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Sinopse
Glossário de Terminologia
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Sinopse
Era uma vez...
Nascido rei dos Seelie, Eamonn lutou incontáveis batalhas para defender
a honra, o dever e a liberdade... até que seu irmão gêmeo afundou uma lâmina
entre seus ombros. Cristais brotaram da ferida, abrindo pele e osso. Seu povo
o baniu para uma ilha amaldiçoada por sua desfiguração, agora o rei dos
criminosos e tolos.
Era uma vez em uma terra escondida fora do alcance humano, vivia um
Rei e Rainha dos Faes Seelie. Eles desejavam desesperadamente um herdeiro
para o trono, mas não haviam sido abençoados com filhos. Em sua frustração,
o rei viajou através do mar para a casa amaldiçoada dos Unseelie.
Ele fez um trato com uma velha, metade aranha e metade mulher. Se ela
lhe desse um filho, ele traria paz às suas terras. A velha ficou satisfeita e
prometeu que quando ele voltasse para sua esposa, ela lhe daria um filho.
A Rainha carregava não um, mas dois filhos. Meninos gêmeos, ambos
herdeiros do trono.
Muitos anos se passaram. Suas vidas estavam cheias de luz e amor. Eles
haviam esquecido que os Unseelie não fazem negócios sem pagamento, e
impedir uma guerra pagaria por um menino.
Não dois.
Seu filho primogênito se tornou um guerreiro. Sua lâmina era imparável,
sua pontaria sempre certa, sua velocidade extremamente rápida. Seu segundo
filho cresceu e se tornou um estudioso. Ele conhecia cada sussurro do vento,
cada mentira e história, cada pedaço de conhecimento que fazia o reino
funcionar sem problemas. O Rei e a Rainha estavam certos de que governariam
os Seelie Fae juntos.
Eles não tinham visto o ciúme crescendo no coração do filho mais novo,
nem tinham visto a dúvida crescendo no mais velho.
Em um acesso de raiva, o filho mais novo enterrou uma lâmina nas costas
do irmão. A ferida era superficial e poderia ter cicatrizado se não tivesse
revelado um pesadelo.
Seu filho, seu primogênito perfeito, tinha falhas. Pedras preciosas e
cristais cresceram da ferida, estragando seu corpo forte e tornando-o incapaz
de governar seu reino. Envergonhados e horrorizados, eles fizeram a única
coisa que podiam.
Banimento.
O príncipe desgraçado foi mandado embora para uma ilha fantasma que
só podia ser vista uma vez a cada sete anos. Ele implorou a sua família que o
deixasse ficar, mas eles não tiveram pena do homem que havia escondido sua
verdadeira natureza.
O filho primogênito do Rei Seelie desvaneceu-se no mito, depois lenda.
Então, em absolutamente nada.
Capítulo 1
O Besouro
Os Gêmeos
O Navio
Briana bufou enquanto ela seguia Sorcha. — Você não pode sair!
— Eu preciso, e eu já te disse o porquê, então, por favor, pare de se
arrastar atrás de mim. Eu tenho que pegar minhas coisas.
— Você nem nos disse para onde está indo!
— Eu não sei para onde estou indo.
O cocheiro estúpido a levara direto para o bordel. Ele não falou, e ela não
estava prestes a levantar a pedra de bruxa até o olho novamente, mas ela
entendeu seus gestos rápidos. Ela não tinha muito tempo para se despedir.
Era mais fácil desse jeito. Suas irmãs tinham tendência à histeria,
especialmente quando não conseguiam o que queriam. Sorcha foi sua muleta
por muito tempo.
Embora fossem todas próximas, era ela que procuravam em tempos de
luta. Isso significava que ela ouvia todos os seus segredos, suas histórias, suas
queixas sobre as outras e a vida que viviam. Ela as manteve a salvo, sem filhos,
e se certificou de que todos os hematomas ou arranhões sarassem. Elas
provavelmente não admitiriam, mas Sorcha era parte integrante de suas vidas.
Ela sentiria muito a falta delas.
Briana arrancou uma camisola das mãos de Sorcha. — Absolutamente
não! Eu não sou cega. Você aparece em alguma carruagem chique com um
cocheiro, um cocheiro, e então pensa que vou acreditar que você vai curar os
besouros? Sorcha! Se você quisesse sair com algum nobre rico, sabe que
ficaríamos felizes por você! Por que você está mentindo?
— Eu não estou mentindo.
— Lá vai você de novo! É Geralt? É por isso que você não quer nos
contar?
Sorcha passou por Briana e colocou outra saia em bolsa grande que ela
poderia carregar no ombro. Era melhor do que dar um tapa na cara da irmã. —
Não acredito que você sugeriu que eu aceitaria a proposta de Geralt!
— Ele é rico! Ele tem muitas propriedades e está obviamente apaixonado
por você, embora eu não consiga entender por quê!
— Não vou casar com Geralt! — Sorcha agarrou uma braçada de seus
diários e os jogou na bolsa com suas roupas.
— Por que você está levando isso?
— Eu posso precisar deles.
— Você pode voltar para pegá-los! Certamente quem você vai ver vai
deixar você voltar para casa? Não nos importamos de deixar você ficar com
este quarto!
Ela queria ficar com o quarto também. Havia tantas memórias dentro
dessas paredes. Momentos doces e queridos em que suas irmãs
compartilharam segredos e pesadelos resistidos.
Sorcha devorou todos os detalhes que pôde encontrar. As marcas na
porta onde ela acompanhava o crescimento de Rosaleen. O vaso de flores no
parapeito da janela, agora vazio, porque Briana tinha insistido que a planta
voltaria a crescer. O tronco esculpido em que seu pai havia trabalhado por
tanto tempo, embora parecesse mais com marcas de arranhões do que a baleia
que ele disse que era.
A vida tinha uma maneira estranha de puxá-la para longe daqui. Cada
momento de sua vida, ela passou correndo para os vales dos Faes e deixando
ofertas. Agora havia uma chance de ver o Outro Mundo em pessoa, e ela estava
com tanto medo de partir.
— Briana, eu te amo. Não sei se já disse o suficiente, mas estou dizendo.
O rosto de sua irmã se enrugou de preocupação. — O que você está
fazendo? Que escolha você fez, Sorcha? Você pode confiar em mim.
— Eu já disse a você — Sorcha passou a mão na bochecha de Briana,
memorizando o formato dela. — Os Faes me ofereceram um acordo para curar
a praga do besouro. Não vou ver papai morrer.
Ela deixou a irmã no quarto e desceu as escadas pesadamente. A bolsa
era muito pesada para ela, mas ela se recusou a deixá-la ir. Os livros eram
importantes. Cada erva, cada cataplasma, cada pedacinho dos ensinamentos
de sua mãe estavam nesses livros. Para onde ela fosse, eles iram.
Três lances de escada pareciam uma caminhada de um dia
inteiro. Jogando a bolsa no chão, ela silenciosamente fez seu caminho para o
quarto de papai.
Batendo, ela gritou: — Você está acordado?
— Para você, sempre.
Sorcha sorriu, piscando para conter as lágrimas que brotavam de seus
olhos. Ela entrou no quarto do pai e fechou a porta atrás dela. As sombras
esconderam os rastros de sal em suas bochechas.
— Você está indo embora. — Disse ele.
— Você ouviu?
— Como eu não poderia? Sua irmã estava gritando como uma banshee.
Ela se acomodou na beira da cama. — Você sempre disse que pelo menos
uma de nós era uma criança changeling.
— Sim, mas sempre pensei que fosse você.
— Eu fiz um acordo. — Ela deixou escapar as palavras e as deixou pairar
no ar entre eles. — Não havia outro jeito. A Guilda não vai me ouvir, você está
piorando, os besouros estão se espalhando. Alguém tinha que fazer alguma
coisa, papai.
— E esse alguém tinha que ser você?
— Você está tão surpreso?
Ele se apoiou nos cotovelos, o cabelo com mechas grisalhas grudado em
sua pele com suor. Esta era a razão pela qual ela arriscaria sua vida. Este
homem, que desistiu de tanto para lhe dar uma chance.
Papai alisou o cabelo para trás, soltando um suspiro cansado. — Acordei
esta manhã e os besouros estavam piores do que nunca. Tossi sangue pela
primeira vez e sei o que isso significa. Não contei porque não queria que você
se preocupasse. Então, esta tarde, eles pararam de se mover. Não sei por
quê. Não sei como. Mas eles pararam e meu primeiro pensamento foi que você
tinha algo a ver com isso.
Uma lágrima escorreu por sua bochecha. — Papa...
Ele ergueu a mão. — Eu não terminei. Não te criei no começo de sua vida,
mas vi uma boa garota quando te conheci. Nunca conheci sua mãe, mas ela
obviamente criou você da maneira certa. As outras são mimadas, vaidosas,
cruéis umas com as outras. Você nunca foi como elas.
— Eu soube desde o momento em que você decidiu me curar, você
encontraria uma maneira de parar isso. Estou feliz que seja você. Estou triste
por você ter que me deixar fazer isso e espero que não tenha trocado sua alma
pela minha antiga vida. Mas ficarei ao seu lado se for isso que você quiser.
— Oh, papai. — Ela engasgou enquanto se jogava em seus braços.
Ela não fazia isso desde que era uma garotinha. Era muito mais difícil
caber em seu colo agora que ela estava crescida, mas ela tentou o seu
melhor. Ele esfregou as costas dela enquanto ela lutava contra as lágrimas.
— Não é uma coisa vergonhosa querer salvar sua família, Sorcha.
— Elas acham que estou fugindo para ficar com um homem. Como se eu
fosse deixar você? Elas? Amo muito todos vocês para partir sem um bom
motivo.
— E elas te amam. É por isso que elas estão tão chateadas.
— O que vou fazer sem você?
Ele deu uma risadinha. — Eu imagino que você vai se sair bem. Você
sabe para onde está indo?
— Você acredita em mim? — Ela ergueu a cabeça de seu ombro. — Você
não acha que estou louca ou mentindo?
— Você sempre viu Faes, Sorcha. Pensei que você era louca quando era
pequena, mas comecei a perceber as coisas também. Mãos minúsculas
costumavam puxar seu cabelo o tempo todo. Você passava a noite com
Rosaleen, mas seus vestidos estavam todos perfeitamente passados e dobrados
em sua cama. Coisas estranhas acontecem ao seu redor, criança.
— A maioria diria que sou uma bruxa. — Ela enxugou os olhos, pegando
as lágrimas salgadas nas pontas dos dedos.
Papai balançou a cabeça, os sulcos profundos em sua testa destacando-
se em total alívio. — Você não é uma bruxa mais do que sua mãe era. Os Faes
são exigentes para ajudar, então eu diria que você tem sorte. Não amaldiçoada.
Ela não queria deixá-lo ir. Ela queria ficar enrolada contra seu peito para
sempre, ou até que ele se levantasse como um homem forte novamente.
Seu peito arfava com soluços silenciosos. — Não sei o que estou fazendo,
papai. Esta é a coisa certa a fazer?
— Parece que é? — Ele bateu em seu peito. — Aqui?
— Sim.
— Então é a coisa certa a fazer, e a família dane-se. Você vai voltar para
nós algum dia, tenho certeza disso.
Ela não tinha. Sorcha teve uma sensação de mal estar no fundo de seu
estômago, porque esta era a última vez que o veria. Suas mãos tremiam
enquanto ela segurava suas bochechas.
— Adeus.
Ele pressionou a palma contra as costas da mão dela, segurando-a contra
o coração. — Adeus, doce menina.
Se ela ficasse por mais um momento, ela nunca iria embora. Ela se jogou
da cama em um turbilhão de movimentos e saiu correndo porta afora.
— Sorcha? — Rosaleen chamou. — Sorcha, você realmente está indo
embora?
— Diga as outras que as amo! — Ela gritou e pegou sua bolsa.
A porta da frente bateu atrás dela com tanta força que as venezianas
tremeram. O dullahan se assustou com uma expressão branda no rosto.
Ela jogou a bolsa na carruagem e se lançou atrás dela. Seu punho bateu
contra o telhado.
— Vá!
O chicote estalou, um som não natural de osso rangendo. Lágrimas
caíam livremente por seu rosto enquanto a carruagem fugia do bordel. Suas
irmãs saíram de casa, seus gritos ecoando em seus ouvidos por quilômetros
adiante.
O que ela fez? Dizer adeus a fez querer quebrar em mil pedaços. Mas um
acordo era um acordo.
Sorcha nunca tinha estado longe de casa. Ela só tinha estado sozinha uma
vez na vida, por três dias inteiros depois que o cadáver de sua mãe parou de
queimar. Essas eram memórias sombrias. Pensamentos que sua mente tinha
escondido para que ela não se demorasse no passado.
Agora, ela ficaria sozinha por um período indeterminado de tempo. Ela
lidaria bem com isso? Seu coração parecia que ia pular do peito. Respirações
curtas expandiram seus pulmões e redemoinhos de escuridão piscaram na
frente de seus olhos.
Ela se concentrou na paisagem que passava voando. Elas se dirigiam
para o mar, e ela não ia aos portos desde que era menina. Seu pai havia
especificamente evitado montar um bordel perto de marinheiros. Ele disse que
eles eram clientes frequentes que nunca pagavam suas dívidas. Era mais fácil
em uma cidade onde homens ricos podiam encontrar o caminho por um beco
escuro.
As colinas verdes ondulantes acalmaram sua mente. Paredes de pedra
dividiam os campos, construídas para lembrar a todos onde ficavam suas
terras. Cada pedra brilhava com musgo, gasto pelo tempo, tocado por centenas
de transeuntes. Pontos brancos de ovelhas salpicavam a terra.
De vez em quando, eles passavam por uma ponte de pedra. Riachos
corriam embaixo deles, abrigando trolls e goblins para passar a noite. Sorcha
quase podia senti-los, escondidos em seus casebres sob o solo.
Essas terras esmeraldas sempre a chamavam. Este não era apenas um
campo, não era apenas grama e ovelhas, esta era uma casa.
Ela pressionou a cabeça contra a lateral da carruagem. O movimento
sacudido batia seu crânio contra a madeira de vez em quando, mas mesmo isso
não embotava seu tormento. A terra a enraizou no agora, no momento, em
tudo que não fosse a perda de sua família.
Ela os veria novamente, Sorcha disse a si mesma. Mesmo que demorasse
anos para voltar.
Campos luxuriantes deram lugar a pequenas casas com jardins
cultivados. Em seguida, caminhos de paralelepípedos serpenteavam pelas
cidades, que ficavam cada vez maiores à medida que alcançavam o oceano. Ela
podia sentir o cheiro de sal e salmoura no ar.
A carruagem diminuiu a velocidade ao passar por uma multidão de
pessoas com roupas esfarrapadas. Mulheres com lenços sobre a cabeça
evitavam olhá-la nos olhos, e homens vestidos de lã comida pelas traças
olhavam para a carruagem. Marinheiros que haviam visto dias melhores
vagavam pelas docas, e fazendeiros com as bochechas manchadas de sujeira
vendiam seus produtos. As crianças enfiavam as mãos nos bolsos até mesmo
para a menor das moedas.
As rodas fizeram barulho ao passarem por outro bordel. Sorcha não
reconheceu nenhuma das mulheres penduradas nas janelas, mas havia algo em
seus olhos assombrados que a gelou até os ossos. Essas não eram prostitutas
cuidadas por um homem bom. Esgotadas, exaustas e usadas, seus corpos
contavam a triste história de suas vidas.
Uma parte dela, igualmente gelada, se perguntou se aquele poderia ser
seu futuro. Eventualmente, suas habilidades não seriam necessárias para o
bordel, ou eles encontrariam alguém que faria as mesmas coisas sem o fardo
de hospedagem e alimentação. Para onde ela iria? Não havia empregos para
mulheres, nem maridos para uma mulher favorecida pelos Fae.
Ela se recostou nas almofadas macias da carruagem e se recusou a olhar
para fora.
A brisa do oceano entrava furtivamente por sua janela, enredando-se nos
fios soltos de seu cabelo. Ela podia sentir o cheiro do peixe, das algas marinhas,
do sal do oceano e do suor dos homens. Ela podia ouvir as ondas quebrando
como se tivesse colocado uma concha no ouvido, mas esta era a coisa
real. Essas ondas estavam lá fora. Tudo o que ela precisava fazer era se inclinar
para frente mais uma vez. Olhos assombrados a encararam de volta, embora
seus olhos estivessem fechados.
— Eu não vou me tornar como eles. — Ela sussurrou.
As rodas da carruagem guincharam ao parar. O dullahan bateu no teto
da carruagem, exigindo silenciosamente que ela fosse embora.
Sorcha soltou um longo suspiro para se acalmar. — Você pode fazer isso
Sorcha. Você trabalhou mais duro antes. Tudo o que você precisa fazer é sair
desta carruagem.
Ela enrolou a mão em torno de sua bolsa. Seu punho cerrou-se com força
até que as tiras de couro se cravaram em suas palmas. Coragem nunca foi algo
fácil de encontrar, mesmo quando necessário para a sobrevivência.
A porta se abriu com estrondo e o dullahan olhou para ela com olhos
opacos.
— Sim, eu sei, — disse ela. — Dê-me um momento, por favor.
— É hora de você ir. — Seus lábios se moveram, mas sua voz saiu de suas
mãos.
Sorcha estremeceu. A última coisa que ela precisava era um lembrete de
que o homem que estava diante dela estava realmente sem cabeça, e que ele
estava segurando essa cabeça para falar com ela.
— Para onde devo ir?
— Encontre o navio com a barriga amarela. É marcado como Fae e irá
levá-la para Hy-brasil.
— E quando exatamente a ilha estará visível?
O dullahan estreitou os olhos falsos. — Você tem seis dias.
— Isso é viável em um navio?
— Não sou marinheiro, menina. Pergunte ao capitão.
Ele estendeu a mão para ela tomar. Sorcha não conseguiu se forçar a tocá-
la. O brilho de malevolência em seu olhar a deixava nervosa, e ela se perguntou
se ele a faria tocar sua cabeça.
Ela saltou da carruagem sozinha, carregando o peso de sua mochila com
um suspiro. — Obrigada pela boa viagem.
— Você me agradece por seguir as ordens do meu mestre?
— Bem, sim. — Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha. —
Você pode ter seguido ordens, mas você não fez uma pausa muito longa e não
foi um passeio muito acidentado. Eu nem sequer fiquei com ânsia no
caminho. Por isso, tenho que agradecer. Não seus mestres.
Seu rosto se contorceu em confusão. — Você é uma humana estranha.
— Você não é o primeiro a dizer isso. Oh, — ela balançou a cabeça. — Eu
quase esqueci.
Sorcha enfiou a mão no bolso e tirou um pequeno pote de mel que havia
esquecido de deixar no santuário. Na pressa de sair de casa, ela não o colocou
de volta na cozinha, onde pertencia.
Agora, o líquido dourado parecia errado para manter. Ela o estendeu
para o dullahan com um sorriso suave. — Obrigada.
— O que devo fazer com isso? — Ele segurou o pote perto da cintura para
seus olhos verdadeiros olharem.
— Eu não sei. É um presente. Você gosta de mel?
— Eu não sou o tipo de Fae que gosta de mel.
— Então, presenteie outra pessoa ou saboreie no pão da manhã.
— Sorcha encolheu os ombros. — Isso pouco importa para mim.
Ela passou por ele, mas notou a expressão estranha em seu rosto. Se ela
não soubesse melhor, Sorcha teria pensado que ele estava inspecionando
melancolicamente seu presente. Os dullahan não eram conhecidos por sua
bondade. Eles anunciavam a morte a todos aqueles que cruzavam seus
caminhos e chicotes feitos de espinhas humanas.
Talvez ele nunca tenha recebido um presente, ela pensou enquanto
olhava por cima do ombro.
Sorcha ergueu a pedra bruxa até o olho enquanto ele virava a
carruagem. As velas ainda tremeluziam lá dentro, os crânios rindo na
decoração, a bela madeira se transformando em pele esticada. Rodas rangentes
revelavam ossos da coxa humanos girando. E o próprio estúpido, com a cabeça
apoiada em seu colo e os lábios se estendendo de orelha a orelha, estava
olhando para ela.
Ela ergueu a mão em despedida apenas para ter a satisfação de ver sua
confusão uma última vez.
A multidão cresceu em torno dela. Pessoas de todas as esferas da vida
vagavam pelas docas esta tarde. Eles vagavam pelas ondas de pessoas como
um barco surfando nas ondas.
Cores e sons agrediram seus sentidos. Mulheres de cores vibrantes a
chamavam, os homens gritavam ao longe para levantar as velas e içar as
âncoras. Um peixe caiu no chão onde uma mulher martelou sua cabeça até que
ele parou de se mover. Ela passou para a próxima enquanto outra cortava sua
barriga.
Seu estômago embrulhou. Afastando-se daquele lado da rua, Sorcha
lutou para chegar às docas. Era onde ela encontraria o capitão. Tinha que ser.
— Com licença senhor? — ela tocou o ombro de um homem. — Onde
posso encontrar um navio com a barriga amarela?
— Por que você está me perguntando? — ele a olhou de cima a baixo. —
Eu não faço caridade para gente como você.
— Caridade? — Sua boca se abriu enquanto ele se afastava dela.
Sorcha tentou muitas vezes encontrar alguém que pudesse apontar a
direção certa. As mulheres tentaram contratá-la para trabalhar, os homens a
ignoraram principalmente como se ela não existisse. Um homem até a fez ficar
na frente dele e gritar para chamar sua atenção.
Nenhum deles queria apontá-la para um navio marcado como o
dullahan havia reivindicado. Não existia? Ela queria ficar em uma grade e
gritar. Alguém nesta cidade portuária abandonada pelos deuses deveria saber
onde estava um navio de barriga amarela!
O sol se escondeu no horizonte e Sorcha desistiu.
Cansada e desanimada, ela se sentou no último cais e deixou as pernas
balançarem acima da água. Sua bolsa atingiu as pranchas de madeira com um
baque alto.
— Eu só quero encontrar um navio com uma barriga amarela, — ela
gemeu. Ela caiu para frente e segurou a cabeça entre as mãos. — Não pode ser
tão difícil de encontrar!
Mas era. Ninguém queria ajudá-la. Os olhos de todos estavam
desconfiados e pensavam o pior dela sem perguntar quem ela era, por que
estava aqui, que propósito tinha na vida. Por que as pessoas fariam isso?
Sua pequena cidade protegida parecia tão distante. Seu povo era
retrógrado e estúpido, mas era gentil. Ela já sentia falta, e ainda não tinha sido
um dia inteiro.
Sorcha suspirou e puxou o cabelo. — Você não pode desistir
Sorcha. Muitas pessoas confiam em você.
Ela não podia se forçar a se mover. Suas pernas doíam de tanto caminhar
nas docas o dia todo. As alfinetadas dançaram em seus ombros e espinha com
o peso de sua mochila. Bolhas queimaram a planta dos pés.
Ela poderia querer continuar, mas seu corpo estava lhe dizendo não. Não
havia maneira de ela se levantar e seguir em frente, e ela nem havia encontrado
um lugar para dormir.
— Uma coisa impressionante como você deve cobrar um belo centavo
por uma noite.
— Demais para você. — Ela respondeu sem pensar. Sorcha fez uma
careta e olhou para o marinheiro que a encarava.
Cabelo e olhos escuros se misturavam com o céu noturno. Uma barba
cheia mascarava a maior parte de sua expressão, embora o brilho dos dentes
sugerisse que ele poderia estar sorrindo. Os dreadlocks afastaram o resto do
cabelo do rosto.
Seus ombros largos e peito estavam nus, e ela imaginou que ele estava
com muito frio. Uma pelagem de pelo o cobria do pescoço às calças escuras. Ele
não estava usando sapatos.
Os lábios de Sorcha franziram. — Muito caro.
— Eu não julgaria um livro pela capa, querida. O quanto você quer um
lugar aquecido para dormir?
— Não tanto — Ela empurrou sua bolsa para o lado. — Na verdade, eu
mesmo irei encontrar um lugar. Obrigada por me lembrar que está
escurecendo.
— Parece que você não é daqui, então deixe-me dizer algumas coisas. As
docas não são seguras à noite. Mesmo para prostitutas.
— Eu não sou uma prostituta.
— Por que mais você estaria nas docas? Mulheres respeitáveis ficam lá
em cima, — apontou para a luz das velas da cidade. — O resto vem aqui para
brincar com gente como eu. Você parece cansada, com fome e suja pela
viagem. Ou você é uma prostituta ou será em breve.
Sorcha sentiu que precisava se defender, ou pelo menos o título de
prostituta. — Minhas irmãs administram um bordel de sucesso em Ui
Neill. Não aceito bem um homem que faz menos de sua profissão. E quanto ao
seu conhecimento, — ela lutou para se levantar, — eu estou procurando um
navio em particular. Eu preciso viajar para longe daqui.
— Uma cliente? — ele riu. — Querida, você tem que mentir melhor do
que isso.
— Não estou mentindo! Disseram-me para encontrar o capitão de um
navio pintado de amarelo e que ele me levaria para onde eu precisava ir.
— O que você quer com o Saorsa?
Ela sorriu, o nome era apropriado. — O navio se chama Liberdade?
— Quem é você? — O homem cruzou os braços sobre o peito e franziu a
testa para ela. — O Liberdade não leva passageiros.
— Eu acho que essa seria a decisão do capitão.
— Eu sou o capitão.
As palavras ecoaram na mente de Sorcha. Não pode ser. Ele? Ela o olhou
de cima a baixo. — Você não parece um capitão.
— Você já viu um capitão antes?
— Não.
— Então você é uma juíza bastante pobre, não é? — Seus pés bateram
contra a doca quando ele se afastou dela. — Ah, e a propósito, ser educada com
um capitão é um bom começo.
Sorcha olhou para as costas dele em choque. Esse era o capitão? Ele não
podia estar falando sério. Ela não tinha acabado de arruinar sua chance de
chegar ao Hy-brasil sem nem mesmo perguntar a ele se ele a levaria?
Ela lambeu os lábios e gritou: — Os gêmeos MacNara me enviaram!
O capitão congelou. — Com licença?
— Os gêmeos MacNara me enviaram para pedir uma passagem
segura. Eu preciso ir para Hy-brasil, e eles disseram que você é a única pessoa
que pode me levar lá.
A lua flutuou no ar atrás dele, delineando sua figura com prata. — Eles
estavam certos, mas eu não vou para a ilha fantasma.
— Você é minha única opção. Eu tenho que ir e preciso que você me
leve. Não posso me desculpar o suficiente por ter sido rude, mas é fundamental
que eu vá.
— Você nem consegue ver a ilha.
— Você pode em seis dias, — ela disse. — O dullahan me contou. Por
favor.
Ele se virou para ela e cruzou os braços. — O que você está pagando?
— Não tenho nada para dar.
— Alguma coisa nesse pacote? — Ele apontou para a bolsa dela.
— Itens pessoais, principalmente diários. Eu sou uma curandeira. Posso
ajudar de qualquer maneira a bordo.
A esperança floresceu. Ele a estava avaliando como se ela fosse uma
pessoa, não apenas um pedaço de carne. Isso tinha que significar alguma
coisa. Talvez ele a levasse.
Nesse ponto, Sorcha nadaria até a maldita ilha se isso significasse
progresso.
Um crocitar a assustou. Sorcha estremeceu e olhou para o
céu. Contornado na escuridão e nas estrelas, um corvo gritou novamente.
— Achei que só voassem durante o dia. — Ela sussurrou.
— Malditos Faes — resmungou o capitão. — Tudo certo. Bem. O navio
levará você, mas você ajudará em toda a viagem. E não se esqueça do que fiz
por você.
— Não prestarei serviço a seus homens na viagem. Devo ter meus
próprios aposentos.
— Você estará compartilhando o meu, — ele grunhiu enquanto se
afastava dela. — Ter uma mulher a bordo já dá azar. Vou ficar de olho em você.
Sorcha agarrou sua bolsa e jogou-a sobre o ombro. As bolhas que se
danassem, ela conseguiria chegar a este navio. — Meu nome é Sorcha. Qual é
o seu?
— Manus.
— O grande? — Ela sorriu. — É um nome adequado para um capitão.
— Agora você está me elogiando? — Ele olhou para ela assim que ela o
alcançou. — As mulheres são tão difíceis de entender. Em um minuto você está
me deixando com bolhas nos ouvidos, e no próximo você está me ligando a
alguma figura histórica.
— Você não sabia que o nome Manus significa ótimo?
— É um nome. Quem sabe o que seu nome significa além de si mesmo?
— Ele deve ter notado o beicinho nos lábios dela, porque acrescentou: — O que
Sorcha quer dizer?
— Radiante — Sorcha disse com um sorriso suave.
Manus rosnou novamente e apontou para um navio no mar. — Esse é o
meu.
— Como vamos chegar lá?
— De barco.
— Não vejo nenhum outro navio.
— Você já foi ao mar? — disse ele, levantando uma sobrancelha. — Você
pega um barco a remo até o navio e, em seguida, subiremos a bordo.
Mais uma coisa que ela tinha que fazer, e então ela poderia
descansar. Sorcha respirou fundo. Este homem poderia estar mentindo para
ela, ela certamente não podia ver o fundo do navio para determinar se ele
estava falando a verdade.
— Tudo bem, — disse ela. — Mostre-me o caminho.
A Ilha Fantasma
Menos de uma semana no mar e Sorcha estava pronta para se matar. Ela
se segurou no corrimão e respirou pelo nariz. Dentro e fora. Inalações lentas e
intencionais, ou ela vomitaria novamente.
Manus tentou fazê-la comer, mas ela não conseguia segurar nada. Até a
cerveja tinha gosto de bile. Saiu de seu corpo tão rápido quanto ela poderia
beber.
O navio passou por cima de uma onda muito grande e caiu do outro
lado. Tornando-se verde, Sorcha gemeu e se inclinou sobre a grade
novamente. Ver as ondas não ajudou, mas o que mais havia? Ondas sobre
ondas, era isso.
Sua visão ficou turva. Os músculos de seu estômago se contraíram,
tentando forçar o que não estava lá. Ela esvaziou seu estômago de tudo, exceto
bile horas atrás. Agora, vômitos secos ameaçavam matá-la.
A parte de seu cérebro que era uma curandeira gritou que ela precisava
de água. Não cerveja. Não uísque. Água. Água fresca e limpa que hidrataria
seu corpo. Havia muita água em volta deles e nenhuma era segura para
beber. Ela lambeu os lábios secos e desejou a morte.
— Sorcha! Eu preciso de você longe da grade!
Ela ergueu a cabeça e tentou não tremer. — Não posso fazer isso, capitão.
— Agora!
— Eu não posso, — ela sussurrou. — Não consigo nem me mover.
Uma parede de pele escura e cabelos frisados veio em sua direção. —
Quando eu te der uma ordem, garota, é melhor você seguir. Levante-se.
— Não.
— Levante-se!
Sorcha inclinou-se sobre a borda da grade e orou a todos os deuses que
estavam ouvindo. Levem-na agora. Façam isso acabar, ela não se importava
como. Se ela pudesse parar de vomitar por apenas alguns momentos, ela se
consideraria abençoada.
Manus agarrou a parte de trás de sua saia e puxou-a para cima. Seus
joelhos tremeram, os músculos tremeram, o corpo se curvou enquanto ela
vomitava.
— O suficiente! — ele gritou. — Estamos navegando diretamente para a
tempestade que mostrei a você e não vou deixar você enrolada na grade! Os
Faes queriam você em Hy-brasil, e é para lá que você está indo. Agora volte
para meus aposentos!
Ele a soltou e ela caiu de joelhos. — Se eu pudesse ficar naquele quarto
com aquele corvo horrível, eu estaria lá!
— Corvo? — Manus balançou a cabeça. — A maldita coisa não pode sair
bem o suficiente. Eu não me importo com quem está compartilhando o quarto
com você. Você ficará fora de vista até que tenhamos passado pela tempestade.
— Por que não posso ficar no convés? — Ela olhou para ele, olhos
arregalados e pele pálida. — Vou ficar fora do caminho. O ar fresco ajuda.
— Tenho certeza que sim, linda. Mas essa tempestade vai nos atingir com
força. As ondas baterão direto no convés e, pelo menos na cabine, você poderá
se segurar na cama. Certifique-se de segurar os postes com força. Não me solte
até eu ir para você.
Ele estendeu a mão para ela pegar. Sorcha olhou para ele como se fosse
uma cobra que pudesse morder. Voltar para aquela cabine a faria vomitar
ainda mais violentamente do que antes.
Mas ela também não queria acabar no oceano durante uma
tempestade. Suspirando, ela bateu com a mão na dele. — Eu odeio o oceano.
Manus deu uma risadinha. — Muitas pessoas odeiam. Ele é um amante
cruel e um sedutor quando quer.
— Uma tempestade, você quer dizer? — ela perguntou enquanto
tropeçava para a cabine.
— Bem, isso também, mas é improvável que veremos uma tempestade
enquanto estiver aqui.
— Como você chama essa tempestade, então?
Ele abriu a porta e a empurrou. — Eu chamo isso de criadora de
viúvas. Fique segura.
Manus bateu a porta com tanta força que o chão tremeu. O corvo bateu
suas asas, batendo-as contra a mesa com raiva.
— Sim, — ela murmurou. — Concordo. O homem é charmoso, mas
também rude.
O navio se inclinou em um ângulo drástico. Todo o quadro tremeu com
o impacto da proa batendo na água. Amaldiçoando, Sorcha tropeçou e caiu de
joelhos novamente.
— Aparentemente, ele não estava brincando. — Ela murmurou.
Ficar de pé provou ser impossível enquanto o navio balançava para
frente e para trás. Gemendo de enjoo e medo, ela rastejou para a cama. Suas
mãos agarraram-se aos cobertores escuros que deslizaram para fora da
moldura, em vez de puxá-la para cima.
Sorcha enrolou os dedos em um poste e se ergueu. Seu estômago revirou
novamente. Não havia nada para vomitar, mas ela ainda se inclinou sobre a
beira da cama.
Outra grande onda jogou o navio contra as paredes duras do oceano. A
bolsa de Sorcha bateu com força na parede e um peso de pedra sobre a mesa
do capitão caiu no chão com um estalo pesado.
Ela fechou os olhos com força e abraçou um travesseiro contra o
peito. Não havia nada que ela pudesse fazer a não ser esperar a tempestade
passar. Ela não podia sair no convés e ajudar, ela não sabia como. Não havia
nenhum homem que precisasse de cura, ainda não. Tudo o que ela podia fazer
era seguir as ordens e ficar fora do caminho.
Era contra cada fibra de seu ser não ajudar, mas ela poderia ficar onde
estava.
Ela ouviu os gritos antes que o navio subisse, direto como uma
árvore. Ela se agarrou aos pilares da cama e sussurrou orações.
— Por favor, — ela gritou. — Não quero morrer tão longe da minha
pátria, da minha família, da terra. Faes da água e do céu, ajudem-nos.
O corvo levantou voo, grasnando sua agitação e raiva. O navio moveu
de novo e pousou com força nas ondas que pareciam se transformar em
pedra. Sorcha gritou.
Um dos postes quebrou com um estalo forte. A peça de madeira saiu
voando pelo ar, jogada pelas ondas e seus pulos descontrolados. Alguém bateu
com força na porta da cabine, a moldura vibrando com o peso do homem.
Sorcha estendeu os braços. — Se vamos morrer juntos, posso muito bem
nomear você. Bran!
A cabeça do corvo virou-se para ela, como se reconhecesse o nome.
— Venha aqui!
O navio girou novamente, e o homem encostado na porta gritou quando
a água estrondosa o arrancou. Sorcha observou a maçaneta chacoalhar e
sussurrou uma prece para o homem permanecer no navio. Qualquer coisa para
mantê-los todos seguros.
Bran disparou em sua direção quando o navio atingiu outra onda. Sorcha
fechou os braços ao redor dele e o segurou perto do peito. Uma mão acariciou
suavemente as penas do peito, a outra agarrou o poste mais próximo e segurou
para salvar sua vida.
— Eu não pensei que morreria assim, — ela sussurrou, tratando o corvo
como seu confessor. — Sempre pensei que estaria em jogo. Rumores
chamavam minha mãe de bruxa. Ela falava com os Faes e manteve as velhas
histórias vivas. Por causa disso, eles a queimaram viva. Ainda me lembro de
cada momento disso.
Ela pressionou o rosto contra as costas dele. Bran inclinou a cabeça e
enfiou o bico contra a garganta dela.
— Eu não sou uma bruxa. Não sou estranha, nem assustadora, e não
tenho nenhum conhecimento que não possa ser aprendido. Nada jamais me
impedirá de acreditar em Faes ou de deixar presentes para eles porque eles
chegaram primeiro. Precisamos cuidar deles porque eles também cuidam de
nós. Não para pagamento, mas porque eles são gentis e bons e tudo o que os
humanos perderam.
O navio estremeceu e congelou. Sorcha ouviu o barulho da madeira, os
rios de água espirrando nas laterais e a chuva forte batendo no convés. Eles
haviam parado de se mover.
Um grande grito ensurdecedor vibrou todo o navio. Os gritos agudos
dos homens se juntaram a ele e Sorcha percebeu com horror que o guardião
agarrou o navio em suas mãos poderosas. Ela podia imaginar a boca aberta em
seu grito aterrorizante, as mãos finas e pálidas segurando o Saorsa como se
fosse um brinquedo de criança.
Eles iam morrer.
Ela fechou os olhos e respirou lenta e profundamente. Ela havia falhado
na primeira etapa de sua jornada. Mas, novamente, esta tinha sido uma tarefa
impossível desde o início. Os Faes não queria que ela encontrasse a cura para
a praga dos besouros. Eles queriam assistir a uma tentativa teatral de uma
garota humana tola que confiava neles com muita facilidade.
Mãos bateram contra a lateral do navio. Pequenos sons de arranhões que
eram pequenos demais para serem os dedos enormes do guardião.
Sorcha abriu um olho, agarrou o corvo com força contra o peito e olhou
para a vigia.
Cabelo verde serpenteava pela abertura e olhos escuros a encaravam de
volta. Arco-íris dançavam nos dedos do merrow quando ela a
alcançou. Quando seus olhares se encontraram, a merrow fez uma pausa e
inclinou a cabeça para o lado.
O corvo lutou, grasnando com raiva até se libertar. Ele agarrou o ar com
o bico e voou em direção a merrow.
— O que? — Sorcha murmurou.
Eles não iam morrer? Bran resmungou para a merrow que inclinou a
cabeça para o outro lado. Ela estendeu a mão e passou um dedo comprido pelo
bico do corvo e, em seguida, soltou a borda da vigia. Sua cauda verde cintilou
enquanto ela subia no navio.
— Estamos salvos? — Ela mal podia acreditar que pronunciou as
palavras.
O olhar zangado que Bran lançou para ela foi resposta suficiente. Eles
estavam sendo salvos pela própria criatura que ela tanto temia. Agora, ela
entendia porque era tão importante ter um guardião nas águas dos Faes.
Sorcha colocou a mão contra um poste e se levantou com as pernas de
borracha. Ela mal conseguia andar no navio antes da tempestade, agora ela não
confiava em seu equilíbrio. Suas mãos tremiam e ela temia que o guardião as
deixasse cair. Ela não queria voltar para a água depois dessa experiência.
Com cuidado, ela caminhou em direção à porta. A voz de Manus ecoou
em sua cabeça. Não vá lá fora. Não abra a porta. Fique dentro da cabine onde
for seguro.
No entanto, ela também ouviu os gritos de seus homens. Ela ouviu o
estrondo de corpos caindo contra a madeira sólida e as ondas de água batendo
no convés. Havia pessoas que precisavam de cura.
Não importava que ela estivesse com medo. O medo era uma besta que
ela poderia conquistar, contanto que pudesse salvar apenas uma vida. Foi para
isso que ela nasceu.
Sorcha puxou com força a porta que resistiu a seus movimentos. Ela
jogou seu peso para trás e a abriu, pouco a pouco.
Homens estavam caídos por todo o convés. Alguns se empilhavam,
gemendo e esfregando as feridas. O sangue escorria em sua porta, uma marca
de mão vermelha chamando sua atenção.
Merrows arrastavam-se pelas laterais do navio e pelo convés. Algumas
se enrolaram em torno de marinheiros e acariciaram gentilmente suas
bochechas. Elas não falaram, em vez disso, cantarolaram sua
preocupação. Suas vozes eram profundas e calmantes.
Sorcha tropeçou em direção ao marinheiro mais próximo e caiu de
joelhos. — Aonde dói?
— Em toda parte. — Ele gemeu.
— Onde está o pior?
Ele gesticulou em direção ao seu peito. Sorcha avançou sem hesitação e
rasgou sua camisa. Um hematoma brilhante já se formou, roxo e raivoso.
Ela dançou os dedos sobre suas costelas e observou suas reações. Ele se
encolheu com a ternura, mas não respondeu muito ao toque dela nos
ossos. Houve o menor dos gemidos quando ela apalpou seu estômago. Sorcha
hesitou e fez isso mais uma vez. Ela não sentiu nenhum inchaço de hemorragia
interna, mas o número de hematomas era preocupante.
— Você está tendo problemas para respirar?
— Me deixe, garota.
— Responda a pergunta, marinheiro. Você consegue respirar?
Outra mão tocou a dela. Dedos com membranas espalharam-se pelo
machucado no peito do homem e gentilmente puxaram as mãos de Sorcha.
Sorcha olhou fascinada enquanto a merrow se enrolava no marinheiro. A
longa cauda verde se enroscou em suas pernas e desceu até as
panturrilhas. Seu peito pressionou contra a coluna do homem e suas teias
iridescentes brilharam enquanto alisavam sua pele. Ela colocou o queixo em
seu ombro, cantarolando a base profunda da música merrow.
— Sorcha, — disse Manus. —Venha comigo.
Ela olhou para a mão que ele estendeu para ela. — O que está
acontecendo?
— Eu disse a você que os Fae cuidam de nós. Agora, vamos.
A mão de Manus estava tão fria quanto a dela. Ele a puxou para cima e
segurou seu cotovelo quando ela balançou. — Você se machucou?
— Não.
— Bom.
Ele a puxou para a proa do navio. Ela olhou por cima do ombro,
observando mais merrows enxamear sobre as grades. Duas arrastaram um
homem do oceano. Elas o jogaram no convés com tanta força que Sorcha
estremeceu, mas o golpe forte o fez tossir a água do mar para os pulmões.
Elas não estavam apenas salvando os sobreviventes, ela percebeu. Mais
três merrows puxaram outro homem e o colocaram suavemente sobre a
mesa. Elas balançaram para frente e para trás sobre seu corpo, lamentando sua
dor.
— Elas choram pelos mortos? — Ela perguntou.
— Claro, elas choram. Trabalhamos com elas e choraremos por elas antes
de zarparmos novamente.
— Elas tiveram baixas? — Sorcha olhou ao redor, tentando encontrar os
corpos das merrow.
— Você não as verá no navio. Merrows se transformam em espuma do
mar quando morrem. É uma morte cruel, mas é melhor do que deixar tubarões
comê-las.
Sorcha engoliu em seco. — Lamento saber que perderam entes queridos.
— Bem, eu perdi bons homens também. Sinta pena de nós.
Ela piscou e olhou para ele. Suas bochechas estavam vermelhas e
manchadas, seus olhos lançando olhares em sua direção enquanto ele a impelia
com força para o fim de seu navio.
— Você está bravo comigo? — Ela perguntou.
— Eu nunca deveria ter assumido esta missão tola. A jornada para Hy-
brasil é perigosa e eu estava totalmente ciente disso.
— E isso é minha culpa?
— Você pediu para vir aqui, sardas.
Sorcha puxou o braço que ele segurava. — Como você ousa me culpar
por isso? Eu não fiz nada errado!
— Você fez um acordo com os Faes errados! — Ele a empurrou para a
proa do navio e para o Fae de madeira olhando para o horizonte. — Perdi
homens bons por sua causa. Não vou culpá-la por suas mortes, mas estou
muito bem tirando você deste navio!
Ela tropeçou, agarrando-se com força contra a grade. A tempestade
estava diminuindo, embora as ondas ainda se agitassem com uma raiva
descontrolada. Ela não conseguia ver nada naquelas ondas secretas, a água
escura e agourenta.
A ilha estava à vista. Penhascos altos emolduravam um lado e desciam
para uma costa rochosa. Um castelo assomava sobre a pequena ilha, torres em
ruínas e estruturas de madeira em decomposição dando à terra uma sensação
sinistra e abandonada. Parecia uma morada melhor para fantasmas do que
para pessoas. Certamente não Faes.
— Hy-brasil? — Ela perguntou.
— Você queria ir para a ilha. Aí está. — Seus pés bateram com força no
convés enquanto ele se afastava.
— Espere! — Sorcha girou. — Como vou chegar lá?
— Isso não fazia parte do nosso acordo. Como você pode ver, tenho o
suficiente com que me preocupar aqui.
— Posso pegar um barco a remo emprestado, pelo menos? — Ela correu
atrás dele e segurou a ponta de sua manga.
— Pedir emprestado? Como você vai trazê-lo de volta? Nade até a ilha
se precisar tanto chegar lá, sardas, ou fique no navio e volte conosco. Eu não
me importo.
— Você quer que eu nade até aquela ilha? — Sorcha apontou o dedo para
Hy-brasil. — Você ao menos sabe o que está na água aqui? Você disse que este
era o portal entre o Outro Mundo e o nosso, então quantos Faes mais
existem? Nós dois podemos ter certeza de que não vou encontrar apenas
sereias!
— Então fique no navio e eu a levarei para casa!
Ele girou sobre ela. Seu peito subia e descia de raiva exagerada enquanto
suas mãos abriam e fechavam. Sorcha estreitou os olhos. Ele não estava apenas
com raiva dela, ele estava com medo. A tempestade tinha custado muito a ele,
e ele estava duvidando de que viria aqui.
Eles tinham que voltar pela tempestade, ela percebeu. Não se tratava do
perigo inicial, mas de que eles tinham que se virar e fazer de novo. Talvez fosse
mais fácil retornar ao mundo humano, mas ela duvidava.
Ele perderia mais homens. Mais merrows morreriam. E ela o estava
importunando com o transporte dela para a ilha que causou todos aqueles
problemas em primeiro lugar.
Sorcha liberou sua raiva com um suspiro suave. — Eu entendo,
Manus. Eu entendo. Mas preciso trazer minhas coisas comigo, e elas não
podem ficar molhadas.
— Eu nunca disse que garantiria a segurança de itens pessoais.
— Eles são os livros da minha mãe, — ela gritou quando ele se afastou
dela novamente. — Eles são a única coisa que me resta dela e não vou deixá-
los ir.
Ele hesitou. Ela observou os ombros dele se erguerem com raiva e então
se curvarem em derrota. — Você está pronta para ir, então?
— Eu não tenho outra escolha, você sabe disso tão bem quanto eu. A
punição das Faes por desistir de um acordo é pior do que uma morte rápida
no mar.
— Eu tenho um amuleto que ajudará suas coisas a ficarem secas. Foi um
presente de uma selkie, e espero recebê-lo de volta algum dia.
Sorcha torceu os dedos. — Farei o meu melhor para devolvê-lo quando
tudo isso acabar.
— Não tenha pressa.
Manus acenou para um de seus marinheiros, o mais móvel do grupo
espalhado pelo convés como folhas de outono. O corvo irrompeu dos
aposentos do capitão, seu grito ecoando ao se lançar no ar. Ela o viu esticar as
asas e voar em direção à ilha.
Aparentemente, o corvo estava viajando para o mesmo lugar que
Sorcha. Ela voltou seu olhar para a massa de terra e suprimiu um
arrepio. Havia algo naquele lugar que parecia errado.
O ar estava muito parado. O oceano não batia contra as rochas, mas
vagarosamente evitava tocar a terra. Até mesmo os elementos haviam
abandonado Hy-brasil. Havia mais na ilha fantasma do que as lendas
cantavam, e Sorcha teve medo de descobrir o quê.
Ela preparou os pés enquanto o guardião os colocava suavemente na
água. O navio permaneceu estável, balançando como se nunca tivesse ocorrido
uma tempestade. Sorcha desejou poder esquecer tão facilmente quanto o
Saorsa.
Passos marcaram o retorno do marinheiro que segurava sua bolsa com o
braço estendido. Ele segurou bem na frente dele, a bolsa pendurada em seus
dedos como se ele não quisesse tocá-la.
Sorcha reconheceu essa expressão. Era o mesmo olhar que sua mãe
recebera meses antes de ser queimada. Eles a culpavam por todo azar. A vaca
de um vizinho morreu, uma criança pegou um resfriado, o poço secou, tudo
eram marcas de uma bruxa que amaldiçoou a cidade. A mãe de Sorcha foi
quem eles escolheram para queimar.
Ela arrancou sua bolsa das mãos do homem com uma maldição
murmurada. — Eu não chamei a tempestade, seu idiota. Me dê isso.
O marinheiro se esquivou dela.
Boa viagem. Ele poderia ficar com medo dela se isso o ajudasse a
entender a tempestade, mas ela não iria deixá-lo tratá-la como uma
bruxa. Sorcha era uma boa pessoa. Ela teria curado todos eles se as merrows
não estivessem aqui.
Ela pendurou a bolsa no ombro e estendeu a mão para Manus. — O
amuleto?
Ele puxou um pequeno saco do bolso. O pano estava completamente
seco. Nem mesmo uma única gota d'água grudava em seu padrão
quadriculado.
— Isso vai servir. Coloque-o na sua bolsa e nade o mais rápido que
puder.
— O encanto vai acabar? — Ela enfiou o pequeno saquinho em sua bolsa
entre seus livros mais preciosos.
— É improvável que desapareça. E sardas? Uma palavra de advertência:
onde há merrows, há merrows-men. Eles gostariam que uma coisa bonita
como você ficasse com eles, e a maioria de suas esposas está aqui
conosco. Ninguém vai impedi-los se eles pegarem você.
— Obrigada. — Ela rangeu os dentes cerrados.
Ele não ficou para assistir. Manus saiu para cuidar de seus homens e ela
estava à beira de outra decisão. A água era outra parte perigosa de sua
jornada. O oceano ainda não tinha sido bom e seus habitantes provavelmente
eram ainda piores.
Seus olhos se desviaram para a ilha assombrada que havia gerado
diretamente de seus pesadelos. Hy-brasil, a ilha fantasma da qual falam lendas
e mitos há séculos. Muitos acreditavam que era uma utopia, um lugar para
onde eram enviados homens da mais alta inteligência e estudiosos de renome
mundial.
Parecia uma ruína.
Ela cuidadosamente se içou para cima no corrimão e se equilibrou com
uma corda de vela na mão. Era isso. Não havia como voltar depois que ela
saltou do navio e pousou nas águas abaixo.
Os olhos de Papa nadaram na frente dela. Seu corpo dolorosamente
magro, a tosse áspera que mantinha os outros acordados à noite, os perigos do
que poderia acontecer se ela falhasse e ele morresse. Os besouros infectariam
suas irmãs em seguida; elas eram a fonte de alimento mais próxima. As
famílias próximas também poderiam cair. E ela não estaria lá para ajudar a
prolongar suas vidas.
Sorcha ergueu o pé para ficar suspenso no ar salgado por um momento
antes de respirar fundo e saltar da beirada.
Ela bateu na água com um tapa forte. As saias dela subiram em seu rosto
e se enredaram nas longas mechas de seu cabelo. A bolsa pesou sobre ela,
puxando-a para o fundo do oceano com uma facilidade surpreendente.
Bolhas estouraram de sua boca enquanto ela bombeava seus
braços. Tecido emaranhado em torno de seus pés a prendia. Ela não conseguia
chutar. Ela não conseguia respirar.
Franzindo a testa em concentração, ela quase não percebeu o movimento
nas profundezas. Acalme-se, ela pensou. A calma era a única maneira de lidar
com os Fae e isso a ajudaria agora. O pânico só levaria a decisões erradas.
Ela deixou seu corpo relaxar, embora seus pulmões queimassem. Água
salgada picou seus olhos quando ela os abriu. Sorcha olhou para baixo e
prendeu a respiração quando viu olhos vermelhos olhando para ela.
Bem no fundo do oceano, os merrow-men esperavam. Eles não tinham
as caudas necessários para acompanhar suas noivas. Em vez disso, eles tinham
pernas como as de um homem. Escamas verdes cobriam seus corpos duros de
músculos. Guelras e barbatanas surgiam com pouca rima ou razão, dando-lhes
uma aparência grotesca. Mas eram seus rostos que a perturbavam mais.
Grandes bocas parecidas com peixes se abriam enquanto eles inalavam
seu perfume na água. Dentes irregulares revestiam suas gengivas. Seus olhos
se arregalaram quando perceberam que era uma mulher humana em seu
reino. Barbatanas com babados se amontoavam ao redor de seus rostos e
sorrisos malignos se espalharam.
Um fechou o punho em torno de um tridente e se jogou no fundo do
oceano. Ele estava nadando em sua direção, ela percebeu. Seus pés palmados
faziam dele um nadador muito mais eficiente, e sua própria bolsa a arrastava
continuamente para o fundo.
Sorcha não deixaria isso acontecer. Determinada, ela se abaixou e rasgou
a barra da saia. Duas grandes puxadas pesadas dividiram o tecido de cada
lado. Não era muito, mas era o suficiente.
Suas pernas agora livres, ela nadou com todas as suas forças. Os
músculos queimavam, os pulmões gritavam, os olhos lacrimejavam, mas ela
finalmente conseguiu entrar no ar doce.
Ela engasgou em respirações que chocaram seus pulmões. Não havia ar
suficiente no mundo para satisfazer seus desejos, e cada inalação tinha um
gosto metálico. Ela rolou de costas, ainda respirando fundo, e chutou em
direção à ilha.
O homem merrow ainda estava vindo, ela se lembrou. Ela não podia
descansar só porque podia respirar. Era hora de nadar. Depois de chegar à ilha,
ela poderia descansar.
Somente depois.
Quando ela finalmente recuperou o fôlego, ela rolou sobre o estômago e
ergueu os braços acima da cabeça. Um braço de cada vez, um chute de cada
vez, contando baixinho cada golpe que a atraiu para mais perto de Hy-brasil.
Ela não conseguia parar nem por um momento, ou o bando a arrastaria
para baixo da água. Seu estômago se agitou por causa de muitas quedas sob as
ondas. Uma barriga cheia de sal a deixava mais enjoada, mas não havia nem
bile para vomitar.
Ela não tinha visto tubarões, mas as histórias diziam que ela não iria até
que fosse tarde demais.
Acima de sua cabeça, o corvo circulou. Seu crocitar fez com que seus
olhos se abrissem quando ela parou por um momento para respirar.
— Bran? — Ela sussurrou.
Novamente, o grito do corvo sacudiu seu corpo.
— Certo. Eu tenho que nadar.
A ilha ficava cada vez mais perto, mesmo quando o sol começou a se pôr
e o oceano ficou vermelho. Ela poderia fazer isso se ela nadasse um pouco...
um pouco... mais.
Seus pés tocaram a terra.
Um soluço balançou seu corpo para frente. Ela escorregou por baixo de
uma onda, mas não importava que ela não pudesse ver. Tudo o que ela podia
sentir era o sal, mas havia pedras sob seus pés. Ela não precisava mais nadar e
não precisava perder os diários de sua mãe.
— Obrigada, — ela sussurrou enquanto se puxava para a costa
irregular. — Muito obrigada.
Ela enrolou os dedos na areia e na lama. A areia cavando em suas unhas
fez ainda mais lágrimas escorrerem por suas bochechas. Ela tinha feito isso. Ela
havia chegado à ilha fantasma em meio a tempestades, baleias gigantes e
homens-merrow.
Sorcha realmente tinha conseguido.
Ela riu em meio às lágrimas e rolou de costas. As estrelas cintilavam no
céu noturno. Elas eram tão bonitas. A terra era tão bonita.
Já não importava que houvesse um castelo misterioso assomando no
alto. Não importava que os fantasmas provavelmente a atravessassem com pés
silenciosos ao redor dela. Ela não estava mais nadando, e o chão não se movia
aqui.
Soltando um suspiro irregular, seus olhos se fecharam. Só por um
momento, ela disse a si mesma. Ela poderia descansar um momento antes que
ela tivesse que voltar e encontrar o Fae que os gêmeos MacNara queriam.
Estrelas dançaram sob suas pálpebras enquanto ela se acomodava na
areia.
Capítulo 5
A fera
O Jantar
A Curandeira
A Tempestade
A Corte Incondicional
O beijo
Deixar o castelo Unseelie era mais difícil do que entrar. O toque frio do
portal causou arrepios na pele de Sorcha. Magias como essa nunca deveriam
tocar um humano. Deslizou ao longo de seu corpo como o toque estranho de
uma pessoa invisível.
Sorcha estremeceu, enervada com a sensação fria e úmida. Acabaria logo,
ou estaria assim que seu pé esquerdo se soltasse. Hera roçou seu rosto até que
ela soltou um suspiro que mexeu com a vegetação.
Ela agitou a mão na frente do rosto, abrindo a cortina de hera e entrando
no quarto encantador.
Nada mudou. Todas as suas coisas estavam exatamente onde ela as havia
colocado. As flores azuis brilhavam com uma luz suave emanando de suas
pétalas na parede oposta. A fonte dos Faes olhava placidamente para longe,
dificilmente comparável à coisa real.
Como ela poderia olhar para este lugar com os mesmos olhos? Esta ilha
era linda, mas as sombras agora se moviam, e a cama parecia uma prisão.
Ela suspirou e soltou o fecho de sua capa. Ela caiu no chão com um baque
molhado, embora ela não se lembrasse de tê-la molhado.
A exaustão a oprimiu. Ela não conseguia se lembrar de uma época em
que não estivesse pairando nos cantos de sua mente como um hóspede
indesejado. Ela nunca se lembrava de ter convidado a sensação de mordida nos
ossos, mas parecia nunca ir embora.
Um som suave interrompeu seus pensamentos. Sorcha não conseguia
identificar de onde veio no quarto. Tudo estava como ela deixou, até as folhas
de esmeralda cobrindo as paredes.
Mais uma vez, o barulho silenciador ecoou em seus ouvidos. Era o som
distinto de tecido deslizando contra tecido. O movimento de um corpo
humano.
Ou talvez de um Fae.
Ela prendeu a respiração e congelou, se mexendo até que o portal não
estava mais em suas costas. O ar estava muito parado, misturado com violência
e agressão. Ela nunca sentiu perigo tão poderosamente.
Seu coração batia. Ela respirou tão baixinho que quase não inalou. Olhos
atentos procuraram a causa do som enquanto ela se perguntava o que a seguiu
até a ilha.
Uma sombra se separou da parede, correndo em sua direção tão rápido
que Sorcha não teve tempo de reagir. Um pilar de escuridão a rodeou. Ela
bateu de volta na parede de pedra, emaranhada de hera em seus cabelos e
ombros.
Sorcha virou a cabeça para o lado e fechou os olhos com força. Ela não
podia, não iria, olhar a morte nos olhos. Respirando fundo uma última vez, ela
sentiu o cheiro de limão, hortelã e uísque.
Pedra?
Sua mão trêmula afastou um cacho vermelho enrolado de seu rosto,
colocando-o suavemente atrás da orelha.
— Onde você estava?
A pergunta reverberou em sua mente, mas ela não conseguia encontrar
as palavras para responder. Suas próprias perguntas dominaram sua
língua. Como ele percebeu que ela foi embora? Por que ele estava aqui? O que
aconteceu enquanto ela atravessava o Outro Mundo?
Ele estava bêbado?
Ele tropeçou, balançando para o lado antes de se segurar com um
antebraço contra a parede acima dela. — Onde você estava?
Novamente, ele fez a mesma pergunta. A raiva tornou suas palavras
duras, mas ela captou os tons distintos de preocupação sob o rosnado. Por que
ele se preocuparia com ela? Ela acrescentou a pergunta a todas as outras que
ela nunca daria voz.
— Terras Unseelie. — Ela sussurrou.
— E por que você não me disse?
— Para quê?
— Orientação. Proteção. Uma resposta para saber se era ou não muito
perigoso para uma mulher humana desarmada e fraca no Outro Mundo?
Sorcha engoliu em seco. — Eu não sabia que poderia precisar de
qualquer proteção. Não havia nenhum ponto em que eu me sentisse em
perigo. Até agora.
— Você acha que está em perigo comigo? — Sua cabeça se inclinou e uma
lança de luz cortou seus olhos. Linhas gêmeas enrugadas entre seus olhos, um
azul vibrante quase brilhando de raiva.
Ela não conseguiu responder. Seu medo atingiu o ar com eletricidade
estática, fazendo os pelos de seus braços se arrepiarem. Claro, ela estava com
medo de Pedra. Ele pairava sobre ela até que tudo que ela podia respirar era
seu cheiro e tudo que ela podia ver era o conjunto poderoso de seu peito em
forma de barril.
— Sorcha. — Ele disse o nome dela como se fosse uma oração. — Você
nunca precisa ter medo de mim.
Ele ergueu a mão e traçou o contorno de seu rosto. Os cristais rasparam
sua testa, passando pela pele sensível de sua têmpora, descendo pelas curvas
suaves de suas bochechas. Ela não conseguia respirar enquanto ele acariciava
seus lábios carnudos.
Ele balançou novamente, os olhos semicerrados em concentração. —
Você é tão falha. Tão diferente do meu povo, que teria esfregado essas marcas
de sua pele há muito tempo.
— Marcas?
— Estas. — Ele tocou as pontas de suas bochechas, sua testa, e o
mergulho de seu lábio superior.
— Sardas, — ela sussurrou. — Nós as chamamos de sardas.
— Eu nunca as vi antes. Os Fae têm pele lisa, como porcelana, como se
um artista os tivesse pintado com um tom. Mas você... você tem tantas cores.
— Cores?
— Seu cabelo, sua pele, até mesmo seus olhos têm manchas verdes, azuis,
amarelas.
— Você notou tudo isso? — Ela não conseguia parar de fazer
perguntas. O choque torceu sua língua, fazendo perguntas que ela não queria
expressar.
— Eu noto tudo que você faz. Você assombra meus passos e meus
sonhos. Você me enfeitiçou, Sorcha, e quero minha alma de volta.
— Eu não sei como devolver para você.
Ele se inclinou mais perto, sua respiração soprando em seus lábios. — Eu
me pergunto se você tem gosto de sol.
— Você está bêbado.
— Sim, eu estou.
Ela não se moveu quando ele se inclinou e a devorou.
Ele tinha gosto de uísque e hortelã-pimenta. Seus olhos se fecharam
enquanto as texturas de sua boca deslizavam contra a dela. Lábios macios,
como veludo, mordiscaram os dela. Ela não conseguia respirar, não queria,
mesmo quando os braços dele deslizaram pela parede e deslizaram ao redor
de seus ombros.
Os dentes mordiscaram seu lábio inferior carnudo. Não, ela percebeu,
não os dentes. A dura ponta do cristal mordendo sua carne inchada enquanto
ele pressionava com mais força.
Ela respirou fundo, surpresa, e ele aproveitou a oportunidade. Sua
língua quente varreu em sua boca, trazendo com ela uma explosão de
sabor. Especiarias, estranhas a seus sentidos, a deixavam bêbada enquanto
suas línguas se enredavam.
Estranho, ela não tinha pensado que seria assim. E então ela não pensou
nada.
Ele a provou, desfez, sussurrou palavras carinhosas que ela não entendia
contra sua boca. Os cristais cortaram sua pele, abrindo seu lábio e derramando
o gosto metálico de sangue em sua boca.
Ele não parou. Ela não queria que ele fizesse isso.
O calor se derramou sobre ela como uma onda. Ela não conseguia
pensar. Ele era tudo e nada, amarrando-a ao chão pelo calor elétrico de sua
boca. Suas mãos deslizaram sobre seus ombros e massagearam seus músculos
até que ela relaxou contra a parede.
— Eu sabia que você teria gosto de luz do sol, — ele sussurrou contra
seus lábios. — Eu soube desde o momento em que coloquei os olhos em você
pela primeira vez.
— Outra falha?
— Inteiramente.
Ele dedicou sua atenção a bebericar de seus lábios. Para lamber, chupar
e saborear cada centímetro que ela permitiria. A respiração quente deslizou
por suas bochechas, cristais frios e ásperos, um nítido contraste com a carne
macia de sua pele.
Dentes preocupararm-se com as pontas sensíveis de suas orelhas. Seus
joelhos ficaram fracos, a boca aberta de prazer, mesmo quando seus olhos se
abriram. Suas terminações nervosas ganharam vida. O calor a percorreu desde
os pontos até a barriga.
— O que... — Ela engasgou.
Um grunhido masculino satisfeito retumbou em seu ouvido.
Suas mãos desceram por seus braços, alisando a pele que ele achava tão
imperfeita. De alguma forma, ela não achou que ele quisesse ser um
insulto. Ela tinha visto os Faes por si mesma, tão perfeitos que pareciam
pedra. Talvez ele tenha visto algo vivo nela. Algo real.
Ela arqueou as costas quando uma das mãos dele percorreu sua
clavícula. Ele mordiscou sua orelha, raspando os dentes e o cristal contra a
carne sensível. As mãos dele viajaram mais longe, os dedos percorrendo o
decote enorme e aberto de seu vestido. Ela pensou que certamente sua mente
iria se quebrar de prazer enquanto as mãos dele passeavam sobre as suaves
protuberâncias de seus seios.
Até que o ar esfriou.
Sua respiração mudou. As rajadas de ar quente se acalmaram para
acalmar as inalações medidas. Ele puxou um longo fio de teia de seu ombro,
os filamentos pegajosos se estendendo por entre seus dedos.
— O que é isso? — ele rosnou. — E você diz que não precisava de
proteção?
— Não é o que você pensa.
— Você mente. — Seus olhos se estreitaram ainda mais, uma besta
totalmente diferente olhando para ela através das janelas de sua alma.
— Eu não falei com ninguém, — ela sussurrou, encolhendo-se contra a
hera. — Pare de me olhar assim.
— Como o quê?
— Como se você quisesse me machucar.
— Eu prometi que não iria machucar você, e vou me manter fiel a esse
voto. Sem mais mentiras, pequena humana. Por que você estava nas terras dos
Unseelie?
Ela engoliu em seco e pensou em mentir. Quanto ela deveria dizer a
ele? A Rainha não iria querer que ela falasse, e a informação que ela guardava
era um segredo. Sorcha ainda não sabia quem havia aberto o portal por este
lado ou se era inteiramente obra da Rainha.
Mas ele saberia se ela mentisse. Ela não estava certa de como os Faes
sabiam, se eles provavam no ar ou podiam ler a linguagem corporal. Se ele
soubesse, continuaria a empurrar até que ela contasse a verdade.
Sorcha nunca foi uma boa mentirosa. — Eu não sei por que eu estava
lá. O portal se abriu deste lado, e havia informações que a Rainha Unseelie
desejava compartilhar comigo.
— Esse portal não pode ser aberto por conta própria.
— Eu não acho que haja algum Unseelie aqui.
Seus olhos escureceram, nuvens de tempestade se formando no azul
vívido. — Oona.
— O que?
Ele não respondeu. O calor de seu corpo desapareceu, deixando-a
tremendo e sozinha.
— Provavelmente é melhor você ir embora. — Ela disse com um suspiro
trêmulo. Mas ela não acreditou nas palavras. Como ela poderia quando seu
corpo tremia de prazer insatisfeito?
Era assim que suas irmãs se sentiam? Certamente não poderiam; elas não
tinham apego aos homens que iam ao bordel.
A memória veio à tona de um homem loiro com os braços em volta de
Briana. Sorcha os pegou em uma alcova fora do bordel, sussurrando palavras
carinhosas, como nunca tinha ouvido antes. A pressão suave dos lábios na
pele, o som de suspiros.
Talvez elas soubessem como era isso, Sorcha pensou. Talvez elas o
tivessem arrancado tantas vezes que se esqueceram de contar a ela.
Ou elas não queriam compartilhar. O momento parecia tão infinitamente
privado que Sorcha não tinha certeza se conseguiria dizer uma palavra a
respeito. Ela guardou a memória em uma parte oculta de sua alma por um
momento em que se sentiu perdida ou desanimada.
Por um único momento no tempo, ela sentiu o que significava ser amada.
Sua mente ganhou vida quando o calor de seu corpo desapareceu.
— Oona! — Ela engasgou.
Ele deixou este quarto com uma intenção clara em seus olhos. A raiva
irradiava de sua pele como um ser físico, seus cristais brilhando de raiva. Pedra
havia prometido que nunca a machucaria, mas Sorcha não tinha como saber se
ele prometia o mesmo aos Faes sob sua proteção.
Ela entrou em movimento, correndo para fora do quarto, balançando-se
sobre o corrimão e descendo as escadas. Não havia tempo para exaustão, sem
hesitação ou segundos pensamentos. Sorcha tinha que avisar Oona, para
expulsá-la do castelo até que ela pudesse descobrir uma maneira de acalmá-lo,
se possível.
Por mais que Pedra conhecesse as famílias de seu povo, ele não as
conhecia bem o suficiente para adivinhar onde elas estavam. A maioria dos
pixies da ilha dormia uns com os outros no jardim de Macha. Eles disseram
que isso os mantinha seguros e protegidos.
Oona não era como as outras. Ela dormia nas cozinhas com os brownies,
para se certificar de que seu domínio estava limpo todas as noites.
Se Sorcha tivesse observado Pedra corretamente, ele iria primeiro para a
gruta das pixies. Então ele iria para a cozinha.
Ela correu de ombro para uma porta, estourando por ela para que ela
pudesse encurtar seu caminho para as cozinhas. As pernas de Pedra eram mais
longas. Ele seria muito mais rápido, mas estava operando através da raiva e
nada mais. Sorcha ainda estava pensando com clareza.
Cômodos cheios de móveis cobertos e madeira estilhaçada cintilavam em
sua visão enquanto ela corria por cada quarto longo morto. Teias de aranha
emaranhadas em seu cabelo e poeira cobriam seus ombros quando ela deu o
último salto e abriu a porta para o calor brilhante das cozinhas.
— Oona, — ela chamou freneticamente. — Oona! Acorde!
Um pequeno monte no canto mudou e a pixie se sentou. Ela não vestiu
seu encanto imediatamente. O rosto redondo não combinava com a pessoa que
Oona escolhera para si mesma. Os cumes altos de sua testa se assemelhavam a
uma folha de carvalho, tons violáceos corando nas pontas altas e descendo
pelos ombros até as asas.
— O que? Quem é?
— Levante-se, Oona! Ele está vindo!
— O que? — A pixie começou a se mover, jogando cobertores no ar e
correndo na direção de Sorcha. — De onde ele está vindo?
— Achei que ele iria para a gruta primeiro.
Um rugido sacudiu a porta, vindo da fonte de Macha.
Oona olhou por cima do ombro. — Você está certa. E agora você sabe que
sou Unseelie.
— Sim.
— Eu não queria mentir, mas há tantos segredos em nosso mundo. A
Rainha queria ver você, e eu não podia recusar.
— Oona, ele está quase aqui! — Sorcha envolveu o antebraço de Oona
com a mão e puxou. — Você está vindo comigo. Eu sei onde colocá-la até que
ele se acalme.
— Não vou colocá-la em perigo.
— Eu sou a única pessoa neste castelo que não tem nada a temer dele, ele
me deu sua palavra. Venha comigo!
Oona olhou para ela em choque. — Ele prometeu o quê?
— Se você não vier comigo agora, eu a carregarei. Mexa-se!
— O mestre nunca fez promessa de proteção a ninguém. Explique-se,
querida.
Sorcha soprou no cabelo. — Oona, eu ordeno que você me siga agora.
Usar o nome da Fae foi duro, mas Sorcha podia ouvir seus passos
batendo em direção à cozinha. Seu tempo era curto.
A coluna de Oona se endireitou e o fogo brilhou em seus olhos. Mas ela
seguiu Sorcha quando ela se virou e correu de volta por onde veio.
Sorcha tentou tornar seu rastro difícil de seguir. Ela as levou por
diferentes seções do castelo, na esperança de que uma longa perseguição
acalmasse parte de sua cabeça. Elas passaram por estátuas quebradas, aranhas
correndo e pinturas rasgadas de Faes que ela nunca conheceria.
— Estamos quase lá, — seu sussurro áspero quase inaudível sobre o bater
de seus pés. — Tão perto, Oona. Mantenha-se.
A Fae correu mais rápido.
Sorcha deslizou em uma esquina, derrapando até que sua coluna bateu
na parede com um baque duro. O ar escapou de seus pulmões, mas ela se
obrigou a continuar. Ela não sabia o que Pedra planejava fazer. O medo nos
olhos de Oona falava alto, e foi o suficiente para ela roubar a Fae.
Seu instinto dizia que Pedra se arrependeria de qualquer julgamento que
fizesse com raiva. Esses Faes dedicaram suas vidas a ele. Eles não eram
escravos, eles não eram criados, e ele não tinha o direito de prejudicá-
los. Mesmo que cometessem erros.
Ela bateu na parede esculpida e pressionou a pedra no punho da
espada. O rangido rangente ecoou. O grito enfurecido de Pedra estava muito
mais perto do que ela esperava.
Sorcha agarrou os ombros de Oona e a sacudiu. — Você me ouça. Há um
banheiro no canto traseiro com uma fonte termal. Entre nas fontes e não saia
até que eu vá buscá-la. Você me ouviu?
— Você está se colocando em perigo sem motivo, querida. Não se
preocupe comigo. Eu vivi uma vida plena.
— E eu gostaria que você vivesse mais. Oona, ordeno que você se
esconda nas fontes termais.
A coluna da Fae endureceu e ela desapareceu no quarto de Sorcha.
— Agora está resolvido. — Ela deu um passo para longe da escultura e a
pedra gemendo deslizou de volta ao lugar. — Vamos lidar com a última parte.
Ela deslizou os dedos ao redor do punho da espada, balançando e
agarrando até que sentiu que cedia. O minúsculo nó de pedra deslizou para
sua mão com pouca reclamação.
— E você vem comigo. — Sorcha a enfiou entre os seios para mantê-la
segura.
Então ela se virou, pressionou a coluna contra a escultura e esperou.
Ela não teve que esperar muito. Ele veio correndo pela esquina como um
touro, as laterais arfando e os cristais lançando luz violeta no chão e nas
paredes.
Ele apontou um dedo e gritou: — Você me desafia?
— Eu desafio.
Pedra caminhou em sua direção, cada passo um movimento deliberado
cheio de agressão e poder. Ela comparou o movimento à primeira noite em que
o viu. Intimidação era o seu propósito, e na primeira noite ela se assustou.
Ela se recusou a se assustar desta vez. Sorcha inclinou a cabeça para trás
e encontrou seu olhar com o queixo tenso. — Eu não vou deixar você chegar
até ela.
— Ela é minha para punir. Uma Unseelie vivendo sob meu teto não tem
o direito de viver.
— Ela não é ninguém além dela mesma. Você não tem o direito de puni-
la por implorar minha ajuda. Se você quer punir alguém, então me puna.
Ele hesitou. — Você?
— Eu entrei naquele portal sem ninguém me mandar. Se você precisa de
alguém para gritar e gritar com sua raiva, então deveria ser eu!
— Você não sabia o que estava fazendo.
— Eu sabia exatamente o que estava fazendo! Fui criada com histórias de
Faes. Deixei ofertas e sacrifícios para seu povo desde que era criança. As terras
dos Unseelie são lendas, e asseguro-lhe que conheço todos os seus perigos. Eu
não comi nem bebi. Falei com o mínimo de pessoas possível...
— Você falou com Faes desconhecidos? — Interrompeu ele.
— Falei com aqueles que eram necessários e Bran me ajudou a voltar. O
que mais você quer, Pedra?
Respirações de raiva expelidas de seu corpo em bufadas curtas. — Você
deveria ter pedido minha ajuda.
— Que você não poderia ter fornecido! Você está preso aqui com o resto
deles.
— Eu teria lhe dado uma arma para levar com você! — Ele gritou
Sorcha correspondeu ao seu tom e gritou de volta: — Eu não teria
usado! Eu curo as pessoas, não as ataco, Pedra!
— Meu nome não é Pedra!
As paredes rangeram quando seu grito estrondoso atingiu as pedras. As
esculturas atrás dela tremeram e o chão tremeu com a força de sua raiva. Ele
se virou, seus ombros tremendo de raiva.
E medo, ela percebeu quando a luz de seus cristais diminuiu. Ele ficou
com medo por ela e esperar que ela voltasse só fez o medo piorar.
A própria raiva de Sorcha diminuiu.
— Então, como você gostaria que eu o chamasse? — ela sussurrou
baixinho enquanto avançava. — Mestre? Rei? Senhor? Não há mais nada para
eu dizer.
— Eu gostaria que você me chamasse pelo nome, se fosse possível.
— E por que não é possível? — Ousando avançar, ela colocou a mão
contra as costas dele. Embora o tecido cobrisse sua pele, os cortes de cristal
eram fáceis de encontrar. Ela deslizou os dedos no vale ferido para mantê-lo
no lugar. — Você já sabe meu nome de batismo.
— Um humano em posse de um nome de Tuatha dé Danann é muito
poderoso.
— Por quê? Você tem medo que eu possa mandar você matar alguém por
mim? Roubar?
— Temo que você me peça para colocar o mundo a seus pés. — Ele olhou
por cima do ombro, olhos azuis queimando através de sua resolução calma. —
E seria muito fácil de fazer.
Ele se afastou dela, cada passo medido como se estivesse tentando não
correr. A mão dela deslizou de suas costas, para fora das ranhuras de cristais
que mordiam seus dedos.
Ela não o impediu, nem tinha certeza de que poderia. A pura força de
seu poder a assustou. Mas foi o terror absoluto de suas palavras que a manteve
no lugar.
Ela pediria pelo mundo?
Sorcha não sabia.
Demorou algum tempo antes que ela voltasse para o quarto. A mente de
Sorcha girava com as possibilidades do que ele quis dizer, o que isso
significava para o relacionamento deles. Isso foi uma declaração de intenções?
Ele sentia algo por ela? Ela sentia algo por ele?
Ela não tinha certeza. Ela sabia que os olhos dele assombravam seus
sonhos, que seu corpo torturado era mais intrigante do que temível. Ela o
queria? A reação violenta de seu corpo ao dele sugeria que sim.
Como isso funcionaria? Ele era muito maior do que ela, com certeza a
esmagaria se ela tentasse ter relações com ele. E uma parte dela questionou se
ela o queria ou a proteção que ele poderia fornecer.
Isso a tornaria uma prostituta como suas irmãs? O pagamento era o
requisito que dividia mulheres fáceis e mulheres de negócios?
Sorcha temia nunca saber. E isso importava? Suas irmãs davam prazer e
garantia para aqueles que não poderiam ter de outra maneira. Se elas
obtivessem prazer em seu trabalho, deveriam continuar. Ela não as julgaria.
Ela puxou a pequena pedra de entre os seios, olhando para a pedra de
mármore esculpida. Sua mente se acalmou, os pensamentos se reduzindo a
uma questão que pairava acima de todas as outras.
Ele teria machucado Oona?
A pedra deslizou facilmente de volta ao lugar, e a porta pesada recuou
na parede. Sorcha ansiava pelo dia em que cessaria o atrito de pedra contra
pedra. Quando tivesse sido usada tanto que a passagem seria suave e
silenciosa.
Ela tirou os sapatos, musgo macio contra seus pés doloridos. Ela não
corria tanto há anos, entre seus passos disparados no castelo escuro e então a
corrida através do portal. Seu corpo não tinha certeza de como lidar com a
descarga de adrenalina seguida por uma exaustão profunda.
No caminho para o banheiro, ela tirou cada peça de roupa. O kirtle
externo caiu no chão, as saias pesadas e cintos segurando cada peça no lugar. A
roupa de baixo grudou em sua pele onde sangue e fluido vazaram por cada
camada de tecido.
Suspirando, ela afastou a hera e encontrou Oona esperando na porta com
uma escova na mão.
— Relaxe, — disse Sorcha. — Sou só eu.
— Oh, graças a Deus, — a pixie deixou cair a escada no chão. — Eu não
teria batido nele, querida. Eu só... eu só...
Sorcha ergueu a mão. — Se a intenção dele era machucar você, então você
tem todo o direito de se proteger. Agora, se você não se importa, estou muito
cansada.
— É claro, querida.
Oona estendeu a mão para as últimas amarras da roupa de baixo de
Sorcha, desembaraçando rapidamente as cordas e retirando o peso do corpo
de Sorcha. Ela entrou na fonte termal, suspirando enquanto seus músculos
relaxavam.
— Você trouxe a água daqui? — ela perguntou enquanto Oona se virava
para guardar as roupas íntimas. — No primeiro dia?
— Não. Não, este é um quarto real. Estes quartos estão fora dos limites
para os Fae inferiores. Não sem permissão ou companhia.
— Mas eu não sou uma Fae superior.
— Talvez você seja — Oona olhou para ela com atenção. — Você tem as
orelhas pontudas, embora muito menores do que qualquer outra que eu já
vi. Tem certeza de que não é uma changeling?
— Minha mãe teria me contado. Ela era uma amiga dos Fae e teria criado
seu filho com orgulho. — Por mais que quisesse ser Fae, Sorcha duvidava que
houvesse o menor indício disso em sua linhagem.
— E você não tem ancestrais que vieram da Colina?
— Não que eu saiba, e nunca tive qualquer influência com os
elementos. A terra é apenas terra, o ar é apenas ar.
— Então você não deve ser Fae. — Oona balançou a cabeça. — Eu não sei
o que você é criança, mas você não é inteiramente humana. Este quarto não foi
feito para criaturas como eu. Diz-se que todas as coisas vivas adoeceriam e
murchariam se não fossem feitas para tal quarto.
— Você tem certeza de que não é apenas um mito?
— A maioria das coisas são mitos, mas há um pouco de verdade em cada
história. A magia aqui considerou você digna de permanecer dentro de suas
paredes. Como, ou por que, não tenho como saber.
Nem Sorcha. Não parecia certo ela ficar em um quarto como este. Era
muito bom, muito bonito, e ela nunca tinha vivido em uma beleza como esta
antes. Por que ela deveria começar agora?
Oona saiu apressada do quarto, murmurando sobre mestres e Faes, e
Sorcha podia ouvi-la abrindo baús para roupas de dormir.
Ela não tinha muito tempo então. Os dedos de Sorcha deslizaram sobre
as pontas de suas orelhas, perguntando-se se talvez ela tivesse um pouco de
Fae nela, afinal. Mas eles não saberiam?
Talvez fosse algo que ela nunca saberia ou entenderia. Sorcha esfregou a
pele com uma escova, as cerdas grossas deixando sua pele vermelha brilhante
e cavando toda a crosta sob as unhas. A água quase não mudou de cor, ela saiu
muito rapidamente pela fenda no fundo.
Oona afastou a hera com uma leve camisola de seda nas mãos. — Venha,
então. Você teve um dia agitado.
— Eu sinto muito. — Sorcha olhou para ela, o cabelo molhado
emaranhado em seus ombros e espalhado na água como um leque. — Eu sinto
muito por ter usado seu nome sem permissão. Eu não queria que você se
machucasse, mas não é desculpa para tratá-la assim. Eu continuo usando
nomes de Faes mesmo quando sei o quão poderosos eles podem ser.
— Não há mal nenhum, criança. — Os lábios de Oona se curvaram para
o lado. — Você salvou minha vida.
— Ainda assim, eu gostaria de dar meu nome em um pedido de
desculpas. Eu confio em você para usá-lo bem.
Os olhos de Oona quase saltaram das órbitas. A camisola caiu de suas
mãos e pousou no chão como uma borboleta morrendo. — Por que você faria
isso? Querida, isso é uma coisa perigosa de se fazer. Você não deve dar seu
nome a nenhum Fae! Nunca!
Sorcha se levantou da água, enrolou um pano em volta do corpo e
estendeu a mão. — Prazer em conhecê-la, Oona. Meu nome é Sorcha de Ui
Neill. E me agradaria muito se você se referisse a mim pelo nome de agora em
diante.
Lágrimas escorreram pelo rosto de Oona. — Eu não poderia. Não está
certo.
— Por favor. Estou tão longe da família e dos amigos, e considero você
tão próxima de mim quanto qualquer outro. Gostaria de ouvir você me chamar
de Sorcha, pois é meu nome de batismo e deve ser falado com frequência.
— Sorcha, — A Fae sussurrou. — Você é o primeiro humano a me dar o
nome.
— Use-o com sabedoria.
— E apenas com amor, — disse Oona. Ela deu um passo à frente e
enrolou outro pano em volta dos ombros de Sorcha, esfregando
rapidamente. — Agora vamos secar você e colocá-la na cama.
— Você quer falar sobre a Rainha?
— Deixe-me cuidar de você. Não desejo pesadelos, minha querida.
Sorcha quase podia sentir a dor da perda. Oona foi banida para cá e
provavelmente nunca mais veria sua família. A determinação definida dentro
de Sorcha ficou ainda mais forte. Ela encontraria uma maneira de mandar
Oona de volta para casa. Para mandar todos para casa.
Eles mereciam ver suas famílias. Eles mereciam ser livres.
Eamonn invadiu a torre mais alta do castelo, a raiva fervendo sob sua
pele. Como ela ousa? Como ela ousava desafiá-lo, em seu próprio castelo, sem
nem mesmo uma pitada de medo em seus olhos?
Ela deveria se preocupar que ele pudesse quebrar seu pescoço lindo. E
ele poderia!
Ele estendeu as mãos, olhando para as palmas que tiraram tantas vidas
em sua longa vida. Ele podia sentir o movimento da carne, o estalo que ecoava
por seus dedos quando uma espinha cedia. Não havia um osso delicado em
seu corpo.
Pelo menos, era isso que ele acreditava.
Mas mesmo com as várias garrafas de uísque nublando sua mente e
julgamento, ele foi gentil com ela. Os cristais em suas mãos não haviam
rompido sua pele salpicada.
Ele balançou a cabeça, balançando a longa trança em sua
espinha. Salpicado não era a palavra certa. Falha, como ele disse a ela, não era
a palavra também. Essas sardas eram estrelinhas cativantes decorando sua
pele como o respingo do pincel de um pintor. Ela era a criatura mais incomum
que ele conheceu.
A voz de seu irmão gêmeo, Fionn, ecoou em sua mente.
— Mas você sempre amou os humanos, irmão.
Eamonn rosnou. — Você não tem lugar aqui.
— Você vai machucá-la, como o resto deles. Essas mãos não eram
capazes de preservar corpos tão delicados antes mesmo de você
quebrar. Arruinado, mutilado, besta que você é.
A velha dúvida filtrou-se em sua consciência. Ele queria ser o tipo de
homem capaz de tocar uma mulher e não se preocupar que ela pudesse
quebrar. Ele queria acariciar a pele macia, apertar e acariciar, mas ele sabia os
perigos que havia naquele caminho.
E isso o enfureceu.
Rugindo frustrado, ele balançou um punho pesado para a cadeira mais
nova em seus aposentos. A madeira estilhaçou-se com o peso do cristal e do
osso. Pequenos fragmentos explodiram no ar, cortando seus antebraços.
A dor agora familiar o forçou a fazer uma pausa e inclinar a mão. A carne
carnuda se abriu mais e os cristais cresceram através dos músculos e da
pele. Eles cintilaram, refletindo a luz como se zombassem dele. Eles eram
lindos, sim, mas eram feios ao mesmo tempo.
Ele baixou a mão com desgosto.
— Esse temperamento tende a te causar problemas.
A mandíbula de Eamonn apertou com a voz familiar.
— Por que você estava em Terras Unseelie, Bran?
— Eu não deveria estar cuidando de sua mais nova conquista feminina?
— Por quê? — Eamonn acrescentou aço a sua voz, não permitindo ao
outro Fae a chance de discutir mais. Bran falava sobre um assunto até ficar com
o rosto roxo.
— Eu tinha negócios lá.
— Você não deveria segui-la.
— Por que não? — Bran saiu das sombras, um sorriso malicioso no
rosto. — Eu faço o que eu quero, Príncipe. Assim como você.
— Você deveria tê-la protegido se estivesse lá.
— Ela estava bem. Gerenciado bem se você me perguntar. A única coisa
que a alcançou foi o portal. — O olho negro de Bran piscou. — E se estamos
sendo honestos, abrir isso sozinha era uma tarefa impossível. Ela não teria
aberto sem nenhum sangue Fae.
— Você não acha que ela tem algum? — Eamonn não tinha tanta certeza.
— Seca como um osso, aquela. Achei que talvez pudesse, mas qualquer
poder teria surgido naquele navio em que viemos aqui. Ela não é Fae.
— Então, qual é a sua explicação para as orelhas?
Bran encolheu os ombros. — Deformação física. Ela é estranha, vou
admitir. Ela sabe como administrar os Fae e sempre diz 'obrigada'. Eu não tive
um agradecimento humano no que parecem séculos.
— Eles se esqueceram de nós. É por isso que saímos.
— Todos menos ela. — Bran acenou com a cabeça em direção aos móveis
agora quebrados. — Eu arriscaria supor que você fez algo de que está se
arrependendo?
— Vá embora, Bran.
— Eu estou aqui agora. Acho que não quero ir embora até o final desta
história. O que você planeja fazer com ela? — Bran caminhou em direção a
uma das espreguiçadeiras, espalhando seu corpo sobre ela sem se importar
com o mundo. Ele apontou para o assento confortável. — Este está fora dos
limites. Quebre os outros.
Eamonn suspirou, a tensão e a raiva dando lugar ao aborrecimento. —
Eu terminei.
— Você diz isso, mas sempre acaba virando a cadeira em que estou
sentado.
— Isso é porque você me irrita muito.
— Eu não sigo suas regras, Seelie. É apenas a maneira como vivo minha
vida.
— E você perde seu tempo me irritando?
Bran chutou os pés no ar, estendendo a mão para uma bebida que sabia
que Eamonn iria compartilhar. — Não é como se houvesse muita coisa
acontecendo na minha corte. E aqui está você, prestes a dar o próximo passo
em direção ao seu futuro.
Eamonn ergueu um copo e o uísque de sua mesa, despejando uma boa
quantidade no cristal. — Você acha que estou à beira de algo? Que outro futuro
eu tenho do que apodrecer nesta ilha?
— Bem, você não tem que ficar aqui. — Bran se inclinou e pegou a
bebida. — Você está apenas escolhendo.
— Isso não é verdade.
O olho do corvo rolou em sua órbita. — Se você não montou essa peça
do quebra-cabeça, não posso fazer muito para ajudá-lo, irmão.
Eamonn estreitou os olhos, olhando para o Fae reclinado. — Você sabe
de alguma coisa?
— Eu sei muitas coisas. — Bran deu um gole no uísque. — Isso é muito
bom.
— E você não vai compartilhar?
— Você já sabe disso, Eamonn, apenas se recusa a admitir que sabe. Use
esse seu cérebro. Se os cristais não afetaram sua cabeça ainda.
Eamonn o olhou por um momento, sua mente girando com
possibilidades até que se fixou na informação que Bran estava usando. Ele
balançou sua cabeça. — Isso foi há muito tempo e não sou mais rei.
— Ah, mas você é o filho mais velho.
— E impróprio para o trono Seelie. — Eamonn estendeu os braços, os
cristais cintilando à luz fraca das velas. — Eu pareço um Fae Seelie? Você
realmente acha que eles iriam me seguir?
— Eu acho que todas as coisas que você costumava dizer eram atraentes
para os Faes que só conheciam a escravidão. Se você continuar sussurrando em
seus ouvidos sobre a liberdade, eles podem apenas seguir você em vez de seu
irmão, que trata seus súditos como gado, em vez de pessoas.
— Ainda há a questão dos Tuatha dé Danann.
Bran esvaziou o resto do copo. — Você acha que isso é um
problema? Eles sempre escolheram você, Eamonn. Você foi o filho favorito
desde o primeiro dia. Ou você acha que seu irmão odiava você simplesmente
porque nasceu com as trevas em seu coração? O ódio é aprendido, Eamonn, e
infeccionou dentro de Fionn por anos antes que ele apunhalasse você pelas
costas.
— Eu teria sido um bom rei, — disse Eamonn. — Mas eu nunca teria sido
um grande rei.
— Os tempos mudam. — Bran pôs-se de pé, circulando o quarto e
olhando as garrafas de cristal na mesa de Eamonn com um olho de corvo
calculista. — O que você vai fazer com a garota?
Eamonn desabou na cadeira restante. — Eu não tenho a menor ideia.
— Mandar ela para casa?
O vidro na mão de Eamonn se estilhaçou.
Bran inclinou a cabeça para o lado. — Improvável então. Bem, se você
não vai mandá-la para casa, então o que você planeja fazer com ela?
— Eu ainda não decidi.
— Eu tenho uma ideia.
— Você? — A cabeça de Eamonn bateu nas costas da cadeira e ele olhou
para o teto. — Por favor, me aconselhe Príncipe Unseelie.
— Lembre-se de como é quando uma mulher quer você. Pode ser muito
bom para você.
— Ela não me quer. Ela está com medo de mim, sim. Mas qualquer outra
emoção nunca passou por ela ao me ver.
— Curioso. Não parecia assim quando você tentou consumi-la.
— Eu o quê? — O rosto de Eamonn ficou vermelho de vergonha e
raiva. — Você estava assistindo.
— Estou sempre observando, — Bran bateu nas penas pretas em volta de
seu olho. — Mas o mais importante, eu pude ver o que você não viu. O álcool
pode turvar sua mente, mas não a minha. Ela quer você, meu amigo. Quase
tanto quanto você a deseja.
— E o que eu faço com isso? Você me pede para planejar a guerra e
depois me distrair com uma mulher! — Eamonn jogou os cacos de vidro
restantes no chão. — Um homem não pode fazer muito, Bran.
— Eu posso ajudar se você quiser. Embora eu prefira muito mais a tarefa
de distrair sua senhora.
Eamonn rosnou.
— Acalme-se. — Bran ergueu as mãos em sinal de rendição. — Eu
juro. Você precisa esperar que seu irmão dê o primeiro passo e, confie em mim,
ele o fará. Por que você acha que eu estava em Unseelie?
Eamonn queria jogar algo nele. — Essa conversa toda foi uma maneira
de você girar em torno do que descobriu em Unseelie? Fale, Fae!
— Ainda não. Quero saber o que você está fazendo com Sorcha primeiro.
— Eu não gosto de você usar o nome dela tão livremente.
— Eu acho que ela é mais resistente do que você acredita. Nenhum
sangue de Fae corre em suas veias, mas há algo mais lá que lhe dá uma espinha
de aço. O que você vai fazer com ela?
— Não sei — gemeu Eamonn. — Dê-me paz e talvez eu descubra!
— Você deu a ela o quarto da rainha, mas não sabe para que a quer.
— Bran fez uma careta. — Você é um homem confuso, meu amigo. Uma
mulher flexível, não querendo menos, a apenas alguns andares de você e você
se esconde em uma torre.
— Você já acabou de comentar sobre a minha vida amorosa?
— Isso nunca vai parar.
Eamonn olhou para o retrato rasgado de sua mãe e rezou por
paciência. Ele nunca foi bom em esperar. O campo de batalha não era um bom
campo de treinamento para paciência. — Bran.
— Bem. Seu irmão está acompanhando você, sabe, e essa garota o
preocupa. Ele acha que uma vida feliz pode forçá-lo a retornar.
— Ele é um idiota.
Bran bufou. — Um tolo que está correto.
— Ela não tem controle sobre minhas ações ou decisões.
— Você deixou esta torre mais vezes desde que ela chegou do que em
todo o seu tempo aqui em Hy-brasil, e está pensando em ir à guerra com seu
irmão.
— Eu considerei isso antes de ela aparecer.
— E agora você tem um significado por trás da ação. Ela ficaria bonita
com uma coroa no topo da cabeça. — Bran fingiu colocar uma coroa no topo
de sua cabeça raspada pela metade.
— Ela é humana.
— O que isso tem a ver com alguma coisa? Pela primeira vez na vida,
desista dessa honra forte e do senso tolo de certo e errado! A guerra está
chegando, quer você escolha ou não. Aproveite seus últimos dias de
liberdade. O derramamento de sangue começará em breve.
As penas do rosto de Bran se arrepiaram e se espalharam por sua
pele. Sua forma mudou, mudando de homem para besta. Ele soltou um grito
estridente antes de se levantar no ar e voar para fora da janela.
Boa viagem, pensou Eamonn. Ele não podia aguentar mais um minuto da
sugestão constante do Unseelie de que ele voltasse para casa.
O que sobrou para ele? Um trono roubado, um gêmeo que o odiava, um
reino que presumia que ele os tivesse abandonado! Pelo menos aqui havia
pessoas para cuidar.
Ele cerrou os punhos enquanto a boca do estômago se contraía. Ele sentia
saudades de casa. Era estranho sentir falta de um lugar tão profundamente que
seu coração doía. Mas aquele lugar não tinha nada da beleza que Tír na nÓg
poderia oferecer.
De pé, ele caminhou na frente do retrato de sua mãe. — Mesmo você não
me quereria em casa. Você, que não fez nada quando Fionn me enforcou na
praça. Nosso próprio povo comemorou por dias enquanto eu pendia, incapaz
de morrer porque os cristais em minha garganta me protegeram. — Ele
apontou um dedo em sua direção. — Você nem mesmo me cortou.
A memória era uma coisa irregular, dura e cortante mesmo depois de
cem anos. Ela tinha lágrimas nos olhos quando seus olhares se encontraram,
mas ela não ajudou seu filho. Seu primeiro filho. Seu amado príncipe guerreiro
que cortou o mundo por ela.
Sua mãe havia mostrado suas verdadeiras cores. Assim como seu pai,
que nem mesmo parecia ver seu filho pendurado em uma corda
desgastada. Três dias. Três dias ele balançou na brisa e suportou as bicadas
intermináveis dos corvos, os gritos dos abutres esperando para festejar.
Ele havia desafiado todos eles.
A morte não viria para ele. Ele não se submeteria àqueles que o
traíram. Eamonn sobreviveria. Ele sempre foi bom nisso.
Fionn o odiava, disso ele tinha certeza. Algo infeccionou nas entranhas
de seu gêmeo e não havia nada que Eamonn pudesse fazer para mudar
isso. Que amor fraternal poderia ter existido, há muito se foi.
Eamonn apoiou os braços na parede ao lado da mãe e deixou que a testa
tocasse a pedra fria. Que escolha ele teve?
Os rostos dos Fae da ilha dançaram atrás de suas pálpebras. Eles foram
banidos por muitas coisas. Roubando de um Tuatha dé Danann. Adorando um
ancestral diferente de seu mestre. Indo para casa para visitar a família quando
deveriam estar trabalhando.
Nada tão sério quanto um assassinato. Eles teriam balançado ao lado
dele na forca se tivessem feito tal coisa.
Não havia propósito para este lugar, a não ser um castigo pior que a
morte. A voz de Fionn ecoou em sua mente.
— Deixe-o apodrecer.
E era exatamente isso que ele estava fazendo. Ele poderia muito bem
cultivar cracas em vez de cristais. Eamonn não estava fazendo nada além de
sentar e esperar que o tempo passasse.
Ele olhou por cima e encontrou o olhar frio de sua mãe. — Estou
voltando para casa, Máthair.
O Kelpie e o Rei
A Lua do Caçador
Sorcha rolou para o lado e estendeu a mão para Eamonn. Ela não tinha
dormido bem - uma cama nova sempre era difícil na primeira noite. Ela
continuou rolando para encontrá-lo, preocupada que ele pudesse desaparecer
na noite.
A Caçada Selvagem estava acontecendo e ela temia que ele fosse levado
por Cernunnos e sua noiva.
Os dedos dela alisaram a cama vazia, os lençóis frios pela ausência do
corpo dele. O pico de medo fez sua respiração ficar presa na garganta. Onde
ele estava?
Não poderia ser a Caçada Selvagem. O luar se filtrou pelas janelas,
zombando de seus pensamentos. Certamente nenhum outro Tuatha dé
Danann o tiraria desta prisão?
Com a mente se recuperando do medo, Sorcha se sentou e arrastou os
dedos pela massa emaranhada de cabelo. Ela estava pensando
irracionalmente. Este era o lugar onde baniam pessoas. Ninguém iria removê-
las.
Ela respirou fundo e forçou os músculos a relaxarem. Ela se concentrou
nas pontas dos dedos dos pés, desejando que o relaxamento viajasse das pontas
dos pés por todo o corpo. Assim que seus músculos liberaram a tensão, ela se
sentiu significativamente melhor.
Ainda não havia resposta para o que acontecera a Eamonn. Onde ele
estava, ela se lembrou, era a verdadeira questão. Talvez ele tenha ido se limpar.
Ela não conseguia imaginar por quê. Um sorriso se espalhou por suas
feições no crepúsculo. Ele provou ser um homem muito digno.
Seu corpo doía em lugares que ela não percebeu que tinha. Cada
pulsação de músculo e tremor de membro a lembrava de que ela tinha sido
bem e verdadeiramente reivindicada, e que ela havia reivindicado a ele
também.
Sorcha mordeu o lábio e puxou os cobertores até o peito. Os cachos
caíram sobre seu corpo nu, escorregando nos lençóis de seda.
— Onde ele está? — Ela murmurou. — Eu gostaria de repetir a noite
passada.
O barulho ecoou do lado de fora da porta. Nas escadas? Ela não
conseguia imaginar por que Oona traria comida ou chá. Era tarde demais e, se
Eamonn lhe pedisse para subir as escadas no meio da noite, Sorcha teria
palavras para ele. O homem não descobria nada sobre seu povo.
Oona era uma velha! Não importava que seu corpo parecesse jovem, ela
tinha anos suficientes para merecer um pouco mais de respeito.
Ela deslizou as pernas pela beirada da cama e sibilou quando os dedos
dos pés tocaram a pedra fria.
— Eamonn, — ela rosnou. — Todos os outros lugares do castelo têm pele
de carneiro, então não congelamos os dedos dos pés pela manhã. No entanto,
você insiste em se punir ainda tão cedo.
A luz fraca tornava difícil encontrar seu vestido. O tecido amarelo estava
estragado, ele tinha arrancado todos os botões das costas. Mas teria que servir
por enquanto. Oona não se importaria se um pouco de sua pele estivesse
aparecendo.
A Fae já tinha visto cada pedacinho de Sorcha de qualquer maneira.
Ela bufou. Que estranho não se preocupar mais com quem ou o que via
sua nudez. Ela estava com medo de revelar até mesmo o menor pedaço de
tornozelo quando ela chegou. Agora, ela não estava preocupada em valsar com
as costas totalmente nuas.
A mente era uma coisa estranha e maravilhosa, ela meditou. Ela deslizou
o tecido para cima e sobre os ombros, pressionando-o contra o peito e
manobrando um nó improvisado em volta da cintura. Contanto que ficasse no
ar quando deveria, ela diria que foi uma vitória.
O barulho tornou-se clangor, ficando cada vez mais alto à medida que
alcançava a porta dos aposentos de Eamonn. A sobrancelha de Sorcha
franziu. Ela conhecia aquele som, mas ela não conhecia.
Não era o som de cerâmica ou pratos.
A porta do quarto se abriu, bateu contra a parede com um estrondo
estrondoso e caiu da dobradiça superior. Ela gritou e ergueu o braço. Ela se
recusou a recuar, a se esconder, a cair para trás.
— Sorcha! — O grito de Eamonn foi um som bem-vindo, embora
preocupante.
— Eamonn!
— Onde você está, mulher?
Ele não podia vê-la na escuridão. Ela correu em direção a ele, envolvendo
os braços em torno da moldura delineada pelo brilho de uma vela.
— Estou aqui, — ela sussurrou. — Estou aqui, o que há de errado?
O metal cravou em suas costelas. Seus bíceps encontraram uma
armadura fria e o punho de sua espada pressionado contra sua barriga. Ele
estava vestido para a guerra.
Eamonn a envolveu com os braços, pressionando os lábios contra seu
cabelo. — Graças aos deuses. Você está segura.
— Estou bem, o que está acontecendo?
— Quando você viu meu irmão?
A pergunta a gelou até os ossos. — O que?
— Você viu meu irmão gêmeo e não me contou. Quando foi isso?
— Eamonn, sinto muito, deveria ter contado a você. Ele me chamou e eu
sabia que iria causar problemas se eu não fosse. Eu não queria...
Ele a segurou a um braço de distância e apertou um dedo contra seus
lábios. — Eu não estou bravo com você. Eu só preciso saber o que foi dito entre
vocês dois.
— Nada que eu achasse que você precisava saber ou eu teria te contado
imediatamente.
— Ele tentou te convencer de que seria um bom rei.
— Sim, — ela concordou. — Ele tentou muito.
— E ele não teve sucesso.
— Não. Ainda acredito que você seria o melhor rei, e me doeu ver um
impostor sentado em seu trono, vestindo seu rosto.
Ele inclinou o rosto, estremecendo com as palavras dela. — Você pode se
arrepender de dizer isso.
— Ele me ofereceu uma bênção. Ele não ousaria me machucar, não
quando eu posso comandá-lo.
— É perigoso para um rei oferecer tal coisa.
— Isso é exatamente o que eu disse.
Eamonn bateu em seu queixo com um dedo blindado. — Exatamente por
que eu acho você tão interessante, Sorcha. Você pensa como um soldado.
— Eu penso como quem quer sobreviver. Por que você vestiu sua
armadura?
Ela o observou cuidadosamente enquanto ele se afastava. A armadura
rangia com seus movimentos, gemendo e estalando placas arranhando umas
contra as outras. Sua coluna endureceu e ele respirou fundo, controlando-se.
— Eu sempre soube que chegaria a esse ponto. Meu irmão me quer morto
há séculos. Eu ameacei seu direito de sentar naquele trono, embora eu tenha
sido desgraçado e banido. Enquanto eu estiver vivo, o povo sempre chamará
o Grande Rei de Seelie para se sentar no trono dourado.
— Como deveriam.
— Não é minha escolha, Sorcha, — disse ele. — O mundo tomou essa
decisão por mim. Estou arruinado, portanto, não sou apto para ser rei.
— Você não acredita que vale a pena considerar a mudança? Talvez as
pessoas que escolhem ser Fae Seelie não desejem mais ter um rei perfeito!
— Você diz palavras blasfemas que não esperava entender.
— Eu entendo mais do que você imagina. — Ela alcançou seu rosto,
emoldurando suas bochechas com as mãos. — Seu povo está morrendo sob o
controle de um tirano que mostra pouca bondade. Eles querem que você volte
para casa. Até mesmo os Tuatha dé Danann.
— O que você sabe dessas coisas? — Uma lança de luz de vela se
espalhou por seu rosto.
Não, não à luz de velas, ela percebeu. Fogo de fora da janela da torre mais
alta do castelo. Algo estava queimando lá fora. Ela podia sentir o cheiro da
fumaça agora, acre e queimando o nariz até que ela quis espirrar. Ela não iria
olhar.
— Elva era a Fae que Oona queria que eu ajudasse. Ela disse que foi
criada com você e seu irmão. Ela falou muito bem de você e das coisas boas
que você poderia ter feito se se tornasse rei.
— Elva, — ele sussurrou. — Esse é um nome que não ouço há muito
tempo.
— O rei fez dela sua concubina.
— Ele não tinha o direito. — A raiva repentina na voz de Eamonn
assustou Sorcha.
— Ela era sua?
— Não. Ela era de outro, mas ele não teria direito sobre uma mulher
Seelie se o rei Seelie a quisesse. — Ele praguejou. — Como ele ousa se
intrometer nessas coisas? Não admira que ele seja tão odiado.
Sorcha engoliu em seco. — Eamonn, por que você está de armadura?
— O rei está aqui.
Claro. Ela deveria ter adivinhado, mas ela não queria pensar que o pior
havia acontecido.
— Por quê?
— Você sabe porquê.
E ela sabia. O rei queria matar seu irmão de uma vez por todas. Sorcha
abaixou a cabeça, acariciou com a mão as placas lisas da armadura dele e
assentiu.
— O que você precisa que eu faça?
— Fique segura e fora do caminho.
— Como? — Ela olhou para ele em busca de orientação. —Eu nunca
estive em uma batalha antes.
— Me siga. Vou levá-la a algum lugar onde eu sei que você não será
prejudicada.
— E se você cair? — Ela não queria fazer a pergunta. O pensamento dele
sangrando no campo de batalha sem sua ajuda fez um grito subir no fundo de
sua garganta. — Eu posso ajudar os feridos.
— Eu preciso que você fique fora do caminho. Siga-me o mais de perto
que puder, e se encontrarmos algum dos homens de Fionn, não interfira.
Sorcha assentiu e o seguiu enquanto ele saía correndo do quarto. O peso
de sua armadura deve ter sido grande, mas ele se movia como se não usasse
nada. Era diferente da armadura de metal que ela vira antes. As peças
entrelaçadas deslizavam facilmente umas contra as outras e não atrapalhavam
seus movimentos. Nenhum adorno tornava a armadura - bonita. Era
funcional. Prática. Como ele.
Ela ergueu as saias enquanto eles corriam pelos aposentos dele e saíam
para o parapeito perigoso pendurado acima do solo. Foi então que ela viu o
exército.
Espalhados pela ilha que ela tanto amava, homens e mulheres em
armaduras douradas ergueram suas espadas e lanças. Os Fae que viviam no
castelo e serviam a seu verdadeiro mestre estavam ao redor do castelo em uma
linha fraca.
Havia tão poucos deles.
Sorcha parou de correr, cerrando os punhos no tecido da saia enquanto
as lágrimas escorriam pelo rosto. Eles morreriam. Sob nenhuma circunstância
uma quantidade tão pequena de Feéricos Menores teria uma chance contra um
exército em equipamento de batalha completo.
Os Faes que ela conhecia e amava seguravam cerâmica de cozinha em
suas mãos. Potes, frigideiras, enxadas de jardim.
Um soluço sufocado a balançou para frente. — Eles nem mesmo têm
armas, — ela sussurrou. — Por favor, tenha misericórdia deles, eles nem
mesmo têm armas.
— Sorcha!
Ela se encolheu ao grito de Eamonn, balançando-se para frente
perigosamente perto da borda.
— Sorcha, desça!
Um homem escalou a borda do parapeito. As lâminas gêmeas brilhavam
ao luar. Ele as usava como apoio para as mãos, perfurando feridas na lateral
do castelo. Eles sabiam onde Eamonn estava.
A borda dourada de sua armadura era afiada como uma lâmina. Ele se
virou para ela, não para Eamonn, e sorriu ao ver seu olhar de medo.
— Você está atrapalhando, — o Fae grunhiu. — Pode ir.
Ele se lançou e ela se afastou. As mãos dele prenderam o tecido do
vestido dela e ela caiu sobre as mãos e os joelhos. Pedra mordeu suas
palmas. Cabelo caiu na frente de seu rosto, obscurecendo sua visão. As mãos
dele agarraram seus tornozelos e ela gritou.
Então ele desapareceu. Arrancado de suas pernas com um grito de
pânico próprio. Ela olhou por cima do ombro para ver Eamonn erguer o Fae
sobre sua cabeça. Muito fácil. Tão simples. Sua expressão era fria e sem coração
quando ele jogou o homem sobre a borda.
O grito ecoante soou como o uivo de uma sidhe de feijão.
— Venha. — Eamonn estendeu a mão para ela tomar. — Temos que ir.
— Aquele homem...
— Um do meu irmão e não vale a pena sua culpa. Levante-se.
Ela queria vomitar. Sorcha tinha visto a morte muitas vezes, mas nunca
tão descuidadamente tratada. Essa foi uma vida que foi jogada fora,
literalmente, e ele nem se incomodou com isso.
Pela primeira vez desde que o conheceu, ela olhou para Eamonn com
novos olhos. De alguma forma, ela tinha fantasiado sobre ele como o herói de
um conto de Faes, mas ele era um guerreiro de carne e osso cujas mãos e corpo
estavam manchados de morte e guerra.
Ela encaixou a mão na dele, sabendo muito bem o que significava. Ela
não podia suportar a morte. Mas ela também não se afastaria dele.
Ele a puxou e assentiu. — Esse não é o último deles, Sorcha. Vai ter mais.
— Eu sei.
— Você não sabia disso.
— Eu sei agora.
Ele deu a ela um último olhar demorado antes de correr em direção à
porta da parte principal do castelo. Sorcha o seguiu, o coração batendo forte
nos ouvidos.
O barulho de sua armadura ecoando na escada sinuosa. Ele quicou na
torre circular, ficando cada vez mais alto. O toque dos sinos da igreja. Sinos
fúnebres.
Um corpo caiu silenciosamente no meio. Ela não teria notado, pois o Fae
nem mesmo gritou de medo, mas o ar assobiou através de sua armadura e o
peso forte carregou o ar com eletricidade.
— Eles estão nos seguindo. — Disse ela. Suas palavras pareciam muito
altas, desrespeitosas com as mortes que ela acabara de ver.
— Claro que eles estão. Fique perto.
Ao se aproximarem do fundo, Eamonn desembainhou sua espada
larga. Os rubis no cabo de repente fizeram mais sentido. A lâmina se
banqueteava com o sangue de seus inimigos, e milhares de almas eram presas
lá.
Embora o pensamento fosse fantasioso, Sorcha ainda se afastou de sua
espada.
— Você está com medo de mim? — ele perguntou. Ele não olhou para
ela, em vez disso, olhou para o corredor e esperou por sua resposta.
— Não de você, mas de sua arma.
— Você deveria ter medo de Ocras.
— O nome da espada é Fome?
— Ela devora meus inimigos e corta carne e ossos. Ela não deseja você.
— Ela?
Eamonn deu um sorriso selvagem. — Claro. As mulheres são capazes de
beleza e dor.
— Há muitas que discutiriam com você sobre isso.
— Elas teriam que discutir com Ocras.
— Estamos correndo?
— Ainda não.
— Por que estamos esperando? — Ela não olhou para o corredor, não
querendo ver para onde eles corriam até o último segundo.
— Só mais um pouco, — ele murmurou. — Apenas o tempo suficiente
para lhes dar tempo.
— Para quê?
— Agora.
Ele contornou a parede e avançou pelo corredor com um grito
agudo. Seu rugido fez as paredes tremerem e o chão tremer com a força de sua
raiva. Como prometido, Sorcha o seguiu de perto, mas deu a ele espaço
suficiente para brandir a espada.
E ele balançou.
Quatro soldados esperavam por eles. Dois homens, duas mulheres,
armaduras douradas moldadas aos seus corpos. Elmos com penas brilhantes
escondiam suas espécies e os faziam parecer ainda mais sobrenaturais.
Eles atacaram todos de uma vez, e foi como se tivessem atingido um
touro. Eamonn mergulhou no primeiro, batendo com o ombro no estômago do
homem. O metal se partiu quando ele ergueu um braço para bloquear uma
espada que cortava em sua direção. Atingiu seu antebraço e se partiu ao meio
quando cortou sua armadura e encontrou o cristal por baixo.
Ocras cantou enquanto ela balançava no ar e cortava o pescoço de u
homem Fae. Parou no meio do caminho, o sangue escorrendo por sua
armadura quando Eamonn colocou o pé em seu peito e o empurrou.
Ele não hesitou. Ele se virou e atacou, mergulhando a espada na cavidade
torácica da mulher Fae. Ela gritou e caiu no chão enquanto segurava o
estômago.
Eamonn arrancou a espada de seu punho moribundo e pegou o próximo
ataque com a lâmina. As armas guinchavam sua fúria no ar. Os músculos do
pescoço de Eamonn incharam, as veias pulsando quando ele empurrou a outra
para trás. Passo a passo.
Desbloqueando suas espadas, balançando a sua para o lado, Eamonn
afundou a lâmina na fenda onde a coxa encontra a pélvis. O homem caiu com
um grito, segurando sua perna.
A última mulher correu. Ela correu pelo corredor como se pudesse conter
uma nova fuga. Eamonn rosnou e puxou a espada Fae roubada da perna do
homem, abaixou a cabeça e caminhou calmamente pelo corredor.
Sorcha não sabia se devia estar apavorada ou com raiva. Havia maneiras
melhores de terminar uma luta do que com sangue.
O cheiro metálico queimou suas narinas. O sangue jorrando no ar até que
ela pensou que podia vê-lo pairando acima dela como uma cortina de culpa.
Ela não podia ficar parada e assistir isso acontecer.
Eamonn não estava olhando, então não podia impedi-la. Ela correu para
frente e colocou as mãos nos ombros do homem Fae.
— Fácil, — ela sussurrou. — Eu vou arrastar você de volta para a
parede. Não faça nenhum som, ou ele vai se virar.
O homem grunhiu e pressionou as mãos com mais força contra o
ferimento.
Sorcha, embora pequena, tinha ficado forte ao manipular o corpo
humano e caminhar por toda a ilha. Ele era maior que ela, mas pequeno para
um Fae. Ela enfiou as mãos sob as axilas dele e o arrastou alguns metros até
que ele pudesse se apoiar na pedra.
Ela caiu de joelhos ao lado dele e afastou as mãos dele.
— Não. — Ele resmungou.
— Deixe-me. Eu sou uma curandeira.
A ferida era profunda e cortava músculos. Se tivesse sorte, viveria, mas
nunca mais voltaria a andar.
Sorcha não seria quem lhe diria isso. Talvez os curandeiros Faes
soubessem mais do que ela sobre seus corpos. A única coisa que ela podia fazer
era impedir que ele sangrasse.
O som de rasgo de seu vestido fez Eamonn parar. Ela podia sentir o calor
de seu olhar, sua raiva queimando sua carne.
Rapidamente, ela enrolou o pano embaixo de sua coxa e apertou o mais
possível. Ela deu um nó no tecido, ignorou seu gemido de dor e se virou para
as adagas Faes em suas ações.
— Eu não vou deixá-lo morrer.
— Por quê? Alguma afeição estranha por meu irmão gêmeo?
— Porque ele está apenas fazendo um trabalho. Não vou ficar parada
quando puder ajudar, não importa o lado pelo qual ele lute.
— Coração mole.
Eamonn se virou e lançou a espada em sua mão. Ela assobiou no ar e se
cravou nas costas da mulher Fae que arranhou a porta, então ficou inerte.
— Vamos embora. — Disse Eamonn. Ele se virou e puxou Ocras para
fora da outra mulher, estendendo a mão ensanguentada para ela pegar.
Sorcha se levantou lentamente, medindo-o com um olhar pesado. —
Você está com raiva de mim.
— Eu estou.
— Por quê?
— Ele não merece sua ajuda.
— Ele está vivo. Isso significa que ele merece minha ajuda. Nunca vou
deixar de querer curar as pessoas, e se você quiser, podemos acabar com isso
agora. Eu ajudo outros. Isto é o que eu faço.
Ela viu um músculo saltar em sua mandíbula. Seus olhos se desviaram
dos dela, olhando para a parede até que ele finalmente assentiu. — Que assim
seja. Venha comigo.
Ele não estendeu a mão e ela não segurou seu braço. Eles ficaram parados
no corredor cheio de sangue, olhando para longe um do outro. Uma fenda
entre eles cresceu, se fragmentando e se dividindo, um desfiladeiro destruiu
sua tênue aliança.
Sorcha deveria estar com o coração partido. Ela deveria estar triste, mas
estava com raiva. Como ele ousava ficar com raiva dela por tentar salvar outra
vida?
Seu coração sussurrou para ser gentil. Que o homem diante dela
precisava de tanta cura quanto o homem atrás dela. Seu irmão estava aqui para
matá-lo. Eamonn provavelmente não estaria procurando aqueles que estavam
apenas fazendo um trabalho em comparação com aqueles que o queriam
morto.
Talvez todos eles o quisessem morto. Ela não tinha como saber.
Ele olhou para ela e ela encontrou seu olhar enquanto seus olhos se
arregalaram de medo.
— Sorcha!
Ela ouviu o som de armadura se movendo antes de se virar. O Fae que
ela salvou estava atrás dela. Ela não viu nada além de determinação fria em
seu olhar e uma espada que parecia brilhar em suas mãos.
O tempo diminuiu. Ela ouviu sua própria exalação e a mão dele começou
a descer. Sorcha se abaixou, as palmas das mãos se arrastando pelas placas de
sua armadura. Seus dedos deslizaram pelo metal e agarraram uma peça afiada.
Ela engasgou quando ele caiu contra ela, cambaleando de dor. Ela fechou
os olhos com força enquanto o sangue quente derramava sobre suas mãos. A
ponta irregular da armadura mordeu seus dedos, mas cortou seu peito ainda
mais quando ela tentou se mover.
Suas mãos tremiam, mas ela não conseguia movê-las. Ele ofegou em seu
ouvido, o chiado de uma respiração agonizante. Ela sabia muito bem. Sorcha
já tinha ouvido isso muitas vezes, mas nunca tão perto.
Eamonn pode ter matado os outros, mas ela matou este.
— Sorcha. — As mãos blindadas de Eamonn puxaram-na para longe do
corpo. Ele caiu no chão com um baque úmido. — Sorcha, sinto muito que você
tenha feito isso.
— Eu não queria matá-lo.
— Você tinha que se proteger, mo chroí.
— Eu não sabia o que fazer.
— O primeiro é sempre o mais difícil. Mas não temos tempo para isso.
— Eu deveria verificar o batimento cardíaco. — Disse ela. Ela tentou se
virar, mas ele nem mesmo a deixou olhar para o corpo.
— Não. Não, partimos agora Sorcha. Eu preciso esconder você dele.
— De quem? — Sua mente estava nebulosa. Tudo o que ela podia sentir
era sangue em suas mãos e ela deveria estar confortável com a
sensação. Quantas vezes ela sentiu sangue em suas mãos? Saindo de entre as
pernas de uma mulher. Era a vida.
Mas isso era a morte.
— Sorcha.
— Eu pensei que você e Bran pareciam estar dançando. Foi lindo ver você
treinar. Fiquei tão impressionada. Achei que uma batalha real seria assim, mas
não é.
— Praticar é uma coisa. É fácil fazer com que os movimentos pareçam
graciosos quando nenhuma lâmina atinge sua garganta. A batalha real é
corajosa, confusa, brutal. Sinto muito que você teve que ver isso.
— Mo chroí, — ela sussurrou. — Você me chamou de seu coração.
Ele agarrou a mão dela e não respondeu. Eles correram pelos corredores,
esquivando-se dos soldados. O castelo vibrava com os gritos de Fae que não
tinham ido à frente para lutar contra o exército do rei.
Sorcha não aguentava mais morte. Ela fechou os olhos com força e deixou
Eamonn guiá-la pelo chão. Talvez ele soubesse que ela não iria
olhar. Eventualmente, ele a balançou em seus braços e avançou através das
portas infinitas e cômodos escondidos.
Ele irrompeu por uma porta lateral. Ela se enrolou contra seu peito e
choramingou, querendo nada mais do que o fim desta batalha. Para que sua
vida voltasse ao normal. Para acordar em sua própria cama e que isso não fosse
nada mais do que um conto maravilhoso para suas irmãs.
O vento roçou seu cabelo em seu rosto, frio e calmante.
Na brisa, ela ouviu uma canção assustadora. Um grito que estremeceu
dos lábios de uma mulher, falando de um amor perdido e de uma morte que
veio cedo demais.
Eamonn ficou parado.
— Bean sidhe, — ele disse. — Eu não tenho nenhuma disputa com os
Unseelie.
— Onde está meu irmão?
— Eu presumi que ele voltou para você.
— Sem verdades distorcidas, rei Seelie. Quero que meu irmão volte em
segurança.
Sorcha sentiu seu aceno de cabeça contra o topo de sua cabeça. — Eu
ainda tenho um uso para ele.
— Ele não vai lutar por você. Não precisamos de outra guerra com os Fae
Seelie além de tudo o que aconteceu. Bran não quer uma guerra. Ele não fala
pelo conselho Unseelie.
— Eu nunca pensei que ele quisesse. Ele desistiu dessa vida há muito
tempo.
— Bem. — A banshee uivou e o vento aumentou novamente. —
Providencie para que meu irmão volte para casa em segurança.
— Depois que ele me ajudar.
— O negócio foi fechado.
O toque frio do vento parecia a mão de uma mulher. Deslizou pela
sobrancelha e pelos braços. Sorcha ouviu um sussurro baixo na brisa.
— Olá, sacerdotisa.
O que a mulher Unseelie sabia que Sorcha não? As palavras não eram
meramente uma observação. Como se ela a tivesse visto antes, ou talvez sua
semelhança.
Eamonn tocou seu queixo. — Você deve caminhar a partir daqui, mo
chroí.
Ela tocou os dedos dos pés no chão e se equilibrou em seu braço. — O
que você vai fazer?
— O que eu deveria ter feito há muito tempo.
— Você vai lutar com ele? — Sorcha balançou a cabeça. — Eamonn, mais
derramamento de sangue não vai consertar isso. Você precisa falar com seu
irmão.
— Você acha que ele quer dividir o trono? Não é possível para os Faes
Seelie terem dois reis.
— Certamente seus pais pensaram nisso? Vocês são gêmeos,
Eamonn! Eles deviam saber que haveria dois reis, ou você se sentaria no trono.
Uma sombra passou por seu rosto. — Eles sempre quiseram que
compartilhássemos o reino. Fionn fez sua escolha.
Lá estava. Outro nome de Fae que ela poderia adicionar à sua coleção,
embora este ela não quisesse. O nome do rei dançava em sua língua e tinha
gosto de leite azedo.
Ela não queria essa responsabilidade. Ela não queria este nome que
marcasse em sua mente porque ela sabia que este era o primeiro nome de Fae
que ela queria usar.
Este era o único poder que um humano tinha sobre um Fae. Ela sabia o
nome dele e agora podia ordenar que ele fizesse o que bem entendesse. Sorcha
poderia entrar nos campos de batalha e gritar para ele parar e ele o faria.
Mas tal responsabilidade significava que ela escolhia um
lado. Significava que ela confiava que Eamonn seria um rei melhor, e agora
que o vira na batalha, não tinha mais certeza disso. Ele mudou muito. Tudo o
que ela sabia com certeza era que ele não era seu irmão.
Ela não conseguia decidir se isso o tornava digno de um trono.
Eamonn olhou para ela. — Você escolheu?
— Eu não vou escolher. Vim aqui para salvar meu povo, minha
família. Não se envolver nas cortes dos Faes e em suas guerras.
— Não acho que você tenha escolha, — disse ele. Ele traçou uma linha de
sua testa, seu nariz e através de seus lábios. — Você está aqui, Sorcha. Isso
significa que você está envolvida.
— Eu não desejo estar.
— Desejos não significam nada para os Fae.
— Eu sei. — As palavras ficaram presas no nó grosso de um soluço.
— Eu nunca quis te machucar.
— Eamonn, diga-me o que está acontecendo. Para onde você está me
levando?
— Eu não vou te levar a lugar nenhum, mo chroí.
Ele se inclinou e pegou seus lábios em um beijo ardente. Ele se derramou
nela, afundando a língua e saboreando até que ela sentiu a essência dele
rastejando sob sua pele. Suas memórias pulsavam em seu coração, e ela sabia
que isso era um adeus.
Sorcha enredou os dedos na longa cauda de sua trança e puxou-o para
si. Ela cravou as unhas em seu crânio, marcando-o como seu ainda mais longe
do que já tinha feito. Seus dentes bateram juntos, o sangue jorrou de seus
lábios, mas ela não queria parar. Se ela parasse, seu coração se partiria e seu
ser se despedaçaria em mil pedaços.
Ele se afastou.
— Não, — ela sussurrou e fechou os olhos com força. — Não, Eamonn,
não faça isso. Você prometeu voltar comigo.
— Se você ficasse. — Seu polegar traçou uma linha sobre seu lábio
inferior. — E você não vai ficar.
Pés com garras agarraram sua cintura. Seus olhos se abriram e o chão
caiu.
— Não! — Ela gritou. — Não! Por favor não!
Sua alma se estilhaçou, gritando que ela não queria deixá-lo. Ele não
deveria estar sozinho quando enfrentasse o campo de batalha.
Grandes asas lançaram o ar contra sua cabeça. Ela lutou, sem sucesso. O
pássaro bestial não soltou sua cintura e logo eles estavam altos demais para ela
escapar.
O pico mais alto do castelo estava quase ao seu alcance. Tudo parecia tão
pequeno, até mesmo os Faes com armaduras que atacavam a porta da frente e
rechaçavam aqueles que ela amava. Ela ainda podia ouvir os gritos.
Eamonn olhou para ela. Uma vez que ela estava muito alto e inerte nas
garras do pássaro, ele se virou e entrou no campo de batalha.
Os Faes da ilha se separaram como um mar à sua frente. Sua armadura
manchada e envelhecida parecia pedra enquanto ele se movia no meio da
multidão. O exército dourado estava na frente dele, uma parede de poder e
intenção clara.
Sorcha se perguntou qual era Oona. De tão alto, ela não conseguia
distinguir rostos ou traços que pudesse reconhecer.
O pessoal de Eamonn era baixo e atarracado. Suas formas deformadas e
esticadas com características de animais, pele estranha, corpos de formatos
estranhos. Eles pareciam tão diferentes em comparação com a perfeição que
Fionn trouxe com ele. Esses eram os Tuatha dé Danann, os grandes Faes que
escravizaram aqueles que não mereciam.
Os gêmeos se espelhavam, ficando na vanguarda de seus
exércitos. Fionn estava montado em um grande corcel branco. A longa cauda
de seu cabelo balançava com a brisa. Eamonn estava parado com as pernas
enraizadas na terra, a trança fina e imóvel. Eles olhavam para um mar de
sangue e não se moveram.
— Bran? — Ela sussurrou contra o vento.
Um crocitar retumbante ecoou ao seu redor. Ela olhou para as garras
enroladas em sua cintura. Cada garra era tão grande quanto seu antebraço. A
pele áspera e cinza os cobria. Ela não tinha percebido que ele poderia se
transformar em uma fera tão grande. Outro segredo revelado, outra coisa para
guardar em sua memória.
— Eles vão se matar?
O vento assobiava passando por seus ouvidos, e ela não sabia se o
grasnar era para ela ou simplesmente um resmungo.
— Será que algum dia vou vê-lo de novo?
O príncipe Unseelie não respondeu. Ele afastou os dois do campo de
batalha e voou sobre o oceano.
Muito longe para que alguém pudesse ouvir seus soluços.
Capítulo 13
Casa
Eles viajaram através do mar com grande velocidade. Bran os levou bem
alto sobre a borda da tempestade, o luar dando lugar ao nascer do sol.
Sorcha queria absorver a beleza. Ela queria apreciar o mundo porque ela
nunca o veria dessa forma novamente. Merrows saltavam das ondas e
gritavam por eles. O Guardião nadava pelas profundezas como uma sombra
vagando sem rumo.
Ela absorveu tudo, mas seu coração parecia vazio. Drenado. Ela não
tinha certeza se ainda estava lá.
Seu príncipe dos Faes provavelmente estava morto. Se ele não estava
morto, então ele matou a imagem refletida de si mesmo. Quem poderia ser o
mesmo depois disso?
Matar um gêmeo era como matar a si mesmo?
As garras de Bran cravaram em sua pele, rasgando o ombro de seu
vestido. A dor era maçante em comparação com a dor de seu coração. Ela
sempre pensou que sofreria como Rosaleen quando perdesse um amante de
quem gostava.
A menina desamparada loira chorava e gritava. Suas bochechas
queimariam com o sal de suas lágrimas. A casa tocaria com a raiva de seus
gritos, a decepção consigo mesma e com o homem que partiu.
Sorcha estava entorpecida. Não havia absolutamente nada dentro
dela. Apenas uma pulsação surda onde seu coração costumava estar.
Os dedos dos pés de Bran se mexeram. — Estou levando você para casa.
Ela assentiu, embora ele não pudesse ver sua resposta.
Ele a empurrou. — Você me ouviu, parteira? Estou te levando para
casa. Não era isso que você queria esse tempo todo? Para ir para casa?
Sorcha não respondeu. Em vez disso, ela olhou para as ondas e se
perguntou o quanto doeria se ele a deixasse ir. Ela tinha ouvido que quanto
mais alto estava, mais sólida a superfície da água se tornava. Se ele a deixasse
ir, ela poderia golpear com força suficiente para nem mesmo sentir.
Seus dedos dos pés se apertaram com força, tirando o fôlego dela. —Não
é o fim do mundo, sua idiota. Você tem um propósito, lembra?
— Com licença?
— Eu posso dizer que você está deprimida!
— Eu acho que tenho o direito.
— Você nem se apaixonou por ele. Você perdeu um bom amigo, isso não
significa nada.
— Ele se tornou uma parte de mim.
O esboço tênue de casas apareceu no horizonte. Uma cidade
familiar. Parecia há muito tempo que ela olhou para os humanos do outro lado
da mesa. Há quanto tempo?
O tempo mudava de forma diferente no Outro Mundo, e Macha disse
que era o mesmo em Hy-brasil. Quanto seu mundo mudou?
Sorcha não tinha certeza de que sobreviveria.
Bran voou por cima dos edifícios, passando por navios e
marinheiros. Ninguém olhou para o grande pássaro alado carregando sua
carga humana. Ele os levou para uma pequena cabana. Abandonada e caindo,
que poderia ter sido um lar.
Já não. Sorcha ouviu o som suave de penas quando ele os derrubou no
chão. Ele a colocou suavemente no telhado da cabana e pulou para a terra onde
mudou de forma.
Penas derreteram em pele caramelo. Roupas pretas se formaram sobre
seu corpo. Garras encolheram em unhas até que apenas pequenas pontas
permaneceram. Uma poeira de minúsculas penas pretas ainda decorava seu
rosto, e o único olho de corvo olhava para ela.
Bran estendeu os braços. — Hora de descer.
— Eu não posso sentir meu corpo, — ela sussurrou. — É a sensação mais
estranha. Nunca pensei que perder alguém que eu amava pudesse realmente
machucar minha forma física.
— Venha Sorcha. Vou te contar uma história.
Ela não queria ouvir uma história. Ela queria que ele a levasse de volta
para Hy-brasil para que ela pudesse cuidar dos sobreviventes da guerra de
Fionn. O olhar duro sugeria que ele não aceitaria um não como resposta.
Talvez tenha sido melhor no longo prazo. Ela fugiu para a beira do
telhado de palha e caiu em seus braços.
Ele a colocou no chão com cuidado, colocou a mão em suas costas e a
empurrou em direção a dois troncos caídos. Ela se sentou com força. Suas mãos
não pareciam certas. Elas não pareciam ser colocadas nas pontas dos braços de
uma forma que ela pudesse controlar. Elas quase pareciam para trás, mas isso
não estava certo. Ela havia usado essas mãos milhares de vezes.
Bran estendeu a mão e segurou as costas de seus dedos trêmulos.
— Eu perdi alguém muito querida para mim. Passei minha existência
inteira cortejando ela. Espetando galhos no cabelo até que ela teve que cortá-lo
para tirá-los. Colocando sapos na cama e ratos nos sapatos. Eu a provoquei
sem parar e ela ainda me amava.
— E então, uma noite, alguém a levou embora. Não havia nada que eu
pudesse fazer e me prometeram que ela seria feliz, mas eu nunca a veria
novamente.
— Eu pensei que me recompor seria impossível. Certamente me senti
assim nos primeiros meses. Mas descobri um propósito diferente como alguém
diferente do homem que a amava. Encontrei minha liberdade, respeito por
mim mesmo, e percebi que mesmo sem ela ainda era um bom homem. Eu
ainda poderia fazer grandes coisas, e que ela era apenas uma recompensa por
trabalhar duro.
Ele ergueu as mãos dela e pressionou os lábios nas palmas. — Você se
encontrará novamente, Sorcha. E eu acredito que será curando seu povo com
estas mãos.
— Como vou curá-los? — Seus olhos estavam tão secos que ela não
conseguia nem piscar. — Ele era a resposta para encontrar uma cura, e agora
ele se foi.
— Tenho certeza de que você encontrará um jeito. Você sempre
encontrou.
— Ele realmente se foi? Eu nunca vou voltar para aquela ilha
maravilhosa cheia de Faes que eu amo muito?
— Você acha que eles ainda estarão lá?
— Eu quero que eles estejam. Não quero que haja uma guerra e todas
essas mortes. Bran, como posso impedir isso?
As mãos segurando as dela desapareceram. O ar frio correu ao redor de
seu corpo, roubando o fôlego de seus pulmões. Ela olhou para cima e
descobriu que estava sozinha.
O sol se erguia no céu muito acima dela quando ela encontrou coragem
para se levantar. Seus joelhos tremiam. Seu corpo tremia. Seus pulmões
ofegavam por ar e ela ainda não se sentia uma pessoa.
A dor devia aterrar seu corpo. Isso deveria lembrá-la de que ela estava
viva.
— Casa, — ela respirou. — Eu quero ir para casa.
Ela não sabia mais onde era sua casa.
A paisagem se tornava mais reconhecível quanto mais ela olhava. Esses
campos eram os que ela conhecia como a palma da sua mão. Sorcha tropeçou
enquanto se movia, mas pelo menos ela estava se movendo.
Cada passo a levou mais e mais perto do refúgio que ela lembrava em
sua mente. Uma casa pequena, pitoresca, três andares de pedra e madeira e
risos.
Deuses, como ela precisava do riso.
Pedras esmagadas sob seus pés, cavando na carne calejada até que ela
sangrou. Ela se lembrava vividamente de outra ocasião em que seus pés
doíam. Sorcha havia se arrastado pelo mundo conhecido, apenas para retornar
a este lugar.
Galinhas cacarejavam. O ar tinha um cheiro doce, como pão fresco e mel
pegajoso. Sorcha estava na subida da colina além do bordel.
Ela inalou novamente e tremeu. O cheiro de pão ficou rançoso, o mel
tornou-se doentiamente doce e o cheiro de morte fez sua visão embaçar.
Havia tábuas nas janelas do bordel. Pregadas grosseiramente do lado de
fora, trancando sua família dentro. A porta lateral que leva ao galinheiro
também foi fechada com tábuas e as galinhas estavam vivendo na selva.
— Não, — ela gemeu em um chiado trêmulo. — Não, por favor, não
mais.
As lágrimas vieram como uma onda quebrando em sua cabeça. Ela caiu
de joelhos e rastejou para a casa de sua família, incapaz de ficar de pé, mas
precisando ajudá-los.
Ela conhecia os marcadores pintados nas janelas. Um besouro vermelho,
pintado ao acaso, como se o artista quisesse fugir da área o mais rápido que
pudesse. Homem inteligente. A praga do besouro do sangue estava propensa
a se espalhar se eles voassem.
Sorcha não se importou. Ela não queria que sua família morresse
sozinha, e ela não permitiria que eles morressem se ela pudesse.
Como uma velha, ela subiu na cerca e olhou para as paredes de
pedra. Lampejos de raiva, antigos e profundamente enterrados, a
alimentaram.
Ela deu um passo à frente. Cada movimento simples era tão difícil que
ela parecia ter esquecido de como andar. Passo a passo, turno a turno, ela
ergueu o pé e flexionou a coxa até pressionar as mãos contra as tábuas que
cobriam a porta.
A madeira atingiu sua testa quando ela se apoiou nela, mas ela não sentiu
a dor. Eles estavam lá. A batida de seus corações clamava por ela.
— Rosaleen, — ela sussurrou. — Briana, Papa... Qualquer um.
Ela não sabia quanto tempo ela ficou lá, pairando entre a vida e a morte,
a escolha e o silêncio. O calor se espalhou por seu corpo, envolvendo sua
cintura. Quase parecia que braços a seguravam contra um peito sólido e
respiravam vida em seu corpo.
A cura levaria tempo. Mas coragem, força, honra, essas eram coisas que
sempre estiveram profundamente arraigadas em sua alma.
Sorcha ergueu a cabeça e puxou com força para as tábuas.
— Briana! — Ela gritou. — Me deixem entrar!
Ela jogou seu peso para liberar as unhas. Cada empurrão forte torcia seus
ombros, mas a primeira prancha se soltou. Ela continuou a guinchar e gritar,
batendo contra a barreira que a mantinha longe de sua família.
Finalmente, uma voz veio do outro lado. Fraca, mas maravilhosa de
ouvir. — Sorcha?
— Sim, sim, Rosaleen sou eu! Estou entrando.
— Não entre! — Sua irmã tossiu. — Não é seguro.
— Estou entrando quer você queira ou não. O que aconteceu?
— Ficamos doentes.
— Papai está vivo?
— Mal.
— Alguém está morto?
— Não.
Sorcha soluçou de alívio. — Bom. Isso é muito bom, agora vou puxar esta
última placa e depois vou entrar.
— Você não pode. Você também vai ficar doente.
— Os besouros ainda estão voando?
— Não.
— Então eu não vou ficar doente. Eu não vou deixar você ou qualquer
outra pessoa morrer.
Ela puxou a última tábua e agarrou a maçaneta da porta. Não girou.
— Rosaleen, — ela gemeu. — Destranque a porta.
— Não vou deixar você morrer por mim.
— Eu não morrerei por ninguém.
— Você nos deixou.
— Eu não tive escolha. Eu estava tentando encontrar uma cura e não
consegui. — A garganta de Sorcha se fechou e sua voz ficou rouca. — Deixe-
me ajudá-la. Por favor, me dê um propósito novamente. Eu prometo que não
farei nada além de curar você.
O silêncio soou mais alto do que gritos. Sorcha prendeu a respiração e
contou os segundos que se passaram até ouvir o estalo de uma fechadura.
Rosaleen abriu a porta e espiou pela fresta. — Não está bonito aqui.
— Eu sei.
— Não somos mais bonitas.
— Você sempre será linda. Mesmo quando você estiver velha, grisalha e
enrugada.
A porta se abriu completamente. Feridas abertas se espalhavam pelo
corpo de Rosaleen, de onde eles tentaram extrair os besouros. Marcas de
queimadura marcavam suas bochechas e marcas circulares viajavam por seus
braços como correntes.
Sorcha passou os dedos como um fantasma sobre um deles. — O que é
isso?
—Os curandeiros disseram que sabiam como deter os besouros para
sempre. Não funcionou.
A resolução endireitou a espinha de Sorcha. Um besouro se moveu por
baixo da pele de sua irmã, viajando pela parte alta de sua clavícula. Ela poderia
parar com isso. Ela poderia ajudar, e Bran estava certo.
Ela havia encontrado seu propósito e se recusou a desistir.
Sorcha puxou a irmã para os braços, abraçando-a com força. —Estou
aqui, irmãzinha. Vou mantê-la viva.
—Onde você estava?
—O Outro Mundo.
—Com os Faes?
—Sim.
—Sempre pensamos que você era uma changeling.
Sorcha sorriu. —Eu não sou. Eu sou uma druida.
—Você vai voltar?
Sorcha olhou para a escuridão do bordel. As sombras se moveram,
agarraram-se aos corpos e suas irmãs entraram na sala. Seu pai saiu do quarto
arrastando os pés e encostou-se no batente da porta.
Suas roupas estavam penduradas em seus esqueletos. Bochechas vazias
e olhares assombrados a encaravam como se ela fosse sua salvação. Sorcha
sabia que ela era. Ela gastaria cada pedaço de sua energia curando-os.
Ela beijou o topo da cabeça de Rosaleen.
—Sim. Sim, estou voltando.