Dados da obra: Mauro Cappelletti Juízes legisladores? Sérgio Antônio Fabris Editor
A obra parte da seguinte premissa: não se questiona a criatividade da
jurisprudência, em todas as épocas; pretende-se, em verdade, investigar as razões pelas quais tal criatividade tem-se tornado mais necessária e acentuada nas sociedades contemporâneas e precisar a tipicidade do processo jurisdicional, fundamentalmente distinto do processo legislativo. Na primeira parte, no capítulo intitulado “O Direito Jurisprudencial, Tema, Método, Limites Substanciais”, Cappelletti enfrenta o problema de se questionar se os juízes são mero intérprete-aplicadores do direito ou se participam, lato sensu, da atividade legislativa, da criação do direito. Já há mais de século, Jeremy Bentham fazia uso da expressão direito judiciário (“judiciary law”) para definir que, no ordenamento inglês, “embora o juiz, como se diz, nominalmente não faça senão declarar o direito existente, pode-se afirmar ser em realidade criador do direito”. Via-se, de maneira negativa, o direito eivado de “vícios” como incerteza, obscuridade e dificuldade na verificação. Apesar da defesa por alguns da codificação do direito inglês para assegurar maior grau de certeza, o próprio Bentham tinha consciência de que nem mesmo a completa codificação teria suprimido o direito judiciário. O que não se podia prever é que, justamente com a expansão do direito legislativo – em especial no século XX e em países de civil law e de common law –, expandiu-se, também, o direito “jurisprudencial”, o papel criativo dos juízes. Cappelletti investiga se há antítese entre interpretação judiciária da lei e criatividade dos juízes, ou se na interpretação judiciária do direito legislativo está ínsito certo grau de criatividade. O “Chief Justice” Barwick (da Austrália) já escrevia que mesmo “a melhor arte de redação das leis” e mesmo a mais precisa linguagem legislativa sempre deixam lacunas que devem ser preenchidas pelo juiz e sempre permitem ambiguidades e incertezas que, em última análise, devem ser resolvidas na via judiciária. Também o juiz americano Oliver Holmes já afirmava que qualquer palavra tem geralmente vários significados, inclusive no dicionário. Por fim, deve-se reconhecer que o tempo faz do intérprete instrumento de inovação, em razão da situação referencial diversa e do contexto distinto (Lorde Radcliffe). O verdadeiro problema, portanto, está o grau de criatividade e nos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários. De toda forma, certo grau de criatividade no ato de interpretação não deve ser confundido com a afirmação de total liberdade do intérprete. Todo sistema jurídico traz limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais – estes últimos variam profundamente de época para época, incluindo precedentes judiciários, opiniões de jurisconsultos, decisões de assembleias, leis de parlamentos, códigos etc. O princípio da sujeição a precisos limites substanciais, à lei, não constitui requisito essencial da natureza jurisdicional de uma decisão ou processo, já alguns juízes podem ser investidos do poder de basear suas decisões na equidade ou em outros vagos símbolos de valor. Quem negaria o caráter jurisdicional das decisões emitidas já há dois milênios pelos juízes da Roma clássica, ou pelos chanceleres ingleses há alguns séculos, por estarem baseadas na aequitas ou na conscience? Não obstante, os limites substanciais não são completamente privados de eficácia: criatividade jurisprudencial não significa necessariamente “direito livre”, no sentido de direito arbitrariamente criado pelo juiz do caso concreto. Em maior ou menor grau, esses limites substanciais vinculam o juiz, mesmo que nunca de forma completa e absoluta. Segundo Cappelletti, esses limites substanciais, diversamente dos formais ou processuais, não têm a virtude de caracterizar a “natureza” do processo jurisdicional, já que não representam o elemento distintivo da jurisdição em face da legislação ou da administração. É que a atividade administrativa normalmente é vinculada aos mesmos limites substanciais que se impõem ao juiz, e, quando o juiz é livre para basear as próprias decisões em preceitos vagos e não escritos de equidade, sua atividade não pode ser diferenciada da do legislador. Mesmo a atividade do juiz vinculado à lei e aos precedentes dificilmente pode ser diferenciada, quanto aos limites substanciais, da do legislador, cujo poder de criação do direito esteja sujeito aos vínculos ditados por uma constituição escrita e pelas decisões da justiça constitucional. A diferença seria apenas de grau (os limites substanciais do legislador usualmente são menos frequentes e menos precisos que aqueles com os quais, em regra, se depara o juiz). Em suma, tanto o processo legislativo quanto o processo jurisdicional constituem processos de criação do direito. A segunda parte da obra trata das causas e efeitos da intensificação da criatividade jurisprudencial. Reconhece-se que no século XX houve intensificação da criatividade da função jurisdicional. Quais as razões? Em primeiro lugar, constata-se uma “revolta contra o Formalismo” (representada por várias escolas de pensamento, como o legal realism nos Estados Unidos, a Interessenjurisprudenz na Alemanha e o método da libre recherche scientifique de François Gény em França), ante o reconhecimento do caráter fictício da concepção da interpretação como atividade puramente cognescitiva e mecânica (tradição montesquiniana do juiz como “boca da lei”). Essa revolta nada mais foi do que o sintoma ou o reflexo de fenômenos muito mais penetrantes. Deve-se acentuar a radical mudança ocorrida no próprio papel do direito e do estado na sociedade moderna, em especial o crescimento desse papel e da função legislativa em particular. O autor destaca entre os efeitos da grande transformação sobre a função jurisdicional a legislação social, os direitos sociais e o papel transformado da Magistratura. A legislação com finalidade social em geral apenas indica certas finalidades ou princípios, deixando a especificação a normas subordinadas, a decisões de ministros ou autoridades regionais ou locais, ou aos cuidados de agências ou tribunais administrativos (a exemplo de leis modernas em domínios como o do controle de preços, da industrialização regional ou renovação urbana). Já os direitos sociais, que pedem para sua execução a intervenção ativa do estado, frequentemente prolongadas no tempo, trazem implicações importantíssimas aos juízes, que assumem a tarefa de dar a própria contribuição à tentativa do estado de tornar efetivos tais programas. E, quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Outro efeito da grande transformação da função judiciária está na afirmação de um complexo e gigantesco “terceiro poder” como necessário contrapeso aos “Poderes Políticos”. Os parlamentos nos estados modernos são excessivamente abundantes e possuem tantas tarefas que, para evitar a paralisia, encontraram-se ante a necessidade de transferir a outrem grande parte de suas atividades, em especial ao executivo e aos seus órgãos e derivados, com toda uma série de entidades e agências, a quem foram confiadas tarefas normativas e administrativas. O declínio da confiança nos parlamentos constitui fenômeno característico de todo mundo ocidental. Há, ainda, o problema da legitimação democrática. O gigantismo do Poder Legislativo, chamado a intervir em esferas sempre maiores de assuntos e de atividade, e o gigantismo do ramo administrativo, profunda e potencialmente repressivo, se aliaram ao aumento da função e das responsabilidades do Judiciário (o terceiro gigante, capaz de controlar o legislador e o administrador). A respeito da assunção dessas novas responsabilidades, só restariam duas alternativas. Em uma primeira vertente, os tribunais permaneceriam presos aos limites tradicionais da função jurisdicional, o que abriria espaço para o surgimento de organismos quase-judiciários – como agências e tribunais administrativos, árbitros estatais e ombudsmen. Além disso, na Europa, foram criados cortes constitucionais às quais foi concedida a novíssima responsabilidade jurisdicional. A segunda alternativa seria a emergência de um judiciário que assumisse a tarefa de ultrapassar o papel tradicional de decidir conflitos de natureza essencialmente privada, controlando os “poderes políticos”. Os riscos mais prováveis consistiriam na dificuldade de controlar o emprego correto da discricionariedade legislativa e administrativa, especialmente nos casos em que um sério controle exija o emprego de conhecimentos sofisticados ou técnicas especializadas (investigações empíricas, cálculos econométricos ou pesquisas de laboratório); o perigo da inefetividade (atos que, para serem efetivamente obedecidos, implicam uma atividade continuativa das entidades administrativas e do legislador); e o problema da legitimação democrática. Antes de enfrentar tais problemas, Cappelletti insiste na afirmação de que somente um sistema equilibrado de controles recíprocos – ao invés de uma rígida separação de poderes – pode fazer coexistir, sem perigo para a liberdade, um legislativo forte, um executivo forte e um judiciário forte. Tal equilíbrio constitui, inclusive, o inegável sucesso do sistema constitucional norte-americano. O próximo efeito da grande transformação da função judiciária está na emergência de conflitos de classe e a definição do papel dos juízes na proteção dos interesses coletivos e difusos. Surge o desafio de os juízes se erigirem como controladores eficazes, não só dos “ramos políticos” (Big Government), mas do gigantismo das formações econômicas e sociais, inclusive no âmbito privado, próprio das sociedades contemporâneas. Outro fator apontado por Cappelletti é o caráter acentuadamente criativo da “Justiça Constitucional das Liberdades”. Surgem catálogos de direitos fundamentais do homem, nacionais e supranacionais, que se tornam vinculantes também para o legislador ordinário (típico de quase todas as constituições do século XX). A expansão da chamada justiça constitucional das liberdades (nacional ou supranacional) é causada, entre outros motivos, pela crise de desconfiança no “estado leviatã” e, em particular, pela “orgia de leis”. A tarefa dos tribunais, de dar atuação aos modernos “Bill of Rights”, contribui para expandir o âmbito do direito judiciário e aumentar a criatividade dos juízes. Na terceira parte, Cappelletti estuda as debilidades e virtudes do direito jurisprudência. Inicialmente, aponta ser inegável que os juízes sejam criadores do direito, “law-makers”, mas isso não os faz legisladores. Há essencial diferença entre os processos legislativo e jurisdicional. Do ponto de vista substancial, ambos os processos resultam em criação do direito. Mas o modo é diverso (procedimento ou estrutura). O que faz de um juiz um juiz é: a) a conexão da sua atividade decisória com os “cases and controversies”; e b) a atitude de imparcialidade do juiz, que deve ter, além disso, grau suficiente de independência em relação às pressões externas e especialmente àquelas provenientes dos “poderes políticos”. Essas “virtudes passivas” (atividade passiva do juiz) são refletidas nos aforismas “nemo judex in causa propria”, “audiatur et altera pars” e “ubi non est actio, ibi non est jurisdictio”. Tais características essenciais (“virtudes passivas” ou “limites processuais”) diferenciam profundamente o procedimento judicial dos procedimentos legislativo e administrativo. Cappelletti reconhece que os juízes acabam agindo como legisladores nos casos de tribunais que emitem “pareceres”, ao invés de decisões, como em certos tribunais superiores do Canadá, Índia, Suécia e Finlândia, ou quando deles emanam “diretivas” gerais em temas de interpretação, vinculantes para os tribunais inferiores, sem conexão com determinado caso concreto. Há, ainda, casos em que cortes superiores emitem obiter dicta que ultrapassam o pedido da parte e vinculam com eficácia erga omnes. Quanto às “enfermidades” da criação judiciária do Direito, Cappelletti inicia com a afirmação de que o direito judiciário é resultado (em maior grau) de fonte conflitantes entre si, mostrando-se frequentemente mais difícil ao legislador ter informação adequada do direito jurisdicional do que do direito legislativo. Por outro lado, tem maior potencial de flexibilidade e adaptabilidade aos casos concretos. A segunda limitação está na possível eficácia retroativa atribuídas às decisões judiciárias, mesmo quando criativas. A terceira limitação estaria na incompetência institucional da magistratura para agir como força criadora do direito (p. ex., não tem acesso a dados sociais, econômicos e políticos). A gravidade de tal problema poderia ser atenuada pelo recurso a pareceres técnicos ou perícias, à intervenção de terceiros no processo e outros instrumentos. Em alguns casos, como nos domínios do direito econômico, os juízes seriam até menos vulneráveis às pressões da demagogia eleitoral de caça aos votos. Há, ainda, a limitação quanto ao alegado caráter não-majoritário (antidemocrático) do judiciário. O autor rebate com os seguintes argumentos: a) dissipou-se, já, a utopia da capacidade perfeita dos poderes políticos de alcançar o consenso dos governados ou até mesmo da sua maioria; b) o próprio judiciário não é desprovido inteiramente de representatividade. Veja-se que os membros dos tribunais constitucionais, em regra, são nomeados politicamente; c) as decisões são fundamentadas, e não decorrem de caprichos ou predileções subjetivas dos juízes; d) grupos marginais não têm acesso a outros poderes, mas podem ser ouvidos pelo Judiciário; e) em certo sentido, o processo jurisdicional é até mais participatório do que os processos da atividade pública, já que está em direta conexão com as partes. Cappelletti conclui que a criatividade jurisdicional é inevitável e legítima, e que o problema real e concreto é o da medida de tal criatividade, portanto de restrições. De toda forma, da própria natureza do processo jurisdicional, a criação jurisprudencial do direito se mostra lenta, baseada numa “audiência” incompleta dos interesses envolvidos, mas é gradual e experimental. Outros juízes serão capazes de corrigir, melhorar e modelar um “direito” que nunca se mostra inteira e definitivamente “feito”. Assim a produção judiciária do direito tem a potencialidade de ser altamente democrática, sensível às necessidades da população, pois os juízes são gradualmente chamados a decidir casos envolvendo pessoas reais, fatos concretos, problemas atuais da vida. Por fim, é de se ver que democracia não pode ser reduzida a uma simples ideia majoritária, significando participação, tolerância e liberdade. Um judiciário razoavelmente independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria, pode dar uma grande contribuição à democracia. Na quarta parte, o autor trabalha as diferenças e convergências nas grandes famílias jurídicas. Nesse cenário, deve-se questionar: que tipo de judiciário existe em determinado país e qual o seu grau de independência em relação ao executivo? Como são organizados e operam os tribunais superiores? É realístico esperar que tais cortes exerceriam, de maneira razoável, mais alto grau de discricionariedade que lhes fosse atribuído? Quais seriam as reações a tal discricionariedade? Existe equilíbrio na distribuição dos poderes? Sem ser possível ingressar nas diferenciações locais e nacionais, existe um tipo de generalização factível nesse estudo: o que concerne às diferenças fundamentais entre os países de “Civil Law” e “Common Law”. Reconhece-se que as distinções vêm sendo superadas e que os resultados da pesquisa se aplicam a ambas as famílias jurídicas. O autor cita cinco grandes diferenças e, ao final, anota que até mesmo nos sistemas de “Civil Law” verifica-se o aparecimento do fenômeno do aumento da criatividade da jurisprudência. Ao fim, conclui que o verdadeiro perigo a prevenir não está em que os juízes sejam criadores do direito, mas que seja pervertida a característica formal essencial, o “modo” do processo jurisdicional. Onde prevaleçam as “debilidades”, mais conveniente se tornará maior dose de “self-restraint” do judiciário; uma maior dose de ativismo se recomendará, ao invés, na hipótese contrária. Questão de reflexão: trazendo a discussão para o âmbito do Brasil, questiona- se quais seriam as causas específicas da expansão da importância do Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, como um poder controlador dos demais. Resposta: entendo que, entre outros fatores, a CF/88 foi pródiga em conferir direitos (inclusive sociais, na linha do que expõe Cappelletti), aumentou a legitimidade para provocar o STF em ações objetivas, buscou impor o combate à corrupção por instrumentos relevantes, conferiu maior força ao Ministério Público e trouxe a Defensoria Pública, além da hipótese de que o exercício do papel de “poder moderador”, até então dos militares na política brasileira, passa a ser do Judiciário (tese de Daniel Sarmento).