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François Truffaut
INTRODUÇÃO 7
culturais, sociais, históricas e politicas em que as teorias que mani natureza humana será sempre comovida
clássicos significa geralmente: a
Na
pulam e os conhecimentos que seguem são produzidos afetam seu a natureza eterna do homem.
por essas personagens que representam
da obra é propriamente idealista,
conteúdo e limitam sua aplicabilidade. verdade, essa atitude de "eternização"
reconhecimento de uma essência, de
um
se apoia no
A sempre presente possiblidade de uma conversão da atenção à na medida em que
transcendente. A nossa prática mostrou, pelo
"fundo" humano imutável e
história da disciplina em uma espécie de veneração de seu passado contrário, que conceitos elaborados em dadas circunstâncias históricas,
- capaz de julgar se, afinal, Morgan estava certo ou errado, eo fato isto é, no decurso de lutas
intelectuais (ou políticas) datadas, inseridas em
es-
nossa e de códigos diferentes, que
estrutura mental diferente da
de que a análise das condições de produção do saber antropológico uma
ser importados em umna
tende a se transtormar em dispositivo critico que sustenta que isso conceitos, corretamente trabalhados, podiam
ses
sistema de racionalidade, e permanecer operantes,
outra época, outro
não importa, uma vez que tudo o que Morgan escreveu é fruto do constituir fatores de inteligibilidade decisivos. A partir daqui, o classicis-
seu tempo, são duas faces da mesma moeda. Entre o eterno e o his- de um conceito ou de uma tese
mo caracterizar-se-ia mais pela capacidade
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8 MAIS ALGUMA ANTROPOLOGIA INTRODUÇÃO| 9
Deleuze sempre propõs tratar a história da filosofia. As palavras a, dentro da própria a n -
e
A primeira, e mais óbvia, é estender para
Deleuze -que também me permitirei citar (quase) por extenso em tese, é u m a
das mar-
crítica ao evolucionismo que,
uma dimensao particularmente interessant tropologia a sempre
acrescentam, contudo, int e da disciplina. Mesmo que
essa marca nem
cas registradas
para a antropologia: conteúdo efetivo, os antropólogos estão
l seja acompanhada de um
evolucionistas dentro e
A história da filosofia não é uma disciplina particularmente reflexiva. a denunciar os desvios
em geral prontos
contan-
É antes como a arte do retrato em pintura. Sao retratos mentais, con- se comprazem
fora de seu camp0, ao
mesmo tempo que
ceptuais. Como em pintura, é necessário fazer parecido, mas por meios como uma sucessão de pequenos ou
do a história da antropologia
que não são semelhantes, por meios diferentes: a semelhança deve ser no autor ou na
grandes progressos que se detém, evidentemente,
produzida, e não um meio de reproduzir (nos contentaríamos aí em dizer
novamente o que o filósofo disse) [.). A história da filosofia não deve corrente teórica preferidos do narrador.
à ou ao modo como
redizer o que diz um filósofo, mas dizer o que ele subentendia necessaria- A esse evolucionismo imanente antropologia
u m a certa atitude
"crítica" que,
mente, aquilo ele não dizia e que está entretanto presente no que ele diz. se narra sua história corresponde
de trans-
Deleuze, 1990:186] c o m o praticamente
toda crítica, se enraíza em algum tipo
necessário recor
Interessante porque permite aproximar certo modo de conceber cendência de transcendental. Talvez não fosse
ou
10 MAIS INTRODUÇÄO 11
ALGUMA ANTROPOLOGIA
e
como os Azande os concebem, nao podem existir", escreveu aquele
Retornemos à questão de Peter Gow. De fato, não há muita ser-
o maior etnógrafo
de todos os tempos, Evans-Prit.
que talvez seja ventia em saber se Morgan estava certo ou errado em 1870. O
chard (1937:63). Do evolucionismo social,
com sua autoatribuída
problema, no entanto, não é esse, mas o fato de que aquilo que
missão de desvelar, ajudar a superar as sobrevivências
denunciare
pelo mundo, às recentes análises
Morgan pensava em
1870-e, sobretudo, como ele pensava em
e superstições ainda espalhadas
coletivos nao ocidentais concebem
1870-pode perfeitamente seguir sendo pensado, explícita ou
de pensamentos e práticas que silenciosamente, hoje. Conhecer o que Morgan pensava signitica,
termos de "invenção da tradição", a antro-
como tradicionais em
tensão entre sua
pois, a possibilidade de conhecer alternativas aos clichês que ele
pologia nunca foi realmente capaz de resolver essa
nos legou e ao mesmo tempo vislumbrar aquilo que em seu pró-
pretensão de descobrir a verdade dos outros verdade que eles prio pensamento já recusava esses mesmos clichés. Porque, como
tareta menos grandiosa, po-
não seriam capazes de conhecer-e a também ensinou Deleuze, não apenas tudo o que é efetuado pode
rém talvez muito mais digna, de simplesmente tentar cartografar ser contraefetuado, mas também essa contraefetuação é na verdade
outras verdades. simultânea à própria efetuação ou, melhor ainda, anterior a ela.
E nesse contexto que a necessidade de repensar a relação com o Em uma entrevista poucoconhecida, Michel Foucault (1980:106)
passado, como proposto por Châtelet, me parece fundamental. Mais contava que o pintor francês Gustave Courbet tinha um amigo que
especificamente, necessidade de repensar a relação com o passado
a acordava no meio da noite gritando "Julgar, quero julgar". Fou-
da disciplina antropológica, uma vez que não há homogeneidade cault observava ainda como "é incrível o quanto as pessoas gostam
entre os diversos passados e as diversas relações que com eles se de julgar. Julga-se em todo lugar, continuamente. Provavelmente,
contida famoso para a humanidade, é uma das coisas mais simples a fazer". E ele
pode estabelecer. Nesse sentido, a dupla injunção no
princípio de simetria", ao menos tal qual interpretado por Isabelle concluía com a esperança do advento de "uma crítica que não pro-
Stengers (2002:17), não estaria limitada ao campo do conhecimento cure criticar, mas fazer existir uma obra, uma frase, uma ideia".
cientifico, mas poderia servir de divisa a todo trabalho antropológi- Creio que os antropólogos conhecem bem essa vontade de julgar
co: obrigação de tirar "consequências do fato de que nenhuma nor- que entre nós funciona sempre como uma espécie de dispositivo de
ma metodológica geral pode justificar a diferença entre vencedores e neutralização do que aprendemos com aqueles com quem convive-
vencidos criada pelo encerramento de uma controvérsia" e se proibir mos. E justamente na oposição entre julgamento e aprendizagem
de "tomar emprestado o vocabulário do vencedor para contar a his- que Stengers (1992, 1997, 2002, 2006) situa a constituição dos dois
tória de controvérsia". principais ramos das ciências modernas, as "ciências de laboratório"
uma
Apesar de sua flagrante desproporção, e as "ciências de
não é de narureza tão distinta especular sobre como seriam as ciên- campo". Ora, essa primeira distinção significa que,
cias sociais hoje se Gabriel Tarde tivesse levado a melhor na polêmi- se a torma julgamento,
que permitiu a constituição das primeiras,
não é a única dotada do poder de constituir saberes cientificos, tor-
ca contra
Durkheim, ou sobre como seria o mundo se os tupinambas
tivessem derrotado os portugueses. Melhor na-se possível recolocar questão da cientificidade do que
a eterna
que isso, é preciso admi-
tir que essas "derrotas" denominamos ciências humanas-que Stengers (2002:178) pre-
jamais são absolutas e que daquilo que foi
fere incorporar ao conjunto mais vasto das disciplinas que lidam
aparentemente derrotado resta sempre algo a se reativar.
12 MAIS INTRODUÇÃO 13
ALGUMA ANTROPOLOGIA
nenhum expediente pode
tornar indiferentes fato
com seres que escrevi
de quem etetivamente gosto, deixando de fora tudo que
interrogados".
de que são contra" quem quer que seja.
o julgamento
nem mesmo a aprendizagem são tudo
De fato, nem
Os textos selecionados são republicados agora sem qualquer
em nosso tipo de saber. Um pouco irresponsavelmente e com a pro
relação às versóes
alteração substancial. Eventuais diferenças
em
lado e acima desses principios Ramalho Vianna, a quem agradeço muito por ter
tornado os textos
denominou "vergonha". Não
(2004), inspirado em Primo Lev1, ne-
bem mais legíveis. Alguns desses textos
consistem em retomadas de
diante daqueles sobre quem escrevemOS e diante do que escreve que sempre
sonhei: um livro sem notas de pé de página.
nao conduz a nenhuma paralisia, um parágrato
mos sobre eles; vergonha que A cada um dos textos, me limitei a adicionar
é uma poderosa força de pensamento; vergonha foi escrito e
mas, ao contrário, introdutório, visando situá-los no contexto em que
que consiste em assumir uma responsabilidade perante aquilo ou publicado, bem como a fim de que apresente os agradecimentos
aqueles sobre quem se escreve, ou melhor, com quem ou diante de necessários em cada caso. Limito-me aqui, pois, agradecer às pes-
a
do trabalho como
quem convivemos não o é menos para os autores com quem traba- sido importantes para o desenvolvimento meu
Ihamos. Só assim, talvez, possamos ser capazes, como sonha Stengers um todo.
agradecimento especial a Eduardo Vivei-
(2002:180), de um dia "ler Marx ou Freud como os biólogos podem Em primeiro lugar, um
hoje ler Darwin. Com ternura". ros de Castro, meu ex-orientador, atual colega e sem dúvida o mais
importante antropólogo brasileiro. Com a generosidade habitual,
Os textos que se seguem são todos estudos de história (ou de ele não tez qualquer objeção à publicação do texto que escrevemos/
falamos juntos sobre o pensamento de Marilyn Strathern.
geografia) da antropologia ou do pensamento antropológico. Eles
foram selecionados entre vários que escrevi desde a publicação Além dele, os funcionários e colegas do Programa de Pós-Gra-
trabalho sobre a política- que de algum modo se encerrou com especial,Otávio Velho, Moacir Palmeira, Luísa Elvira Belaunde,
Olivia Cunha, Bruna Franchetto-sempre foram fundamentais
Goldman, 2006- e aqueles sobre o candomblé, que serao ooje
para aquilo que, pelo menos até recentemente, fazia do PPGAS-
to, espero, de outro livro - , o
princípio de seleção que acabou
espaço dotado das mais invejáveis condições de
-Museu um tra-
Se
impondo foi o da escolha de artigos que tratassem diretame
do balho, com financiamentos que garantiam sua intraestrutura e,
pensamento de determinados autores. Entre estes, e-
para principalmente, a possibilidade de pesquisas intensi-
da realização
guir uma
ou em
recomendação que acredito ter lido em Roland Barttores vas tanto por parte dos docentes quanto dos estudantes. Para isso,
François Truffaut (provavelmente ambos), os
em
au