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Fichamento n.

1 – Gustavo Fernandes Sales

Dados da obra:
Mauro Cappelletti
Juízes legisladores?
Sérgio Antônio Fabris Editor

A obra parte da seguinte premissa: não se questiona a criatividade da


jurisprudência, em todas as épocas; pretende-se, em verdade, investigar as
razões pelas quais tal criatividade tem-se tornado mais necessária e acentuada
nas sociedades contemporâneas e precisar a tipicidade do processo
jurisdicional, fundamentalmente distinto do processo legislativo.
Na primeira parte, no capítulo intitulado “O Direito Jurisprudencial, Tema,
Método, Limites Substanciais”, Cappelletti enfrenta o problema de se
questionar se os juízes são mero intérprete-aplicadores do direito ou se
participam, lato sensu, da atividade legislativa, da criação do direito.
Já há mais de século, Jeremy Bentham fazia uso da expressão direito judiciário
(“judiciary law”) para definir que, no ordenamento inglês, “embora o juiz, como
se diz, nominalmente não faça senão declarar o direito existente, pode-se
afirmar ser em realidade criador do direito”. Via-se, de maneira negativa, o
direito eivado de “vícios” como incerteza, obscuridade e dificuldade na
verificação. Apesar da defesa por alguns da codificação do direito inglês para
assegurar maior grau de certeza, o próprio Bentham tinha consciência de que
nem mesmo a completa codificação teria suprimido o direito judiciário. O que
não se podia prever é que, justamente com a expansão do direito legislativo –
em especial no século XX e em países de civil law e de common law –,
expandiu-se, também, o direito “jurisprudencial”, o papel criativo dos juízes.
Cappelletti investiga se há antítese entre interpretação judiciária da lei e
criatividade dos juízes, ou se na interpretação judiciária do direito legislativo
está ínsito certo grau de criatividade. O “Chief Justice” Barwick (da Austrália) já
escrevia que mesmo “a melhor arte de redação das leis” e mesmo a mais
precisa linguagem legislativa sempre deixam lacunas que devem ser
preenchidas pelo juiz e sempre permitem ambiguidades e incertezas que, em
última análise, devem ser resolvidas na via judiciária. Também o juiz americano
Oliver Holmes já afirmava que qualquer palavra tem geralmente vários
significados, inclusive no dicionário. Por fim, deve-se reconhecer que o tempo
faz do intérprete instrumento de inovação, em razão da situação referencial
diversa e do contexto distinto (Lorde Radcliffe).
O verdadeiro problema, portanto, está o grau de criatividade e nos modos,
limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários.
De toda forma, certo grau de criatividade no ato de interpretação não deve ser
confundido com a afirmação de total liberdade do intérprete. Todo sistema
jurídico traz limites à liberdade judicial, tanto processuais quanto substanciais –
estes últimos variam profundamente de época para época, incluindo
precedentes judiciários, opiniões de jurisconsultos, decisões de assembleias,
leis de parlamentos, códigos etc.
O princípio da sujeição a precisos limites substanciais, à lei, não constitui
requisito essencial da natureza jurisdicional de uma decisão ou processo, já
alguns juízes podem ser investidos do poder de basear suas decisões na
equidade ou em outros vagos símbolos de valor. Quem negaria o caráter
jurisdicional das decisões emitidas já há dois milênios pelos juízes da Roma
clássica, ou pelos chanceleres ingleses há alguns séculos, por estarem
baseadas na aequitas ou na conscience? Não obstante, os limites substanciais
não são completamente privados de eficácia: criatividade jurisprudencial não
significa necessariamente “direito livre”, no sentido de direito arbitrariamente
criado pelo juiz do caso concreto. Em maior ou menor grau, esses limites
substanciais vinculam o juiz, mesmo que nunca de forma completa e absoluta.
Segundo Cappelletti, esses limites substanciais, diversamente dos formais ou
processuais, não têm a virtude de caracterizar a “natureza” do processo
jurisdicional, já que não representam o elemento distintivo da jurisdição em
face da legislação ou da administração. É que a atividade administrativa
normalmente é vinculada aos mesmos limites substanciais que se impõem ao
juiz, e, quando o juiz é livre para basear as próprias decisões em preceitos
vagos e não escritos de equidade, sua atividade não pode ser diferenciada da
do legislador. Mesmo a atividade do juiz vinculado à lei e aos precedentes
dificilmente pode ser diferenciada, quanto aos limites substanciais, da do
legislador, cujo poder de criação do direito esteja sujeito aos vínculos ditados
por uma constituição escrita e pelas decisões da justiça constitucional. A
diferença seria apenas de grau (os limites substanciais do legislador
usualmente são menos frequentes e menos precisos que aqueles com os
quais, em regra, se depara o juiz).
Em suma, tanto o processo legislativo quanto o processo jurisdicional
constituem processos de criação do direito.
A segunda parte da obra trata das causas e efeitos da intensificação da
criatividade jurisprudencial. Reconhece-se que no século XX houve
intensificação da criatividade da função jurisdicional. Quais as razões? Em
primeiro lugar, constata-se uma “revolta contra o Formalismo” (representada
por várias escolas de pensamento, como o legal realism nos Estados Unidos, a
Interessenjurisprudenz na Alemanha e o método da libre recherche scientifique
de François Gény em França), ante o reconhecimento do caráter fictício da
concepção da interpretação como atividade puramente cognescitiva e
mecânica (tradição montesquiniana do juiz como “boca da lei”).
Essa revolta nada mais foi do que o sintoma ou o reflexo de fenômenos muito
mais penetrantes. Deve-se acentuar a radical mudança ocorrida no próprio
papel do direito e do estado na sociedade moderna, em especial o crescimento
desse papel e da função legislativa em particular.
O autor destaca entre os efeitos da grande transformação sobre a função
jurisdicional a legislação social, os direitos sociais e o papel transformado da
Magistratura. A legislação com finalidade social em geral apenas indica certas
finalidades ou princípios, deixando a especificação a normas subordinadas, a
decisões de ministros ou autoridades regionais ou locais, ou aos cuidados de
agências ou tribunais administrativos (a exemplo de leis modernas em
domínios como o do controle de preços, da industrialização regional ou
renovação urbana). Já os direitos sociais, que pedem para sua execução a
intervenção ativa do estado, frequentemente prolongadas no tempo, trazem
implicações importantíssimas aos juízes, que assumem a tarefa de dar a
própria contribuição à tentativa do estado de tornar efetivos tais programas. E,
quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo
se torna o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias.
Outro efeito da grande transformação da função judiciária está na afirmação de
um complexo e gigantesco “terceiro poder” como necessário contrapeso aos
“Poderes Políticos”.
Os parlamentos nos estados modernos são excessivamente abundantes e
possuem tantas tarefas que, para evitar a paralisia, encontraram-se ante a
necessidade de transferir a outrem grande parte de suas atividades, em
especial ao executivo e aos seus órgãos e derivados, com toda uma série de
entidades e agências, a quem foram confiadas tarefas normativas e
administrativas. O declínio da confiança nos parlamentos constitui fenômeno
característico de todo mundo ocidental. Há, ainda, o problema da legitimação
democrática.
O gigantismo do Poder Legislativo, chamado a intervir em esferas sempre
maiores de assuntos e de atividade, e o gigantismo do ramo administrativo,
profunda e potencialmente repressivo, se aliaram ao aumento da função e das
responsabilidades do Judiciário (o terceiro gigante, capaz de controlar o
legislador e o administrador).
A respeito da assunção dessas novas responsabilidades, só restariam duas
alternativas. Em uma primeira vertente, os tribunais permaneceriam presos aos
limites tradicionais da função jurisdicional, o que abriria espaço para o
surgimento de organismos quase-judiciários – como agências e tribunais
administrativos, árbitros estatais e ombudsmen. Além disso, na Europa, foram
criados cortes constitucionais às quais foi concedida a novíssima
responsabilidade jurisdicional.
A segunda alternativa seria a emergência de um judiciário que assumisse a
tarefa de ultrapassar o papel tradicional de decidir conflitos de natureza
essencialmente privada, controlando os “poderes políticos”. Os riscos mais
prováveis consistiriam na dificuldade de controlar o emprego correto da
discricionariedade legislativa e administrativa, especialmente nos casos em que
um sério controle exija o emprego de conhecimentos sofisticados ou técnicas
especializadas (investigações empíricas, cálculos econométricos ou pesquisas
de laboratório); o perigo da inefetividade (atos que, para serem efetivamente
obedecidos, implicam uma atividade continuativa das entidades administrativas
e do legislador); e o problema da legitimação democrática.
Antes de enfrentar tais problemas, Cappelletti insiste na afirmação de que
somente um sistema equilibrado de controles recíprocos – ao invés de uma
rígida separação de poderes – pode fazer coexistir, sem perigo para a
liberdade, um legislativo forte, um executivo forte e um judiciário forte. Tal
equilíbrio constitui, inclusive, o inegável sucesso do sistema constitucional
norte-americano.
O próximo efeito da grande transformação da função judiciária está na
emergência de conflitos de classe e a definição do papel dos juízes na
proteção dos interesses coletivos e difusos. Surge o desafio de os juízes se
erigirem como controladores eficazes, não só dos “ramos políticos” (Big
Government), mas do gigantismo das formações econômicas e sociais,
inclusive no âmbito privado, próprio das sociedades contemporâneas.
Outro fator apontado por Cappelletti é o caráter acentuadamente criativo da
“Justiça Constitucional das Liberdades”. Surgem catálogos de direitos
fundamentais do homem, nacionais e supranacionais, que se tornam
vinculantes também para o legislador ordinário (típico de quase todas as
constituições do século XX). A expansão da chamada justiça constitucional das
liberdades (nacional ou supranacional) é causada, entre outros motivos, pela
crise de desconfiança no “estado leviatã” e, em particular, pela “orgia de leis”. A
tarefa dos tribunais, de dar atuação aos modernos “Bill of Rights”, contribui
para expandir o âmbito do direito judiciário e aumentar a criatividade dos juízes.
Na terceira parte, Cappelletti estuda as debilidades e virtudes do direito
jurisprudência. Inicialmente, aponta ser inegável que os juízes sejam
criadores do direito, “law-makers”, mas isso não os faz legisladores. Há
essencial diferença entre os processos legislativo e jurisdicional.
Do ponto de vista substancial, ambos os processos resultam em criação do
direito. Mas o modo é diverso (procedimento ou estrutura). O que faz de um
juiz um juiz é: a) a conexão da sua atividade decisória com os “cases and
controversies”; e b) a atitude de imparcialidade do juiz, que deve ter, além
disso, grau suficiente de independência em relação às pressões externas e
especialmente àquelas provenientes dos “poderes políticos”. Essas “virtudes
passivas” (atividade passiva do juiz) são refletidas nos aforismas “nemo judex
in causa propria”, “audiatur et altera pars” e “ubi non est actio, ibi non est
jurisdictio”. Tais características essenciais (“virtudes passivas” ou “limites
processuais”) diferenciam profundamente o procedimento judicial dos
procedimentos legislativo e administrativo.
Cappelletti reconhece que os juízes acabam agindo como legisladores nos
casos de tribunais que emitem “pareceres”, ao invés de decisões, como em
certos tribunais superiores do Canadá, Índia, Suécia e Finlândia, ou quando
deles emanam “diretivas” gerais em temas de interpretação, vinculantes para
os tribunais inferiores, sem conexão com determinado caso concreto. Há,
ainda, casos em que cortes superiores emitem obiter dicta que ultrapassam o
pedido da parte e vinculam com eficácia erga omnes.
Quanto às “enfermidades” da criação judiciária do Direito, Cappelletti inicia com
a afirmação de que o direito judiciário é resultado (em maior grau) de fonte
conflitantes entre si, mostrando-se frequentemente mais difícil ao legislador ter
informação adequada do direito jurisdicional do que do direito legislativo. Por
outro lado, tem maior potencial de flexibilidade e adaptabilidade aos casos
concretos.
A segunda limitação está na possível eficácia retroativa atribuídas às decisões
judiciárias, mesmo quando criativas.
A terceira limitação estaria na incompetência institucional da magistratura para
agir como força criadora do direito (p. ex., não tem acesso a dados sociais,
econômicos e políticos). A gravidade de tal problema poderia ser atenuada pelo
recurso a pareceres técnicos ou perícias, à intervenção de terceiros no
processo e outros instrumentos. Em alguns casos, como nos domínios do
direito econômico, os juízes seriam até menos vulneráveis às pressões da
demagogia eleitoral de caça aos votos.
Há, ainda, a limitação quanto ao alegado caráter não-majoritário
(antidemocrático) do judiciário. O autor rebate com os seguintes argumentos: a)
dissipou-se, já, a utopia da capacidade perfeita dos poderes políticos de
alcançar o consenso dos governados ou até mesmo da sua maioria; b) o
próprio judiciário não é desprovido inteiramente de representatividade. Veja-se
que os membros dos tribunais constitucionais, em regra, são nomeados
politicamente; c) as decisões são fundamentadas, e não decorrem de caprichos
ou predileções subjetivas dos juízes; d) grupos marginais não têm acesso a
outros poderes, mas podem ser ouvidos pelo Judiciário; e) em certo sentido, o
processo jurisdicional é até mais participatório do que os processos da
atividade pública, já que está em direta conexão com as partes.
Cappelletti conclui que a criatividade jurisdicional é inevitável e legítima, e que
o problema real e concreto é o da medida de tal criatividade, portanto de
restrições.
De toda forma, da própria natureza do processo jurisdicional, a criação
jurisprudencial do direito se mostra lenta, baseada numa “audiência”
incompleta dos interesses envolvidos, mas é gradual e experimental. Outros
juízes serão capazes de corrigir, melhorar e modelar um “direito” que nunca se
mostra inteira e definitivamente “feito”. Assim a produção judiciária do direito
tem a potencialidade de ser altamente democrática, sensível às necessidades
da população, pois os juízes são gradualmente chamados a decidir casos
envolvendo pessoas reais, fatos concretos, problemas atuais da vida.
Por fim, é de se ver que democracia não pode ser reduzida a uma simples ideia
majoritária, significando participação, tolerância e liberdade. Um judiciário
razoavelmente independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria,
pode dar uma grande contribuição à democracia.
Na quarta parte, o autor trabalha as diferenças e convergências nas grandes
famílias jurídicas. Nesse cenário, deve-se questionar: que tipo de judiciário
existe em determinado país e qual o seu grau de independência em relação ao
executivo? Como são organizados e operam os tribunais superiores? É
realístico esperar que tais cortes exerceriam, de maneira razoável, mais alto
grau de discricionariedade que lhes fosse atribuído? Quais seriam as reações a
tal discricionariedade? Existe equilíbrio na distribuição dos poderes?
Sem ser possível ingressar nas diferenciações locais e nacionais, existe um
tipo de generalização factível nesse estudo: o que concerne às diferenças
fundamentais entre os países de “Civil Law” e “Common Law”. Reconhece-se
que as distinções vêm sendo superadas e que os resultados da pesquisa se
aplicam a ambas as famílias jurídicas. O autor cita cinco grandes diferenças e,
ao final, anota que até mesmo nos sistemas de “Civil Law” verifica-se o
aparecimento do fenômeno do aumento da criatividade da jurisprudência.
Ao fim, conclui que o verdadeiro perigo a prevenir não está em que os juízes
sejam criadores do direito, mas que seja pervertida a característica formal
essencial, o “modo” do processo jurisdicional. Onde prevaleçam as
“debilidades”, mais conveniente se tornará maior dose de “self-restraint” do
judiciário; uma maior dose de ativismo se recomendará, ao invés, na hipótese
contrária.
Questão de reflexão: trazendo a discussão para o âmbito do Brasil, questiona-
se quais seriam as causas específicas da expansão da importância do
Judiciário, em especial do Supremo Tribunal Federal, como um poder
controlador dos demais.
Resposta: entendo que, entre outros fatores, a CF/88 foi pródiga em conferir
direitos (inclusive sociais, na linha do que expõe Cappelletti), aumentou a
legitimidade para provocar o STF em ações objetivas, buscou impor o combate
à corrupção por instrumentos relevantes, conferiu maior força ao Ministério
Público e trouxe a Defensoria Pública, além da hipótese de que o exercício do
papel de “poder moderador”, até então dos militares na política brasileira,
passa a ser do Judiciário (tese de Daniel Sarmento).

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