fração de afeto; todas magras — mas medidas: assistirei quando, em qualquer
quadra da cidade, arrancarão
do embrulho de fibras
[72]
uma efusão de violência pronta para fruição, reconhecendo que o cessar inesperado do
som antes ensurdecedor, em vez de provocar qualquer alívio, restaura o deserto em
redor, envolvendo a ausência revivida a cada palmo, a cada metro mapeado por uma
visão concentrada em rastrear
sinais de inanição. Lê-se por todo o dorso; uma falsa ferocidade, uma rara rarefação?
Seu sangue desliza
pela estrada — até a espinha, por onde escorre a cólera — num golpe: como descrever
sua textura? (calculando
coágulos): a figura (grafa-se sua voz): na estrofe — uma engrenagem
de grave carnadura — estaca; na grade
da esganadura: que não a retém (sua imagem — quando estala — modifica o silêncio —
incipiente sob a água — sabendo infiltrar
de contato, seguirão de alguma forma fendidos pelo desconforto que nos reunirá em
oferta a meu filho. Dança, fora de hora; mas dança: agora, em que
corpos também carbonizados — percorrerá cidades onde seu filho a associará ao sol
mais insensato: prestes a ficar paralisada, faço o que posso a fim de afastar meu filho;
escondo
[73]
minha repulsa; escuta: apesar de eivada de vontade, escondo minha repulsa; não quero
criar conflito; contudo, preciso; escuta: preciso da sua inexistência
escuta: há o tempo
em torno
do hálito que excita a ferida,
[74]
CINCO — REABILITAÇÃO DA AUDIÇÃO
PRIMEIRO REINÍCIO
a paciência
[75]
SEGUNDO REINÍCIO
todos os sinais atuais perfuraram a poeira que logo os petrificaria, sem que se
dissolvesse o sono de repente inóspito; pertencem também à nossa ossatura —
implodindo a palavra a que estamos expostos: finalmente ignoramos as gravuras que
gravitam na garganta — como traçar novas rotas: como suscitar novos ritmos se as
cidades que habitamos são as mesmas que demolimos?
(ANTES DO SOBREAVISO)
TERCEIRO REINÍCIO
na palma
da paisagem
a erupção da aragem
[76]
na veia
da voragem
imersa
na imagem
da aragem
que interroga
a linguagem
como gangrena
na paisagem
expulsa da aragem
outra imagem
como
paisagem na gangrena
da linguagem
que
interroga
[77]
a engrenagem
da voragem
na
clavícula
da viagem
voltada
à voltagem
QUARTO REINÍCIO
carrego
do meu ser de desabrigo
a fenda
onde instalo
o fogo
para
a formação
[78]
de
outra fúria,
a fenda
que
emerge como
o lábio
no caule
de
uma colisão
QUINTO REINÍCIO
da corola — símbolo
silente — recompõe
a corrosão
(da memória): Um lapso
no espelho — deforma
sua
hora —
[79]
um
claro lapso
(Desde
o vértice — revirado) —
sóis
interrogados pela
inquietude
de
um pássaro intacto
SEXTO REINÍCIO
[80]
porque ainda abrigamos, como parte do braço,
do frio
que nos infecciona,
do calor
que nos corrói: atravessamos,
sobre a água,
[81]
seus rangidos, torcendo
estacas
enterradas até o torpor,
ante
um silêncio
excessivo,
silabicamente arremessados
a uma fala
que nos massacra,
a um balbucio
que nos confina (exceto quando o despedaçamos)
a coluna
[82]
da densidade da noite que, distantes
de
toda bruma, alavancamos
do marasmo, já a prever
o rumor de um ato
árduo,
que de repente atinge
uma
intensidade imprevista,
qualquer
estupor, que se abstém,
portanto, de expandir
a força que o afronta,
enquanto
ocultamos nossos diálogos
[83]
— do modo que faríamos
com
as fuselagens de um desastre —
para
antecipar a partilha
dos
vestígios, sobretudo
quando
detemos a deterioração
da
desordem: entre olhos
destituídos
de
delírio: pois buscamos
[84]
acesso
ao sossego
nem
o desespero fossem
somados ao espelho
de onde
descolamos os joelhos
[85]
2010