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Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil

Introdução à Sociologia

Rio de Janeiro
Direção Geral
Pr. Fernando Brandão
Coordenação Acadêmica
Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda
Coordenação do Centro de Desenvolvimento Ministerial e Missiologia
Pr. Samuel Moutta
Coordenação de Finanças
Juarez Solino
Coordenação de Comunicação e Marketing
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Coordenação de EAD
Pr. Prof. Dr. João Ricardo Boechat Pires de Almeida Sales

Editor Responsável Comitê de Apoio Técnico


Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda Luanda Clara Ribeiro Ferreira Figueiredo
Matheus Garcia Coelho
Editores Raphael Andrade de Godoy
Prof. Dr. João Boechat Viviane Paixão
Prof. Dr. Dionísio Soares Autor
Profa. Dra. Maria Celeste Castro Machado Prof. Dr. João Boechat
Profa. Dra. Teresa Akil Revisão
Prof. Dr. Valtair Afonso Miranda Profa. Cláudia Luiza Boechat Pires de Almeida Sales
Coordenação Editorial Arte
Pr. Jeremias Nunes dos Santos Oliverartelucas

Os artigos publicados são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem,


necessariamente, a opinião da Instituição e seu Conselho Editorial.

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20510-412 – Rio de Janeiro – RJ
Faculdade Batista do Rio de Janeiro Tel: (21) 2107-1819
Seminário Teológico Batista do Sul do Brasil www.seminariodosul.com.br
Palavra do Diretor
O Ensino a Distância se tornou, nos últimos tempos, uma enorme
ferramenta na disseminação do conhecimento. Dificuldades geográ-
ficas, econômicas, profissionais, culturais e de outras naturezas im-
pediam um grande número de pessoas de obter a formação necessá-
ria para buscar seus objetivos. Para isso, desde o marco legal da Lei
9.394, de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a modalidade
a distância tem se ampliado para todos os níveis de ensino.
A Faculdade Batista do Rio de Janeiro, do Seminário Teológico Ba-
tista do Sul do Brasil, não poderia ficar de fora desta que, muito mais
que uma tendência, é uma enorme necessidade em um mundo cada
vez mais complexo, uma vez que promove interconexões, ainda que
as distâncias sejam mantidas.
Por meio da modalidade a distância o aluno tem a possibilidade
de administrar seu próprio tempo e gerenciar seu estudo de acordo
com sua disponibilidade. Ele se torna, assim, responsável principal e
primeiro da sua própria aprendizagem.
O ensino a distância não isola, necessariamente, o aluno do pro-
fessor; mesmo distanciados fisicamente, eles se conectam por meio
de ferramentas de interação presentes em nossa Plataforma de Ead.
O Seminário do Sul - instituição centenária em formação de líderes
para o ministério cristão -, por meio da sua Faculdade, coloca à dispo-
sição dos vocacionados mais uma opção significativa para o desen-
volvimento de seus talentos e capacidades.
Seja bem-vindo ao Núcleo de Ensino a Distância de nossa Instituição.

Pr. Fernando Macedo Brandão


Diretor Geral

3
Sumário
Palavra do Diretor ..................................................................................3

Apresentação..........................................................................................5

Introdução..............................................................................................9

CAPÍTULO 1: Formação da Sociologia como ciência..........................12

CAPÍTULO 2: Karl Marx.........................................................................26

CAPÍTULO 3: Émile Durkheim..............................................................78

CAPÍTULO 4: Max Weber.....................................................................126


Apresentação
Todo aprendizado é um processo, um caminho. Trilhar o caminho
do aprendizado sobre um assunto qualquer não transforma o indiví-
duo em um ser munido de mais informações. Não apenas isto, o estu-
do tem a capacidade de transformar o indivíduo em um ser com maior
capacidade de conhecer e analisar a si mesmo, o outro e o mundo. Tal
conhecimento este indivíduo possui não tem por objetivo uma crítica
vazia, seja sobre ele, sobre o outro ou sobre o mundo, mas objetiva
transformá-lo em todos os níveis. Assim, o estudo e o aprendizado
não são instrumentos de julgamento, como se fosse uma crítica vazia,
mas de transformação.
A fim de contribuir com a capacitação do indivíduo, este material
visa discutir sobre a área da ciência chamada Sociologia. Durante o
estudo, o leitor poderá perceber que a Sociologia é um campo amplo,
com diferentes focos e métodos. Contudo, o objetivo da Sociologia é
estudar a interação humana, a sociedade e os impactos que causam
sobre o indivíduo, como também o impacto que o indivíduo causa
sobre essa sociedade.
Para compreendermos melhor esta ciência, o primeiro capítulo
discutirá o Histórico da Sociologia, analisando as razões pelas quais
a Sociologia se transforma em ciência e como ela se organiza. O se-
gundo capítulo analisará a Sociologia de Karl Marx (1818-1883), ob-
servando suas contribuições para o campo da Sociologia. O terceiro
capítulo discutirá a Sociologia de Emile Durkheim (1858-1917), de-
monstrando como sua análise da sociedade colabora para o enten-
dimento desta. Ademais, o capítulo quatro analisará a sociologia de
Max Weber e suas interpretações da vida social.

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Portanto, esperamos que este estudo possa enriquecer seu conhe-
cimento, capacitando-o para melhor trilhar o caminho do aprendi-
zado e gerando novas perguntas que o levem mais distante de onde
você está hoje.

Atenciosamente,
Prof. João Boechat

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Introdução

A análise das relações humanas não é fruto apenas de uma curio-


sidade ou desejo. De fato, analisar a realidade, sob diferentes óticas,
possibilita, ao que estuda, conhecer as diferentes necessidades, an-
siedades e interesses dos indivíduos, como também propor soluções
e resultados para tais necessidades e interesses. Imagine, por exemplo,
uma pessoa, mãe de um menino, que faz parte de uma igreja. Pense, por
exemplo, que durante uma oração, ela diz: “Deus, cure meu filho. Aben-
çoe o médico, para que ele lhe dê a medicação correta”. Observando esta
oração, podemos perceber não apenas uma necessidade ou interesse
demonstrado por esta mãe, a cura do filho, mas também a solução que
ela busca para o problema, ou seja, a interferência de Deus no diagnós-
tico e medicação do profissional. Portanto, este simples exemplo ajuda
a perceber como as relações dos indivíduos com as diversas esferas da
vida permitem entender diferentes interesses, necessidades e soluções
para a realidade.
Desta forma, o campo do conhecimento é dividido em diferentes
ciências que objetivam analisar a realidade sob diferentes olhares.
Assim, pode-se definir Ciência como uma sistematização de conhe-
cimentos, isto é, um conjunto de proposições logicamente relaciona-
das sobre o comportamento de certos fenômenos. “A ciência é todo
um conjunto de atitudes e de atividades racionais, dirigidas ao siste-
mático conhecimento com objeto limitado, capaz de ser submetido à
verificação.” (LAKATOS, 1990:19)
Assim, a ciência distingue-se em relação a diferentes níveis do co-
nhecimento. Tem-se, por exemplo, as Ciências Físicas, que cuidam do

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conhecimento inorgânico, tais como a física, química, astronomia e ci-
ências da terra; Ciências Biológicas, que versam sobre o conhecimento
orgânico; e as Ciências Sociais que analisam o conhecimento superor-
gânico, ou seja, aquele que é observado no mundo dos seres humanos,
e é resultado da interação entre eles. Pode-se usar como exemplo desta
interação a linguagem, a religião, os hábitos culturais e a ética.
Para analisar esta interação do homem com a sociedade, tem-se:
a Antropologia Cultural, o Direito, a Economia, a Política, a Psicologia
Social e a Sociologia. Este material foca, justamente, nesta última, a
saber, a Sociologia.
A Sociologia objetiva entender as relações sociais humanas, anali-
sando as dinâmicas existentes na sociedade e os grupos que a com-
põem, observando os conflitos e conexões destes grupos. O sociólogo,
portanto, procura entender o funcionamento da sociedade e de seus
grupos. O ambiente escolar, por exemplo, gera expectativas e comporta-
mentos diferentes daqueles que o indivíduo terá em um clube. Entender
o funcionamento destes grupos é fundamental para entender o próprio
indivíduo.
Pode-se, então, entender a sociologia como: a) o estudo da socie-
dade; b) um estudo social envolvendo o estudo das vidas de pessoas,
grupos e sociedades; c) o estudo do comportamento humano como
seres sociais; d) o estudo científico das agregações sociais e as formas
pelas quais os indivíduos se movimentam durante suas vidas nestas
agregações.
Portanto, define-se a sociologia como o estudo das relações so-
ciais humanas e suas instituições1. O objeto, ou assunto, da sociolo-

1  Instituição deve ser entendido como tudo aquilo que é capaz de gerar algum tipo
de comportamento. São mecanismos que regulam a ação do indivíduo dentro de
uma comunidade. Por exemplo, a família é uma instituição social, porque ensina o
indivíduo a se comportar de uma certa forma. A religião também é uma instituição,
porque, com a noção de certo/errado, santo/profano, por exemplo, faz com que os
indivíduos se comportem de uma certa forma.

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gia é diverso: varia do crime até a religião, de família ao Estado, de di-
visões de raça e classe social até as crenças compartilhadas em uma
cultura, passando pela estabilidade social às mudanças radicais em
sociedades inteiras. Unificando o estudo destes diversos tópicos, o
propósito do estudo sociológico é entender como a ação e a consci-
ência humana modelam e são modeladas pelas estruturas sociais e
culturais que as cercam2.
Sociologia é um campo que analisa e explica questões importantes
da vida pessoal, da comunidade, e do mundo como um todo. Em um ní-
vel pessoal, a sociologia investiga as causas e as consequências sociais
de questões como encontro romântico, identidade de raça e gênero,
conflito familiar, comportamento desviante, envelhecimento e fé religio-
sa. Por exemplo, como que a relação com seus pais influencia o relaciona-
mento com o marido ou esposa. Em um nível societal, ou comunitário, a
sociologia busca explicar questões como crime e lei, pobreza e riqueza,
preconceito e discriminação, escolas e educação, empresas, comunida-
des urbanas, e movimentos sociais. Por exemplo, como que a religião do
indivíduo é influenciada pela sua condição social, ou seja, é possível es-
tabelecer uma relação entre interesses religiosos e capital econômico?
Em um nível global, a sociologia estuda fenômenos globais, tais como
crescimento populacional, imigração, guerra e paz, e desenvolvimento
econômico. Por exemplo, qual o efeito dos direitos humanos para a vida
de trabalhadores terceirizados na América Latina.
Os sociólogos enfatizam a cuidadosa reunião e análise das evidên-
cias a respeito da vida social a fim de desenvolver e enriquecer o en-
tendimento dos processos sociais. Os métodos de pesquisa que os
sociólogos usam são variados. Sociólogos observam o dia-a-dia dos
grupos, conduzem surveys de larga escala, analisam dados dos cen-
sos, estudam interações gravadas em vídeo, interpretam documen-

2  Para mais informações, veja o site da University of North Carolina, Sociology De-
partment. Ver: https://sociology.unc.edu/undergraduate-program/sociology-ma-
jor/what-is-sociology/

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tos históricos, entrevistam participantes de grupos, e conduzem ex-
perimentos em laboratórios. Lembre-se, por exemplo, das pesquisas
de intenção de voto que avaliam as eleições vigentes. Através da apli-
cação de questionários em um certo número de pessoas, é possível de-
senvolver uma estatística de quão votado certo candidato deverá ser.
Os métodos de pesquisa e as teorias desenvolvidas pela Sociolo-
gia lançam uma luz sobre os processos sociais que moldam a vida
humana, os problemas sociais e possibilidades no mundo contempo-
râneo. Quando entendemos melhor estes processos sociais, também
é possível compreender mais claramente as forças que moldam as
experiências pessoais e os resultados destas forças na vida do indi-
víduo. A habilidade de observar e entender a conexão entre as forças
sociais amplas e as experiências pessoais é extremamente relevante
para o desenvolvimento de ideias e práticas capazes de transformar
uma sociedade complexa e mutável.
Estudar a Sociologia permite ao indivíduo pensar criticamente a
respeito da vida humana social e quão importante é perguntar so-
bre importantes questões de pesquisa. O estudo da Sociologia capa-
cita desenvolver projetos de pesquisa relevantes, coletar e analisar
dados empíricos, e formular e apresentar o resultado das pesquisas.
De forma geral, a Sociologia possibilita ao indivíduo pensar, avaliar
e comunicar claramente, criativamente e efetivamente. Essas habili-
dades possuem grande valor para uma extensa gama de chamados,
vocações e profissões3.
Portanto, a Sociologia é uma disciplina que expande nosso enten-
dimento e capacidade analítica das relações sociais humanas, cultu-
ras e instituições, que profundamente organizam e influenciam nossa
vida e a história humana.

3  Caso queira entender um pouco mais sobre essa relação da Sociologia com o
mercado de trabalho, você pode dar uma olhada no site da Universidade da Carolina
do Sul, que auxiliou no desenvolvimento desta introdução. Disponível em: https://
sociology.unc.edu/undergraduate-program/sociology-major/what-is-sociology/

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Depois de analisarmos, introdutoriamente, o que significa Socio-
logia e sociólogo, trataremos da história da Sociologia e como ela se
transformou em uma ciência.

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CAPÍTULO 1
Formação da Sociologia como ciência

1.1. Os Estudos das relações humanas antes da Sociologia como


ciência4
É certo que a análise sobre as relações humanas e as discussões
sobre as relações sociais são tão antigas quanto a própria formação
das sociedades. Já na Grécia Antiga, o foco estava no entendimento
dos preceitos religiosos, das leis e das teorias sobre o Direito. Impor-
tantes pensadores e filósofos como Platão (429 a.C.-341 a.C.) e Aristó-
teles (384 a.C.-322 a.C.) foram os primeiros a tentar sistematizar uma
análise da vida social baseada na razão e separada da religião, bus-
cando entender a lógica e a ordem por detrás dos regimes políticos,
econômicos e sociais, como por exemplo a questão do Bem, do Mal, e
da melhor forma de agir em sociedade.
Já na Era Cristã, mais especificamente na Idade Média Europeia, a
religião se tornou uma esfera que exercia forte controle sobre as de-
mais esferas, tais como a arte, política e a ciência. Isto quer dizer que,
durante esta era, a Igreja Católica, representante da religião cristã, ti-
nha autoridade para determinar o que podia ou não ser publicado,
exposto ou feito. Mesmo assim, importantes nomes como Agostinho
de Hipona, no século IV, ou Tomás de Aquino, no século XIII, reto-

4  Caso você esteja interessado em saber mais sobre a Sociologia no período ante-
rior a instauração desta como ciência, dê uma lida no livro Sociologia Geral, organi-
zado pela professora Eva Maria Lakatos, Ed. Atlas, SP, 1990.

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maram processos e ideias de Platão e Aristóteles, a fim de analisar
concepções jurídicas e sociológicas ou ainda manifestar-se sobre as
relações entre os homens.
Durante a Renascença, que ocorre entre os séculos XIV e XVI, algu-
mas obras importantes que relacionavam política e economia surgi-
ram e influenciaram os estudos das relações humanas. Como exem-
plo, tem-se a obra Utopia (1516) de Thomas More (1478-1535), como
também Cidade do Sol (1602) de Campanella (1568-1639). A partir de
então, várias obras de diversos autores surgem no intuito de discutir
a relação humana em várias esferas, abordando diversas questões do
convívio social. Para tentar justificar, por exemplo, a necessidade de
haver um Estado que controle o uso da força para que os homens não
vivam em um estado de constante caos social, Thomas Hobbes (1588-
1679) escreve o Leviatã (1651). Buscando demonstrar as estratégias
para unificar um território, construir um domínio único e manter o
controle e o poder, Nicolau Maquiavel (1469-1527) escreve O Príncipe
(1513). Ou ainda, para desenvolver a ideia de que os seres humanos
possuem direitos naturais, divinamente entregues, tais como, a vida,
a liberdade e a propriedade privada, e que deveria haver uma forma
de proteger esses direitos, John Locke (1632-1704) publica Ensaios
sobre o Entendimento Humano (1689).
Os exemplos acima nos ajudam a perceber que, mesmo antes da
Sociologia ser organizada como uma ciência autônoma, o interesse
em analisar áreas da vida, como economia, política e valores, não
ocorria só por desejo, mas por necessidade de entender e propor so-
luções para a realidade que se apresentava.
Ainda antes da estruturação da Sociologia como ciência, no século
XVIII, várias obras analisando diversas áreas da vida social surgiram.
Destacam-se os trabalhos de Montesquieu (1689-1775), “O Espírito
das Leis” (1748), que analisavam o papel das leis e dos poderes polí-
ticos na sociedade, propondo a divisão política em três poderes, Exe-
cutivo, Legislativo e Judiciário, a fim de evitar a tirania. Além disso,

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podemos citar o trabalho de Adam Smith (1723-1790), A Riqueza das
Nações (1776), que analisava a natureza e a causa da riqueza das na-
ções, sendo um marco no desenvolvimento do pensamento econô-
mico. Ainda, destaca-se o trabalho de Jean Jacques Rousseau (1712-
1778), do Contrato Social (1762); nele, o autor expõe suas ideias de
acordo entre os indivíduos, para criarem uma sociedade onde seus
estes possam atingir o bem-estar. Outros tantos autores, como Hegel
(1770-1831), Ricardo (1772-1823) e Mathus (1776-1834) desenvolvem
importantes análises que auxiliarão na fundamentação e desenvol-
vimento do que viria a ser, no século XIX, a Ciência Sociológica, ou a
Sociologia.

1.2. As Transformações da Modernidade


Conforme apontado anteriormente, a análise das relações huma-
nas, com o enfoque em diferentes áreas, é fruto do estudo de diversos
estudiosos, autores e filósofos, desde a Grécia Antiga. Contudo, a So-
ciologia só se organiza como ciência, no século XIX, na Europa.
Para melhor compreendermos o surgimento da Sociologia, é ne-
cessário analisarmos o contexto de tal momento histórico, marcado
por mudanças que ocorrem em diversos níveis: social, econômico e
político.
A partir do século XVI, diversas mudanças passam a ocorrer na Eu-
ropa. Mudanças que serão significativas para o surgimento da Socio-
logia, cerca de três séculos depois. No nível individual, novas ideias
sobre o desenvolvimento humano são formadas, tais como infância e
velhice. Ainda, as escolhas de pessoas como amor romântico e o casa-
mento por escolha passam a ser valorizados. Certamente, tais noções
são óbvias para aqueles que nasceram nos últimos duzentos anos.
Até a Modernidade, no entanto, a regra era que casamentos ocorres-
sem por interesse familiar, econômico ou político, como exemplo,
para unir dois reinos, ou para quem pagasse maior dote pela filha.

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Nas relações econômicas, o mundo é marcado pelo surgimento de
uma nova forma de relação econômica, que tinha como foco o lucro,
que passa a ser dominante, isto é, o Capitalismo. Como consequên-
cia, surgem novas classes sociais, ou seja, novas formas de organizar
e classificar os indivíduos. De forma geral, aqueles que possuíam os
meios de produção, que possuíam o necessário para produzir alguma
coisa, faziam parte da Burguesia. Por outro lado, os indivíduos que
não tinham a ferramenta para a produção, que apenas vendiam a for-
ça de trabalho, ou seja, vendiam seu corpo, sua força para trabalhar,
faziam parte do Proletariado. Imagine um senhor que possuía uma fa-
zenda onde plantava café. A terra, onde o café era plantado, pertencia
àquele senhor. A terra era o meio de produção, porque através dela
que se produzia o café. A família, que trabalhava para ele, plantando
e colhendo o café, não possuía a terra, nem era dona dos grãos de
café. A família vendia sua força de trabalho para conseguir sobreviver.
Portanto, o senhor fazia parte da Burguesia, enquanto a família fazia
parte do Proletariado.
Nas relações sociais, o mundo é marcado por uma intensa urba-
nização, com o surgimento de grandes centros urbanos, com grande
densidade populacional e, como consequência, novos problemas a
serem resolvidos, como novas doenças, periferias e criminalidade. A
nova organização urbana é, também, resultado da construção das fá-
bricas, uma vez que os indivíduos, que nelas trabalhavam, tentavam
morar próximos, para diminuir os gastos e otimizar o tempo. Assim,
apareciam também os comércios e serviços, para atender à nova po-
pulação, o que causou crescimento populacional em determinada
área.
Nas relações políticas, surge uma nova forma de organizar a vida
em um determinado território, isto é, o Estado. Na visão clássica do
Estado, como para Hobbes e Maquiavel, os indivíduos são dominados
por seus desejos e querem poder, ou seja, querem ter a capacidade
de fazer com que o outro faça sua vontade. Por isso, estes homens

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quando não têm um poder sobre eles, vivem em um ambiente de
guerra, de todos contra todos. A solução, então, é o Estado, o único
que tem o uso legítimo da força, através da polícia, do exército e das
leis, fazendo com que os indivíduos usem outros tipos e formas de se
relacionarem, que não a força bruta.
Nas relações religiosas, a Igreja Católica não é mais a única a dominar
as relações dos homens com Deus. Novas igrejas nascem após a Refor-
ma Protestante (1517), criando um pluralismo religioso e abalando os
poderes religiosos, dando aos indivíduos e aos Estados novas escolhas e
formas de organização.
Essas mudanças são marcadas por uma série de Revoluções e Re-
formas que demonstram a força que tais transformações causaram
na sociedade. No âmbito religioso, a Reforma Protestante (1517) mar-
ca o fim do domínio religioso da Igreja Católica no Ocidente e o início
de uma pluralização religiosa. No âmbito econômico-social, as Revo-
luções Inglesa (1640 e 1688) e Francesa (1789) marcam a ascensão da
burguesia e o fortalecimento do capitalismo. Ainda, a Revolução In-
dustrial (1760) marca a transição do processo de produção em manu-
fatura, para a produção com máquinas, fabricando novos produtos e
utilizando novas matérias-primas, como o carvão. Há, ainda, o impac-
to do Iluminismo (séculos XVII e XVIII) nas artes, filosofia e na ciência,
que influenciam a forma de pensar, criticar e entender a sociedade.
Todas estas transformações e mudanças lançaram as novas bases
e alicerces da Modernidade, a saber, a) o racionalismo, o uso da razão
para explicar a sociedade e a relação dos indivíduos; b) o empirismo,
a ciência como novo discurso dominante no lugar do discurso reli-
gioso; c) o capitalismo, uma nova forma de organizar a vida social e
econômica; e d) o individualismo, o ser-humano passa a ser o centro
e a maior preocupação dos estudos e análises.
Por outro lado, tais mudanças e transformações, causam, um certo
“caos” social, marcado por diversas crises na vida material, cultural e

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moral, abalando os antigos pilares, nos quais a sociedade se baseava,
e gerando novos interesses e necessidades sociais. Assim, em meio a
tantas crises e mudanças, a Sociologia surge como forma de explicar e
propor soluções para o “novo mundo” que surgia.

1.3. Primeiras Sociologias e a relação caos x ordem5


As grandes Revoluções e seus pilares, como o ideal de liberdade,
individualismo e anticlericalismo, não geraram apenas reações de
concordância e rompimento com a ordem anterior. De fato, essas mu-
danças causaram reações que criticaram a “nova” sociedade, apon-
tando todos os problemas e crises causados pela nova ordem, bem
como reafirmando a proeminência da sociedade sobre o indivíduo,
e não o contrário. Nomes como Edmund Burke (1729-1797), Joseph
de Maistre (1754-1821) e Louis de Bonald (1754-1840) desejavam uma
sociedade estável, hierarquizada, fundamentada em valores religio-
sos e familiares antigos. Na verdade, estes autores desejavam o re-
torno a uma forma de organização social que obteve seu auge nos
tempos medievais e vinha sendo enfraquecida pelas novas bases da
sociedade. O intuito era, assim, exaltar uma sociedade que conside-
ravam estável, ordenada, focada em um processo de trabalho arte-
sanal e manufatureiro. Toda esta forma social havia sido terminada
pelo novo meio de produção, nova estrutura social e econômica e
pluralismo religioso. Assim, a nova sociedade era criticada por sua
ausência de moralidade e solidariedade entre os indivíduos, uma vez
que priorizada o individualismo, fazendo com que o homem se tor-
nasse desprovido de valores religiosos, morais e coletivos. Por outro
lado, a organização social antiga era exaltada como sendo capaz de
manter a ordem e a boa relação entre os homens.

5  Caso você deseje entender um pouco mais sobre as primeiras sociologias, dê


uma olhada no livro Um Toque de Clássicos, da professora Tania Quintaneiro. Ed.
UFMG, BH, 2003.

17
Para estes pensadores, tal crise moral e solidária era fruto de um
enfraquecimento das instituições que protegiam e garantiam a ordem,
como a Igreja, a família e a produção concentrada. O enfraquecimento
destas instituições fez romper a corda que mantinha unida a sociedade
e os indivíduos. Portanto, defender a tradição era defender a ordem.
Mesmo com alguns pensadores defendendo a tradição e a antiga
organização social, a Sociologia se torna defensora da modernidade,
entendendo que o progresso é parte inevitável das relações humanas.
Assim, mesmo antes de se tornar uma ciência estruturada, a teoria
social foi marcada por alguns pensadores. O primeiro deles, Claude
Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon (1760-1825), percebeu as
mudanças da sociedade como algo positivo. Saint-Simon percebeu
que uma das características da sociedade é, justamente, a existência
de classes sociais com interesses conflitantes. Para ele, nesta nova
sociedade, os indivíduos que, anteriormente, eram considerados im-
portantes, como a família real, não fariam falta se desaparecessem,
pois neste novo mundo, proprietários das indústrias e os trabalhado-
res eram os que realmente importavam.

A prosperidade da França não pode ser determinada mais que por


efeito e como consequência do progresso das ciências, das belas
artes e das profissões e ofícios. Mas os marechais da França, os pre-
feitos e os proprietários ociosos não trabalham em absoluto para
o progresso das ciências, não contribuem para tal progresso, antes
o freiam, pois estão se esforçando em prolongar o predomínio que
até agora vêm exercendo as teorias conjeturais sobre os conheci-
mentos positivos... são prejudiciais porque empregam seus meios
pecuniários de um modo não diretamente útil para as ciências, as
belas artes e as artes e ofícios.6

6  Saint-Simon, H. (2002b). Parábola. In A. Teixeira (Ed.), Utópicos, heréticos e maldi-


tos: Os precursores do pensamento social de nossa época (pp. 57-61). Rio de Janei-
ro, RJ: Record. (Original publicado em 1810)

18
Para Saint-Simon, a característica mais importante da sociedade
moderna era o progresso. Para isso, acreditava o industrialismo como
domínio da natureza, sendo este domínio o que permite o avanço da
ciência. Saint-Simon nomeou a nova ciência de Fisiologia Social, com
a característica de adotar para as ciências humanas o método positi-
vo das ciências naturais.
A sociedade não é um aglomerado, ou uma união de seres vivos
onde as ações não possuem alguma finalidade, mas é um ser anima-
do, onde as partes possuem funções distintas e caminham para o pro-
gresso. A base desta sociedade é a produção material, a divisão do
trabalho e a propriedade. As sociedades possuem ideias comuns e os
indivíduos que as compõem se agradam em sentir laços morais que
garantem a união com os outros. Deste modo, cada sociedade teria
uma moral e uma estrutura que garantissem essa união. Na socieda-
de anterior, o poder pertencia aos guerreiros, e aos que tinham maior
força, unidos ao poder da Igreja. Já na nova sociedade que surgia, ou
seja, na sociedade industrial, a estrutura estaria ligada à produção e
ao trabalho; o poder teológico seria substituído pela razão e pela ci-
ência positiva; a verdade passaria a ser fruto da experimentação e se
fundaria na observação. Os interesses que movem este novo mundo
seriam os interesses da produção, visando a satisfação de todos os
seus indivíduos.
Ademais, a nova sociedade não seria mais uma sociedade de no-
bres, guerreiros e reis, mas sim, de trabalhadores. Todos deveriam co-
operar para a felicidade comum. Os que não produzissem, ou seja, os
ociosos, deveriam ser excluídos, para que cada indivíduo recebesse
segundo suas capacidades e cada capacidade segundo suas obras. A
ciência social positiva iria indicar quais leis iriam coordenar as ações
dos indivíduos e apontar o desenvolvimento, permitindo uma organi-
zação racional da sociedade.
Assim, podemos definir as primeiras sociologias, ou pensamen-
tos sociais, como uma tentativa de analisar a realidade deste novo

19
mundo, marcada pelo caos, social e moral, contradições e mudan-
ças. O objetivo e desejo dos primeiros pensadores era justamente
propor uma forma de estabilidade, baseados na crença do progres-
so. As ideias de Saint-Simon foram fundamentais para a formação da
ciência sociológica, influenciando os principais sociólogos clássicos,
como Marx e Durkheim.

1.4. A Sociologia como ciência


O responsável por cunhar o termo “Sociologia”, e que ficou co-
nhecido como o pai desta ciência, foi o francês Auguste Comte (1798-
1857), que fora secretário de Saint-Simon por algum tempo. Comte
foi o propagador do método positivo de conhecimento das socieda-
des, que pode ser resumido na frase: conhecer para prever, prever
para controlar.
De acordo com o método positivo, ou Positivismo, o mundo so-
cial, assim como o mundo natural, é composto por leis que podem ser
conhecidas. Por exemplo, no mundo natural, dentro das condições
normais de temperatura e pressão, se um carro mantiver uma velo-
cidade de 50 km/h, percorrendo uma distância de 100 km, chegará
ao seu destino em 2 horas. Isto pode ser medido pela lei que diz que
a velocidade média é igual à distância percorrida pelo tempo do per-
curso. Esta é uma lei. Através desta lei, conhecendo a velocidade e a
distância, podemos prever o tempo que levará, podendo controlar as
ações e as expectativas.
De acordo com o pensamento positivista, o mundo social também
é composto por leis, como o mundo natural. Se o sociólogo observar o
mundo, vai ser capaz de identificar os padrões, podendo prever as ações
dos indivíduos e controlar a relação destes, a fim de manter a ordem e
ocasionar o progresso. Os positivistas afirmam que tem “por princípio, o
amor; por meio, a ordem; por fim, o progresso”.

20
Para Comte, era fundamental para se ter ordem e progresso, que
são condições fundamentais da civilização moderna, conhecer as leis
sociais, para poder prever racionalmente os fenômenos e agir com
eficácia; explicar e antever. Comte tinha preocupação com a crise de
sua época, que, na sua opinião, era causada pela desorganização so-
cial, moral e ideal. A solução para a crise estava na constituição de
uma teoria apropriada, a Sociologia, capaz de organizar o caos vigen-
te. A nova teoria levaria a sociedade ao estado positivo, ou seja, ao
nível mais avançado da ciência e ordem social. Para alcançar este ní-
vel, era preciso melhorar e desenvolver os métodos de investigação,
para descobrir qual era a ordem contida na história, ou seja, quais os
padrões existentes na sociedade de onde os indivíduos criariam as
leis que organizariam a vida social.
A fim de reorganizar a sociedade, era preciso reconstruir as opi-
niões e os costumes por meio da sistematização dos pensamentos
humanos. Por exemplo, a moral, noções de certo e errado, de bem
e mal deveriam ser decididas pelos sociólogos e estudiosos, que se
aplicariam a conhecer os padrões sociais e desenvolver as leis para a
melhor organização da sociedade. A tarefa do Positivismo seria estru-
turar as leis, manter a ordem e garantir o progresso.
Comte rejeitava a ideia de que a sociedade é uma simples forma-
ção de indivíduos, pois cria que, na verdade, o ser humano é uma for-
mação da sociedade. Certamente, a sociedade é composta por indi-
víduos, mas ela não é uma simples soma de indivíduos. Por exemplo,
a língua que a pessoa fala, no caso o português no Brasil, não é uma
coisa que o indivíduo inventa quando nasce, mas é algo que lhe é im-
posto, lhe é ensinado pela sociedade em que ele vive. Para o Positi-
vismo, “o homem propriamente dito não existe, existindo apenas a
Humanidade, já que nosso desenvolvimento provém da sociedade, a
partir de qualquer perspectiva que se o considere”7. Comte acredita-

7  COMTE. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo, p. 77.

21
va que “ninguém possui o direito senão de cumprir sempre o seu de-
ver”. Portanto, a ordem se baseia no consenso moral, na autoridade,
não na vontade individual ou revolução.
Devido à necessidade de ordem, Comte entendia a necessidade
da criação de uma religião social, isto é, uma forma de fundamentar
a nova ordem social. De acordo com o Catecismo Positivista, é uma
religião sem Deus e sem teologia, onde a humanidade toma o lugar
da divindade e o altruísmo, o lugar do egoísmo, aplicando a fraterni-
dade na vida social, demonstrando o quão importante a moral é para
a ordem social. Esta moral seria forte o suficiente para amparar a vida
social e gerar solidariedade entre os indivíduos.
Na tentativa de formar uma ciência sociológica, com objeto e mé-
todo próprios, diversas hipóteses sobre a vida social e possíveis leis
foram desenvolvidas. Na busca de trazer as ideias das ciências exa-
tas para as ciências humanas, a teoria evolucionista exerceu grande
influência sobre a Sociologia e a Antropologia. “A sociedade era vis-
ta como um sistema vivo, dotado de funções e relações ordenadas,
como uma estrutura que unifica seus componentes diferenciados,
garantindo a continuidade harmônica do todo em atividade” (QUIN-
TANEIRO, 2003).
Na corrente social-evolucionista, destaca-se o sociólogo Herbert
Spencer (1820-1903), sociólogo que difundiu o darwinismo social,
isto é, a teoria do evolucionismo biológico aplicada à compreensão
dos fenômenos sociais, tais como evolução, seleção natural, luta e
sobrevivência. Para ele, “uma sociedade não é mais do que um nome
coletivo empregado para designar certo número de indivíduos. É a
permanência das relações existentes entre as partes constitutivas que
faz a individualidade de um todo e que a distingue da individualida-
de das partes8”. Os indivíduos, unidades elementares do sistema, são
organismos sujeitos às leis biológicas e, portanto, são também sub-

8  SPENCER. O que é uma sociedade? p. 147.

22
metidos aos arranjos e instituições reguladoras da convivência social
que estariam no mundo natural. Assim, como ocorre no mundo bioló-
gico, a sociedade é um organismo e apresenta um crescimento contí-
nuo. Enquanto ela cresce, as partes se tornam mais diferenciadas, as
funções mais diferentes e a estrutura mais complexa. Contudo, à me-
dida que as partes se relacionam, elas se tornam mais dependentes
umas das outras, e à proporção que a dependência mútua é formada,
passam a compor a sociedade da mesma forma que as partes de um
corpo funcionam. Os indivíduos buscam, então, se associar na con-
quista da própria felicidade ou pelo interesse que possuem.
No século XIX, Karl Marx (1818-1883) foca na compreensão do ser
humano, buscando entender que os move, e como as suas necessida-
des materiais se relacionam com os diferentes processos de produção
e formas de satisfazer tais necessidades pela história. Marx analisou
como o trabalho está diretamente ligado ao valor do homem e como
seu lugar na cadeia produtiva indica se este indivíduo domina as de-
mais áreas da vida social, como religião, política e cultura. Para ele,
cabe ao indivíduo conhecer sua relação com a cadeia de produção
a fim de ser capaz de transformá-la. O tema da desigualdade social
ganha importância em Marx, e também, uma nova solução.
Ainda no século XIX que a Sociologia começa a se estruturar como
disciplina acadêmica e requerer novos métodos de pesquisa e análi-
se. Grande responsável pela transformação da Sociologia em ciência
acadêmica, Émile Durkheim (1858-1917) dedicou grande parte de seu
trabalho à delimitação e determinação do método de pesquisa que
deveria ser usado pela Sociologia.
Vivendo em uma época de intensa instabilidade e guerra civis,
Durkheim analisou uma sociedade europeia pouco integrada e com di-
versas contradições, marcada pelo fim das instituições antigas, como
a religião e a família nobre, que mantinham a união social. Por isso,
Durkheim se empenhou em entender novas formas de solidariedade e
de consenso, capazes de manter a sociedade coesa e unida. Em concor-

23
dância com Saint-Simon e Comte, acreditava na necessidade do surgi-
mento de uma religião social, que pudesse ordenar a relação dos indiví-
duos, através de uma moral social moderna. Como seus precursores, foi
influenciado pelo positivismo, utilizando esta corrente para desenvolver
um método de investigação e análise, que cria ser o mais adequado para
entender a sociedade, com isso objetivava fazer da Sociologia uma ciên-
cia acadêmica, capaz de propor soluções para um mundo mergulhado
no caos.
Por fim, na Alemanha do século XIX, Max Weber (1864-1920) se
dispõe a analisar uma sociedade que, diferentemente da França e da
Inglaterra, passava por uma unificação política e industrialização tar-
dias, não existindo uma burguesia forte, que pudesse levar a frente
um processo de industrialização. Só no fim do século XIX, por volta
de 1870, os grandes proprietários de terra conseguiram unificar os
vários pequenos territórios em um único Estado. Diferentemente da
França e Inglaterra, a unificação foi realizada pelas mãos do príncipe
Otto von Bismark, que estruturou um forte sistema de hierarquia e
autoridade. A burguesia, que nos outros países tinha sido a força pro-
pulsora da mudança, na Alemanha perdeu espaço social e político.
Nesse contexto, Weber analisou uma sociedade em mudança, porém
com particularidades e diferenças para o restante da Europa, que não
deixou de sofrer as consequências de um mundo moderno e em cons-
tante transformação.
Foi a partir dos trabalhos de Marx, Durkheim e Weber, que a Socio-
logia se transforma em um campo do conhecimento com métodos
e objetivos próprios, analisando os frutos da interação humana e as
consequências dessa interação para a sociedade e para o indivíduo. A
razão se torna o instrumento base para orientar as análises e estudos,
determinando não só as perguntas, como as respostas.

Com o tempo, nenhum tema seria considerado menos nobre


ou escaparia à ânsia de entendimento: o Estado, as religiões, os

24
povos “não-civilizados”, a família e a sexualidade, o mercado, a
moral, a divisão do trabalho, os modos de agir, as estruturas das
sociedades e seus modos de transformação, a justiça, a bruxaria,
a violência... O olhar sociológico continuará à espreita de novos
objetos. (QUINTANEIRO, 2003)

A Sociologia surge, portanto, como uma ciência que sofre continu-


amente a influência de seu contexto, enquanto busca influenciá-lo.
Desta forma, porque debate as causas e busca soluções para as ne-
cessidades que emergem em diferentes épocas e contextos, a Socio-
logia não está livre de contradições e dúvidas, pois a própria realida-
de social não existe sem a complexidade que a cerca.

1.5. Referências
COMTE, A. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. In
__. Comte. São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores
ROUSSEAU, J. J. Discurso sobre a desigualdade. In __. Rousseau.
São Paulo: Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores.
ROUSSEAU, J. J. Do contrato social. In __. Rousseau. São Paulo:
Abril Cultural, 1980. Coleção Os Pensadores.
SAINT-SIMON, Henri. Parábola. In: DESANTI, Dominique. Los so-
cialistas utópicos. Tradução de Ignacio Vidal. Barcelona: Anagrama,
1973.
SCLIAR, Moacyr. A paixão transformada. História da medicina na
literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SPENCER, H. O que é uma sociedade? In: BIRNBAUM, P.; CHAZEL,
F. Teoria sociológica. Tradução de Gisela S. Souza e Hélio Souza. São
Paulo: Hucitec/USP, 1977

25
CAPÍTULO 2
Karl Marx

O trabalho é um processo entre o homem e a


Natureza, um processo em que o homem, por sua
própria ação, media, regula e controla seu metabo-
lismo com a Natureza. Ele mesmo se defronta com
a matéria natural como uma força natural. Ele põe
em movimento as forças naturais pertencentes a
sua corporalidade, braços e pernas, cabeça e mão,
a fim de apropriar-se da matéria natural numa forma útil para sua
própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a Natureza
externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua
própria natureza. (MARX, Karl. O Capital).

2.1. Breve Biografia


Karl Heinrich Marx (1818-1853) nasceu em Tier, Renânia, província
ao sul da Prússia, um dos reinos que posteriormente fariam parte da
Alemanha. Filho de um advogado e conselheiro da justiça, descen-
dente de judeu, foi perseguido pelo governo absolutista de Guilher-
me II. Em 1835, Marx ingressou no curso de Direito na Universidade
de Bonn, sendo ativo nas lutas políticas estudantis.
No fim de 1836, Karl Marx se transferiu para a Universidade de Ber-
lim a fim de estudar Filosofia. Durante este período, as ideias do filó-

26
sofo Hegel eram bastante difundidas. Desta forma, Marx se une aos
hegelianos de esquerda, que buscavam analisar as questões sociais,
crendo na necessidade de transformação da burguesia alemã. Em
1841, Marx defende sua tese de Doutorado em Filosofia, na Universi-
dade de Jena, com o título “A Diferença entre a Filosofia da Natureza
de Demócrito e a de Epícuro”.
Não consegue, no entanto, nomeação para lecionar na universida-
de, devido a questões políticas, uma vez que a universidade não acei-
tava mestres seguidores das ideias de Hegel. Em 1842, muda-se para
Colônia e assume a direção do jornal “Gazeta Renana”, onde conhece
Friedrich Engels, com quem publica um artigo sobre o absolutismo
russo, que desagrada o governo, que fecha o jornal.
Em 1843, Marx casa-se com Jenny von Westphalen, com quem
teve 7 filhos. No mesmo ano, muda-se para Paris, fundando a revis-
ta “Anais Franco-Alemãs”, onde publica os artigos de Engels. Publica
também “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” e “So-
bre a Questão Judaica”.
Em 1844, Marx começa a escrever para o “Vornaerts”, em Paris. As
opiniões desagradam o governador da Prússia, que pede ao governo
francês que expulse os colaboradores da publicação. Marx é obrigado
a sair da França, mudando-se para a Bélgica. A partir de então, Marx
se dedica a escrever teses sobre o socialismo, e funda a “Sociedade
dos Trabalhadores Alemães”.
Em 1848, Marx e Engels escrevem o “Manifesto Comunista”, onde
discute ideias sobre o materialismo histórico e a luta de classes. Nes-
te, Marx critica o Capitalismo, afirmando que a única solução para
o fim da exploração da classe trabalhadora era a união de todos os
proletários do mundo. Posteriormente, Marx e Jenny são presos e ex-
pulsos da Bélgica, indo para Londres. Na capital inglesa, juntamente
com Engels, publica o primeiro volume de “O Capital”, um conjunto
de livros publicados entre 1867 e 1905. Neste conjunto, Marx analisa

27
criticamente o Capitalismo, estabelecendo uma série de pensamen-
tos e ideias complexos, tais como, a mais valia e capital variável. Ava-
lia, também, questões como o salário e a acumulação.
Em 1883, Marx falece em Londres, Inglaterra.
De suas obras, destacam-se “A Ideologia Alemã” (1846), “O Mani-
festo Comunista” (1848), “Trabalho Assalariado e Capital” (1849), “O
18 de Brumário de Luís Bonaparte” (1852), e “O Capital” (1867).
As formulações de Marx a respeito da sociedade, principalmente
sua análise sobre a sociedade capitalista e as ideias de como ultra-
passá-la, causaram grande impacto sobre as ciências humanas e in-
fluenciaram as análises da realidade social como um todo, sendo o
principal sociólogo no que diz respeito à análise crítica da sociedade
moderna e do modo de vida capitalista.

2.2. O método: materialismo histórico


As ideias de Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) foram
bastante importantes e influentes na construção do pensamento eu-
ropeu. Entre as ideias que marcaram este pensamento, manteve-se a
da existência de um outro mundo imaterial e ideal, além do mundo
sensível e material que vivemos. No mundo ideal, habitava a verdade,
o verdadeiro conhecimento e o verdadeiro bem, e estes eram possí-
veis de serem acessados através do conhecimento racional. As coisas
do mundo real em que vivemos eram apenas reflexos e limitações do
mundo ideal. A verdadeira felicidade e liberdade estava em entender
o mundo ideal e construir uma realidade no mundo real, que refletis-
se a verdade do mundo ideal. Seria possível assim viver em um cami-
nho evolutivo, de melhoramento, baseado na busca constante pela
verdade e pelo bem.
Pense, por exemplo, que estamos buscando entender a melhor
forma de julgar um suspeito de cometer homicídio. No júri, está pre-

28
sente o pai da menina que foi assassinada. Por causa dos sentimen-
tos que aquele pai tem no momento, será impossível que ele julgue
de forma racional, pois os sentimentos não permitem. A melhor for-
ma, então, de analisar a realidade seria através da razão, pois os sen-
timentos ocultam e impedem a real análise do ocorrido.
Seguindo esta ideia, a filosofia idealista de Georg Friedrich Hegel
(1770-1831) propaga a forma de enxergar a realidade como algo di-
retamente ligado à razão. Para este filósofo alemão, tudo que é real,
é racional, e tudo o que é racional, é real. A história é, justamente, a
manifestação da razão, em um processo onde o racional toma o lugar
do sensível, superando cada vez mais os conflitos e as contradições.
A ideia de que a história é um movimento de evolução impulsionado
pela razão resume o movimento dialético, “o caminho que produz a
si mesmo”.

Quando lançamos um olhar na história do mundo de maneira ge-


ral, vemos um enorme quadro de transformações e atuações, uma
infinidade de povos, estados e indivíduos diversificados, em con-
tínua sucessão. Tudo aquilo que pode entrar e interessar à mente
do homem, todo o sentimento de bondade, beleza ou grandiosi-
dade entra em jogo. Por toda a parte são adotados e perseguidos
objetivos que reconhecemos, cuja realização desejamos – temos
expectativas e receios por eles. (HEGEL).

Assim, tudo o que é finito e limitado precisa ser compreendido


a partir do infinito e ilimitado, que são verdadeiros. Para alcançar o
verdadeiro, ou o todo, é necessário que haja o desenvolvimento das
partes. A relação entre as partes que buscam se tornar o todo é cha-
mada de unidade dialética. Voltemos à nossa história do homicida
sendo julgado pelo júri. O júri está ali para fazer justiça. Porém, justiça
não é algo simples. Existe a ideia perfeita e verdadeira de justiça, mas
para alcançá-la, é necessário que os indivíduos se apliquem em utili-
zar a razão, deixar de lado os sentimentos e buscar a melhor forma de

29
bem. Isso ocorre durante um longo tempo na história, passando por
várias gerações, em um processo evolutivo de busca pela verdade.
O indivíduo se encontra na base desta busca por alcançar o con-
ceito ideal. É ele quem realiza o esforço de ultrapassar e transcender
a simples observação dos fatos, a fim de entender a real razão dos
fatos. Para isso, empenha-se o método científico e filosófico, isto é,
estabelecer o melhor caminho para fazer com que o indivíduo ultra-
passe o sensível e limitado, e caminhe em direção ao ilimitado e ao
ideal.
A busca, porém, é contínua, porque há sempre espaço e possibli-
dade do ser humano melhorar não só sua percepção como indivíduo,
mas a sua vida em sociedade. Para isso, lança-se a ótica dialética so-
bre a vida social, analisando os fatos ocorridos no dia, buscando as
contradições e limitações que os cercam e procurando formas de me-
lhor analisá-los.
Um dos grandes problemas que impedem os seres humanos de
alcançar este ideal é a perda do autocontrole, por causa de uma cria-
ção deles mesmo, a saber, a riqueza da vida material e suas consequ-
ências. Conforme veremos posteriormente, Marx também criticará a
propriedade privada, porque ela faz com que os homens sejam “es-
túpidos e unilaterais”, pois um objeto só se torna “seu” quando “lhe
pertence”. Por isso, os sentidos físicos e espirituais foram substituídos
pelo possuir. O homem se alienou, isto é, perdeu o foco da real razão
e os motivos pelos quais está no mundo.
A perda de autocontrole que Hegel trata, refere-se a ideia de alie-
nação, ou seja, uma consciência separada da realidade, “a consciência
de si como natureza dividida”. Para Hegel, ser livre significa recuperar a
consciência de si mesmo que foi perdida, e a história é o processo onde
a razão alcança progressivamente tal destino. Após a morte de Hegel,
seu pensamento é estruturado politicamente por seus discípulos, ori-
ginando duas escolas distintas. Uma mais conservadora e de direita, e

30
outra de esquerda. A última, a de esquerda, encontravam-se Marx e En-
gels9. Foi, inclusive, bastante importante para o começo do marxismo,
os debates entre Marx e Engels e os defensores do idealismo hegeliano.
Antes de Marx desenvolver sua sociologia, foi fundamental o tra-
balho de Ludwig Feuerbach (1804-1872), também hegeliano de es-
querda, na passagem do idealismo para o materialismo histórico.
Feuerbach afirmava que a alienação tem seu fundamento no fenôme-
no religioso, que divide a natureza humana, fazendo com que os seres
humanos se submetam a forças sobrenaturais e a figuras divinas, que
são criações humanas, mas são compreendidas como autônomas e
superiores. De acordo com Feuerbach, a religião, e toda realidade que
é formada a partir dela, é uma ilusão fantasiosa e, por isso, aliena o
homem de sua real preocupação e mundo. Por exemplo, toda vez que
uma pessoa faz um sacrifício a uma divindade, ela cria uma relação
de dependência e inferioridade com essa divindade. Então, a pessoa
vai crer que precisa da divindade para solucionar os seus problemas.
De acordo com as ideias de Feuerbach, além da pessoa criar uma ilu-
são sobre si mesma, cria também uma ilusão para a solução dos seus
problemas. O filósofo afirmava que quanto mais vazia é a vida, mais
concreto é Deus, pois o mundo se esvazia, quando a divindade au-
menta e, ainda, só um homem pobre tem um Deus rico. Para resolver
tal alienação, era necessário formar uma crítica religiosa capaz de li-
bertar a consciência e proporcionar o fim deste mundo ilusório.

9  Neste material, não discutiremos especificamente o trabalho de Friedrich Engels


(1820-1895). Porém, como nos lembra Quintaneiro (2003:27): Friedrich Engels (1820-
1895) foi o grande colaborador de Marx. Juntos escreveram A sagrada família, A ideo-
logia alemã e Manifesto do Partido Comunista, importantes referências na produção
marxista, e assumiram compromissos políticos condizentes com suas propostas.
Além de diversos artigos, Engels publicou Do socialismo utópico ao científico, A ori-
gem da família, da propriedade privada e do Estado e Contribuição ao problema da
moradia. Após a morte de Marx, tomou para si a tarefa de organizar os manuscritos
deixados por aquele, bem como interpretá-los e divulgá-los. Optamos por não lhe
dar neste estudo o mesmo tratamento dado a Marx, que de fato elaborou os princi-
pais fundamentos teóricos que dão coerência ao sistema marxista de interpretação.

31
Inicialmente, Marx e Engels se tornam seguidores das teses de
Feuerbach, mas logo as abandonam por considerarem a crítica reli-
giosa uma luta contra frases e não uma real solução para as questões
reais. A partir de então, Marx e Engels passam a articular a dialética
e o materialismo sob uma perspectiva histórica, rompendo com o
idealismo hegeliano e, também, o materialismo neo-hegeliano. Marx
e Engels questionavam o materialismo feuerbachiano que entendia
o mundo como um objeto de contemplação e não como resultado
das ações e interações humanas. Por conta desta visão, Marx criticava
o tipo de materialismo que não foi capaz de entender, que a forma
de transformar o mundo era através de uma crítica que resultava em
prática e não apenas em um combate de ideias, ou seja, a revolução
teria que ser crítico-prática. A contemplação e o debate de ideias são
questionados por Marx, que entende que os filósofos se limitavam a
interpretar o mundo, quando sua função era transformá-lo. As ideias
marxistas resultam na reformulação da ideia dialética, além da con-
cepção dos fundamentos da alienação.
Para Marx e Engels, a alienação não estava ligada, primeiramente,
ao conjunto de ideias existentes, mas sim às condições materiais de
vida. Portanto, para libertar o indivíduo seria necessário modificar os
processos pelos quais as necessidades materiais são satisfeitas. Sen-
do imprescindível uma ação política e revolucionária. Na sociedade
moderna capitalista, o potencial para revolução e mudança está nas
mãos do proletariado.

Hoje em dia, tudo parece levar em seu seio sua própria contradi-
ção. Vemos que as máquinas, dotadas da propriedade maravilho-
sa de encurtar e fazer mais frutífero o trabalho humano, provocam
a fome e o esgotamento do trabalhador. As fontes de riqueza re-
cém-descobertas convertem-se, por arte de um estranho malefí-
cio, em fontes de privações. Os triunfos da arte parecem adquiri-
dos ao preço de qualidades morais. O domínio do homem sobre

32
a natureza é cada vez maior; mas, ao mesmo tempo, o homem se
converte em escravo de outros homens ou de sua própria infâmia.
Até a pura luz da ciência parece não poder brilhar mais que so-
bre o fundo tenebroso da ignorância. Todos os nossos inventos e
progressos parecem dotar de vida intelectual as forças produtivas
materiais, enquanto reduzem a vida humana ao nível de uma for-
ça material bruta. Este antagonismo entre a indústria moderna e
a ciência, por um lado, e a miséria e a decadência, por outro; este
antagonismo entre as forças produtivas e as relações sociais de
nossa época é um fato palpável, abrumador e incontrovertido. (...)
não nos enganamos a respeito da natureza desse espírito maligno
que se manifesta constantemente em todas as contradições que
acabamos de assinalar. Sabemos que, para fazer trabalhar bem
as novas forças da sociedade, necessita-se unicamente que estas
passem às mãos de homens novos, e que tais homens novos são
os operários (MARX, K. 1856)

Para analisar a vida social é necessário utilizar a perspectiva dialé-


tica, mas não uma dialética idealista que foque no debate de ideias
apenas, mas sim uma dialética que estabeleça as leis ou os padrões de
mudança que movem os fenômenos, fundamentando-se em fatos con-
cretos, expondo como a realidade muda como um todo. Por exemplo,
anteriormente vimos que Feuerbach afirma que a religião aliena o indi-
víduo, pois cria um discurso de inferioridade e impotência. Para Marx,
tal análise era insuficiente, pois não mostrava quais são as causas da
vida real, do mundo material que causam a alienação. Posteriormente,
Marx analisará a religião, como veremos, e afirmará que a alienação se
dá pelo controle da classe produtora dominante, isto é, pela burguesia.
Desta forma, Marx afirmava que a compreensão da realidade não
se baseava na compreensão das mudanças das ideias, ou, como afir-
mava Hegel, do desenvolvimento do Espírito, mas sim, de ações e
mudanças práticas e materiais na luta para satisfazer suas distintas
necessidades materiais.

33
Os indivíduos reais, a sua ação e as suas condições materiais de
existência, quer se trate daquelas que encontrou já elaboradas
quando do seu aparecimento, quer das que ele próprio criou (...) A
primeira condição de toda a história humana é, evidentemente, a
existência de seres humanos vivos (MARX, 1867).

Este método é o que denominamos de materialismo histórico. Ou


seja, a forma pela qual Marx analisa a vida social e as relações dos in-
divíduos entre si se baseia nas relações materiais que os homens es-
tabelecem e a forma como produzem seus meios de vida. Relação na
qual os homens, a fim de satisfazer suas necessidades materiais, como
segurança, reprodução e alimentação, forma a base de todas as outras
relações. O que faz com que a história mude e avance é, justamente, a
transformação na forma de produção e satisfação das necessidades,
não a simples mudanças das ideias. Desta forma, conhecendo a forma
pela qual os indivíduos se relacionam a fim de satisfazer suas necessi-
dades, torna possível conhecer analisar o indivíduo como um todo

[As atividades não correspondem apenas à] reprodução da exis-


tência física dos indivíduos. Pelo contrário, já constitui um modo
determinado de atividade de tais indivíduos, uma forma determi-
nada de manifestar a sua vida, um modo de vida determinado.
A forma como os indivíduos manifestam sua vida reflete muito
exatamente aquilo que são. O que são coincide, portanto, com a
sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem, como com
a forma como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende,
portanto, das condições materiais de sua produção (MARX, 1846).

Nesta perspectiva materialista e dialética, tudo o que existe, todo


fenômeno material e social é efêmero, passageiro. Portanto, tanto a
análise dos processos de produção, dos processos econômicos, como
a produção de conceitos que auxiliarão na compreensão destes fenô-
menos deve estar submetida ao entendimento de que

34
As formas econômicas sob as quais os homens produzem, conso-
mem e trocam são transitórias e históricas. Ao adquirir novas for-
ças produtivas, os homens mudam seu modo de produção, e com
o modo de produção mudam as relações econômicas, que não
eram mais que as relações necessárias daquele modo concreto
de produção... as categorias econômicas não são mais que abstra-
ções destas relações reais e são verdades unicamente enquanto
essas relações subsistem (MARX, 1846).

De acordo com Marx, os economistas e filósofos de seu tempo não


entendem como os fenômenos estão ligados a um tempo específico
do desenvolvimento da humanidade. Por isso, esses economistas não
reconhecem a historicidade da sociedade capitalista. Marx compara
as teorias dos economistas de seu tempo com a dos teólogos porque
acreditava que tanto a religião quanto as teorias dos economistas não
refletiam a real análise da sociedade, sendo estranha e distante dela,
pois “toda religião estranha é pura invenção humana, enquanto a deles
próprios é uma emanação de Deus”.
Marx questiona o entendimento de que as relações de produção de
seu tempo, isto é, as relações burguesas são naturais, pois estão de acor-
do com a lei da natureza, como se fossem independentes da influência
do tempo, sendo entendidas como leis eternas, que devem reger a so-
ciedade para sempre, como o último ponto evolutivo da história. Marx
critica tal entendimento, que analisava as instituições feudais como his-
tóricas, mas as burguesas como naturais e imutáveis. Para ele, tanto os
processos de produção são transitórios, como também as ideias, cren-
ças, gostos, ciências, hábitos, moral e ideologia. Tudo isso, uma vez que
é gerado socialmente, depende do modo como os homens se organizam
para produzir. Portanto, tudo o que é imaterial, como pensamento, cons-
ciência, culturas, gostos e moral, é questão gerada da relação entre o ho-
mem e a natureza, ou seja, da relação material.

35
Será a maneira de ver a natureza e as relações sociais que a imagi-
nação grega inspira - e que constitui, por isso mesmo, o fundamen-
to da mitologia grega - compatível com as máquinas automáticas
de fiar, as ferrovias, as locomotivas e o telégrafo elétrico? Quem é
Vulcano ao pé de Roberts & Cia., Júpiter em comparação com o
para-raios e Hermes em comparação com o Crédito Imobiliário?
Toda a mitologia subjuga, governa as forças da natureza no domí-
nio da imaginação e pela imaginação, dando-lhes forma: portan-
to, desaparece quando estas forças são dominadas realmente... A
arte grega supõe a mitologia grega, isto é, a elaboração artística,
mas inconsciente da natureza e das próprias formas sociais pela
imaginação popular. São esses os seus materiais.... Jamais a mi-
tologia egípcia teria podido proporcionar um terreno favorável à
eclosão da arte grega. (MARX, 1867)

Portanto, chama-se materialismo histórico o método desenvolvi-


do e utilizado por Marx para analisar a sociedade, onde entende-se
que os seres humanos são movidos por suas necessidades materiais.
E, a história, seria justamente a mudança nas formas de atender tais
necessidades.

2.3. Necessidades Materiais e Formas de Produção


Todos os seres humanos possuem necessidades que precisam ser
satisfeitas para que sobrevivam no mundo. Necessidades como ali-
mentar, dormir, ter segurança e reproduzir estão presentes em todos
os seres humanos e a manutenção da vida depende da atenção dada
a elas. Na busca de atender as necessidades e carências, os homens
produzem seus meios de vida. O processo de produção é, justamente,
a forma pela qual os homens buscam atender às necessidades, seja na
relação com a natureza, ou com outros indivíduos. Pense, por exem-
plo, na necessidade de alimentação. Se o ser humano não se alimentar,
ele morrerá. Mas, para se alimentar, precisa produzir. Seja na relação

36
com a natureza, plantando e colhendo o alimento, ou comprando com
outro indivíduo que o produziu. Logo, para viver é preciso produzir. As
formas pelas quais os indivíduos produzem e reproduzem os proces-
sos mudam historicamente; são aperfeiçoadas, desenvolvidas, trans-
formadas pela ação de sucessivas gerações.
A análise marxista da sociedade parte do princípio que a origem
da vida material dos indivíduos se dá por meio da interação com a
natureza e com outros indivíduos.

Um primeiro pressuposto de toda existência humana e, portanto,


de toda história (...) [é] que os homens devem estar em condições
de poder viver a fim de “fazer a história”. Mas, para viver, é necessá-
rio, antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar,
vestir-se etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios
que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria
vida material; trata-se de um fato histórico; de uma condição fun-
damental de toda a história, que é necessário, tanto hoje como há
milhares de anos, executar, dia a dia, hora a hora, a fim de manter os
homens vivos (MARX, 1846).

Com o intuito de assegurar a permanência da espécie, os seres


vivos precisam refazer suas energias e satisfazer suas necessidades.
Os animais atuam de forma inconsciente ao interagir com a natureza,
sendo limitados por suas condições naturais, privados de qualquer
capacidade racional para desenvolver sua forma de produção de sa-
tisfação das necessidades.

É certo que também o animal produz. Constrói para si um ninho,


casas, como as abelhas, os castores, as formigas etc. Mas produz
unicamente o que necessita imediatamente para si ou sua prole
(...) produz unicamente por força de uma necessidade física ime-
diata, enquanto o homem produz inclusive livre da necessidade fí-
sica e só produz realmente liberado dela; o animal produz somen-

37
te a si mesmo, enquanto o homem reproduz a natureza inteira;
o produto do animal pertence imediatamente a seu corpo físico,
enquanto o homem enfrenta-se livremente com seu produto. O
animal produz unicamente segundo a necessidade e a medida da
espécie a que pertence, enquanto o homem sabe produzir segun-
do a medida de qualquer espécie e sabe sempre impor ao objeto,
a medida que lhe é inerente; por isso o homem cria também se-
gundo as leis da beleza (MARX, 1846).

Os animais irracionais formam suas relações sociais, ou seja, orga-


nizam-se em grupos, a fim de conseguir o que precisam e facilitar sua
sobrevivência, podendo modificar a fauna e a flora. Porém, quando
os animais se organizam em grupos, novas necessidades surgem que
são frutos da nova interação, da formação do grupo. Estas necessida-
des não existiam no ramo individual, mas passam a existir uma vez
que estão em grupo, como é o caso da liderança e solidariedade.

Fome é a fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozinhada,


comida com faca e garfo, não é a mesma fome que come a carne
crua, servindo-se das mãos, das unhas, dos dentes. Por conse-
guinte, a produção determina não só o objeto do consumo, mas
também o modo de consumo, e não só de forma objetiva, mas
também subjetiva. Logo, a produção cria o consumidor (MARX,
1847).

Por isso, o modo pelo qual as necessidades são satisfeitas é mol-


dado e mudado com o passar do tempo. A interação dos indivíduos
faz surgir novas necessidades que precisam ser satisfeitas. A fim de
controlar as mudanças que ocorrem na vida, causadas por alterações
naturais ou sociais, os homens criam novas formas de satisfazer as
necessidades, e transmitem as novas formas de satisfação para as
próximas gerações. Por exemplo, a forma que os homens produzem
alimentos mudou bastante durante os anos. Deixou de ser um proces-

38
so onde o próprio indivíduo plantava, colhia e cozinhava o alimento.
Posteriormente, os homens passaram a plantar menos e comprar os
alimentos prontos. Hoje, já existem pílulas que completam a alimen-
tação e várias formas de satisfazer a necessidade da fome, que não
exigem que o mesmo indivíduo participe do processo de fabricação do
alimento.
A forma que os indivíduos produzem e satisfazem as necessidades
é transmitida e acumulada por meio da cultura. Para Marx, o processo
de produção e reprodução da vida através do trabalho é a atividade
humana básica, a partir da qual se constrói “a história dos homens”.
É nisso que se baseia o materialismo histórico, o método marxista de
análise da vida econômica, política, social e intelectual dos seres-hu-
manos (QUINTANEIRO, 2003:31).

2.4. Relações Sociais de Produção


É válido lembrar que, para Marx, a análise da produção não é re-
alizada de forma conceitual, ou seja, a produção é analisada em um
determinado estágio do desenvolvimento social. Mesmo que a socie-
dade seja produto da ação dos homens, ela não é um produto dos
desejos particulares dos homens. O que significa que “a estrutura de
uma sociedade depende do estado de desenvolvimento de suas for-
ças produtivas e das relações sociais de produção que lhe são corres-
pondentes” (QUINTANEIRO, 2003:32). Em cada sociedade, as relações
produtivas criam, mantêm e desenvolvem a estrutura existente, afe-
tando até mesmo a forma de distribuição de poder e valor.
Portanto, a fim de produzir, os indivíduos interagem entre si e com
a natureza. O conceito de forças produtivas é formulado para poder
explicar esta interação. Assim, força produtiva corresponde ao modo
pelo qual os homens obtêm, em um determinado momento histó-
rico, os bens que necessitam para satisfazer suas necessidades. Isto
pode ser analisado pelo modo que os indivíduos desenvolveram sua

39
tecnologia, modos de cooperação, técnicas de divisão do trabalho,
habilidades e conhecimentos utilizados na produção, quantidade e
matérias-primas que dispõem. Desta forma, quão maior for o contro-
le dos homens sobre a natureza, maior será sua força de produção.

Os homens não são livres árbitros de suas forças produtivas - base


de toda sua história - pois toda força produtiva é uma força ad-
quirida, produto de uma atividade anterior. Portanto, as forças
produtivas são o resultado da energia prática dos homens, mas
essa mesma energia está determinada pelas condições em que os
homens se encontram colocados, pelas forças produtivas já ad-
quiridas, pela forma social anterior a eles, que eles não criaram
e que é produto da geração anterior. O simples fato de que cada
geração posterior encontre forças produtivas adquiridas pela ge-
ração precedente, que lhe servem de matéria-prima para a nova
produção, cria na história dos homens uma conexão, cria uma his-
tória da humanidade, que é tanto mais a história da humanidade,
porque as forças produtivas dos homens e, por conseguinte, suas
relações sociais adquiriram maior desenvolvimento (MARX, 1846).

Além do conceito de forças produtivas, outro importante concei-


to refere-se a ideia de relações sociais de produção. Relações Sociais
de Produção diz respeito às formas estabelecidas de distribuição dos
meios de produção, e o tipo de divisão social do trabalho em um de-
terminado período histórico e em uma determinada sociedade. Diz
respeito ao modo como os homens se organizam para produzir, que
formas existem naquela sociedade para realizar a produção. Quais
as ferramentas, tecnologia, terra, matérias-primas, energia, mão de
obra, e técnicas conhecidas que permitam desenvolver o processo
produtivo. Refere-se, também, a quem toma decisões que afeta a pro-
dução, como aquilo que é produzido é distribuído, qual grupo recebe
em qual proporção o que foi produzido, e às diversas maneiras pelas
quais os indivíduos na sociedade produzem e repartem o produto.

40
Ao produzir, os homens atuam coletivamente e cooperam, e assim o
fazem para a produção da vida.

Tanto a própria através do trabalho como a alheia através da pro-


criação, surge-nos agora como uma relação dupla: por um lado,
como uma relação natural e, por outro, como uma relação social;
social no sentido de ação conjugada de vários indivíduos, não
importa em que condições, de que maneira e com que objetivo.
Segue-se que um determinado modo de produção ou estádio de
desenvolvimento industrial se encontram permanentemente liga-
dos a um modo de cooperação ou a um estado social determina-
do, e que esse modo de cooperação é ele mesmo uma força pro-
dutiva (MARX, 1846).

Como visto, a cooperação entre os indivíduos é uma relação so-


cial de produção, porque é uma forma como os indivíduos satisfazem
suas necessidades. Todavia, esta cooperação pode se dar tendo em
vista interesses particulares, como aumentar a produtividade do tra-
balho ou a quantidade do trabalho. Em sociedade onde existem clas-
ses sociais, ou seja, onde as condições de produção são socialmente
estabelecidas, existe um acesso diferenciado a determinado grupo,
ao produto e as formas de produzi-lo. A distribuição de riqueza, ou
em outras palavras, distribuição da produção se dá pela 1) distribui-
ção dos instrumentos de produção e 2) distribuição dos membros da
sociedade pelos diferentes gêneros de produção. A quantidade de
produtos e quem são aqueles que têm maior acesso a tal produção é
o resultado desta distribuição.
A divisão social do trabalho demonstra as formas pelas quais a so-
ciedade é dividida e segmentada. Esta divisão é maior e, portanto, a
desigualdade social é maior em sociedade onde ocorre a separação
manual e intelectual do trabalho, ou seja, onde o trabalho de cada
indivíduo tem um diferente valor para a sociedade. Por exemplo, o
trabalho do engenheiro, mais intelectual, é mais importante do que o

41
trabalho do pedreiro, mais manual, e é, por isso, mais valorizado na
sociedade. Logo, o pagamento que o engenheiro recebe pela hora tra-
balhada é maior do que o valor recebido pelo pedreiro, pois o trabalho
do primeiro é considerado mais importante que o do segundo. A partir
destas divisões e da estrutura de valor do trabalho, alguns tipos de
produção tendo mais valor do que outros, ocorreram historicamen-
te outras divisões, como, por exemplo, os grupos que assumiram
responsabilidades religiosas, políticas, administrativas, financeiras,
entre outras. Cada um destes grupos obteve responsabilidades dis-
tintas, recebendo partes maiores ou menores do produto social, já
que ocupam posições desiguais quanto ao controle e propriedade
dos meios de produção. Desta forma, ao determinar o tipo de divi-
são social do trabalho, ou seja, quais os grupos são considerados de
maior importância para a sociedade, pode-se entender como se dá a
estrutura de classes da sociedade.

Os vários estágios de desenvolvimento da divisão do trabalho re-


presentam outras tantas formas diferentes de propriedade; por
outras palavras, cada novo estágio na divisão do trabalho deter-
mina igualmente as relações entre os indivíduos no que toca à ma-
téria, aos instrumentos e aos produtos do trabalho (MARX, 1846).

Para explicar tal relação, Marx sugere que se imagine uma reunião
de homens livres que trabalham com meios de produção comuns,
meios que pertencem a todos e não só a alguns, e que agrupam suas
forças para produzir. O produto desta relação entre os homens é so-
cial, uma parte do produto é consumida e outra volta para ser um
meio de produção. “O modo de distribuição variará segundo o orga-
nismo produtor da sociedade e o grau de desenvolvimento histórico
alcançado pelos produtores” (MARX, 1846).

O moinho movido a braço nos dá a sociedade dos senhores feu-


dais; o moinho movido a vapor, a sociedade dos capitalistas indus-

42
triais. Os homens, ao estabelecerem as relações sociais vinculadas
ao desenvolvimento de sua produção material, criam também os
princípios, as ideias e as categorias conformes às suas relações
sociais. Portanto, essas ideias, essas categorias são tão pouco
eternas quanto as relações às quais servem de expressão (MARX,
1846).

Os conceitos de forças produtivas e de relações sociais de produ-


ção mostram que a relação entre eles se interliga de forma que as
mudanças em um afetam profundamente o outro. Em suma, forças
produtivas se referem aquilo que é necessário para o indivíduo criar o
produto. Já as relações sociais de produção se referem a forma pela
qual os homens interagem no processo de criação produtivo.

O conceito de forças produtivas refere-se aos instrumentos e habi-


lidades que possibilitam o controle das condições naturais para a
produção, e seu desenvolvimento é em geral cumulativo. O concei-
to de relações sociais de produção trata das diferentes formas de
organização da produção e distribuição, de posse e tipos de pro-
priedade dos meios de produção, bem como e que se constituem
no substrato para a estruturação das desigualdades expressas na
forma de classes sociais. O primeiro trata das relações homem/na-
tureza e o segundo das relações entre os homens no processo pro-
dutivo (QUINTANEIRO, 2003:34).

1.5. As noções de estrutura e superestrutura


O conjunto das forças produtivas e das relações sociais de produ-
ção de uma sociedade forma sua base ou sua estrutura. A estrutura é
o fundamento sobre o qual as instituições políticas e sociais se cons-
tituem.

43
A estrutura social e o Estado resultam constantemente do proces-
so vital de indivíduos determinados; mas não resultam daquilo
que esses indivíduos aparentam perante si mesmos ou perante
outros e sim daquilo que são na realidade, isto é, tal como traba-
lham e produzem materialmente (MARX, 1846).

A partir da concepção materialista da história, é através da cons-


trução material ou da estrutura, que todos os outros produtos ima-
teriais ou não-materiais, como as ideologias políticas, as doutrinas
religiosas, as leis e códigos morais, os padrões estéticos, as ideias de
certo, bom, de gosto refinado, ou seja, todos os produtos que não têm
forma material são criados; advêm da relação social dos indivíduos
e como fruto da produção humana. Com início nas relações sociais
e nas bases materiais, a classe social cria e desenvolve a superestru-
tura, ou seja, o mundo imaterial. Não são as ideias que produzem e
mudam as forças de relação e produção, mas a relação social que
cria as ideias. Portanto, se a estrutura corresponde à base material,
a superestrutura corresponde ao mundo imaterial criado a partir da
estrutura.

São os homens que produzem as suas representações, as suas


ideias etc., mas os homens reais, atuantes, e tais como foram con-
dicionados por um determinado desenvolvimento das suas forças
produtivas e do modo de relações que lhe corresponde, incluindo
até as formas mais amplas que estas possam tomar. A consciência
nunca pode ser mais que o Ser consciente, e o Ser dos homens é
o seu processo da vida real... Assim, a moral, a religião, a metafísi-
ca e qualquer outra ideologia, tal como as formas de consciência
que lhes correspondem, perdem imediatamente toda aparência
de autonomia. Não têm história, não têm desenvolvimento; serão,
antes, os homens que, desenvolvendo a sua produção material e
as suas relações materiais, transformam, com esta realidade que
lhes é própria, o seu pensamento e os produtos deste pensamen-

44
to. Não é a consciência que determina a vida, mas sim, a vida que
determina a consciência (MARX, 1846).

Para entender as formas políticas, religiosas, jurídicas e da consci-


ência, é preciso analisar a base econômica e material da sociedade,
pois, é nela que tais explicações se encontram. O entendimento do
mundo “das ideias” se baseia no modo como os homens estão orga-
nizados no processo produtivo. Por exemplo, o sonho de vida de um
trabalhador é poder ter uma casa, um carro, família e viajar no fim do
ano. Ele quer ser igual ao dono da empresa. O dono da empresa é con-
siderado mais inteligente, com gosto mais apurado e com uma visão
política mais desenvolvida. Dominando o meio de produção, ele domi-
na também o mundo imaterial. As instituições sociais, como o gover-
no, a educação, os hospitais, as leis, entre outras são mais acessíveis
e atendem melhor àqueles que detêm os meios de produção.

Na relação imediata entre o proprietário dos meios de produção


e o produtor direto há que se buscar o segredo mais profundo, o
cimento oculto de todo o edifício social, e, por conseguinte da for-
ma política que a relação de soberania e dependência adota; em
uma palavra, a base da forma específica que o Estado adota em
um período dado. Isto não impede que a mesma base econômica
apresente, sob a influência de inumeráveis condições empíricas
distintas, de condições naturais, de relações sociais, influências
históricas exteriores, infinitas variações e matizes, que só poderão
ser esclarecidos por uma análise dessas circunstâncias empíricas
(MARX, 1846).

A base material é expressa no conceito de modo de produção para


caracterizar distintas etapas da história humana. Em sociedades e
épocas diferentes, são diversos os fatores que contribuem para a con-
figuração das formas como a produção ocorre. Na medida em que
esta mudança ocorre, diferentes estruturas de classe, leis, religiões,

45
regimes políticos e outros elementos superestruturais são construí-
dos. Por isso, o conceito de modo de produção faz referência às for-
mas de produção em diferentes sociedades e épocas. Em suas obras,
Marx faz menção ao modo primitivo, antigo, feudal e capitalista nas
sociedades ocidentais; ao modo asiático nas sociedades orientais; ao
modo pré-colombiano nas sociedades da América do Sul, e finalmen-
te, ao comunista. Com estas análises, Marx não afirmava que os mo-
dos de produção caminham de forma linear e evolutiva única, como
se o modo das sociedades ocidentais fosse o mais evoluído. Ou seja,
nem todas as sociedades passam pelo mesmo modo de produção e
pelas mesmas etapas.
Marx utiliza sua própria história e trajetória para explicar o mate-
rialismo histórico:

O meu primeiro trabalho, que empreendi para esclarecer as dú-


vidas que me assaltavam, foi uma revisão crítica da Filosofia do
Direito de Hegel (...) Nas minhas pesquisas cheguei à conclusão
de que as relações jurídicas - assim como as formas de Estado
- não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita
evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário,
nas condições materiais de existência de que Hegel (...) compre-
ende o conjunto pela designação de “sociedade civil”; por seu
lado, a anatomia da sociedade civil deve ser procurada na eco-
nomia política (...) A conclusão geral a que cheguei e que, uma
vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos pode
formular-se resumidamente assim: na produção social de sua
existência, os homens estabelecem relações determinadas, ne-
cessárias, independentes da sua vontade, relações de produção
que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento
das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de
produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base
concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e polí-
tica e à qual correspondem determinadas formas de consciência

46
social. O modo de produção da vida material condiciona o de-
senvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não
é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser
social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo
estádio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da
sociedade entram em contradição com as relações de produção
existentes, ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações
de propriedade no seio das quais tinham se movido até então.
De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas re-
lações transformam-se no seu entrave. Surge, então, uma época
de revolução social. A transformação da base econômica altera,
mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura.

Engels também busca esclarecer a relação entre estrutura e supe-


restrutura em seus escritos:

Segundo a concepção materialista da história, o fator que em últi-


ma instância determina a história é a produção e a reprodução da
vida real. Nem Marx nem eu nunca afirmamos mais do que isso.
Se alguém o tergiversa dizendo que o fator econômico é o único
determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata,
absurda. A situação econômica é a base, mas os diversos fatores
da superestrutura - as formas políticas da luta de classes e seus
resultados, as Constituições que, uma vez ganha uma batalha, são
redigidas pela classe vitoriosa etc., as formas jurídicas, e mesmo
os reflexos de todas estas lutas reais no cérebro dos participantes,
as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as ideias religiosas e o
seu desenvolvimento ulterior até serem convertidas em sistemas
dogmáticos - exercem igualmente a sua ação sobre o curso das
lutas históricas e, em muitos casos, determinam predominante-
mente sua forma (...) Somos nós mesmos que fazemos a história,
mas, nós a fazemos, em primeiro lugar, segundo premissas e con-
dições muito concretas. Entre elas, são as econômicas as que, em

47
última instância, decidem. Mas também desempenham um papel,
ainda que não seja decisivo, as condições políticas e até as tradi-
ções que rondam como um duende nas cabeças dos homens... O
fato de que os discípulos destaquem mais que o devido o aspecto
econômico é coisa que, em parte, temos a culpa Marx e eu mes-
mo. Frente aos adversários, tínhamos que sublinhar este princípio
cardinal que era negado, e nem sempre dispúnhamos de tempo,
espaço e ocasião para dar a devida importância aos demais fato-
res que intervêm no jogo das ações e reações. Infelizmente, ocorre
com frequência que se crê haver entendido totalmente e que se
pode manusear sem dificuldades uma nova teoria pelo simples
fato de se haver assimilado, e nem sempre exatamente, suas teses
fundamentais. Desta crítica não estão isentos muitos dos novos
“marxistas” e assim se explicam muitas das coisas inexpressivas
com que contribuíram.

Em suma, para Marx, a estrutura forma e transforma a superestru-


tura. As formas pelas quais os seres humanos se relacionam, a fim
de satisfazer suas necessidades, formam suas ideologias, conceitos
e concepções políticas e religiosas. Por isso, a superestrutura não é
capaz de revolucionar ou transformar a realidade. Só uma transfor-
mação estrutural pode mudar a forma como os indivíduos pensam e
formam seus ideais.

2.6. Estrutura Social e Classe


Um dos temas centrais da teoria marxista está justamente ligado à
análise de classes sociais. A partir desta análise, explica-se questões
como a desigualdade social, exploração e alienação, Estado como
representante de interesses da classe dominante, e também da re-
volução necessária que gerasse o fim desta exploração. O primeiro
ponto necessário para entender classe social é que a produção é a
atividade vital do trabalhador, sendo a manifestação da própria vida.

48
Como vimos, a produção é a forma pela qual os indivíduos satisfazem
suas necessidades e se mantêm vivos. É através dela que o homem
se humaniza. É no processo de produção que os homens interagem
entre si, criando relações sociais, a fim de retirarem da natureza o que
necessitam. Esse entendimento é fundamental para compreender o
pensamento de Marx. Há uma parcela de não-produtores, quer indiví-
duos, empresas ou o próprio Estado, que tomam para si parte do que
foi produzido socialmente, mesmo não tendo participado da produ-
ção. A partir da apropriação imprópria, pois tomaram parte de algo
que não produziram, Marx desenvolve seu pensamento a respeito de
classe, exploração, opressão, alienação e revolução.
Em um período da história onde as sociedades possuíam capaci-
dade produtiva limitada, não sobrava muito da produção, tudo o que
era produzido era consumido, a sobrevivência dos indivíduos depen-
dia da luta constante para obter o necessário para a vida. Por conta
desta limitada capacidade produtiva, a organização social era simples
e a divisão do trabalho ocorria por questões naturais, como idade,
força física e gênero. Como não havia excedente da produção, tudo o
que era produzido era consumido, não havendo muitas sobras, não
existiam bases econômicas que permitiam que uns vivessem do tra-
balho dos outros, seja na forma de escravidão ou de qualquer outra
forma de exploração. Se tudo o que o indivíduo produz, ele consome,
não há forma de este trabalhar para ele mesmo e ainda para outro,
pois o que ele produz, é necessário para sobreviver.
Quando passa a existir um excedente, uma sobra do que é consu-
mido, ou ainda, nem tudo o que é produzido é consumido, tem-se,
então, a divisão social do trabalho, como também a apropriação das
condições de produção por parte de alguns membros da sociedade,
e esses homens que se apropriam dos meios de produção passam a
exercer um direito sobre o produto ou sobre os trabalhadores. Pense
em um povo indígena que vive da plantação de subsistência. Na tribo,
tudo o que é plantado é consumido. A terra pertence a todos, todos pre-

49
cisam plantar para sobreviver. A partir do momento que a produção
cria excedente, passa a haver sobra, alguém pode se apropriar da ter-
ra, chamar de sua e exigir que todo mundo que plante naquela terra,
dê uma parte da produção para ele, que é o dono da terra. O dono da
terra para de produzir e passa a explorar os outros índios, pois agora, a
produção é excedente e existe uma sobra. Enquanto coisa alguma so-
bra, não é possível haver exploração. Quando passa a haver excedente,
é possível criar uma relação social de exploração.
Assim, a existência de classes sociais está vinculada às circunstân-
cias históricas específicas, ou seja, neste momento histórico, as rela-
ções de produção passaram a gerar um excedente na produção, per-
mitindo que alguns indivíduos possam se apropriar das condições de
produção, criando a propriedade privada e a exploração de uns sobre
outros. O materialismo histórico interpreta tal sociedade como algo
histórico e particular, não de uma forma natural e ideal como alguns
defendiam.
Além disso, a formação de classes sociais está ligada à relação com
os meios de produção, ou seja, classes distintas existem, pois nem
todos os indivíduos estão no mesmo lugar na cadeia de produção. Al-
guns possuem os meios de produção, como a máquina e a terra, e po-
dem explorar outros para produzirem por eles. Já outros indivíduos,
não possuindo os meios de produção, precisam produzir para sobre-
viver e dar a parte excedente do que produziu para o dono do meio
de produção, sendo explorado. A distribuição de riqueza não ocorre
porque alguns produzem mais do que outros sendo assim “mais ri-
cos”, mas, a distribuição de riqueza é a distribuição da desigualdade,
a riqueza está ligada a exploração do outro.

A renda não é um fator independente da produção: é, antes, uma


expressão da parcela maior ou menor do produto a que um grupo
de indivíduos pode ter direito em decorrência de sua posição na
estrutura de classes (QUINTANEIRO, 2003:39)

50
A configuração básica do conceito de classe social apontado acima
pode ser entendida, de maneira simples, em um modelo dicotômico:
de um lado os que possuem os meios de produção, e de outro, os
que não possuem. Durante a história, esta relação ocorre de diversas
formas, assumindo diferentes relações sociais e econômicas em cada
formação social. Temos, por exemplo, a relação escravo e senhor, ser-
vo e senhor feudal, aprendiz e mestre, trabalhadores livres e capita-
listas, e, como enfatiza Marx, o proletário e a burguesia. Certamente,
em sociedades modernas, a complexidade das relações sociais não
se resume a uma luta entre duas classes, existindo uma gama de in-
teresses e de relações de produção. Basta observarmos o Brasil do sé-
culo XXI, que veremos a existência de trabalhadores livres, capitalistas,
investidores, servidores públicos, celetistas, autônomos, militares, ou
seja, diversas formas de relação social, existentes na cadeia de produ-
ção. De fato, o conceito marxista auxilia no entendimento da explora-
ção e da construção de uma dominação estrutural e superestrutural,
como aqueles que detêm os meios de produção conseguem dominar
não só a produção material, como também o imaterial.

Em todas as formas de sociedade, é uma produção determinada


e as relações por ela produzidas que estabelecem todas as outras
produções e as relações a que elas dão origem, a sua categoria e
a sua importância. É como uma iluminação geral que modifica as
tonalidades particulares de todas as cores (MARX, 1848).

Mesmo que haja esta gama de classes que possuem relações dis-
tintas com o processo de produção, Marx acreditava que, cada vez
mais, a tendência do modo de vida capitalista é concentrar e separar
o trabalho e os meios de produção, transformando os meios de pro-
dução em capital e o trabalho, em trabalho assalariado, separando a
sociedade em duas classes principais, a saber, os que possuem e os
que não possuem os meios de produção, dando fim a todas as divi-
sões intermediárias de classe.

51
É fundamental lembrarmos que Marx está situado em um contexto
social do século XIX, onde o capitalismo industrial era a forma de re-
lação econômica e social vigente e imperante na sociedade europeia.
Como nos lembra Quitaneiro (2003:40):

O desenvolvimento do modo de produção capitalista tomou ru-


mos imprevisíveis para um analista situado, como Marx, em mea-
dos do século 19. A organização econômica e política ancorou-se
cada vez mais firmemente em níveis internacionais e, no interior
de cada sociedade, esses processos adquiriram feições muito sin-
gulares, referidas à diversidade de elementos que conformaram
suas experiências históricas. Tudo isso teve como resultado novas
subdivisões no interior das classes sociais, como ocorre com o
crescimento das chamadas “classes médias” e dos setores tecno-
burocráticos. Em outros casos, consolidou a existência de antigas
relações de produção, às vezes sob novas roupagens, tanto no
campo como nas cidades. Em suma, formaram-se historicamente
estruturas econômicas e sociais complexas, conjugando relações
entre as novas classes e frações de classe típicas das sociedades
capitalistas tradicionais.

Mesmo assim, a crítica marxista à propriedade privada e privatiza-


ção dos meios de produção da vida humana impõe uma análise fun-
damental para a compreensão das relações de exploração existentes
entre os indivíduos e, como uma classe inteira de não-possuidores
dos meios de produção vive sob o domínio da classe possuidora, ven-
dendo sua força de trabalho para sobreviver e tendo acesso limitado
ao que produz. Por exemplo, o trabalhador que atue em uma constru-
tora de carros constrói dezenas de carros por mês, mas o que ele recebe
por esta produção não é suficiente para comprar um carro dentre os
vários que montou. Ademais, as análises de Marx demonstram como
a exploração de uma classe sobre a outra não se limita à dominação
material e à esfera produtiva, mas quem detém o poder material em

52
uma sociedade tende a dominar também as esferas política e espiri-
tual, ou seja, detém o poder imaterial.

Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre


outras coisas, uma consciência, e é em consequência disso que
pensam; na medida em que dominam enquanto classe e determi-
nam uma época histórica em toda sua extensão, é lógico que esses
indivíduos dominem em todos os sentidos, que tenham, entre ou-
tras, uma posição dominante como seres pensantes, como produ-
tores de ideias, que regulamentem a produção e a distribuição dos
pensamentos de sua época; as suas ideias são, portanto, as ideias
dominantes de sua época (MARX, 1846)

2.7. Luta de Classes


Outro importante aspecto da sociologia marxista, diz respeito à luta
de classes, como Marx afirma:

Pelo que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto


a existência das classes na sociedade moderna, nem a luta entre
elas. Muito antes de mim, alguns historiadores burgueses tinham
exposto o desenvolvimento histórico desta luta de classes, e al-
guns economistas burgueses, a sua anatomia. O que acrescentei
de novo foi demonstrar: 1) que a existência das classes está uni-
da apenas a determinadas fases históricas do desenvolvimento
da produção; 2) que a luta de classes conduz, necessariamente, à
ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura não é mais
que a transição para a abolição de todas as classes e para uma
sociedade sem classes (MARX, 1848)

Ao escrever o Manifesto Comunista (1848), importante obra da socio-


logia marxista, Marx afirma que as classes sociais, em todos os momen-

53
tos da história, “mantiveram uma luta constante, velada umas vezes e
noutras franca e aberta; luta que terminou sempre com a transformação
revolucionária de toda a sociedade ou pelo colapso das classes em luta”
(MARX, 1848). A história da luta de classes é, justamente, a história das
sociedades que a estrutura produtiva está baseada, ou seja, na apropria-
ção privada dos meios de produção. A história da sociedade é a história
da luta por controlar os meios de produção. Mais do que significar o con-
fronto direto, a luta violenta, a expressão “luta de classes” se refere aos
antagonismos, às discordâncias e às oposições entre diferentes classes,
devido ao caráter dialético da realidade. Certamente, podem ocorrer
conflitos de fato entre as classes. Ainda que não ocorram guerras civis
ou internacionais, existe a luta de interesses, o antagonismo de classe, as
discordâncias quanto à apropriação da produção, que gera um descon-
tentamento e inimizade entre as classes. Isto ocorre, porque as classes
dominantes sobrevivem pela exploração do trabalho daqueles que não
possuem os meios de produção, dominando também o mundo imate-
rial, como política, religião e cultura. Assim, a relação entre elas só pode
ser conflitiva, mesmo que apenas em potencial.
Para o materialismo histórico, a luta de classes está relacionada,
diretamente, com as mudanças sociais, com a superação das contra-
dições existentes. Por isso, para Marx, a luta de classes é o motor da
história. A classe explorada é o agente com maior potencial para mu-
dar a sociedade, justamente, porque a classe dominante não tem in-
teresse em mudar a sociedade, mas sim mantê-la, com os privilégios
e explorações.
As classes são, assim, um conjunto de membros de uma sociedade
que compartilham condições objetivas, ou a mesma situação quanto
à posse dos meios de produção. O poder da classe está em organi-
zar-se politicamente para a defesa consciente de seus interesses. O
exemplo pode ser visto nos escritos de Marx aos camponeses france-
ses. Para Marx, os camponeses formavam a grande massa da nação e,
portanto, possuíam um potencial de transformar o país.

54
Assim se forma a grande massa da nação francesa, pela simples
soma de unidades do mesmo nome, do mesmo modo como as
batatas de um saco formam um saco de batatas. Na medida em
que milhões de famílias vivem sob condições econômicas de exis-
tência que as distinguem por sua maneira de viver, seus interesses
e sua cultura de outras classes e se opõem a elas de modo hostil,
aquelas formam uma classe. Dado que existe entre os pequenos
proprietários camponeses uma articulação puramente local, e a
identidade de interesses não engendra entre eles nenhuma comu-
nidade, nenhuma união nacional e nenhuma organização política,
não formam uma classe. São, portanto, incapazes de fazer valer
seu interesse de classe em seu próprio nome (...) não podem re-
presentar-se, mas têm que ser representados. Seu representante
tem que aparecer ao mesmo tempo como seu senhor, como uma
autoridade acima deles, como um poder ilimitado de governo que
o proteja das demais classes e que lhes envie desde o alto a chuva
e o sol (MARX, 1852)

Para exemplificar o potencial de mudança da classe explorada,


Marx utiliza o exemplo da burguesia que, antes de se tornar domi-
nante e exploradora, causou uma série de revoluções no Ocidente, no
começo da Idade Moderna. Através de seu potencial transformador,
revoluções como a Revolução Industrial (1760), Revolução Americana
(1776), Revolução Francesa (1789), entre outras, marcaram a tomada
de poder pela burguesia e queda da Igreja dominante e da nobreza
exploradora.

2.8. Economia Capitalista


Em sua fase mais madura, ao escrever O Capital (1867), Karl Marx
analisa a sociedade e a economia capitalistas, que formam a organi-
zação social mais desenvolvida e mais variada de todas que já existi-
ram. Observando a sociedade capitalista, Marx analisa também ou-

55
tras formas de organização econômica e social que desapareceram,
como as sociedades primitivas, escravistas e feudais, “sob cujas ruí-
nas e elementos ela se edificou, das quais certos vestígios ainda não
apagados, que continuam a existir nela, se enriquecem de toda a sua
significação”. (MARX, 1867).
O ponto de partida para compreender a economia capitalista ba-
seia-se na unidade analítica mais simples dessa sociedade, na forma
pela qual a riqueza é expressa, ou seja, a mercadoria. Esta é a for-
ma assumida pelos produtos e pela própria força de trabalho, sendo
composta de dois fatores: valor de uso e valor de troca. Para Marx, o
valor de uso é determinado pela utilidade da mercadoria para satis-
fazer uma necessidade, já o valor de troca diz respeito a quanto é ne-
cessário para adquirir tal mercadoria, em certo tempo e espaço. Por
um lado, a mercadoria é capaz de satisfazer as necessidades huma-
nas, servindo como meio de subsistência ou de produção, seja física,
material, como matar a fome, ou ainda imaterial, fantasiosa, como
entretenimento. Como tem valor, como é útil, a mercadoria é consu-
mida, enquanto o que não tem valor, não é considerado mercadoria
e não é consumida. Nem toda coisa útil é mercadoria, mas se tornam
mercadorias, quando podem ser trocadas, ou compradas, seja para
uso próprio ou para produção.
O cálculo do valor da mercadoria é baseado no tempo que é gasto
na sua produção. Quanto mais tempo se gasta para fazer a merca-
doria, maior é seu valor. Marx julga que o valor se baseia em “todo
trabalho executado com grau médio de habilidade e intensidade em
condições normais relativas ao meio social dado”. Em outras pala-
vras, o valor da mercadoria é baseado no tempo de trabalho na sua
produção, em uma sociedade e tempo específicos.
Diferentes mercadorias podem possuir valores distintos. Para
isso, é necessário que haja uma forma de avaliação e julgamento dos
consumidores. É preciso haver uma forma de quantificar os valores,
que variam segundo época e lugar, disponibilidade de materiais para

56
desenvolver tal produto e técnicas para produzir tal mercadoria. No
momento da troca, a mercadoria se transforma em algo abstrato. Por
exemplo, quando se compra um carro, o valor dele é dado em reais,
assim como uma barra de chocolate, ou mesmo uma fatia de pão.
Toda mercadoria é transformada em valor abstrato, em moeda. Por
isso, Marx afirma que: “só lhe resta uma qualidade: a de ser produto
do trabalho (...) uma inversão de força humana de trabalho, sem refe-
rência à forma particular em que foi invertida” (MARX, 1867).
O fato de existirem produtores que realizam trabalhos distintos e
precisam das mercadorias produzidas por outros produtores, ou seja,
do produto da atividade de outros para sobreviver, é resultado da di-
visão do trabalho.

Com efeito, as mercadorias a trocar umas pelas outras são sim-


plesmente trabalho materializado em diferentes valores de uso,
portanto materializado de diversas formas - são apenas o modo
de existência materializado da divisão do trabalho ou a materiali-
zação de trabalhos quantitativamente diferentes, corresponden-
do a sistemas de necessidades diferentes (MARX, 1867).

Em troca do que é necessário para sobreviver, cada indivíduo ofe-


rece o fruto do seu trabalho, mesmo que o fruto seja transformado
em moeda, isto é, o trabalho concreto, a força de trabalho. Se trans-
forma em abstrato, sendo transformado em moeda, através da qual
as trocas são realizadas. A divisão do trabalho faz com que as trocas
precisem ocorrer para a satisfação das necessidades. Por exemplo, o
agricultor precisa tomar remédio, o farmacêutico precisa ir ao teatro,
o ator precisa acessar a internet, o técnico em informática precisa co-
mer. Um mesmo indivíduo não produz tudo que precisa, logo precisa
do processo de troca para satisfazer suas necessidades.

O sistema capitalista é aquele no qual se aboliu da maneira mais


completa possível a produção com vistas à criação de valores de

57
uso imediato, para o consumo do produtor: a riqueza só existe
agora como processo social que se expressa no entrelaçamento
da produção e da circulação (MARX, 1867).

As relações de trabalho capitalistas constroem e mantêm a existência


do mercado. Mercado, para Marx, deve ser entendido como o local onde
as mercadorias, bem como a força de trabalho, são negociadas por um
certo valor, entre o trabalhador livre e o capital, ou o dono dos meios de
produção. A força de trabalho tem, contudo, uma particularidade. Ela é a
única mercadoria que pode produzir mais riqueza do que seu próprio va-
lor de troca. Por exemplo, um rapaz que trabalhe fazendo pão na padaria
de um senhor. O rapaz produz uma quantidade de pão que será vendida
por R$ 100,00. Mas, ele só recebeu R$ 50,00 pela hora trabalhada. O restan-
te fica para o dono da padaria. Por isso, Marx afirma que:

A força de trabalho não foi sempre uma mercadoria, o trabalho


não foi sempre trabalho assalariado, isto é, trabalho livre. O es-
cravo não vendia sua força de trabalho ao escravista, do mesmo
modo que o boi não vende seu trabalho ao lavrador. O escravo é
vendido de uma vez para sempre, com sua força de trabalho, a seu
amo. É uma mercadoria que pode passar das mãos de um dono
às mãos de outro. Ele é uma mercadoria, mas sua força de traba-
lho não é uma mercadoria que lhe pertença. O servo da gleba só
vende uma parte de sua força de trabalho. Não é ele que obtém
um salário do proprietário do solo, pelo contrário, é o proprietá-
rio do solo que recebe dele um tributo. Mas o trabalhador livre se
vende a si mesmo e, ademais, vende-se em partes. Leiloa 8, 10,
12, 15 horas de sua vida, dia após dia (...) ao proprietário de maté-
rias-primas, instrumentos de trabalho e meios de vida, isto é, ao
capitalista (MARX, 1867).

Assim, o valor da força de trabalho no mercado é determinado pelo


valor dos meios de subsistência necessários para produzir, crescer e per-

58
petuar a força de trabalho. Isto significa que o trabalhador que a vende,
recebe por ela, em diferentes épocas, o necessário para viver e repro-
duzir aquela forma de vida para sua família. Portanto, o capital não é
simplesmente a soma dos meios de produção. Ele é sim uma relação
social de produção. É uma força histórica de distribuição das condições
de produção, resultante de um processo de concentração e apropria-
ção dos meios de produção. O capital é a relação social de produção
entre indivíduos que detêm os meios de produção e indivíduos que, por
não possuírem os meios de produção, precisam vender sua força de
trabalho. Essa relação social é uma relação de exploração entre os que
possuem os meios de produção e os que não possuem. A exploração
ocorre, pois os que vendem sua força de trabalho, por não possuírem os
meios de produção, produzem mais riqueza do que recebem, sendo, as-
sim, explorados. A esta relação social, Marx denomina “Capital”. Sendo
Capitalismo, a característica da relação baseada no Capital.
A sociedade capitalista se baseia na (falsa) ideologia de igualda-
de, tendo o mercado como parâmetro. De um lado apresenta-se o
trabalhador, que oferece no mercado sua força de trabalho; do outro
lado, está o empregador, que adquire o trabalhador por um salário.
O salário é, portanto, o preço da força de trabalho. A ideia de equiva-
lência na troca, ideia de justiça salarial, é crucial para a estabilidade
da sociedade capitalista. Não significa que a troca seja realmente jus-
ta, mas ela precisa ser compreendida como justa para a manutenção
do sistema. Os homens aparecem iguais diante da lei, do Estado, dos
direitos, deveres e oportunidades. E ele acreditam nessa igualdade.
Contudo, mesmo que o salário seja entendido como uma troca justa
e equivalente entre os homens, o valor que o trabalhador pode pro-
duzir enquanto trabalha é maior do que aquele que ele vende sua ca-
pacidade. Marx diferencia o tempo de trabalho que o indivíduo leva
para gerar o valor que ele recebe por seu trabalho, do tempo de tra-
balho excedente, ou seja o tempo que ele de fato trabalha pelo valor
que vendeu sua força. Lembre-se do exemplo do rapaz da padaria. Ele

59
recebe R$ 500,00 reais de salário para trabalhar 100 horas. Nestas 100
horas, ele produz o equivalente a R$ 1000,00 reais de pão. Ou seja, ele
não recebe de salário o valor que realmente produz. O excedente da
produção, neste caso, os outros R$ 500,00, fica para o dono da padaria,
para o dono do meio de produção.
Em outras palavras, o salário que o trabalhador recebe não equiva-
le a tudo o que ele realmente produz. Por isso, para Marx, a atividade
produtiva não cria valor para o trabalhador, mas sim, para o dono dos
meios de produção, o dono do capital. Na sociedade capitalista, em
suas relações sociais, o valor que é produzido durante o tempo de
trabalho excedente é apropriado pela burguesia. Essa diferença entre
valor produzido e valor recebido pelo trabalhador, é chamado, por
Marx, de mais-valia. A mais-valia é uma riqueza que se opõe à clas-
se trabalhadora. A taxa de mais-valia, isto é, a razão entre o trabalho
excedente e trabalho necessário, demonstra o grau de exploração da
força de trabalho pelo capital. Por exemplo, se o indivíduo recebe R$
100,00 para produzir um sapato que será vendido por R$ 500,00, a taxa
de mais-valia é de R$ 400,00.
O real poder da sociedade capitalista está em manter a explora-
ção, vendendo seu modo de vida, como se fosse o melhor possível.
Assim, o trabalhador não reconhece todo este processo de explora-
ção. O não reconhecimento é o que Marx chama de alienação. O tra-
balhador é alienado, pois não percebe que está sendo explorado, não
percebe que seu trabalho é forçado, ainda que seja resultado de uma
relação livremente aceita.

2.9. Força Revolucionária da Burguesia


Ainda que Marx tenha sido um grande crítico da burguesia e criti-
cado como esta classe explorava a classe proletária, ele não deixou
de reconhecer o poder transformador da classe burguesa e como ela
operou um processo de mudança jamais visto na história.

60
Grande parte do trabalho de Marx está ligado ao estudo do surgi-
mento e evolução do capitalismo, bem como a possibilidade de supe-
ração deste tipo de relação social. Para Marx, o surgimento do capi-
talismo está relacionado com o enfraquecimento e fim da sociedade
feudal que o antecedia. A organização produtiva feudal, com seus
meios de produção urbanos e rurais, técnicas e divisão de trabalho,
já estava esgotada, com novas forças produtivas muito mais podero-
sas em desenvolvimento. Mesmo que as estruturas da Idade Média,
com o poder do rei, da nobreza e da igreja, haviam possibilitado a
“acumulação de capital, desenvolvimento do comércio marítimo e a
fundação das colônias, a manutenção das velhas estruturas feudais
constituir-se-iam em um entrave à continuidade daquela expansão”
(QUINTANEIRO, 2003:46).

Vimos, pois, que os meios de produção e de troca, sobre cuja base


a burguesia se formou, foram criados na sociedade feudal. Ao al-
cançar um certo grau de desenvolvimento, esses meios de produ-
ção e de troca, as condições em que a sociedade feudal produzia
e trocava, toda a organização feudal da agricultura e da indústria,
em uma palavra, as relações feudais de propriedade, deixaram de
corresponder às forças produtivas já desenvolvidas. Freavam a pro-
dução em lugar de impulsioná-la... Era preciso romper essas travas,
e foram rompidas. Em seu lugar estabeleceu-se a livre concorrência,
com uma constituição social e política adequada a ela e com a do-
minação econômica e política da classe burguesa (MARX, 1867)

Marx afirma, por exemplo, que as organizações medievais tinham


grande resistência “à transformação do mestre em capitalista, ao li-
mitar, por meio de rigorosos editos, o número máximo de oficiais e
aprendizes que tinha o direito de empregar, e ao proibir-lhe a utiliza-
ção de oficiais em qualquer outro ofício que não fosse o seu” (MARX,
1867). Ademais, o comerciante poderia comprar qualquer mercado-
ria, menos a força de trabalho para transformá-la em capital, uma vez

61
que em tal estrutura social, a maioria da sociedade possuía instru-
mentos de troca. Por exemplo, o camponês plantava e vendia par-
te da produção, a nobreza recebia parte do pagamento de impostos
da burguesia e do camponês, o burguês vendia seus produtos, o rei
provia segurança e recebia parte da produção. Não existia força de
trabalho livre o suficiente para criar uma classe de trabalhadores que
tinham na venda da força de trabalho a única forma de sobrevivência.

Primeiro, o trabalhador tem que ser uma pessoa livre, que dispo-
nha a seu arbítrio de sua força de trabalho como de sua própria
mercadoria; segundo, não deve ter outra mercadoria para vender.
Por assim dizer, tem que estar livre de todo, por completo despro-
vido das coisas necessárias para a realização de sua capacidade de
trabalho (MARX, 1867).

O fim do feudalismo não marcou apenas uma transformação dos pro-


cessos produtivos, mas também modificou a “organização política do
Estado, as principais forças e poderes sociais que davam a sustentação
ao antigo regime, transformou o sistema jurídico e tributário, a moral,
religião, cultura e ideologia antes dominantes” (QUINTANEIRO, 2003:47).
Toda esta transformação social se deve ao papel revolucionário
cumprido pela burguesia. A ascensão e tomada de poder pela bur-
guesia modificou as formas de propriedade, com ênfase nas cidades
e não mais no campo, mudou a forma de organização do trabalho,
criando uma diferença entre os que possuem e não possuem os meios
de produção, modificou a organização social, destruindo a estrutura
baseada no status da aristocracia feudal e clero, construindo uma
sociedade de classes; modificou a legislação, eliminando impostos e
obrigações feudais, pôs fim ao sistema de vassalagem, fazendo com
que os trabalhadores pudesses ser trabalhadores livres e abalou regi-
mes monárquicos, dando à burguesia um maior poder no desenvol-
vimento e aplicação das leis. Desta forma, a sociedade capitalista não

62
é uma sociedade que transformou apenas as relações de produção,
mas alterou completamente a organização social prévia, construindo
um “novo mundo”. Assim, a revolução da burguesia não só pôs fim ao
antigo sistema, mas

A burguesia não pode existir senão sob a condição de revolucionar


incessantemente os instrumentos de produção e, com isso, todas
as relações sociais (...). Uma revolução contínua na produção, um
abalo constante de todas as condições sociais, uma inquietude e
um movimento constantes distinguem a época burguesa de todas
as precedentes. Rompem-se todas as relações sociais estancadas
e deterioradas, com seu cortejo de crenças e de ideias veneradas
durante séculos; as novas tornam-se velhas antes de terem podi-
do se ossificar (MARX, 1867).

A burguesia cria um mundo que, em todas as áreas, reflita e se sub-


meta ao novo estilo de vida. Marx vê na burguesia a mais clara expres-
são da modernidade e de um processo de racionalização da vida, seja
na economia, política, cultura e até mesmo na religião.
O modo de vida capitalista implica em uma constante necessidade
em encontrar novos mercados consumidores, novas matérias-primas,
novos trabalhadores feudais, uma vez que não foca apenas na necessi-
dade de subsistir, ou de satisfação de necessidades materiais, mas sim
em criar excedente, lucro. Por isso, o modo de produção capitalista não
se limita a um lugar, ou país, mas se estende a todas as nações, que
devem abraçar o que a burguesia chama de “civilização”. Tal modo de
produção leva o capitalismo a ser estabelecido em todas as partes.

2.10. A Transitoriedade do Modo de Vida Capitalista


Mesmo tendo um poder revolucionário, a organização social ca-
pitalista fundada pela burguesia não é, para Marx, uma sociedade

63
infinita, como se fosse “o fim da história”. Na verdade, para Marx, a
sociedade capitalista não aboliu as antigas contradições de classe.
Se antes a burguesia era a classe oprimida e explorada, a nova socie-
dade a transformou em classe opressora e exploradora. Ela apenas
substituiu as antigas classes, as antigas formas de opressão, e as an-
tigas lutas por novas. A divisão continua e está, para Marx, cada vez
mais nítida e dividida

em dois vastos campos inimigos, em duas grandes classes que


se enfrentam diretamente: a burguesia e o proletariado... A bur-
guesia despojou de sua auréola todas as profissões que até então
eram tidas como veneráveis e dignas de piedoso respeito. Do mé-
dico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servido-
res assalariados (MARX, 1867).

Portanto, as condições de lutas de classe são mantidas. Já que to-


das as sociedades classistas estão fadadas ao fim dado a condição da
luta e do conflito existente nelas, o capitalismo também estaria fada-
do ao fim, pelo iminente surgimento de uma revolução social.

As relações burguesas de produção e troca, as relações burguesas


de propriedade, toda essa sociedade burguesa moderna, que fez
surgir tão potentes meios de produção e de troca, assemelha-se
ao feiticeiro que já não é capaz de dominar as potências infernais
que desencadeou com seus conjuros (...). As armas de que a bur-
guesia se serviu para derrubar o feudalismo voltam-se hoje con-
tra a própria burguesia. Porém a burguesia não forjou somente as
armas que lhe darão a morte; produziu também os homens que
empunharão essas armas - os operários modernos, os proletários
(MARX, 1867).

A forma de vida capitalista causa um crescimento, cada vez mais


acelerado, da massa de indivíduos que não possui meios de produ-

64
ção e é, por isso, explorada. Esta massa está, cada vez mais, concen-
trada em grandes centros urbanos e industriais, com maior aumento
de sua capacidade de organização, de luta e de consciência de sua
real situação. É ao proletário, ao indivíduo explorado pela burguesia,
que Marx e Engels atribuem o potencial transformador da sociedade
capitalista. São eles os agentes da mudança e da transformação.

De todas as classes que hoje enfrentam a burguesia, só o proletariado


é uma classe verdadeiramente revolucionária.... As camadas médias
- o pequeno comerciante, o pequeno industrial, o artesão, o campo-
nês - todas elas lutam contra a burguesia para salvar sua existência,
enquanto camadas médias, da ruína. Não são, pois, revolucionárias,
mas conservadoras. Mais ainda, são reacionárias, já que pretendem
voltar atrás a roda da História. São revolucionárias somente quando
têm diante de si a perspectiva de sua passagem iminente ao proletaria-
do (...) O lumpemproletariado, esse produto passivo da putrefação das
camadas mais baixas da velha sociedade, pode, às vezes, ser arrastado
ao movimento por uma revolução proletária; todavia, em virtude de
suas condições de vida está mais predisposto a vender-se à reação para
servir às suas manobras (MARX, 1867).

Através de um processo revolucionário e transformador, a apro-


priação e privatização dos meios de produção que pertencem a uma
classe específica desaparecem e, a partir disso, tem-se início um pro-
cesso de fundação de uma nova sociedade, fundada sobre novas ba-
ses. No que se refere a revolução proletária, à medida em que desa-
parecer a garantia da propriedade privada dos meios de produção,
desaparece também a burguesia enquanto classe e o modo de pro-
dução capitalista. Assim, o fim da propriedade privada traz também
o fim do modo de vida capitalista. Com isso, teria início uma nova
forma de organização social que, inicialmente, seria a ditadura do
proletariado. Posteriormente, após realizadas todas as condições ne-
cessárias, teria início uma sociedade comunista. A organização social

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capitalista será substituída “por uma associação que exclua as clas-
ses e seu antagonismo; já não existirá um poder político propriamen-
te dito, pois o poder político é precisamente a expressão oficial do
antagonismo de classe dentro da sociedade civil” (MARX, 1867). Para
tal possibilidade se tornar real, seria necessário o grande desenvol-
vimento das forças produtivas promovido pela produção capitalista.
É necessário que o modo de vida capitalista seja realmente mundial
e que a classe proletária não seja presente só em uma parte do glo-
bo. A real revolução proletária só terá sucesso se ocorrer em todos os
países e nações. Caso contrário, “apenas se generalizará a penúria e,
com a pobreza, começará paralelamente a luta pelo indispensável e
cair-se-á fatalmente na imundície anterior” (MARX, 1846). A libertação
real é a libertação de toda a classe proletária em uma escala mundial,
uma vez que “a libertação é um fato histórico e não um fato intelectu-
al, e é provocado por condições históricas, pelo progresso da indús-
tria, do comércio, da agricultura” (MARX, 1846).

2.11. Sociedade Capitalista, alienação e trabalho


Assim como todas as relações humanas são fruto de suas relações
materiais, e como a superestrutura é uma consequência da relação
estrutural, a ideia marxista de alienação também parte da atividade
humana central, isto é, do trabalho. Em seus trabalhos, Marx dá im-
portância à alienação do trabalhador na sociedade capitalista. Nesta
sociedade, a relação entre o trabalhador e seu trabalho é de “estra-
nhamento”. Há uma distância entre o trabalhador e seu produto final.
O resultado é o trabalho alienado, independente do produtor, hostil a
ele, que pertence ao homem que o explora. A alienação caracteriza a
relação social na sociedade capitalista.
Para melhor explicar o conceito de alienação, Marx aponta três ca-
racterísticas da alienação: 1) o trabalhador é alienado em relação às
coisas. O trabalhador relaciona o produto do seu trabalho como se

66
fosse alheio a ele, pois não tem controle sobre o que é produzido. O
fato de ter participado da produção, não dá a ele poder sobre a coisa.
Mesmo que o trabalhador trabalhe na fábrica fazendo camisas, ele não
pode, simplesmente, tomar uma e levar para casa. É necessário ir até
a loja e comprar. O que ele produz não pertence a ele; 2) o trabalhador
é alienado a ele mesmo. A atividade do seu trabalhador não está sob
seu domínio, é estranha a ele. As atividades que ele performa são re-
alizadas, pois lhe são demandadas, não porque ele as escolhe. Quan-
do um trabalhador decide trabalhar em alguma empresa, ele tem que
fazer o que dele é pedido, demandado. Não pode escolher o que fazer
ou até onde deseja participar; 3) o trabalhador é alienado em relação
a liberdade. A vida do trabalhador passa a ser para que sobreviva, um
meio para satisfazer as necessidades básicas. Ele não é livre. Seu va-
lor passa estar na produção e não nele mesmo. Por exemplo, um mé-
dico ganha mais que um gari; baseia-se no maior valor que o primeiro
tem para a sociedade. A importância do indivíduo para a sociedade
está na sua capacidade de produção, e não na sua existência. Portan-
to, “do mesmo modo como o operário se vê rebaixado no espiritual e
no corporal à condição de máquina, fica reduzido de homem a uma
atividade abstrata e a um estômago” (MARX, 1867). Assim, o trabalho
produtivo passa a ser uma obrigação para o proletário, pois não pos-
suindo os meios de produção, é obrigado a vender sua atividade vital,
sua força vital, que

não é para ele mais do que um meio para poder existir. Ele traba-
lha para viver. O operário nem sequer considera o trabalho como
parte de sua vida, para ele é, antes, um sacrifício de sua vida. É
uma mercadoria por ele transferida a um terceiro. Por isso o pro-
duto de sua atividade não é tampouco o objetivo dessa atividade.
O que o trabalhador produz para si mesmo não é a seda que tece,
nem o ouro que extrai da mina, nem o palácio que constrói. O que
produz para si mesmo é o salário, e a seda, o ouro e o palácio redu-
zem-se para ele a uma determinada quantidade de meios de vida,

67
talvez a um casaco de algodão, umas moedas de cobre e um quar-
to num porão. E o trabalhador que tece, fia, perfura, torneia, cava,
quebra pedras, carrega etc. durante doze horas por dia - são essas
doze horas de tecer, fiar, tornear, construir, cavar e quebrar pedras
a manifestação de sua vida, de sua própria vida? Pelo contrário.
Para ele a vida começa quando terminam essas atividades, à mesa
de sua casa, no banco do bar, na cama. As doze horas de trabalho
não têm para ele sentido algum enquanto tecelagem, fiação, per-
furação etc., mas somente como meio para ganhar o dinheiro que
lhe permite sentar-se à mesa, ao banco no bar e deitar-se na cama.
Se o bicho-da-seda fiasse para ganhar seu sustento como lagarta,
seria o autêntico trabalhador assalariado (MARX, 1867).

Em outras palavras, o trabalhador e suas forças só existem para


o capital. Sua existência depende de seu trabalho e de seu salário.
O indivíduo que não trabalha, que não produz, não tem valor para a
sociedade. Uma vez que o trabalhador só existe quando se relaciona
com o capital, que não lhe pertence e lhe é estranho, a vida do traba-
lhador é também estranha a ele próprio. “Diz Marx que o malandro,
o sem-vergonha, o mendigo, o faminto, o miserável e o delinquente
não existem para a economia política; são fantasmas fora de seu rei-
no, já que ela somente leva em conta as necessidades do trabalhador
cujo atendimento permite manter vivo a ele e a categoria dos traba-
lhadores” (QUINTANEIRO, 2003:50).
Nesta relação de alienação e exploração, o salário funciona como
um mantenedor do trabalhador, como instrumento produtivo. A de-
pendência não ocorre só para satisfazer as necessidades materiais,
mas também as imateriais, como beleza, paixão e cultura. Enquan-
to existir a propriedade privada e os meios de produção privados, as
necessidades dos homens serão resumidas ao dinheiro, e as novas
necessidades e demandas que surgirão na sociedade causarão cada
vez mais dependência entre o trabalhador e o dinheiro.

68
Com a massa de objetos cresce, portanto, o reino dos seres alheios
aos quais o homem está submetido, e cada novo produto é uma
nova potência do recíproco engano e da recíproca exploração. O
homem, enquanto homem, faz-se mais pobre, necessita mais do
dinheiro para apoderar-se do ser inimigo (MARX, 1848).

O trabalhador não reconhece o produto que criou, não tem contro-


le sobre ele. O trabalho existe como uma forma de garantir a sobrevi-
vência. A cooperação entre os homens que gera a divisão do trabalho
não é mais controlada pelos trabalhadores, nem sabem de onde sur-
ge e existe independente da vontade deles. Se nas sociedades primi-
tivas, um caçava e o outro plantava e eles dividiam a produção cientes
da importância da cooperação, no mundo moderno eles cooperam,
porque são obrigados pelos donos do capital, e não por decisão pró-
pria. A produção coletiva é organizada e estruturada de acordo com
os interesses daqueles que controlam a produção, ou seja, a burgue-
sia. Nesta relação social, todas as necessidades de realização pessoal
e bem-estar dos proletários que não estejam diretamente ligadas a
produção da riqueza são desconsideradas.
Na medida em que a produção capitalista cresce, torna-se essen-
cial o aperfeiçoamento técnico e a divisão do trabalho para susten-
tar a necessidade de aumento da produtividade. Contudo, torna-se
também cada vez maior a alienação e a distância do trabalhador com
o produto final. “O que caracteriza a divisão do trabalho no seio da
sociedade [capitalista] é ela que engendra as especialidades, as dis-
tintas profissões e, com elas, o idiotismo do ofício” (MARX, 1867). A
divisão capitalista do trabalho e as atividades profissionais exercidas
nesta sociedade atendem aos interesses particulares dos grupos do-
minantes e da classe dominante, a burguesia, e só, raramente, aos
produtores. As decisões quanto ao como, quanto, do quê, com qual
frequência pertencem aos grupos dominantes e escapam do pro-
dutor, desta forma “retiram ao trabalho do proletário todo o caráter

69
substantivo e fazem com que perca todo atrativo para ele. O produtor
converte-se num simples apêndice da máquina e só se exigem dele
as operações mais simples, mais monótonas e de mais fácil apren-
dizagem” (MARX, 1867). Ademais, um trabalhador pode ser mais fa-
cilmente substituído por outro, sem muitas condições de negociar e
exercer melhores condições de trabalho e de vida. Portanto,

hoje em dia o custo do operário se reduz, mais ou menos, aos


meios de subsistência indispensáveis para viver e perpetuar sua
linhagem. Mas o preço do trabalho, como de toda mercadoria, é
igual ao custo de sua produção. Portanto, quanto mais enfadonho
é o trabalho, mais baixam os salários. (...). Quanto menos o traba-
lho exige habilidade e força, isto é, quanto maior é o desenvolvi-
mento da indústria moderna, maior é a proporção em que o tra-
balho dos homens é suplantado pelo das mulheres e crianças. As
diferenças de idade e sexo perdem toda significação social no que
se refere à classe operária. Não há senão instrumentos de trabalho
cujo custo varia segundo a idade e o sexo (MARX, 1848).

Em condições de alienação, o trabalho faz com que o crescimen-


to da riqueza não atue na melhoria do ser humano, mas sirva como
meio de exploração. Logo, o trabalho não é a forma que os indivíduos
satisfazem suas necessidades, mas sim um meio de vida que permite
realizar tal satisfação. Por exemplo, o homem que trabalha produzindo
leite em uma indústria não pode satisfazer sua fome consumindo di-
retamente o leite, isso não lhe é permitido. Através do dinheiro que ele
recebe por seu trabalho, ele compra o leite para satisfazer sua necessi-
dade. À vista disso, o trabalho “não é a satisfação de uma necessida-
de senão, somente, um meio para satisfazer as necessidades fora do
trabalho” (MARX, 1848).
Para Marx, o trabalhador não se sente feliz, pois seu trabalho é
externo a ele, não é parte de seu corpo e de sua escolha. Como nos
lembra Quintaneiro (2003:52), “se não existisse coação, ele fugiria do

70
trabalho como da peste... Ele só se sente de fato livre em suas funções
animais e em suas funções humanas sente-se como um animal: ‘O
animal se converte no humano, o humano no animal’”. No sistema
capitalista, a força de trabalho é regulada como qualquer mercadoria.
O que significa que, se a oferta for maior do que a demanda, parte dos
trabalhadores morrerão ou tornar-se-ão mendigos e pedintes.
Como os trabalhadores participam de uma organização social que
não é formada pelo controle coletivo, pelo controle dos próprios tra-
balhadores, eles não participam conscientemente do processo pro-
dutivo. O poder social é entendido como algo alheio, à parte.

Todos os meios para desenvolver a produção transformam-se em


meios para dominar e explorar o produtor: fazem dele um homem
truncado, fragmentário, ou o apêndice de uma máquina. Opõem-
se a ele, como outras tantas potências hostis, as forças científicas
da produção. Substituem o trabalho atrativo por trabalho forçado.
Fazem com que as condições em que se desenvolve o trabalho se-
jam cada vez mais anormais, e submetem o trabalhador, duran-
te seu serviço, a um despotismo tão ilimitado como mesquinho.
Convertem toda sua vida em tempo de trabalho (MARX, 1867)

Por isso, Marx entende que a sociedade capitalista só consegue se


manter, se alienar o trabalhador, tirando dele o controle sobre sua
produção e tornando sua força de trabalho em mercadoria. Marx en-
tende que tal alienação e exploração é passível de mudança, mas o
caminho passa, necessariamente, pelo fim da sociedade de classes,
“a condição da emancipação da classe operária é a abolição de todas
as classes” (MARX, 1867). O propósito de Marx ao estabelecer crítica
sobre a sociedade capitalista é mostrar o caminho para a humaniza-
ção, fazendo com que os homens assumam o direito da produção, or-
ganizando-a e orientando-a, segundo suas vontades e necessidades,
não de acordo com a vontade de um poder externo e superior que
regulamente a atividade de cada indivíduo. O fim da alienação exige

71
que as condições de trabalho que os homens possuem sejam seme-
lhantes e livres na relação com o outro e com a natureza. Para Marx,
isso só é possível com a criação de uma sociedade onde o conflito
entre os homens e com a natureza seja resolvido, a saber, a sociedade
comunista.

2.12.Comunismo e Revolução
Fruto de uma sociedade influenciada pelo positivismo, Marx se
preocupa com o progresso e procura desenvolver leis que estejam re-
lacionadas com o desenvolvimento das sociedades.

Uma organização social nunca desaparece antes que se desenvol-


vam todas as forças produtivas que ela é capaz de conter, nunca
relações de produção novas e superiores se lhe substituem antes
que as condições materiais de existência dessas relações se pro-
duzam no próprio seio da velha sociedade. É por isso que a huma-
nidade só levanta os problemas que é capaz de resolver e, assim,
numa observação atenta, descobrir-se-á que o próprio problema
só surgiu quando as condições materiais, para resolvê-lo, já exis-
tiam ou estavam, pelo menos, em vias de aparecer (MARX, 1867).

A história mostra que quando a necessidade de expansão das for-


ças produtivas se choca com as estruturas sociais, econômicas e polí-
ticas existentes, as estruturas começam a perder forças, desintegram-
se, para dar lugar a novas estruturas, que são contraditórias com as
estruturas e valores da sociedade vigente. Tem-se início uma era re-
volucionária e conflitante, entre estruturas em declínio, contra estru-
turas em ascensão. O progresso é o resultado dessa transformação.
A sociedade burguesa surge do conflito com a sociedade medie-
val, onde as novas formas de produção vieram de encontro as rela-
ções sociais existentes. O progresso nas formas de produção e as mu-

72
danças nas formas de relação entre os produtores não ocorreram de
forma simples e pacífica. A revolução burguesa alterou não apenas as
formas de produção e as relações sociais de produção vigentes, como
houve transformações nas instituições políticas, religiosas e jurídicas.

Quando uma classe consegue impor-se sobre outras classes de-


bilitadas ou historicamente ultrapassadas, ela destrói as formas
econômicas, as relações sociais, civis e jurídicas, as visões de
mundo e o regime político, substituindo-os por outros, condizen-
tes com seus interesses e seu domínio. (QUINTANEIRO, 2003:55)

A classe burguesa, até então dominada, foi capaz de conquistar o


poder, passando de classe dominada para classe dominante. Não é
uma simples troca de antes explorada para agora exploradora, mas
sim a construção de uma sociedade com novas bases. Por isso, Marx
considera a classe revolucionária a maior força produtiva. Quando
uma classe se encontra dominada, seus interesses são combatidos
e reprimidos pela classe dominante. A dominação não ocorre ape-
nas no nível material, mas se organiza na forma de ideologia, ciência,
religião, leis, valores, modo de pensar, além da atuação do Estado,
entre outros. De acordo com Marx, a única forma deste antagonismo
de classe ter fim é com o fim da própria estrutura de classe. Superar
a estrutura de classe é suplantar e pôr fim à propriedade privada. Por
isso, superar esta alienação, sobrepujando a estrutura de classe, de-
volve ao homem sua vida humana e social.
Por conseguinte, o modo de vida capitalista representou uma evo-
lução em relação ao feudalismo, modificando a maneira pela qual o
trabalho se organizava, pela extração do trabalho excedente e a nova
organização social. A nova organização forma condições que “são mais
favoráveis para o desenvolvimento das forças produtivas, das relações
sociais de produção e para a criação de uma estrutura nova e superior”
que resultará de um processo revolucionário, “uma etapa na qual desa-

73
parecerão a coerção e a monopolização, por uma fração da sociedade
em detrimento da outra, do progresso social” (MARX, 1868). Uma nova
sociedade, que Marx chama de sociedade comunista, não é pensada
por ele para ser uma utopia ou algo impossível, porém, afirma, “o co-
munismo é a forma necessária e o princípio dinâmico do futuro ime-
diato, mas o comunismo em si não é a finalidade do desenvolvimento
humano, a forma da sociedade humana” (MARX, 1847). Esta nova so-
ciedade, a sociedade comunista, possibilita submeter os homens ao
poder dos indivíduos, livremente, associados, onde a divisão do traba-
lho passa a obedecer aos interesses de toda sociedade.

Garantida a apropriação social das condições da existência, extin-


guir-se-ia a contradição entre o indivíduo privado e o ser coletivo,
sendo geradas as condições para a liberação das capacidades cria-
doras humanas, promovendo a instalação do reino da liberdade
o qual só começa quando se deixa de trabalhar por necessidade
e condições impostas desde o exterior (QUINTANEIRO, 2003:56).

Marx descreve, alegoricamente, a sociedade comunista da seguin-


te forma:

Com efeito, desde o momento em que o trabalho começa a ser re-


partido, cada indivíduo tem uma esfera de atividade exclusiva que
lhe é imposta e da qual não pode sair; é caçador, pescador, pastor
ou crítico e não pode deixar de o ser se não quiser perder seus
meios de subsistência. Na sociedade comunista, porém, onde
cada indivíduo pode aperfeiçoar-se no campo que lhe aprouver,
não tendo por isso uma esfera de atividades exclusiva, é a socie-
dade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma
coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à
noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isso a meu bel-prazer,
sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crí-
tico (MARX, 1847).

74
Na sociedade comunista, o sistema social seria regulado de acordo
com as necessidades humanas, sendo o resultado de uma reconstru-
ção da sociedade dando início a uma nova vida social.

A verdadeira riqueza intelectual do indivíduo depende apenas da


riqueza de suas relações reais, só desta forma se poderá libertar
cada indivíduo dos seus diversos limites nacionais e locais depois
de entabular relações práticas com a produção do mundo inteiro
(incluindo a produção intelectual) e de se encontrar em estado de
poder beneficiar da produção do mundo inteiro em todos os domí-
nios (criação dos homens). A dependência universal... será transfor-
mada pela revolução comunista em controle e domínio consciente
desses poderes que, engendrados pela ação recíproca dos homens
uns sobre outros, se lhes impuseram e os dominaram até agora,
como se se tratasse de poderes absolutamente estranhos (MARX,
1847).

2.13. Considerações Finais


A sociologia de Marx não desenvolve apenas uma análise crítica
da sociedade capitalista, mas propõe uma forma de ultrapassar e pôr
fim às relações sociais existentes nesta sociedade. Consequentemen-
te, Marx não admite uma teoria que seja à parte da prática ou ainda
uma separação entre as ideias e vida material.
As teorias e análises marxistas foram estudadas e interpretadas
por estudiosos durante todo o século XX e o continua sendo no século
XXI. As diversas áreas do conhecimento das ciências humanas, como
a antropologia, direito, economia, política e até mesmo a teologia,
apropriaram-se das análises marxistas para desenvolver pensamen-
tos, ideias e formas de análises que explicassem problemas e dificul-
dades presentes e propusessem soluções para tais.

75
O método marxista, materialismo histórico, também foi, e ainda é,
amplamente utilizado para explicar questões contemporâneas e
analisar demandas e necessidades sociais. Movimentos políticos
e sociais - tais como grupos feministas, ambientalistas, partidos,
sindicatos, movimentos libertários e estéticos vinculados ao tea-
tro revolucionário e popular, ao cinema, às correntes psicanalíti-
cas - encarregaram-se também de examinar as proposições mar-
xianas (QUINTANEIRO, 2003:58).

Entender e estudar as análises de Marx é fundamental para entender


como a sociologia passou a interpretar o mundo à sua volta e analisar a
forma como os homens se relacionavam uns com os outros e com a so-
ciedade como um todo. Suas leituras sobre o sistema capitalista, suas
crises e sua, inevitável, falência mostram como o objetivo da sociologia
enquanto ciência é analisar criticamente a realidade a fim de compre-
endê-la e responder as questões que surgem durante tais análises.

2.14.Referências
ENGELS, F. Ludwig Feuerbach y el fin de la filosofía clásica alema-
na. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escogidas de Marx y Engels. Madrid:
Fundamentos, 1975. 2 V.
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dução de Henrique Lima Vazo São Paulo: Abril Cultural, 1980.
MARX, K. Carta a Annenkov, 28/12/1846. In: MARX, K.; ENGELS, F.
Obras escogidas de Marx y Engels. Madrid: Fundamentos, 1975. 2 V.
MARX, K. In: Carta a Weidemeyer, 5/3/1846. MARX, K.; ENGELS, F.
Obras escogidas de Marx y Engels. Madrid: Fundamentos, 1975. 2 V.
MARX, K.; ENGELS, F. Obras escogidas de Marx y Engels. Madrid:
Fundamentos, 1975. 2 V.
MARX, K Crítica à economia política. In: __. Contribuição para a crí-
tica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973.

76
MARX, K Discurso no People’s Paper. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras
escogidas de Marx y Engels. Madrid: Fundamentos, 1975. 2 V.
MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de Conceição
Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 1976.
2 V. 1ª Edição em 1867
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: __. Obras
escogidas de Marx y Engels. Madrid: Fundamentos, 1975. 2 V. 1ª Edi-
ção em 1848
MARX, K; ENGELS, F. Teses contra Feuerbach. In: __. A ideologia
alemã. Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa:
Presença/ Martins Fontes, 1976. 2 V.
MARX, K. EI capital. Crítica de ia economía política. Tradução de
Floreal Mazía. Buenos Aires: Cartago, 1973. 3 V.
MARX, Carlos. Introdução à crítica da economia política. In: __.
Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa,
1973.
MARX, K. Manuscritos: economía y filosofía. Tradução de Francisco
Rubio Llorente. Madrid: Alianza Editorial, 1974.
MARX, K. Miseria de Ia filosofía. Respuesta a ia filosofía de la mise-
ria dei senor Proudhon. Buenos Aires: Siglo XXI, 1974.
MARX, K. El dieciocho brumario de Luis Bonaparte. In: MARX, K.;
ENGELS, F. Obras escogidas de Marx y Engels. Madrid: Fundamentos,
1975. 2 V. 1ª Ed. em 1852
MARX, K. Prefácio. In: __. Contribuição para a crítica da economia
política. Lisboa: Estampa, 1973. 1ª Ed em 1859.
MARX, K. Trabalho assalariado e capital. In: MARX, K.; ENGELS, F.
Obras escogidas de Marx y Engels. Madrid: Fundamentos, 1975. 2 V.
MARX, K. O capital. [s.n.t.].
QUINTANEIRO, T.; OLIVEIRA, M.; OLIVEIRA, B. Um toque de Clássi-
cos: Marx, Durkheim, Weber. Ed. UFMG, 2ª Ed.; Belo Horizonte, 2003

77
CAPÍTULO 3
Émile Durkheim

O indivíduo só poderá agir na medida em que


aprender a conhecer o contexto em que está inse-
rido, a saber quais são suas origens e as condições
de que depende. E não poderá sabê-la sem ir à es-
cola, começando por observar a matéria bruta que
está lá representada. 

3.1. Breve Biografia


David Emile Durkheim nasceu em 15 de abril de 1858 em Épinal,
na França. Vindo de uma linhagem de judeus devotos e rabinos, co-
meçou sua educação em uma escola rabínica, mas decidiu não se-
guir o mesmo caminho de seu pai e avô. Em 1879, ingressou na Éco-
le Normale Supérieure, em Paris, escrevendo sua dissertação sobre
Montesquieu. Sendo profundamente influenciado pelo pensamento
de Auguste Comte e Herbert Spencer. Por isso, desde cedo, Durkheim
recebeu grande influência da ciência positivista, pensamento que irá
permear seu pensamento e sua construção sociológica durante toda
a carreira. Todavia, tal influência trouxe bastantes conflitos com a
academia francesa, que não possuía currículo de ciências sociais na
época. Eis uma das razões pela qual Durkheim dedicará seus estudos
ao desenvolvimento da sociologia como ciência acadêmica.

78
Tendo voltado os estudos à psicologia e filosofia, buscando desen-
volver a sociologia, Durkheim não conseguiu receber uma nomeação
acadêmica importante em Paris. De 1882 a 1887, ensinou filosofia em
diversas escolas menores. Em 1885, mudou-se para a Alemanha onde
estudou, por dois anos. Já em 1886, terminou uma importante parte
de sua tese de Doutorado, intitulado A Divisão das Tarefas na Socie-
dade, que seria fundamental para o estabelecimento da sociologia
como ciência.
Tendo publicado diversos artigos nos dois anos que morou na Ale-
manha, Durkheim começou a ganhar prestígio na França e passou a
trabalhar como docente na Universidade de Bordeaux em 1887, onde
ensinava o primeiro curso de ciências sociais daquela universidade.
A nomeação de Durkheim ao corpo docente marcou uma importante
mudança que apontava para uma crescente importância e reconhe-
cimento das ciências sociais no Ocidente. A partir disso, Durkheim
auxiliou na reformulação do sistema escolar francês, introduzindo o
estudo das ciências sociais no currículo.
A década seguinte foi marcada por uma extensa produção durkhei-
miana, desde a produção de sua tese de doutorado, Da Divisão do Traba-
lho Social (1893), até suas obras principais, Regras do Método Sociológico
(1895), O Suicídio (1897); na década posterior, As Formas Elementares da
Vida Religiosa (1912).
Entretanto, a Primeira Guerra Mundial produziu um efeito trágico
na vida de Emile Durkheim. Emocionalmente devastado pela perda
de seu filho mais velho e de vários de seus alunos, nas trincheiras,
Durkheim entrou em colapso, após um acidente vascular cerebral e
faleceu em 15 de novembro de 1917.
A importância de Durkheim para a sociologia é sine qua non. Con-
siderado o pai desta ciência, os trabalhos de Durkheim possuem, até
hoje, impacto significativo na análise da sociedade e na influência
que ela causa sobre a vida dos indivíduos. De fato, Durkheim foi um

79
dos que mais contribuiu para a construção e consolidação da Socio-
logia como ciência empírica e acadêmica, tendo as mudanças sociais
da época, bem como a ciência positivista, as grandes influenciadoras
do seu pensamento.

As referências necessárias para situar seu pensamento são, por


um lado, a Revolução Francesa e a Revolução Industrial e, por ou-
tro, o manancial de ideias que, sobre esses mesmos acontecimen-
tos, vinha sendo formado por autores como Saint-Simon e Comte.
Entre os pressupostos constitutivos da atmosfera intelectual da
qual se impregnaria a teoria sociológica durkheimiana, cabe sa-
lientar a crença de que a humanidade avança no sentido de seu
gradual aperfeiçoamento, governada por uma força inexorável: a
lei do progresso (QUINTANEIRO, 2003:60).

A sociedade moderna era profundamente marcada pelas mudan-


ças industriais, ascensão e consolidação do poder da burguesia, e o
surgimento de ideias e valores que exigiam novas interpretações e
análises. Juntamente com as mudanças, aguçava-se a percepção que
o coletivo não era simplesmente uma continuação do indivíduo, mas
um ser distinto e complexo aos indivíduos que o formam. O coletivo,
ou a sociedade, seria, justamente, o objeto próprio da Sociologia, e o
estudo deste objeto requeria um método positivo, apoiado na obser-
vação, indução e experimentação, da forma como faziam os cientis-
tas naturais.

3.2. A Especificidade do Método Sociológico


Durkheim define a Sociologia como “a ciências das instituições, da
sua gênese e do seu funcionamento”, onde “instituição” é entendida
como “toda crença, todo comportamento instituído pela coletivida-
de” (DURKHEIM, 1895). No início da produção durkheimiana, marcada
pela influência positivista, o objetivo era transformar a Sociologia em

80
uma ciência autônoma, e, para isso, era necessário delimitar o obje-
to próprio desta ciência. Ao objeto, Durkheim chama de “Fato Social”.
Para ele, Fato Social é definido como “toda maneira de agir fixa ou não,
suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então
ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando
uma existência própria, independente das manifestações individuais
que possa ter”, as “maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores
ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se
lhe impõem”, ou ainda “maneiras de fazer ou de pensar, reconhecíveis
pela particularidade de serem suscetíveis de exercer influência coerci-
tiva sobre as consciências particulares” (DURKHEIM, 1895).
Em outras palavras, Fato Social é uma instituição social com 3 ca-
racterísticas básicas: 1) é externo, ou seja, não foi criado ou inventado
por algum indivíduo particular, vem de fora dele; 2) é geral, influencia
todos os indivíduos na sociedade e não apenas um; 3) é coercitivo,
o indivíduo é obrigado ou coagido a realizar tal ação ou comporta-
mento. Pense na língua. No Brasil, a língua é o Português. Quando um
indivíduo nasce, ele aprende o Português como lhe é ensinado. Não é
ele que inventa uma língua nova. Ela é externa a ele. Além disso, os in-
divíduos na sociedade brasileira falam português, não apenas um indi-
víduo. Logo, é geral. O indivíduo que quiser se comunicar, tem que falar
o Português. Não pode criar uma língua, só para ele, porque ninguém
vai lhe compreender. Por conseguinte, ela é coercitiva. Conclui-se, en-
tão, a Língua é um fato social.
Fato social é algo dotado de vida própria. Não é resultado da sim-
ples vontade dos indivíduos, ou que atua sobre os indivíduos fazendo
com que eles atuem, comportem-se e pensem de uma certa forma.
Como a sociedade, o “reino social” está sujeito a leis próprias e es-
pecíficas, necessita de um método próprio, que guie as análises. Para
Durkheim, a sociedade não é a simples soma dos indivíduos vivos,
composta por uma união de suas consciências. “Ações e sentimen-
tos particulares, ao serem associados, combinados e fundidos, fazem

81
nascer algo novo e exterior àquelas consciências e às suas manifesta-
ções” (QUINTANEIRO, 2003:62). Mesmo que a sociedade seja compos-
ta pelos indivíduos e se forme pelo agrupamento das partes, a com-
posição “dá origem ao nascimento de fenômenos que não provêm
diretamente da natureza dos elementos associados” (DURKHEIM,
1895). A sociedade é, portanto, mais do que uma soma. Comparan-
do-se ao corpo humano, a vida está no todo e não nas partes de forma
independente. Daí, para Durkheim, a sociedade é

O mais poderoso feixe de forças físicas e morais cujo resultado a


natureza nos oferece. Em nenhuma parte, encontra-se tal riqueza
de materiais diversos levado a tal grau de concentração. Não é sur-
preendente, pois, que uma vida mais alta se desprenda dela e que,
reagindo sobre os elementos dos quais resulta, eleve-os a uma
forma superior de existência e os transforme (DURKHEIM, 1895)

Desta forma, o todo, o grupo, não possui uma mentalidade idênti-


ca à dos indivíduos, e os estados de consciência coletivos são diferen-
tes dos estados de consciência individual. Os fenômenos que consti-
tuem a sociedade, os fatos sociais, não são originários em cada um
dos seus participantes, mas sim em toda coletividade. Por isso, é na
coletividade que se deve buscar as explicações para os fatos sociais e
não na vida particular de cada um dos indivíduos, pois

As consciências particulares, unindo-se, agindo e reagindo umas


sobre as outras, fundindo-se, dão origem a uma realidade nova
que é a consciência da sociedade. (...). Uma coletividade tem as
suas formas específicas de pensar e de sentir, às quais os seus
membros se sujeitam, mas que diferem daquelas que eles prati-
cariam se fossem abandonados a si mesmos. Jamais o indivíduo,
por si só, poderia ter constituído o que quer que fosse que se as-
semelhasse à ideia dos deuses, aos mitos e aos dogmas das religi-
ões, à ideia do dever e da disciplina moral etc. (DURKHEIM, 1895)

82
Os fatos sociais podem ser mais ou menos consolidados e cristali-
zados na sociedade. Os fatos sociais menos consolidados e mais flui-
dos são as maneiras de agir. Entre tais maneiras estão as correntes
sociais, os movimentos coletivos e as correntes de opinião, “que nos
impelem com intensidade desigual, segundo as épocas e os países,
ao casamento, por exemplo, ao suicídio, à uma natalidade mais ou
menos forte etc.” (DURKHEIM, 1895). Pense, por exemplo, no casamen-
to. Mesmo que você não queira casar, é esperado de você que pelo me-
nos pense na possibilidade e considere juntar-se a alguém pelo resto
da vida.
Já os fatos sociais mais consolidados e cristalizados se relacionam
às maneiras de ser: “regras jurídicas, morais, dogmas religiosos, sis-
temas financeiros, vias de comunicação, a maneira como se constro-
em casas, vestimentas de um povo e inúmeras formas de expressão.
Eles são, por exemplo, os modos de circulação de pessoas e de mer-
cadorias, de comunicar-se, vestir-se, dançar, negociar, rir, cantar, con-
versar, etc., que vão sendo estabelecidos pelas sucessivas gerações”.
(QUINTANEIRO, 2003:63). Imagine que você não goste do sistema de
trocas comerciais que existe, ou seja, compra e venda e utilização do di-
nheiro e moeda. Por mais que você não goste, dificilmente você vai con-
seguir comprar ou vender alguma coisa sem utilizar dinheiro. Se você
aparecer em uma loja de carros, querendo comprar um e quiser dar
em troca uma certa quantidade de bois e vacas, provavelmente não irá
conseguir. É provável que você tenha que vender os animais utilizando
dinheiro e com esse dinheiro, volte e compre o carro. Ou seja, há uma
coerção para utilizar o sistema de trocas vigente.
São mais ou menos cristalizados e consolidados. Tanto as manei-
ras de agir quanto as maneiras de ser são, de igual modo, coercitivas,
coagindo os membros das sociedades a adotar certas formas de agir,
de se comportar, ou de sentir. Por não ser algo que surge dentro dos
indivíduos, ou seja, tem sua origem de forma externa, que foi passado
para ele pelos seus ancestrais e pelos outros indivíduos em socieda-

83
de, formando, assim, uma realidade objetiva, constitui-se como fato
social.
Durkheim, então, a fim de provar que as formas de agir, de ser, de
pensar e de sentir são externas ao indivíduo, afirma que estas diversas
formas são internalizadas por meio de um processo educativo. Desde
crianças, quando ainda são muito pequenos, os indivíduos são edu-
cados a seguir horários, ter disciplina, desenvolver comportamentos
e maneiras de ser específicas, trabalhar, responder de determinada
forma a certos sentimentos e a ter certas expectativas. É importante
lembrar que, para Durkheim, o processo educacional ocorre por uma
transmissão da família para a criança, da escola para a criança e dos
outros indivíduos para a criança. Conquanto o indivíduo vive em so-
ciedade, recebe influência daqueles que estão à sua volta, fazendo do
processo educacional uma constante realidade.
As crianças passam por um processo de socialização metódica, e
“é uma ilusão pensar que educamos nossos filhos como queremos.
Somos forçados a seguir regras estabelecidas no meio social em que
vivemos” (DURKHEIM, 1895). Neste processo, com o passar do tem-
po, as crianças vão internalizando e adquirindo os hábitos que lhes
são ensinados, deixando de agir desta forma porque são obrigadas,
aprendendo o comportamento e os modos de ser do grupo que as
cerca. A educação cria no homem um ser novo, colocando-o em uma
sociedade, e fazendo com que ele compartilhe com os outros desta
sociedade uma série de valores, sentimentos, comportamentos e ex-
pectativas. Nasce, assim, um ser superior àquele natural. As maneiras
de agir e de ser precisam ser transmitidas externamente, pelo proces-
so educacional, porque são externas ao indivíduo.

o devoto, ao nascer, encontra prontas as crenças e as práticas da


vida religiosa; existindo antes dele, é porque existem fora dele. O
sistema de sinais de que me sirvo para exprimir pensamentos, o
sistema de moedas que emprego para pagar as dívidas, os instru-

84
mentos de crédito que utilizo nas minhas relações comerciais, as
práticas seguidas na profissão etc. funcionam independentemen-
te do uso que delas faço (DURKHEIM, 1895).

Além disso, as representações coletivas são uma das expressões


do fato social. Elas dizem respeito aos modos pelos quais a sociedade
vê a si mesma e vê o mundo que a rodeia. Por exemplo, as lendas, mi-
tos, concepções religiosas, ideias de beleza, cultura, bondade e cren-
ças morais são representações coletivas que expressam a visão de
mundo de uma sociedade e seus indivíduos. Assim, para Durkheim,
as representações coletivas são produzidas

uma imensa cooperação que se estende não apenas no espaço


mas no tempo também; para constituí-las, espíritos diversos asso-
ciaram-se, misturaram e combinaram suas ideias e sentimentos;
longas séries de gerações acumularam nelas sua experiência e
sabedoria. Uma intelectualidade muito particular, infinitamente
mais rica e mais complexa do que a do indivíduo está aí concen-
trada (DURKHEIM, 1912)

Como são produzidas pela cooperação dos indivíduos em uma


amplitude de espaço e tempo e transmitidas por gerações, as repre-
sentações coletivas são mais estáveis do que as representações indi-
viduais. As representações coletivas são as bases de onde se originam
os conceitos, presentes nos vocabulários de uma comunidade, ou de
um grupo ou nação.
Além das representações coletivas, outro componente fundamen-
tal do conjunto dos fatos sociais são os valores de uma sociedade. Va-
lores também possuem uma realidade objetiva, externa ao indivíduo,
independente do sentimento ou da importância que um indivíduo
em particular dá a tal valor. Tais valores não precisam se expressar
por meio de uma pessoa em particular ou que concorde com eles.
Como os fatos sociais são externos, gerais e coercitivos, eles exercem

85
sobre as pessoas uma autoridade específica. Caso o indivíduo deci-
da não aderir às convenções humanas, resistir a alguma lei, violar
alguma regra moral, não usar o idioma ou usar a moeda local enfren-
tará uma série de obstáculos e dificuldades de se relacionar com os
outros indivíduos. Ademais, não haverá só uma dificuldade de rela-
cionamento, mas a sociedade tentará reprimir, convencer, restringir
a ação deste indivíduo que não adere à prática social. A repreensão
ocorrerá através de punição, advertências, vergonha, violência e ou-
tras sanções que façam o indivíduo agir de acordo com a sociedade
ao redor, mostrando-lhe que existe algo superior a ele mesmo. Assim,
quando se opta por uma não submissão, “as forças morais contra as
quais nos insurgimos reagem contra nós e é difícil, em virtude de sua
superioridade, que não sejamos vencidos. (...). Estamos mergulhados
numa atmosfera de ideias e sentimentos coletivos que não podemos
modificar à vontade” (DURKHEIM, 1895).
Por outro lado, a única alternativa não é apenas a submissão às
regras sociais e à obediência cega às pressões dos fatos sociais. Os
indivíduos podem questionar e não seguir tais pressões sociais, ape-
sar das dificuldades impostas por um poder contrário de origem so-
cial. Podem surgir comportamentos inovadores e questionadores. As
instituições sociais são passíveis de mudança e transformação, desde
que “vários indivíduos tenham, pelo menos, combinado a sua ação
e que desta combinação se tenha desprendido um produto novo”
(DURKHEIM, 1895). Desta nova ação combinada, surge um novo fato
social. Assim, algumas ações que podem parecer desconexas e im-
próprias para seu tempo podem conter tendências do futuro, aspira-
ções de um novo ideal, podendo vencer os obstáculos, impondo-se,
tomando o lugar das ideias em vigor até então. Por exemplo, há algu-
mas décadas, o divórcio era considerado um ato odioso e repreensivo.
Líderes religiosos perdiam cargos por tomarem tal atitude. Atualmen-
te, uma boa parcela da população ainda considera o divórcio um ato
errado, mas é melhor aceito socialmente, até mesmo entre líderes reli-

86
giosos. Isto ocorre, porque uma parte considerável da sociedade come-
çou a tomar tal atitude, fazendo com que o divórcio perdesse seu status
de ilegal ou imoral.
A ação transformadora de um fato social se torna mais difícil de-
pendendo da importância dele para a coesão e cooperação social.
Quanto mais importante for um fato social para a permanência da es-
trutura social, mais difícil será a sua transformação. Enquanto na so-
ciedade moderna questões como aborto, eutanásia, clonagem e por-
te de armas estão constantemente sendo colocadas em discussão,
nas sociedades antigas tal discussão seria desconsiderada. Aqueles
que desejassem discuti-las nas sociedades tradicionais, enfrentariam
enorme resistência. Como demonstra Durkheim,

Segundo o direito ateniense, Sócrates era criminoso e sua conde-


nação não deixou de ser justa. Todavia seu crime, isto é, a inde-
pendência de seu pensamento, não foi útil apenas à humanidade
como também à sua pátria, pois servia para preparar uma moral
e uma fé novas de que os atenienses tinham necessidade então,
porque as tradições nas quais tinham vivido até aquela época
não estavam mais em harmonia com suas condições de existên-
cia. Ora, o caso de Sócrates não é isolado; reproduz-se periodica-
mente na história. A liberdade de pensamento de que gozamos
atualmente jamais teria podido ser proclamada se as regras que a
proibiam não tivessem sido violadas antes de serem solenemen-
te repudiadas. Naquele momento, porém, a violação constituía
crime, pois tratava-se de ofensa contra sentimentos ainda muito
vivos na generalidade das consciências. (...) A liberdade filosófica
teve por precursores toda espécie de heréticos que o braço secu-
lar justamente castigou durante todo o curso da Idade Média, até a
véspera dos tempos contemporâneos (DURKHEIM, 1895).

87
3.3. O Método de Estudo Sociológico
No desenvolvimento de seus estudos da vida social, Durkheim bus-
cava desenvolver um método que o permitisse desenvolver suas análi-
ses de maneira científica, indo além do senso comum. Para Durkheim,
o método utilizado deveria se assemelhar ao das ciências naturais, mas
não deveria ser o mesmo das ciências naturais, uma vez que os fatos es-
tudados pela Sociologia pertencem ao reino social e são distintos dos
fenômenos da natureza. Por isso, o método deveria ser estritamente
sociológico. Baseados nele, os cientistas sociais analisariam as regula-
ridades deste mundo, considerando suas causas e efeitos, descobrindo
e estabelecendo as leis que apontam as regras de ação para o futuro,
observando fenômenos rigorosamente definidos,

Primeiro, há que estudar a sociedade no seu aspecto exterior.


Considerada sob esta perspectiva, ela surge como que constituída
por uma massa de população, de uma certa densidade, disposta
de determinada maneira num território, dispersa nos campos ou
concentrada nas cidades etc.: ocupa um território mais ou menos
extenso, situado de determinada maneira em relação aos mares
e aos territórios dos povos vizinhos, mais ou menos atravessado
por cursos de água e por diferentes vias de comunicação que es-
tabelecem contato, mais ou menos íntimo, entre os habitantes.
Este território, as suas dimensões, a sua configuração e a com-
posição da população que se movimenta na sua superfície são
naturalmente fatores importantes na vida social; é o seu substra-
to e, assim como no indivíduo a vida psíquica varia consoante a
composição anatômica do cérebro que lhe está na base, assim os
fenômenos coletivos variam segundo a constituição do substrato
social (DURKHEIM, 1895).

Desta forma, Durkheim estabelece regras que deveriam ser segui-


das pelos sociólogos ao observarem os fatos sociais. Estabelece, as-

88
sim, as regras do método sociológico. A primeira delas é considerar os
fatos sociais como coisas. Para isso, é preciso 1) afastar sistematica-
mente as prenoções, ou seja, afastar os valores e desejos subjetivos;
2) definir os fenômenos tratados, previamente, a partir das caracte-
rísticas exteriores comuns; 3) considerá-los de maneira mais objetiva
possível, independentemente de manifestações individuais. Assim,
Durkheim coloca em xeque a conduta do investigador que, mesmo
que entre em contato com uma realidade completamente desconhe-
cida, precisa se portar como analisando coisas, como se estivesse
“entre coisas imediatamente transparentes ao espírito, tão grande é a
facilidade com que o vemos resolver questões obscuras” (DURKHEIM,
1985). Assim, a coisa pode ser reconhecida

pelo sintoma de não poder ser modificada por intermédio de um


simples decreto da vontade. Não que seja refratária a qualquer
modificação. Mas não é suficiente exercer a vontade para produzir
uma mudança. É preciso além disso um esforço mais ou menos la-
borioso, devido à resistência que nos opõe e que, outrossim, nem
sempre pode ser vencida (DURKHEIM, 1985).

Portanto, o sociólogo deve se comportar e olhar para os fatos dian-


te dele como qualquer outro cientista, em qualquer outra área faria,
isto é, considerar-se diante de objetos inanimados, pois “as represen-
tações que podem ser formuladas no decorrer da vida, tendo sido
efetuadas sem método nem crítica, estão destituídas de valor cientí-
fico e devem ser afastadas” (DURKHEIM, 1985). Não se deve analisar o
fato como se já soubesse o que vai ser encontrado, uma vez que

os homens não esperaram o advento da ciência social para formu-


lar ideias sobre o direito, a moral, a família, o Estado e a própria
sociedade; pois não podiam passar sem elas em sua existência.
Ora, é sobretudo na Sociologia que as prenoções, para retomar a
expressão de Bacon, estão em estado de dominar os espíritos e de

89
se substituir às coisas. Com efeito, as coisas sociais só se realizam
através dos homens; são um produto da atividade humana. Não
parecem, pois, constituir outra coisa senão a realização de ideias,
inatas ou não, que trazemos em nós; não passam da aplicação
dessas ideias às diversas circunstâncias que acompanham as re-
lações dos homens entre si. A organização da família, do contrato,
da repressão, do Estado, da sociedade aparece assim como um
simples desenvolvimento das ideias que formulamos a respeito da
sociedade, do Estado, da justiça etc., por conseguinte, tais fatos e
outros análogos parecem não ter realidade senão nas ideias e pe-
las ideias; e como estas parecem o germe dos fatos, elas é que se
tornam, então, a matéria peculiar à Sociologia (DURKHEIM, 1895).

De fato, o sociólogo enfrenta dificuldades para libertar-se das fal-


sas evidências e prenoções que possui e dos sentimentos e paixões
que o afetam, porque está analisando objetos morais, fatos que tam-
bém o influenciam. Contudo, mesmo que tenha preferências quando
analisa um fato, o sociólogo

se desinteressa pelas consequências práticas. Ele diz o que é; ve-


rifica o que são as coisas e fica nessa verificação. Não se preocupa
em saber se as verdades que descubra são agradáveis ou descon-
certantes, se convém às relações que estabeleça fiquem como
foram descobertas, ou se valeria a pena que fossem outras. Seu
papel é o de exprimir a realidade, não o de julgá-la (DURKHEIM,
1895).

Por isso é tão relevante que uma das bases da ciência sociológi-
ca fosse a objetividade, o afastamento da subjetividade. O cientista
social necessita de objetividade para ser capaz de se colocar “num
estado de espírito semelhante ao dos físicos, químicos e fisiologistas,
quando se aventuram numa região ainda inexplorada de seu domí-
nio científico”, deixando de lado seus desejos, pré-conceitos e noções

90
prévias a fim de adotar a dúvida metódica, como colocaria Descartes.
Esta atitude leva à convicção de que

no estado atual dos nossos conhecimentos, não sabemos com


certeza o que são Estado, soberania, liberdade política, democra-
cia, socialismo, comunismo etc. e o método estatuiria a interdição
do uso destes conceitos enquanto não estivessem cientificamente
constituídos. E, todavia, os termos que os exprimem figuram sem
cessar nas discussões dos sociólogos. São empregados corrente-
mente e com segurança, como se correspondessem a coisas bem
conhecidas e definidas, quando não despertam em nós senão
misturas indistintas de impressões vagas, de preconceitos e de
paixões (DURKHEIM, 1895).

3.4. A Dualidade dos Fatos Morais


Como visto anteriormente, as normas e as regras morais são fatos
sociais apresentando as características destes fatos, a saber, generali-
dade, externalidade e coação. De fato, elas são coativas, mas são apre-
sentadas de uma forma distinta. As regras morais são apresentadas
pela sociedade como “coisas agradáveis de que gostamos e que dese-
jamos espontaneamente”. Como se os indivíduos estivessem ligados
a elas “com todas as forças da alma”. Assim, a sociedade se apresenta
como protetora dos homens e “tudo o que aumenta sua vitalidade,
eleva a nossa”, por isso os indivíduos apreciam aquilo que a socieda-
de preza. Por causa deste entendimento, a coação das regras morais
deixa de ser imposta pela violência e passam a ser sentidas, graças ao
respeito dos membros pelos ideais coletivos. O respeito pelas regras
morais é necessário para a própria sobrevivência social, pois

somente uma sociedade constituída goza da supremacia moral


e material indispensável para fazer a lei para os indivíduos; pois

91
só a personalidade moral que esteja acima das personalidades
particulares é que forma a coletividade. Somente assim ela tem
a continuidade e mesmo a perenidade necessárias para manter a
regra acima das relações efêmeras que a encarnam diariamente
(DURKHEIM, 1893).

As regras morais possuem uma autoridade baseada em 1) noção


de dever ser e 2) noção de algo desejável, embora o cumprimento
destas regras exija esforço, um esforço que eleva o indivíduo de sua
própria natureza e o transforma em um ser social. As crenças e prá-
ticas sociais agem sobre os indivíduos a partir do exterior, por isso,
o fato moral apresenta a mesma dualidade daquilo que é sagrado,
ou seja, “o ser proibido, que não se ousa violar; mas é também o ser
bom, amado, procurado”. Por isso,

ao mesmo tempo que as instituições se impõem a nós, aderimos


a elas; elas comandam e nós as queremos; elas nos constrangem
e nós encontramos vantagem em seu funcionamento e no pró-
prio constrangimento. (...). Talvez não existam práticas coletivas
que deixem de exercer sobre nós esta ação dupla, a qual, além do
mais, não é contraditória senão na aparência (DURKHEIM, 1895)

Mesmo que a coação seja necessária para que o homem se transfor-


me em um ser social, deixando seu estado natural, isto é, acrescente à
sua natureza física, atingindo uma natureza superior, a natureza social,
ele também tem o prazer de compartilhar interesses, valores e objeti-
vos com outros membros da sociedade, partilhando com eles a vida
moral. Como aponta Quintaneiro (2003:69), nestas análises das regras
morais, Durkheim relembra as considerações feitas por Rousseau no
Contrato Social sobre as vantagens que um indivíduo possui ao sair do
estado de natureza. Ao desenvolver sua ideia de sociedade, Durkheim
entende a sociedade como algo com vida própria, como um ser supe-
rior, mais perfeito e completo, que antecede e sucede os indivíduos,

92
sendo independente deles, e possuindo sobre eles uma autoridade que
os constrange, mas que eles amam. A sociedade é o que dá ao homem
sua humanidade, pois “não poderíamos pretender sair da sociedade
sem querermos deixar de ser homens” (DURKHEIM, 1895).
Todavia, os ideais que mantém unidos os indivíduos precisam ser,
periodicamente, verificados e modificados para não se debilitarem.
Tal transformação ocorre durante as ocasiões que aproximam as pes-
soas, tornando mais frequentes e intensas as relações entre elas, uma
vez que tal

reconstituição moral não pode ser obtida senão por meio de reu-
niões, de assembleias, de congregações, onde os indivíduos, es-
treitamente próximos uns dos outros, reafirmam em comum seus
sentimentos comuns, daí as cerimônias que, por seu objeto, pelos
resultados que produzem, pelos procedimentos que empregam,
não diferem em natureza das cerimônias propriamente religio-
sas. Qual é a diferença essencial entre uma assembleia de cristãos
celebrando as datas principais da vida de Cristo, ou de judeus ce-
lebrando a saída do Egito ou a promulgação do decálogo, e uma
reunião de cidadãos comemorando a instituição de uma nova cons-
tituição moral ou algum grande acontecimento da vida nacional?
(DURKHEIM, 1912)

Durkheim compara essa necessidade de transformação dos ideais


coletivos com a função dos mitos religiosos que voltam a reunir fiéis
antes dispersos e isolados, fazendo renascer neles crenças e expecta-
tivas comuns. A sociedade se refaz moralmente, reafirmando os sen-
timentos e ideias que constituem sua unidade e personalidade. Este
ato de se refazer garante a coesão, vitalidade e continuidade do gru-
po, assegurando energia a seus membros (QUINTANEIRO, 2003:69).
Durkheim observa como, a própria França instituiu todo um ciclo de
festas para manter em estado de juventude perpétua, mantendo vi-
vos os princípios nos quais a Revolução foi inspirada.

93
3.5. Tipos de Solidariedade e Consciência
Outros dois conceitos bastante importantes para compreender a so-
ciologia durkheimiana são os conceitos de solidariedade e consciência
social. Ainda que ele não tenha sido o primeiro a elaborar sobre o tema,
Durkheim procurou mostrar como a solidariedade não só é constituí-
da, como também age como uma forma de coesão entre os membros
do grupo, podendo variar segundo o modelo de organização social.
Para explicar as formas de solidariedade, Durkheim considera a divisão
do trabalho social. Segundo ele, todos os seres humanos possuem dois
tipos de consciência: “Uma é comum com todo o nosso grupo e, por
conseguinte, não representa a nós mesmos, mas a sociedade agindo e
vivendo em nós. A outra, ao contrário, só nos representa no que temos
de pessoal e distinto, nisso é que faz de nós um indivíduo. ” (DURKHEIM,
1893). Isso significa que, para ele, existe em cada um de nós dois tipos
de seres. O primeiro ser é individual, “constituído de todos os estados
mentais que não se relacionam senão conosco mesmo e com os acon-
tecimentos de nossa vida pessoal”. O segundo, é social, “um sistema de
ideias, sentimentos e de hábitos que exprimem em nós (...) o grupo ou
os grupos diferentes de que fazemos parte; tais são as crenças religio-
sas, as crenças e as práticas morais, as tradições nacionais ou profissio-
nais, as opiniões coletivas de toda espécie. Seu conjunto forma o ser
social. ” (DURKHEIM, 1893). Quanto mais o indivíduo participa da vida
social, mais ele supera a si mesmo. O objeto da educação social, pela
família, escola, regras morais e punições, por exemplo, é formar uma
consciência comum, formar cidadãos para sociedade e não trabalha-
dores para as fábricas ou contadores para o mercado. “O ensino deve,
portanto, ser essencialmente moralizador; libertar os espíritos das vi-
sões egoístas e dos interesses materiais; substituir a piedade religiosa
por uma espécie de piedade social” (DURKHEIM, 1893).
Essa consciência comum ou coletiva corresponde ao “conjunto
das crenças e dos sentimentos comuns à média dos membros de

94
uma mesma sociedade [que] forma um sistema determinado que
tem vida própria (DURKHEIM, 1895). Portanto, a consciência coletiva
produz no indivíduo um mundo de sentimentos, ideias e imagens e
independe da maneira pela qual cada um dos membros da sociedade
manifesta tal consciência, porque possui uma realidade e natureza
próprias. Quanto mais extensa é a consciência coletiva de uma socie-
dade, mais coesão haverá entre os participantes dela, referindo-se a
uma “conformidade de todas as consciências particulares a um tipo
comum”, fazendo com que as pessoas tenham ideais e sentimentos
semelhantes, atraindo um ao outro pela similaridade existente entre
ele, diminuindo a individualidade de cada membro. Mesmo assim,

A consciência moral da sociedade não é encontrada por inteiro em


todos os indivíduos e com suficiente vitalidade para impedir qual-
quer ato que a ofendesse, fosse este uma falta puramente moral
ou propriamente um crime. (...). Uma uniformidade tão universal
e tão absoluta é radicalmente impossível (...) mesmo entre os po-
vos inferiores, em que a originalidade individual está muito pou-
co desenvolvida, esta não é, todavia, nula. Assim então, uma vez
que não pode existir sociedade em que os indivíduos não divirjam
mais ou menos do tipo coletivo, é inevitável também que, entre
estas divergências, existam algumas que apresentem caráter cri-
minoso (DURKHEIM, 1895).

Nas sociedades onde a divisão do trabalho é maior, onde os indi-


víduos possuem profissões e formas de produção bem diferenciadas,
a consciência coletiva é menor, havendo espaço para desenvolver a
personalidade.

Quanto mais o meio social se amplia, menos o desenvolvimento


das divergências privadas é contido. Mas, entre as divergências,
existem aquelas que são específicas de cada indivíduo, de cada
membro da família, elas mesmas tornam-se sempre mais numero-

95
sas e mais importantes à medida que o campo das relações sociais
se torna mais vasto. Ali, então, onde elas encontram uma resistên-
cia débil, é inevitável que elas se provenham de fora, se acentuem,
se consolidem, e como elas são o âmago da personalidade indivi-
dual, esta vai necessariamente se desenvolver. Cada qual, com o
passar do tempo, assume mais sua fisionomia própria, sua manei-
ra pessoal de sentir e pensar (DURKHEIM, 1895).

Porém, a maior divisão do trabalho e, consequentemente, maior di-


ferenciação social não diminui a coesão. Ao contrário, faz com que “a
unidade do organismo seja tanto maior quanto mais marcada a indivi-
dualidade das partes”. A solidariedade existente a partir de tal divisão
é mais forte, pois é fundada na independência e na individualização
dos membros que formam estas sociedades. Para fortalecer sua argu-
mentação, Durkheim utiliza o exemplo de um homem e uma mulher
que, por serem diferentes, completam-se e formam um todo através da
união (DURKHEIM, 1893). Enquanto os sentimentos de simpatia, que
são fundamentados nas semelhanças dos membros, ocasionam uma
aglutinação deles, nas sociedades com maior divisão do trabalho, o re-
lacionamento social está ligado a interdependência baseada na espe-
cialização de tarefas. Por exemplo, em uma sociedade onde o produtor
de pão planta o trigo, colhe o trigo, faz a farinha, faz a massa de pão e
assa o pão, ele se sente próximo do outro produtor de pão porque traba-
lham de forma parecida, são semelhantes. Em uma sociedade com alta
divisão social, onde um primeiro homem planta e colhe o trigo, outro faz
a farinha, outro faz a massa e outro assa o pão. Aqui, eles se unem pela
necessidade que um tem do trabalho do outro. Por isso, quanto mais es-
pecialista em um trabalho o indivíduo fica, mais ele consegue produzir.
Por outro lado, mais precisa do trabalho do outro para complementar
o seu. Nas sociedades com alta divisão do trabalho, a solidariedade é
originada na própria diferenciação do trabalho, constituindo laços que
unem seus membros à sociedade orgânica.

96
É válido lembrar que a divisão do trabalho não é específica da esfe-
ra econômica. Ela está presente em outras áreas da sociedade, como
nas funções políticas, administrativas, judiciárias, artísticas, cientí-
ficas, religiosas, entre outras. Portanto, se por um lado o processo
educacional perpetua os elementos comuns existentes em toda so-
ciedade, como respeito, moral, dever e direito, ele também propaga
e colabora para a diferenciação, já que cada profissão “reclama apti-
dões particulares e conhecimentos especiais”.
Onde há uma alta divisão do trabalho, a sociedade não consegue
regulamentar todas as funções, deixando possível o fortalecimento
da consciência individual, isto é, a esfera de ação própria de cada um
dos membros. Desta forma, quando a comunidade ocupa um espaço
menor, abre-se mais lugar para desenvolverem-se diferenças, indivi-
dualidades e personalidades.

3.6. Dois Tipos de Solidariedade


Durkheim define Solidariedade como os laços que unem os mem-
bros entre si e ao grupo, a qual pode ser orgânica ou mecânica, de-
pendendo de como a coesão é gerada em determinado tipo de so-
ciedade. Quando o tipo de coesão é semelhante àquele que liga um
tirano, ou déspota aos seus súditos, tem-se um tipo de laço de soli-
dariedade, que não ocorre de forma recíproca. É o mesmo laço que
um proprietário tem com seus bens, não é recíproca, é “mecânica”. O
indivíduo não se pertence, é “literalmente uma coisa de que a socie-
dade dispõe” (DURKHEIM, 1893). Portanto, solidariedade mecânica é
aquela que “liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum
intermediário”, constituindo-se de “um conjunto mais ou menos or-
ganizado de crenças e sentimentos comuns a todos os membros do
grupo: é o chamado tipo coletivo” (DURKHEIM, 1893). Quando há este
tipo de solidariedade, as características que diferenciam os membros
da sociedade não são tão facilmente encontradas. Suas consciências

97
se assemelham, fazendo deles pouco ou nada distintos entre si e por
causa disso, a solidariedade entre eles existe por conta das similari-
dades que compartilham.

Até mesmo a propriedade de bens não pode ser individual, o que


só vem a acontecer quando o indivíduo se desliga e distingue-se
da massa. Nas sociedades onde essas ligações predominam, a
própria educação é difusa, não há mestres, e as ideias e as ten-
dências comuns a todos os membros da sociedade ultrapassam
em número e intensidade aquelas que pertencem a cada um deles
pessoalmente. (QUINTANEIRO, 2003:73)

A sociedade mecânica existe em sociedades simples ou não-or-


ganizadas, onde há pouca diferenciação ou divisão do trabalho. Por
exemplo, a existência de um poder absoluto, de um poder muito aci-
ma dos outros homens, nada mais faz do que unir os homens sob
a imagem que ele mesmo representa. Nestas sociedades, a coesão
resulta “exclusivamente das semelhanças compõe-se de uma massa
absolutamente homogênea, cujas partes não se distinguiriam umas
das outras” (DURKHEIM, 1893).
À medida que as relações sociais se multiplicam e a densidade da
sociedade aumenta, progride também a divisão do trabalho. Quando
os indivíduos começam a se organizar em cidades, dividindo espaços
menores, com o aumento da população e diminuição dos recursos,
desenvolve-se também a divisão do trabalho, uma vez que os indiví-
duos precisem produzir mais para atender suas necessidades e, por
isso, especializam-se a fim de desenvolver a produção. Ao passo que
a divisão do trabalho social é acentuada, a solidariedade mecânica se
restringe, sendo, paulatinamente, reduzida por um novo tipo de so-
lidariedade: a solidariedade orgânica, derivada da divisão do traba-
lho. A partir disso, “institui-se um novo processo de individualização
dos membros desta sociedade que passam a ser solidários por terem
uma esfera própria de ação” (QUINTANEIRO, 2003:74). A solidarieda-

98
de se dá devido à interdependência existente entre os membros que
compõem esta sociedade. Desta forma, a função da divisão do tra-
balho social é integrar o corpo social e lhe garantir a unidade, sendo
uma condição, ou ainda, uma necessidade da sociedade organizada.
Percebe-se que, a sociedade se assemelha a um organismo com
sistema de funções diferentes e especiais, onde cada órgão tem uma
função específica, e o papel que o indivíduo desempenha é o que
marca seu lugar na sociedade. Daí a afirmação: “chegará o dia em
que toda organização social e política terá uma base exclusivamente
ou quase exclusivamente profissional” (DURKHEIM, 1893). A partir da
ideia de solidariedade orgânica, fruto da divisão do trabalho, tem-se
a ideia que

a individuação é um processo intimamente ligado ao desenvolvi-


mento da divisão do trabalho social e a uma classe de consciência
que gradativamente ocupa o lugar da consciência comum e que
só ocorre quando os membros das sociedades se diferenciam. E
é esse mesmo processo que os torna interdependentes (QUINTA-
NEIRO, 2003:74)

Somente existe indivíduo, neste sentido durkheimiano de ser di-


ferenciado socialmente, quando existe uma sociedade altamente di-
ferenciada, isto é, quando está presente a divisão do trabalho, onde
a consciência coletiva é muito reduzida em face da consciência indi-
vidual.
Mesmo que elas se movam de forma inversa, ou seja, quanto maior
a solidariedade orgânica, menor a mecânica e vice-versa, os dois ti-
pos de solidariedade apontadas exercem uma importante função, a
saber, assegurar a ordem e a coesão das sociedades, sejam estas sim-
ples ou complexas. Onde a solidariedade social

é forte, inclina fortemente os homens entre si, coloca-os em fre-


quente contato, multiplica as ocasiões que têm de se relaciona-

99
rem. (...). Quanto mais solidários são os membros de uma socie-
dade, mais relações diversas sustentam, seja entre si, seja com o
grupo tomado coletivamente, porque se os seus encontros fossem
raros, eles não dependeriam uns dos outros senão de maneira frá-
gil e intermitente (DURKHEIM, 1893).

3.7. O Suicídio
Para medir as formas de solidariedade em uma sociedade,
Durkheim se utiliza de regras do Direito. Nas sociedades complexas
e diferenciadas, o Direito cumpre o mesmo papel do sistema nervoso
no corpo humano, ou seja, regular as funções do corpo. Por exemplo,
as sanções e penalidades impostas pelo Direito, que objetivam con-
trolar e organizar a vida em sociedade, são mais organizadas do que
as sanções morais. As punições impostas pelo Direito são divididas
em duas classes: as repressivas, que infligem sobre o culpado alguma
dor, privação ou sofrimento e as restitutivas, que fazem com que as
coisas que perderam a ordem sejam postas de volta no lugar, levando
o culpado a reparar o dano causado.
Nas sociedades onde a principal característica é a semelhança en-
tre os indivíduos, um comportamento desviante é punido por meio
de ações que estão diretamente relacionadas com os costumes. “Os
membros dessas coletividades participam conjuntamente de uma
espécie de vingança contra aqueles que violaram algum forte senti-
mento compartilhado que tenha para a sociedade a função central de
assegurar sua unidade. Sendo a consciência coletiva tão significativa
e disseminada, feri-la é uma violência que atinge a todos aqueles que
se sentem parte dessa totalidade” (QUINTANEIRO, 2003:75). Aqui,
o crime rompe com elos de solidariedade e sua reparação funciona
como confirmação dos valores que unem os indivíduos e demons-
tram como a solidariedade é vital para a própria manutenção da vida

100
social. A punição contra o agressor cumpre a função de destacar a
importância do respeito a estes valores e sentimentos, garantindo a
continuidade da sociedade.
Em sociedades primitivas, os sentimentos coletivos são fortemen-
te gravados em todas as consciências, sendo essenciais e incontes-
táveis, como também o é a punição. Desta forma, os crimes são atos
que

manifestam diretamente uma dessemelhança demasiado violen-


ta entre o agente que o executou e o tipo social, ou então ofendem
o órgão da consciência comum. Tanto num caso como no outro,
a força atingida pelo crime e a que o repele é a mesma; ela é um
produto das similitudes sociais mais essenciais e tem por efeito
manter a coesão social que resulta dessas similitudes (DURKHEIM,
1893).

Contudo, por vezes, a punição ultrapassa o culpado e atinge tam-


bém sua família ou pessoas próximas, por estender-se de forma me-
cânica e irracional, sendo movida pelo sentimento. A tentativa de de-
fender da ameaça acaba generalizando a vingança.
Por outro lado, em sociedades onde a divisão do trabalho é desen-
volvida, funções e tarefas específicas de áreas e setores específicos
não são comuns a todos, tampouco os sentimentos que o descum-
primento gera. Por isso, a transgressão a uma norma ligada a deter-
minada área ou função específica não gera, necessariamente, uma
comoção social, ou revolta da opinião pública, que por muitas vezes
não entende as razões para a punição dada. Mesmo que haja regras
específicas para cada uma das áreas da sociedade, originadas da di-
visão do trabalho, os indivíduos não as conhecem todas, sendo dever
do Direito zelar pelo cumprimento delas. Por exemplo, o produtor de
leite que é denunciado pela prática de dumping, não gerará, necessa-
riamente, uma revolta no artista de circo que viaja com seu grupo, uma

101
vez que, provavelmente, ele desconheça a prática e a razão pela qual o
produtor precisa ser punido.
Por isso o Direito vai se dividir em Penal, Civil, Comercial, Adminis-
trativo, Comercial e Processual, para conseguir dar conta das diversas
áreas da sociedade diferenciada.
A diferenciação se torna cada vez maior, exigindo cada vez mais
uma especialização das regras e normas, necessitando que sejam
criados, também, novos órgãos para executar tais normas.
A sociedade, portanto, é capaz de cobrar ações e comportamen-
tos específicos de seus membros, contando com formas de punição
e correção para garantir tal comportamento. Tal cobrança é feita com
o intuito de garantir a autopreservação. Ante a isso, Durkheim afirma
que, para garantir a autopreservação e coesão, a sociedade pode exi-
gir que o indivíduo abdique de sua própria vida. Vendo esta realida-
de, Durkheim analisa o suicídio como um fato social. O que torna tal
proposição interessante, é o fato de Durkheim analisar o fenômeno,
tendo base as motivações sociais para o ato, e não como se fosse algo
exclusivamente privado. Ele parte da seguinte reflexão:

Considerando que o suicídio é um ato da pessoa e que só a ela


atinge, tudo indica que deva depender exclusivamente de fatores
individuais e que sua explicação, por conseguinte, caiba tão so-
mente à psicologia. De fato, não é pelo temperamento do suicida,
por seu caráter, por seus antecedentes, pelos fatos da sua história
privada que em geral se explica a sua decisão? (DURKHEIM, 1897)

Durkheim considera, então, que o suicídio é um fenômeno resul-


tante de “correntes suicidogêneas”, que seriam estímulos que atu-
ariam sobre os indivíduos, exortando-os e possibilitando que eles
procurem a própria morte. Baseando-se nos estudos de estatísticas
europeias, Durkheim argumenta que a evolução do suicídio ocorre de
forma constante durante longos períodos, mesmo que variam de so-

102
ciedade para sociedade. Para iniciar uma análise objetiva, Durkheim
define o suicídio como “todo caso de morte que resulte direta ou in-
diretamente de um ato positivo ou negativo praticado pela própria
vítima, sabedora de que devia produzir esse resultado” (DURKHEIM,
1897). Assim, após o conceito e a delimitação do fato que se preten-
de estudar, Durkheim considera que tal fato é um fenômeno coletivo,
utilizando dados relativos às sociedades europeias, a fim de demons-
trar as regularidades existentes e construir uma taxa específica para
cada uma delas. Com isso, Durkheim procurou diferenciar a Sociolo-
gia das outras ciências que, tendo o homem como objeto, analisam o
suicídio considerando fatos individuais e casos isolados. A Sociologia,
contudo, procura analisar este fato como algo social e coletivo. Mes-
mo que exija diretamente a ação isolada de um indivíduo, tal ação só
ocorre por influência social. A análise isolada dos casos impede a real
compreensão da questão do suicídio, que é coletiva.
Ele constrói, desta forma, uma tipologia dos suicidas. Cada gru-
po social tem uma disposição coletiva para o suicídio. A partir destas
inclinações coletiva, derivam as inclinações individuais. A disposição
coletiva deriva de “correntes de egoísmo, de altruísmo ou de anomia
que afligem a sociedade ... com as tendências à melancolia langoro-
sa, à renúncia ativa ou à fadiga exasperada que são as consequências
das referidas correntes” (DURKHEIM, 1897). O autor estabelece três
tipos de correntes suicidogêneas, a saber: o suicídio egoísta, o sui-
cídio altruísta e o suicídio anômico. De forma geral, as três correntes
mantêm os indivíduos estáveis e se compensam mutuamente. Uma
relação desequilibrada com a sociedade pode gerar no indivíduo um
estímulo, uma ação de tirar a própria vida. Certas condições sociais,
certas profissões ou certas religiões podem tanto ajudar os indivídu-
os a cometerem tal ato, como podem ajudar a contê-lo. Por ser algo
objetivo e exterior ao indivíduo, isto é, algo social, a real razão para a
tomada de ação do suicídio é social, onde a influência de questões
particulares são “ressonâncias do estado moral da sociedade”. Pode-

103
se concluir então que, quanto maior a coesão e vitalidade das insti-
tuições às quais as pessoas estão ligadas, menor a possibilidade de o
indivíduo cometer tal ato.

A intensidade com que se manifesta a solidariedade em seu grupo


religioso, a solidez dos laços que a unem à sua família, ou a força
dos valores e sentimentos que a vinculam à sociedade política -
contribuem para preservá-la de cometer um ato dessa natureza.
Sob tais condições, as sociedades religiosa, doméstica e política
podem exercer sobre o suicídio uma influência moderadora. Ao
se constituírem em sociedades fortemente integradas, elas prote-
gem seus membros (QUINTANEIRO, 2003: 78).

Durkheim considera que os grupos religiosos minoritários na so-


ciedade e que sofrem maior perseguição, que precisam lutar contra a
hostilidade e intolerância, exercem maior controle e disciplinas sobre
seus devotos, submetendo-os a maior moralidade, reduzindo a taxa
de suicídio entre eles. Caso uma sociedade venha a se desintegrar, o
indivíduo pode se sentir estimulado a suicidar-se uma vez que

quanto mais se enfraqueçam os grupos sociais a que ele perten-


ce, menos ele dependerá deles e cada vez mais, por conseguin-
te, dependerá apenas de si mesmo para reconhecer como regras
de conduta tão somente as que se calquem nos seus interesses
particulares. Se, pois, concordamos em chamar de egoísmo a esta
situação em que o ego individual se afirma com excesso diante do
eu social e em detrimento deste último, poderemos designar de
egoísta o tipo particular de suicídio que resulta de uma individua-
ção descomedida (DURKHEIM, 1897).

Desta forma, o suicídio egoísta é causado pela depressão, melan-


colia e a sensação de desemparo moral provocadas pela desintegra-
ção social. Para Durkheim, o estímulo ao suicídio causado pela carên-

104
cia na vida social é maior nos povos modernos do que nos primitivos
e afligia mais os homens do que as mulheres. Por isso, acredita que
uma mulher viúva ou solteira suportaria melhor a solidão, porque as
necessidades femininas, mais rudimentares nos aspectos sociais, se-
riam satisfeitas nessa área com “poucos gastos” em relação às dos
homens, socialmente mais complexos (QUINTANEIRO, 2003:79).
Já em sociedades inferiores, os suicídios mais frequentes eram os
altruístas, que são praticados por pessoas enfermas, ou idosas, por
viúvas após a morte do marido, por fiéis religiosos, por escravos após
a morte de seus servos, ou atos heroicos que ocorrem durante guer-
ras e convulsões sociais. “O suicídio é visto então como um dever que,
se não for cumprido, é punido pela desonra, perda da estima pública
ou por castigos religiosos” (QUINTANEIRO, 2003: 79). Aqui também é
a sociedade que influencia o indivíduo na tomada de decisão. Mas,
se o suicídio egoísta é resultado de um afrouxamento de laços com a
sociedade, o suicídio altruísta é fruto de uma ausência de ego, onde
este ego pertence a alguma instituição na qual o indivíduo faz parte,
como o Estado, a Igreja ou a família.

Nas sociedades modernas, a ocorrência do suicídio altruísta dá-se


entre mártires religiosos e, de maneira crônica, entre os militares,
já que a sociedade militar expressa, em certos aspectos, uma so-
brevivência da moral primitiva e da estrutura das sociedades infe-
riores, além de promover uma fraca individuação, estimulando a
impessoalidade e a abnegação. (QUINTANEIRO, 2003:79)

O terceiro tipo de suicídio, o suicídio anômico, deve-se a uma


situação de desregramento social, ou seja, ocorre quando as nor-
mas estão ausentes ou não são mais respeitadas. A sociedade não
está presente com força suficiente para regular os desejos, deixan-
do que eles dominem as ações e pensamentos dos indivíduos. Para
Durkheim, é uma situação característica das sociedades modernas.

105
Em suma, o suicídio é um fato social, porque ocorre devido à influ-
ência da sociedade sobre o indivíduo, levando-o a tomar tal decisão.
O suicídio egoísta ocorre por um descumprimento da ordem, uma de-
sonra e o indivíduo tira a própria vida, porque quebrou as normas da
sociedade. O suicídio altruísta ocorre quando o indivíduo se entrega
pelo bem da sociedade e de sua manutenção. O suicídio anômico, fi-
nalmente, é uma ocorrência da ausência de normas e laços sociais.

3.8. Moralidade e Anomia


Durkheim percebe que a sociedade moderna é caracterizada pela
quebra das normas e regulamentações sobre a vida dos indivíduos.
Como vimos anteriormente, o suicídio anômico é característico das
sociedades modernas e existe, justamente, pela falta de regulamen-
tações sociais sobre eles. Contudo, o progresso econômico tem liber-
tado as relações industriais das regulamentações antes existentes.
Havia, até a era moderna, uma série de sistemas morais com poderes
para disciplinar e organizar a relação dos indivíduos.
Em primeiro lugar, havia a religião, cuja influência atingia patrões
e empregados, ricos e pobres. Justificava o mérito dos ricos, mas os
lembrava que existe algo superior, que precisa ser respeitado e segui-
do. Ao passo que consolava os pobres, dando ao sofrimento um cará-
ter educativo, de aproximação com Deus, garantindo que, na próxima
vida, o sofrimento teria fim, e seria substituído por uma nova vida de
felicidade plena. Com isso, a religião auxiliava na organização social e
na manutenção das relações entre os homens.
Tendo isto em mente, Durkheim percebia a necessidade de uma
nova moralidade, que pudesse ir ao encontro das rápidas transfor-
mações ocorridas na sua sociedade, caracterizada pela velocidade
do crescimento industrial e econômico e os impactos que isso gerava
na vida dos indivíduos. Quando, em uma sociedade organizada, os
contatos entre os membros e as instituições se tornam insuficientes

106
e pouco duradouros, há uma situação de desequilíbrio, fazendo com
que o sentimento de interdependência diminua, as relações fiquem
instáveis e precárias e as regras vagas e indefinidas. Este é o estado
de anomia, onde é impossível que os órgãos solidários estejam em
contato suficiente e suficientemente prolongado, já que,

ao ser contíguos, a todo momento percebem a necessidade que


têm uns dos outros e, por conseguinte, têm um sentimento vivo
e contínuo de sua mútua dependência. Pelo mesmo motivo, os
intercâmbios se dão entre eles com facilidade; sendo regulares,
são também frequentes, regularizam-se por si mesmos e o tempo
termina pouco a pouco a obra de consolidação. Finalmente, como
as menores reações podem ser sentidas numa parte e na outra, as
normas que assim se formam levam sua marca, isto é, preveem e
fixam até o detalhe as condições de equilíbrio (DURKHEIM, 1893).

O estado de anomia ou de desregramento pode ser mais bem per-


cebido e compreendido quando se observam as consequências do
crescimento desordenado da indústria. Antes, as fortes regras morais
e regulamentações impostas sobre a indústria diminuíam o descon-
trole e o ímpeto da indústria, freando a industrialização e mantendo
a ordem. Contudo, as regulações foram perdendo força ante ao for-
talecimento da burguesia, fazendo com que houvesse a necessidade
de novas regulamentações. As novas regras necessárias, no entanto,
não surgiram, enfraquecendo a capacidade da sociedade em cumprir
seu papel regulador, permitindo que a anomia e o desregramento se
tornassem algo normal na sociedade. Por exemplo,

Se alguém é lançado por um desastre econômico a uma situação


inferior pode não ter tempo para aprender a conter suas necessida-
des, refazendo sua educação moral. Um brusco aumento de rique-
za ou de poder tende a levar ao mesmo desajuste, passando a não
haver nada a que a pessoa não tenha pretensões: seus apetites não

107
têm mais limites, seus fracassos e crises multiplicam-se, e as restri-
ções parecem-lhe insuportáveis. O divórcio, aliado ao afrouxamen-
to do controle social, pode também levar à anomia, rompendo o
estado de equilíbrio moral dos indivíduos (QUINTANEIRO, 2003: 81)

Daí ser possível observar que, é justamente entre as funções indus-


triais e comerciais que se registram mais suicídios, devido à ausên-
cia de moralidade forte. Para Durkheim, quem está mais suscetível
ao suicídio anômico são os ricos, pois a pobreza atua como forma de
freio e imunidade à busca pela posse de alguma coisa e, por isso

menos se é levado a estender sem limites o círculo das necessida-


des. A impotência, obrigando-nos à moderação, a ela nos habitua,
além do que, onde a mediocridade é geral, nada vem acicatar a
cobiça. A riqueza, pelo contrário, pelos poderes que confere, nos
dá a ilusão de que só dependemos de nós mesmos. Ora, quanto
menos limitados nos sentimos, tanto mais toda limitação nos pa-
rece intolerável (DURKHEIM, 1897).

Ao observar a forma pela qual os estudiosos interpretam, errone-


amente, as causas do estado doentio que podia ser observado nas
sociedades modernas, Durkheim busca enfatizar como importante,
para a sociedade moderna, a existência de uma moral que seja capaz
de dar coesão e garantir a integração dos homens à vida coletiva.

Moral (...) é tudo o que é fonte de solidariedade, tudo o que força


o indivíduo a contar com seu próximo, a regular seus movimentos
com base em outra coisa que não os impulsos de seu egoísmo, e
a moralidade é tanto mais sólida quanto mais numerosos e fortes
são estes laços (DURKHEIM, 1893)

Durkheim acredita que a França se encontrava em uma intensa crise


devido ao vazio provocado pelo desaparecimento dos valores e das insti-

108
tuições protetoras do mundo feudal, como a estrutura social pouco dife-
renciada onde todos eram obedientes ao rei e à Igreja. Todo o progresso
social e econômico da sociedade moderna não foi acompanhado pelo
desenvolvimento de instituições dotadas de autoridade capaz de regula-
mentar os interesses e estabelecer limites. Daí, o caos e a desordem, bem
como a anomia moral, presentes na sociedade modera.
As crises que perturbavam a sociedade não eram controladas por
um freio moral, ou uma consciência superior à dos indivíduos. Devido
a isso, a solidariedade é perdida, e a coesão social é ameaçada, pois

as tréguas impostas pela violência são provisórias e não pacificam


os espíritos. As paixões humanas não se detêm, senão diante de
um poder moral que respeitem. Se toda autoridade desse tipo faz
falta, é a lei do mais forte que reina e, latente ou agudo, o estado
de guerra é necessariamente crônico (DURKHEIM, 1893)

O mundo moderno é caracterizado por uma diminuição da capa-


cidade e efeito de instituições integradoras, como a religião e família,
uma vez que as pessoas passam a se integrar, segundo as atividades
profissionais. A família, por exemplo, não possui mais a antiga influ-
ência sobre a vida privada que possuía anteriormente, determinando
casamentos, profissões e quantidade de filhos. O Estado também se
distanciou do indivíduo, tendo “com eles relações muito exteriores
e muito intermitentes para que lhe seja possível penetrar profun-
damente nas consciências individuais e socializá-las interiormente”
(DURKHEIM, 1893). Ademais, a pluralidade religiosa e o surgimento
de diversas correntes religiosas tornam a religião menos eficaz no
controle dos comportamentos e das consciências individuais, uma
vez que não subordinam completamente o fiel, como era feito pela
Igreja Católica na Idade Média. Nessa nova realidade, a profissão se
torna cada vez mais importante na vida social, substituindo o lugar
antes da família e da religião.

109
Dada a importância da profissão na sociedade moderna, bem
como a ausência de solidariedade e, consequentemente, o estado de
anomia da sociedade, Durkheim procura no campo do trabalho, nos
grupos profissionais, um lugar onde a solidariedade e a moralidade
integradoras pudessem ser reconstruídas. O autor encontra nos gru-
pos profissionais uma resposta para a necessidade de reconstrução
moral. Ele percebe que o grupo profissional preenche as duas con-
dições necessárias para a regulamentação da vida social, a saber, 1)
está interessado na vida econômica e 2) tem uma durabilidade como
o grupo familiar. Assim, como o grupo profissional é mais restrito que
o Estado e está perto da vida econômica do indivíduo, é capaz de “co-
nhecer bem seu funcionamento, para sentir todas as suas necessida-
des e seguir todas as suas variações” (DURKHEIM, 1893). Desta forma,
o grupo profissional é capaz de exercer sobre os membros daquela
sociedade profissional uma regulamentação moral capaz de limitar
determinados impulsos e a pôr fim aos estados anômicos existentes,
quando tal grupo busca

suceder a família nas funções econômicas e morais que ela se tor-


na cada vez mais incapaz de preencher (...) será preciso pouco a
pouco vincular os homens às suas vidas profissionais, constituir
fortemente os grupos desse gênero, será preciso que o dever pro-
fissional assuma, dentro dos corações, o mesmo papel que o de-
ver doméstico desempenhou até agora (DURKHEIM, 1893).

Durkheim entendia que a falta de solidariedade e perda da coesão


não estavam relacionados apenas com a má distribuição da riqueza,
mas, principalmente, com a falta de regulamentação das atividades
econômicas, que haviam se desenvolvido de forma jamais antes vis-
ta, deixando de ocupar um lugar que era secundário até então.
Contudo, Durkheim não ignora a desigualdade existente na socieda-
de, mas crê que, pelo menos em parte, a existência de desigualdades

110
está ligada à divisão anômica do trabalho, gerando não só desigualda-
des, como também as insatisfações existentes na sociedade. Mesmo que
esta sociedade já houvesse “enorme quantidade de indivíduos cuja vida
se passa quase que inteiramente no meio industrial”, ela ainda não era
capaz de exercer a “coação, sem a qual não há moral”, isto é, “não se lhes
apresentavam como uma autoridade que lhes impusesse deveres, re-
gras, limites” (QUINTANEIRO, 2003: 83).

Há uma moral profissional do advogado e do magistrado, do


soldado e do professor, do médico e do sacerdote etc. Mas se se
tentam fixar em uma linguagem algo definida as ideias em curso
sobre o que devem ser as relações do empregador com o empre-
gado, do trabalhador com o chefe da empresa, dos industriais
concorrentes entre si ou com o público, que fórmulas indecisas
se obteriam. Algumas generalidades sem precisão sobre a fideli-
dade e a dedicação que os assalariados de todos os tipos devem
àqueles que os empregam, sobre a moderação com a qual esses
últimos devem usar a sua preponderância econômica, uma certa
reprovação por toda concorrência muito abertamente desleal, por
toda exploração por demais injusta do consumidor, eis quase tudo
o que contém a consciência moral destas profissões. (...). Os atos
mais censuráveis estão tão absolvidos pelo sucesso que o limite
entre o que é proibido e o que é permitido, entre o que é justo e o
injusto, não tem mais nada de fixo. (...). Uma moral tão imprecisa e
tão inconsistente não poderia constituir uma disciplina. Disso re-
sulta que toda esta esfera da vida coletiva está, em grande parte,
subtraída à ação moderadora da regra (DURKHEIM, 1893)

Ainda que a atividade econômica tenha se desenvolvido junto com


a civilização, tal atividade não tem nada de moralmente obrigatório,
por si só, como também não tem servido para o progresso da moral. É
justamente nos grandes centros comerciais e industriais onde se per-
cebe o crescimento dos suicídios e da criminalidade, exemplificando

111
a presença da imoralidade coletiva. Como observa Durkheim, a civili-
zação é moralmente neutra, sendo a ciência o único de seus elemen-
tos que apresenta um certo caráter de dever (DURKHEIM, 1893).
De fato, Durkheim propõe que a corporação ou grupo profissional
deveria se ampliar, à medida que o mercado também se ampliasse
passando de nacional para internacional. Com essa ampliação, a cor-
poração se ampliaria e tornar-se-ia um órgão autônomo, exercendo
os princípios dos distintos ramos comerciais, desenvolvendo uma
moral que abrangesse o todo.
Não haveria uma reconstrução das corporações medievais, mas
seria necessário reconhecer o papel que estas corporações haviam
realizado enquanto instituições e seu “poder moral capaz de conter
os egoísmos individuais, de manter no coração dos trabalhadores um
sentimento mais vivo de sua solidariedade comum, de impedir que a
lei do mais forte se aplique tão brutalmente às relações industriais e
comerciais” (DURKHEIM, 1893). Da mesma forma, as novas corpora-
ções profissionais possuiriam uma autoridade moral, criando solida-
riedade e coesão entre seus membros.

Como toda sociedade, seriam aptas a fazer-se respeitar e amar, a


exercer um domínio indiscutível, a estabelecer regras de conduta
que possuiriam sobre os indivíduos um caráter obrigatório e, por
fim, a levar seus membros ao sacrifício e à abnegação em nome do
interesse comum, ao mesmo tempo que criariam entre eles uma
forte solidariedade” (QUINTANEIRO, 2003:84).

Quando pessoas são parte de um grupo que compartilha ideias,


sentimentos e interesses, elas são atraídas em direção umas às ou-
tras, entram em relações e se associam, constituindo um grupo de
onde surge uma vida moral e um sentimento de todo.

Ora, essa união com algo que supera o indivíduo, essa subordina-
ção dos interesses particulares ao interesse geral é a própria fonte

112
de toda atividade moral. Se esse sentimento se precisa e se determi-
na, quando, aplicando-se às circunstâncias mais ordinárias e mais
importantes da vida, se traduz em fórmulas definidas, temos um
corpo de regras morais prestes a se constituir (DURKHEIM, 1893)

A preocupação de Durkheim com a questão moral demonstra


como, para ele, o mundo estava caótico por causa da falta de uma
moral comum que guiasse os indivíduos. Durkheim discordava dos
socialistas franceses que propunham soluções sociais para os pro-
blemas do mundo. “As chamadas doutrinas socialistas são, de fato,
essencialmente relativas a esta esfera da vida coletiva que se chama
vida econômica. Isto não quer dizer que a questão social seja uma
questão de salários; somos, pelo contrário, daqueles que pensam
que ela é, antes de mais, moral” (DURKHEIM, 1897).
A preocupação de Durkheim se baseia na análise que a divisão do
trabalho pode dissolver os laços e diminuir a coesão entre seus in-
divíduos, deixando de cumprir seu papel moral, a saber, o de tornar
solidárias as funções divididas e diferentes. Quando não há normas
que unam os indivíduos, não há uma moderação sobre a competi-
ção social, não existindo também uma harmonia entre as funções.
Durkheim percebe três casos que demonstram a ausência de har-
monia: nas crises industriais e comerciais que demonstram que as
funções sociais não estão bem adaptadas entre si; nas lutas entre o
trabalho e o capital que mostram a falta de unidade e a desarmonia
entre os trabalhadores e os patrões; e na divisão extrema de especia-
lidades no interior da ciência.
Para exemplificar tal realidade, Durkheim usa a relação entre pro-
dutores e consumidores, onde o intenso crescimento econômico
diminuiu a relação entre eles. Pense, por exemplo, na compra de um
saco de sal no supermercado. O consumidor paga o valor pelo quilo
sem saber quem foi o indivíduo que produziu o sal. O resultado deste
distanciamento são as crises que perturbam as funções econômicas.

113
Isto se dá porque tal distanciamento ocorreu mais rápido do que as
novas instituições sociais foram capazes de acompanhar, a fim de es-
tabelecer um equilíbrio sobre as relações. Quando indivíduos se iso-
lam, a anomia e o risco de desintegração põem em risco o corpo so-
cial e “quando o indivíduo, absorvido por sua tarefa, se isola em sua
atividade especial, já não percebe os colaboradores que trabalham a
seu lado e na mesma obra, nem sequer tem ideia dessa obra comum”
(DURKHEIM, 1893).
Durkheim discorda que a divisão do trabalho reduziu o homem a
uma máquina que repete os mesmos movimentos sem relacionar a
ação com seu propósito. Para ele, se o trabalhador “já não é uma célu-
la viva de um organismo vivo que vibra sem cessar ao contato das cé-
lulas vizinhas”, é porque tornou-se “uma engrenagem inerte que uma
força externa põe em funcionamento” (DURKHEIM, 1893). O sistema
social moderno não é indiferente a moral. De fato, a ausência de uma
moral põe em risco as funções sociais como um todo, necessárias
para manter a vida social. É justamente pela falta desta moral que as
crises, crimes e anomia existem. Logo, a solução está em demonstrar
para o trabalhador que “suas ações têm um fim fora de si mesmas.
Daí, por especial e uniforme que possa ser sua atividade, é a de um
ser inteligente, porque ela tem um sentido e ele o sabe”.
A desarmonia entre as habilidades do indivíduo e as tarefas reali-
zadas causam perturbação na sociedade, mas esta desarmonia não
é, necessariamente, fruto da divisão do trabalho. “O trabalho só se di-
vide espontaneamente se a sociedade está constituída de tal maneira
que as desigualdades sociais expressam exatamente as desigualda-
des naturais” (DURKHEIM, 1893).

3.9. Moral e Vida social


Pode-se definir moral como “um sistema de normas de conduta
que prescrevem como o sujeito deve conduzir-se em determinadas

114
circunstâncias”. Entretanto, “tais normas distinguem-se de outros
conjuntos de regras, porque envolvem uma noção de dever, cons-
tituem uma obrigação, possuem um respeito especial, são senti-
das como desejáveis e, para cumpri-las, os membros da sociedade
são estimulados a superar sua natureza individual” (QUINTANEIRO,
2003:87). As normas morais objetivam se apresentar como algo dese-
jado e desejável para os seres humanos a quem são destinadas. Elas
não são apresentadas como uma simples ordem, mas, sim, como um
dever, pois “experimentamos um prazer sui generis em cumprir com
nosso dever, porque é nosso dever. A noção de bem penetra na no-
ção de dever”. Portanto, ao praticar seu dever, não porque é obrigado,
mas porque entende que é o melhor a ser feito, o indivíduo vive em
liberdade, que é a “filha da autoridade bem compreendida. Porque
ser livre não é fazer o que se queira; é ser-se senhor de si, saber agir
pela razão, praticando o dever” (DURKHEIM, 1897).
A moral está presente em cada povo, cada cultura em diferentes
tempos e momentos históricos. Baseados na moral, a opinião pública
e os tribunais exercem seus julgamentos. A moral está diretamente
relacionada com o bem. Mesmo que existam consciências individu-
ais que não se ajustem à moralidade de seu tempo, existe uma mo-
ral comum e geral sobre aqueles que pertencem à coletividade, e as
consciências individuais expressam as diversas formas que a moral
se expressa. Por isso, se o educador, seja um pai ou um professor,
possui uma ascendência moral sobre seus filhos ou alunos é porque
tem uma autoridade legítima, que se dá devido à crença na missão
que desempenha e não no medo que inspira. Tal autoridade existe
também nos sacerdotes religiosos que falam em nome de Deus. Para
Durkheim há dois grandes órgãos de entidades morais: um, da socie-
dade, e outro de Deus. Mas, a sociedade é a autoridade moral; é dela
que parte a obrigatoriedade às normas morais. Assim, o valor moral
dos atos se deve a seu objetivo superior aos indivíduos, isto é, sua
fonte sendo mais elevada e sua finalidade sendo a sociedade.

115
Durkheim dedica grande parte de sua obra buscando fundamen-
tar os princípios que embasam sua noção de sociedade. Para ele, o
valor moral superior à soma moral de cada indivíduo demonstra
como ela não é a simples soma dos indivíduos que a constituem. A
moral que surge não é inventada por indivíduos particulares, mas
algo que emerge das relações sociais que exercem. E, “se existe uma
moral, um sistema de deveres e obrigações, é mister que a socieda-
de seja uma pessoa qualitativamente distinta das pessoas individuais
que compreende e de cuja síntese é o resultado”. Por isso, a moral se
inicia onde se inicia também a vida em grupo, ou seja, na família, cor-
poração profissional, cidade, pátria, organizações internacionais, etc.
Nestes grupos começam a moral e “o devotamento e o desinteresse
adquirem sentido”.
Estar ligado a um grupo significa estar ligado a um determinado
ideal social, e só na vida coletiva que se aprende a idealizar. Para
Durkheim, “a sociedade é o melhor de nós”, é o que torna o indivíduo
um ser humano, “na verdade, o homem não é humano senão por-
que vive em sociedade” (DURKHEIM, 1893), e deixar de viver em so-
ciedade é também deixar de ser humano. Para adquirir humanidade,
é necessário superar a si mesmo, dominando seus desejos, paixões e
considerar outros interesses além dos seus próprios. E quem ensina
tais virtudes ao homem é a sociedade. É ela quem educa o homem,
dando a ele a capacidade de sacrifício, privação e subordinação dos
desejos individuais a outros mais elevados.
Entretanto, no processo de divisão do trabalho, a crescente di-
ferenciação afasta os indivíduos até o ponto em que nada mais os
une, senão a qualidade de serem seres humanos. Não há nada que
eles “possam amar e honrar em comum, senão o próprio homem...
E como cada um de nós encarna algo da humanidade, cada cons-
ciência individual encerra algo de divino e fica, assim, marcada por
um caráter inviolável para os outros” (DURKHEIM, 1893). Por isso é
tão importante para Durkheim a existência de uma moral, ou ainda,

116
uma religião da humanidade, pois é um único sistema de crenças que
pode garantir a unidade moral da sociedade moderna. E “quem quer
que atente contra a vida de um homem, contra a liberdade de um
homem, contra a honra de um homem, inspira-nos um sentimento de
repulsa, análogo àquele que o crente sente quando vê profanarem o
seu ídolo” (DURKHEIM, 1893).
Como afirma Quintaneiro (2003:88), a relação do indivíduo com a
sociedade é um dos elementos mais relevantes da Sociologia Durkhei-
miana: “lugar do indivíduo na sociedade moderna, sua relação com o
Estado, a proteção de seus interesses e a criação de seus direitos”. Em
sociedades menos complexas, o Estado possui um caráter religioso e
os indivíduos são controlados de perto; a moral cívica, que trata dos
deveres dos cidadãos, confunde-se com a religião pública, e o indiví-
duo é um instrumento para a realização dos objetivos do Estado. Já
em sociedades complexas, onde o Estado possui funções mais exten-
sas, forma-se um número cada vez maior de grupos secundários que
representam interesses organizados de seus membros. As liberdades
e os direitos individuais são frutos desta relação entre o Estado e os
diversos grupos existentes, tais como a família, corporação, Igreja,
entre diversos outros.
Durkheim chama a concepção do Estado de individualista. Quan-
do grupos exercem pressão sobre o Estado, “aquilo que ontem não
parecia passar de uma espécie de luxo virá a tornar-se, amanhã, direi-
to estrito. A tarefa, assim, do Estado, é ilimitada. (...) Tudo faz prever
que nos tornaremos mais sensíveis a quanto respeite a personalidade
humana” (DURKHEIM, 1893).
A exaltação do indivíduo existe com base na simpatia “tudo o que
é do homem, uma maior piedade por todas as dores, por todas as
misérias humanas, uma mais ardente necessidade de os combater
e atenuar, uma maior sede de justiça”. As liberdades do indivíduo,
como sua vida e sua honra, são respeitadas e protegidas, e se “ele
tem direito a esse respeito religioso é porque existe nele qualquer

117
coisa da humanidade. É a humanidade que é respeitável e sagrada”
(DURKHEIM, 1893). Contudo, a moral não é um egoísmo utilitário, ou
um culto ao ego. Ela precisa ser sair de si e se estender a outros.

O homem livre é aquele que contém seu egoísmo natural, subordi-


na-se a fins mais altos, submete os desejos ao império da vontade,
conforma-os a justos limites. Por isso, um individualismo desre-
grado adviria da falta de disciplina e de autoridade moral da socie-
dade. A divinização do indivíduo é obra da própria sociedade, e a
liberdade deste é utilizada para o benefício social. O culto de que
ele é ao mesmo tempo objeto e agente dirige-se à pessoa humana,
está acima das consciências individuais e pode servir-lhes de elo
em direção a uma mesma fé (QUINTANEIRO, 2003:89).

Esta fé representa uma adesão a um conjunto de crenças e práti-


cas coletivas que precisam ser respeitadas, conferindo a elas um ca-
ráter religioso. Portanto,

não é de recear que alguma vez o céu se despovoe de forma defini-


tiva, pois somos nós próprios que o povoamos. O que nele projeta-
mos são imagens ampliadas de nós próprios. E enquanto houver
sociedades humanas, elas tirarão do seu seio grandes ideais de
que os homens se tornarão servidores (DURKHEIM, 1912)

3.10. Religião e Moral


Como visto, a preocupação e o estudo da moral ocupam um im-
portante espaço na obra durkheimiana. Por conseguinte, Durkheim
dedica porção de sua reflexão para entender como a Religião se rela-
ciona com a moralidade.
Ele parte do estudo das religiões primitivas por entender que, por
sua simplicidade, evidenciam o essencial, que posteriormente foi

118
oculto pelas complexidades e adições à crença. Nas comunidades
primitivas, onde a similaridade é maior, a diferença menor e há me-
nos individualidades, Durkheim crê que o religioso ainda apresentava
sinais de sua origem, demonstrando elementos que eram comuns a
todas as sociedades.
Durkheim afirma que as religiões são formadas por “um sistema
solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas - isto é,
separadas, interditas - crenças comuns a todos aqueles que se unem
numa mesma comunidade moral chamada Igreja” (1912). Os fenô-
menos religiosos são de duas espécies: as crenças, que são “estados
de opinião”; e os ritos que representam “modos de conduta”. Duas
espécies que se organizam e classificam as coisas em dois grupos ou
classes excludentes: o sagrado e o profano. Transformar o profano
em sagrado exige um processo de mudança e metamorfose, que en-
volve ritos de iniciação, através de cerimônias que marcam a morte
de um para o ressurgimento em forma de outro. A separação entre
sagrado e profano envolve palavras, objetos, animais, alimentos, lu-
gares, pessoas, ações, etc. Nesta relação, existe o que pode ou não
pode ser dito, tocado, comido, visitado, feito e quem e com quem tais
coisas podem ser feitas, existindo permissões e proibições que estão
correlacionadas com o dia a dia e associam-se com as outras áreas
da vida, desde o relacionamento íntimo, ao relacionamento com o
outro, e com a sociedade como um todo.
Por vezes, a capacidade de priorizar o sagrado exige sacrifícios, uma
vez que “nos aferramos com todas as fibras de nossa carne ao mundo
profano; nossa sensibilidade nos ata a ele; nossa vida depende dele. (...)
Não podemos, pois, desprender-nos dele, sem violentar nossa nature-
za, sem chocar-nos dolorosamente com nossos instintos”. (DURKHEIM,
1912). O sofrimento e a dor são chamados, por Durkheim, de culto ne-
gativo, formado pelos ritos ascéticos que estabelecem os tabus.
Ainda na tentativa de transformar o profano em sagrado, as cele-
brações religiosas cumprem um importante papel, ao colocarem a

119
coletividade em movimento para a sua celebração. As celebrações
tornam os indivíduos mais íntimos, aproximando-os e criando laços
entre eles, relembrando-os que são parte de um mesmo grupo, com-
partilhando questões comuns. Os cultos e celebrações são capazes
de manterem unidos os indivíduos de uma sociedade uma vez que,
nestes dias,

O que ocupa o pensamento são as crenças comuns, as tradições


comuns, as lembranças comuns dos grandes antepassados, o ide-
al coletivo de que eles são a reencarnação: em uma palavra, as
coisas sociais. Mesmo os interesses materiais, que as grandes ce-
rimônias religiosas buscam satisfazer, são de ordem pública, por-
tanto socia1 (DURKHEIM, 1912).

Assim, a sociedade envolve os indivíduos no fenômeno religioso


e, por meio dos ritos e das celebrações, torna-se ainda mais viva e
presente na vida de seus membros.

Os homens sentem que algo fora deles renasce, desperta: é a par-


cela do ser social contida em cada um que se renova. Assim, um
momento de profunda tristeza como o que se dá com a perda de
um parente também reflete o estado que o grupo ao qual perten-
cia atravessa. Permitir a indiferença nessas situações em que o
destino fere e diminui a família ou a comunidade “seria proclamar
que elas não ocupam em seus corações o lugar a que têm direito”
(QUINTANEIRO, 2003:91)

Por isso, Durkheim dá ao luto uma função importante ao entender que

Uma família que tolera que um dos seus possa morrer sem ser cho-
rado atesta por esse fato que carece de unidade moral e de coesão:
ela abdica, renuncia a existir. Por seu lado, o indivíduo, quando está
firmemente aderido à sociedade da qual forma parte, sente-se mo-
ralmente obrigado a participar de suas tristezas e alegria. Desinte-

120
ressar-se seria romper os vínculos que o unem à coletividade, seria
renunciar a querê-la e contradizer-se (DURKHEIM, 1912).

Ao observar sua realidade e o tempo no qual vivia, Durkheim en-


xerga um momento de caos social e ausência de moralidade o que
faz com que os homens se afastem e as sociedades “são obrigadas
a renovar-se e a procurar-se laboriosamente e dolorosamente”. A re-
alidade observada pelo sociólogo dava-se, pelo menos em parte, à
morte dos velhos ideais e ao período de mediocridade moral vigente

Mas quem é que não sente que, nas profundezas da sociedade, há


uma intensa vida que se elabora e procura as suas vias de saída
que acabará por encontrar? Aspiramos a uma justiça mais elevada
que nenhuma das fórmulas existentes exprime de modo a satis-
fazer-nos. Mas estas aspirações obscuras que nos vão formando
conseguirão, mais cedo ou mais tarde, tomar mais claramente
consciência de si mesmas, traduzir-se em fórmulas definidas em
volta das quais os homens voltarão a unir-se e que se tornarão
num centro de cristalização de novas crenças (DURKHEIM, 1912)

Apesar da realidade caótica, Durkheim se mostra esperançoso em


uma sociedade que reorganize a vida coletiva e consiga reestruturar
as bases morais que são fundamentais para a coesão social. A reorga-
nização surgirá a partir do momento que os homens entenderem que
“a humanidade foi abandonada sobre a terra às suas únicas forças e
não pode senão contar consigo mesma para dirigir os seus destinos”
(DURKHEIM, 1912).

3.11. A Teoria Sociológica do Conhecimento


A religião representa, para Durkheim, a sociedade idealizada, re-
fletindo as aspirações daquilo que é bem, belo e ideal, mas incorpo-
ra e discute também questões do mal, morte e mesmo coisas mais

121
vulgares da vida social. Como tratam de sentimentos comuns, que
afetam todos os indivíduos, as religiões representam também os pri-
meiros sistemas de interpretação e explicação do mundo, as cosmo-
logias. Desta forma, “se a filosofia e as ciências nasceram da religião,
é porque a própria religião começou por ocupar o lugar das ciências
e da filosofia” (DURKHEIM, 1912). Durkheim percebe que, através do
estudo das religiões, era possível analisar as formas pelas quais os
grupos entendem diversas questões da vida, como noções sobre o
tempo, espaço, causa e efeito, personalidade e substância. As noções
são expressas em conceitos e símbolos religiosos, e explicam rela-
ções do indivíduo com as diversas áreas da vida. Por isso, “a ideia de
sociedade é a alma da religião”, e a partir dela se originaram quase to-
das as grandes instituições sociais. Ela é uma expressão resumida da
vida coletiva, não se reduzindo à experiência individual, indo, de fato,
além do indivíduo, impondo-se aos membros da sociedade, tendo o
caráter coercitivo e autoridade da própria sociedade

Comunicando-se a certas maneiras de pensar que são como que as


condições indispensáveis de toda ação comum. A necessidade com
a qual as categorias se impõem a nós não é, pois, o efeito de simples
hábitos de cujo jugo poderíamos nos libertar com um pouco de es-
forço; tampouco é uma necessidade física ou metafísica, já que as
categorias mudam segundo os lugares e os tempos; ela é um tipo
particular de necessidade moral que é para a vida intelectual o que
a obrigação moral é para a vontade (DURKHEIM, 1912)

As categorias são instrumentos coletivos que expressam a forma


pela qual os grupos humanos desenvolveram, ao longo dos séculos,
a expressão das coisas sociais. Os conceitos, como aquilo que é bom,
belo, elegante, apurado, interessante e etc., demonstram como as
sociedades interpretam os sentimentos, a natureza, os objetos e as
ideias. Portanto, categorias e conceitos são representações coletivas.
As classificações dos acontecimentos

122
são tomados da vida social. As divisões em dias, semanas, meses,
anos etc. correspondem à periodicidade dos ritos, das festas, das
cerimônias públicas. A base da categoria “tempo” é o ritmo da vida
coletiva. Um calendário expressa o ritmo da atividade coletiva ao
mesmo tempo que tem por função assegurar sua regularidade. O
mesmo acontece com o espaço (DURKHEIM, 1912).

Caso fosse reduzido apenas aos preceitos individuais, o homem


não seria diferente dos animais, ou seja, “não seria um homem, pois
não seria um ser social que sempre pensou por meio de conceitos.
Estes conceitos exprimem a forma pela qual a sociedade represen-
ta as coisas para si e constituem a matéria do pensamento lógico”
(QUINTANEIRO, 2003:94). Sendo expressões sociais, tais conceitos
são impessoais e gerais, e através deles, os homens se comunicam.
Por conseguinte, a origem dos conceitos é a própria sociedade, uma
vez são compartilhados por todos e “dependem da maneira como
ela é constituída e organizada” (DURKHEIM, 1912). Ademais, como é
produto social, o conceito pode ser generalizado e aplicado a todos
os homens da sociedade, superando os limites da experiência social.
É, portanto, um fato social. De fato, tanto a ciência, quanto a moral,
quanto a religião têm a mesma fonte originária, a saber, a sociedade.

3.12. Considerações Finais


Por mais que o método positivista, basilar para o desenvolvimen-
to dos estudos dukheimianos, pareça tendencialmente conservado,
Durkheim estava consciente das mudanças de seu tempo e das novas
ideias, crenças e representações que surgiam em um período de in-
tensas revoluções econômicas, políticas e sociais. Durkheim se pre-
ocupava, contudo, em estabelecer o fio moral capaz de dar coesão e
solidariedade entre os indivíduos desta nova sociedade, dirimindo o
caos pelos quais passavam as sociedades industriais.

123
A obra de Durkheim teve um impacto fundamental para a formação
da Sociologia como ciência e a estruturação de seu método e objeto.
Ademais, é considerável a importância do pensamento durkheimiano
para a Sociologia da Religião e os estudos dos sistemas simbólicos de
representação.
Desta forma, a Sociologia durkheimiana é fundamental para com-
preender o papel da própria Sociologia e como esta interpreta o mun-
do ao seu redor, analisando as formações dos conceitos, símbolos e
representações sociais, bem como qual a influência que a sociedade
sobre as crenças, escolhas e interpretação dos sentimentos dos indi-
víduos, como também qual a capacidade, se existe alguma, do indiví-
duo de transformar e impactar a estrutura social.

3.13. Referências
DURKHEIM, E. A ciência social e a ação. Tradução de Inês D. Ferrei-
ra. São Paulo: Difel, 1975.
DURKHEIM, E. As regras do método sociológico. Tradução de Maria
Isaura P. Queiroz. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
Publicação Original: 1895
DURKHEIM, E. De la división del trabajo social. Tradução de David
Maldavsky. Buenos Aires: Schapire, 1967.
Publicação Original: 1893
DURKHEIM, E. Educação e Sociologia. 4. ed. Tradução de Lourenço
Filho. São Paulo: Melhoramentos, 1955.
DURKHEIM, E. Las formas elementales de la vida religiosa. Buenos
Aires: Schapire, 1968.
Publicação Original: 1912
DURKHEIM. La famille conjugale. Revue Philosophique de la Fran-
ce et l’Étranger, Paris, n. XCI, p. 8, jan. /juin 1921.

124
DURKHEIM, E. Lições de Sociologia: a moral, o direito e o Estado.
Tradução de B. Damasco Penna. São Paulo: T. A. Queiroz/Edusp, 1983.
DURKHEIM, E. Sociología y filosofía. Tradução de M. Bolafío Hijo.
Buenos Aires: Kraft, 1951.
DURKHEIM, E. O suicídio. Tradução de Nathanael Caixeiro. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982.
Publicação Original: 1897
QUINTANEIRO, T.; OLIVEIRA, M.; OLIVEIRA, B. Um toque de Clássi-
cos: Marx, Durkheim, Weber. Ed. UFMG, 2ª Ed.; Belo Horizonte, 2003

125
CAPÍTULO 4
Max Weber

O homem não teria alcançado o possível se, re-


petidas vezes, não tivesse tentado o impossível.

4.1. Breve Biografia


Ao lado de Karl Marx e Émile Durkheim, o alemão Max Weber in-
tegra o trio dos pensadores clássicos da Sociologia, fundamentais
para a formação desta como ciência e responsáveis por desenvolver
os primeiros estudos sobre a relação da sociedade com o indivíduo
que, até hoje, influenciam os pensamentos e análises de sociólogos e
estudiosos das ciências humanas.
Maximilian Carl Emil Weber (1864-1920), mais conhecido como
Max Weber, nasceu na Alemanha, na cidade de Erfurt, em 21 de abril
de 1864. Morreu no seu país, na cidade de Munique, em 14 de junho
de 1920. Max Weber foi o primeiro de sete filhos de Max Weber, ad-
vogado, membro do Partido Nacional Liberal e de Helene Fallestein,
descente de imigrantes franceses.

126
Em 1882, Weber ingressou na Universidade de Heidelberg, onde es-
tudou Direito e frequentou também aulas de política, história e teolo-
gia. Após sete anos, tornou-se Doutor em Direito, e em 1893, casou-se
com Marianne Schnitger, também estudiosa e responsável por termi-
nar alguns trabalhos inacabados de Weber após sua morte em 1920.
Após seu doutorado, Weber foi nomeado professor de Economia da
Universidade de Freiburg, em 1894, e professor da Universidade de
Heidelberg, em 1896. Nestas Universidades, lecionou até 1900, quan-
do precisou parar de lecionar, devido a um colapso nervoso e aguda
depressão. Tal problema atingiu seriamente a carreira de Weber, sendo
superado apenas 18 anos depois, quando voltou a lecionar.
Durante o período que ficou impossibilitado de lecionar, Weber
atuou de outras formas, como através da prestação de consultoria,
realizando diversas pesquisas acadêmicas, colaborando com os jor-
nais da época.
Em 1903 aceitou a posição de diretor-associado do Arquivos de Ci-
ências Sociais e Política Social, onde em 1904 e 1905, publicou um de
seus trabalhos mais conhecidos: A Ética Protestantes e o Espírito do
Capitalismo. Ademais, dedicou-se aos estudos de Economia, Direito,
Filosofia, História Comparada, Sociologia e Religião. Durante a Pri-
meira Guerra Mundial, atuou como diretor de hospitais militares de
Heidelberg. Em 1918, esteve entre os responsáveis pelo desenvolvi-
mento do Tratado de Versalhes. Posteriormente, em 1919, voltou a
lecionar e dirigiu o primeiro Instituto Universitário de Sociologia da
Alemanha, em Munique.
Tendo desenvolvido estudos sobre as religiões mundiais, não con-
seguiu terminar seus escritos sobre o Cristianismo e o Islamismo, de-
vido à gripe espanhola. Impossibilitado fisicamente de dar continui-
dade, faleceu, em Munique, em 14 de junho de 1920.
A influência de Weber ocorre sobre várias áreas do conhecimen-
to das ciências humanas. Além disso, ele mantém diálogos com as

127
obras de Immanuel Kant e Friedrich Nietzsche e com alguns sociólo-
gos de seu tempo, como Georg Simmel e Karl Marx. De fato, Nietzsche
e Marx tiveram maior impacto sobre o pensamento de Weber. Assim
como Marx, Weber se aprofunda no tema do capitalismo moderno
ocidental, estudando-o na perspectiva histórica, econômica, ideo-
lógica e sociológica. Já Nietzsche influencia a percepção de Weber
sobre como o poder, “expresso na luta entre valores antagônicos, é
o que torna a realidade social, política e econômica compreensível”
(QUINTANEIRO, 2003:98).
Dentre as principais obras de Weber, destacam-se: A Ética Protes-
tante e o Espírito do Capitalismo (1905), Ensaios Reunidos de Sociolo-
gia da Religião (1920), A Ciência como Vocação (1917), A Política como
Vocação (1919), Economia e Sociedade (1920), e também a organiza-
ção póstuma de parte de seus escritos, Ensaios de Sociologia (1946).

4.2. A Objetividade do Conhecimento


Diferentemente do que defendia o método positivista, Weber en-
tendia que, na investigação de qualquer tema, o cientista é influencia-
do e inspirado por seus valores e ideias, peças fundamentais para o
cientista. Por isso, todo estudioso deve ser capaz de estabelecer uma
“distinção entre reconhecer e julgar, e a cumprir tanto o dever cien-
tífico de ver a verdade dos fatos, como o dever prático de defender”
os próprios valores, que devem ser obrigatoriamente expostos e ja-
mais disfarçados de “ciência social” ou da “ordem racional dos fatos”
(WEBER, 1917). É fundamental diferenciar a ciência e a política, mas
perceber que elas não estão ausentes de valores. Se, por um lado, a
ciência é um produto da reflexão do cientista, a política é um produto
do homem de vontade e de ação, ou do membro de uma classe que
compartilha ideologias e interesses.
De acordo com Weber, “a ciência é hoje uma vocação organizada
em disciplinas especiais, a serviço do autoesclarecimento e conheci-

128
mento de fatos inter-relacionados” (WEBER, 1917). A preocupação da
ciência não é responder à pergunta: Qual deus devemos seguir? Essa
é uma preocupação ética. O que significa que é preciso diferenciar
entre os julgamentos de valor e o saber empírico. O saber surge das
necessidades e das considerações práticas, ao longo da história, e se
tornam problemas para o cientista, que deve ter o propósito de res-
ponder a tais problemas, bem como propor a adoção de medidas que
objetivem solucioná-los. Todavia, o cientista nunca deve se propor a
estabelecer normas e ideias para a prática diária, nem decidir o que
deve ser feito. Deve sim, dizer o que pode ser feito. A ciência, portan-
to, é um procedimento racional que busca explicar as consequências
de determinados atos, enquanto a política se vincula a convicções e
deveres. Desta forma, a relação entre ciência e valores é uma relação
complexa:

Hoje falamos habitualmente da ciência como “livre de todas as


pressuposições”. Haverá tal coisa? Depende do que entendemos
por isso. Todo trabalho científico pressupõe que as regras da ló-
gica do método são válidas; são as bases gerais de nossa orienta-
ção no mundo; e, pelo menos para nossa questão especial, essas
pressuposições são o aspecto menos problemático da ciência. A
ciência pressupõe, ainda, que o produto do trabalho científico é
importante no sentido de que “vale a pena conhecê-lo”. Nisto es-
tão encerrados todos os nossos problemas, evidentemente, pois
esta pressuposição não pode ser provada por meios científicos -
só pode ser interpretada com referência ao seu significado último,
que devemos rejeitar ou aceitar, segundo a nossa posição última
em relação à vida. (...) A “ressuposição” geral da Medicina é apre-
sentada trivialmente na afirmação de que a Ciência Médica tem a
tarefa de manter a vida como tal e diminuir o sofrimento na medi-
da máxima de suas possibilidades. Se a vida vale a pena ser vivida
e quando - esta questão não é indagada pela Medicina (WEBER,
1917)

129
Weber entende que não é possível ignorarmos a existência dos va-
lores nas ciências. Mas, ele também compreende que é possível al-
cançar a objetividade no estudo. Para Weber, os valores devem ser
incorporados conscientemente à pesquisa e controlados através de
esquemas de explicação condicional, isto é, um rigoroso procedimen-
to de análise. A ação do cientista é seletiva. Os valores atuam como
um guia para a escolha do objeto de estudo dele. Depois que definir
sua opção, o cientista decide o caminho que traçará para na expli-
cação do objeto eleito. Ele selecionará as hipóteses, construindo um
esquema lógico-explicativo que garanta a objetividade, uma vez que
o cientista obedecerá com rigor as regras do pensamento científico.
Ao tentar estabelecer uma relação causal entre os fenômenos, o pró-
prio cientista atribui uma ordem ao real e à história, produzindo o que
Weber chama de tipo ideal.
Portanto, a atividade científica é racional com relação a sua fina-
lidade e objetivo, ou seja, busca a verdade científica, mas é também
racional com relação aos valores, pois perscruta a verdade. Desta for-
ma, existe uma ética absoluta que se impõe aos cientistas, a saber, a
obrigação de dizer a verdade.
A discussão weberiana sobre a respeito da objetividade da ciência
não é algo simples, e merece uma avaliação mais profunda, para ser
melhor compreendida. Afirma que, a fim de alcançar o conhecimento
pretendido, o cientista social precisa efetuar quatro operações 1) esta-
belece leis e fatores hipotéticos que servirão como instrumentos para
seu estudo; 2) analisa e expõe ordenadamente “o agrupamento indivi-
dual desses fatores historicamente dados e sua combinação concreta
e significativa”, buscando tornar compreensível a causa e natureza da
significação; 3) remonta ao passado para observar como se desenvol-
veram as diferentes características individuais daqueles agrupamentos
que possuem importância para o presente e procura fornecer uma ex-
plicação histórica a partir de tais constelações individuais anteriores, e
4) avalia as constelações possíveis no futuro (QUINTANEIRO, 2003:100).

130
Weber faz parte dos que entendem que as ciências sociais buscam
compreender eventos culturais enquanto singularidades. O objetivo
seria, assim, entender a especificidade dos fenômenos estudados e
seus significados. Entender por que aquele fenômeno aconteceu na-
quele momento e daquela forma. Contudo, como a realidade cultural
é infinita, a análise de todas as circunstâncias ou variáveis envolvi-
das na ocorrência de um fenômeno se torna impossível. Por isso, o
cientista precisa isolar um fragmento que considera relevante para
ser analisado. Além do mais, o cientista social necessita estar atento
a importância do fenômeno para aquela cultura naquela época.

Pode-se dizer, então, que o particular ou específico não é aquilo


que vem dado pela experiência, nem muito menos o ponto de par-
tida do conhecimento, mas o resultado de um esforço cognitivo
que discrimina, organiza e, enfim, abstrai certos aspectos da reali-
dade na tentativa de explicar as causas associadas à produção de
determinados fenômenos. Mas o método de estudo de que se uti-
liza baseia-se no estado de desenvolvimento dos conhecimentos,
nas estruturas conceituais de que dispõe e nas normas de pensa-
mento vigentes, o que lhe permite obter resultados válidos não
apenas para si próprio (QUINTANEIRO, 2003:100)

Para Weber, conceitos muito abstratos e genéricos não são tão


proveitosos para o cientista social, pois estão desconexos da realida-
de social e histórica. Desta forma, a construção de leis que busquem
explicar padrões sociais, conhecendo as regularidades do mundo,
é apenas um trabalho preliminar, inicial. Os fenômenos individuais
possuem uma infinidade de elementos cuja significação e ordenação
são feitas pelo trabalho do cientista social ao imputar a causa de tais
fenômenos. Portanto,

a) o conhecimento de leis sociais não é um conhecimento do so-


cialmente real, mas unicamente um dos diversos meios auxilia-

131
res que o nosso pensamento utiliza para esse efeito e, b) porque
nenhum conhecimento dos acontecimentos culturais poderá ser
concebido senão com base na significação que a realidade da
vida, sempre configurada de modo individual, possui para nós em
determinadas relações singulares (WEBER, 1917)

A seleção dos fenômenos culturais é feita de forma subjetiva,


pois o ponto de vista humano que dá sentido a tal fenômeno. “Assim
como de proceder à imputação de causas concretas e adequadas ou
objetivamente possíveis, destacando algumas conexões, construindo
relações, e elaborando ou fazendo uso de conceitos que pretendem
ser fecundos para a investigação empírica, embora inicialmente im-
precisos e intuídos” (QUINTANEIRO, 2003:101). Isto permitirá “tomar
consciência não do que é genérico, mas, muito pelo contrário, do que
é específico a fenômenos culturais” (WEBER, 1917). A solução para
a relação entre objetividade do conceito e a subjetividade presente
na compreensão histórica encontra-se na formulação de tipos ideais,
através dos quais busca-se tornar compreensível as conexões que se
estabelecem empiricamente na sociedade.

4.3. Os Tipos Ideais


As ciências sociais têm por objetivo gerar a compreensão da par-
ticularidade da vida que cerca os homens, composta de uma imensa
diversidade de elementos e fenômenos. Quando se seleciona um ob-
jeto para estudo, seleciona-se um fragmento da realidade. Portanto,
a tarefa do cientista social é distinta da do cientista da natureza, que
busca leis e padrões generalizados. O cientista social procura enten-
der uma individualidade sociocultural formada de componentes que
se uniram ao longo da história, que nem sempre são possíveis de
quantificar, que são usados para explicar o presente e avaliar possibi-
lidades futuras.

132
Como a Sociologia é uma ciência generalizadora, ela constrói con-
ceitos que funcionam como fórmulas interpretativas da realidade, se-
gundo a qual se apresenta uma explicação racional para a realidade
que se organiza. Aos conceitos generalizadores, Weber chama de ti-
pos ideais. Esta forma de interpretação da realidade pode ser aplicada
para a explicação de fenômenos irracionais, como questões mágicas,
espirituais, afetivas. Por outro lado, o conceito se torna mais comple-
to quando a racionalidade da conduta é maior. O valor da construção
teórica, isto é, do conceito desenvolvido, está diretamente ligado com
a capacidade de dar sentido aos fatos, se não, esta construção não
possui utilidade. Quando não é possível realizar a prova empírica, ou
seja, provar a teoria na realidade existente, a construção teórica ra-
cional não passa de hipótese. “Uma construção teórica que pretende
ser uma explicação causal baseia-se em probabilidades de que um
certo processo “A”; siga-se, na forma esperada, a um outro determi-
nado processo “B” (QUINTANEIRO, 2003:102).
Assim, ao selecionar um fragmento da realidade para ser analisa-
do, o cientista atribui a ele um sentido, destacando os aspectos que
lhe pareçam importantes, baseando-se nos seus próprios valores.
Enquanto “o objeto de estudo e a profundidade do estudo na infini-
dade das conexões causais são determinados somente pelas ideias
de valor que dominam o investigador e sua época”, o método que o
cientista irá submeter seu objeto, bem como os conceitos que utiliza-
rá deverão ser submetidos ao rigor científico referidos a uma teoria.
Este é o modelo “tipo ideal” utilizado por Weber, que o cientista utili-
za para desenvolver suas análises do real.
As possibilidades e limites do tipo ideal se devem 1) à unilaterali-
dade, 2) à racionalidade, 3) ao caráter utópico. Quando o tipo ideal
é elaborado, alguns elementos da realidade são escolhidos e inter-
pretados, estabelecendo um caminho para a explicação do fenômeno
escolhido. Com isso, enfatiza-se alguns pontos e deixa-se, necessa-
riamente, outros de fora, dando unilateralidade ao modelo puro, ao

133
tipo ideal. Os elementos que causam tal fenômeno são estabelecidos
pelo cientista de modo racional, sem negar, contudo, a existência de
fatores irracionais que influenciam o desenvolvimento do fenômeno
estudado.
O tipo ideal é, sobretudo, uma utopia. É algo fora da realidade, mas
que serve para avaliá-la. Isso porque o tipo ideal não é e nem preten-
de ser um reflexo da realidade, e nem um modelo do que ela deveria
ser. Ele é, assim, uma forma de avaliação da realidade e um modelo
simplificado do real, elaborado com base naquilo que é considerado
essencial para determinar a causa e efeito dos fenômenos estudados.
Pense, por exemplo, no indivíduo religioso no Brasil. Se utilizarmos os
dados do censo do IBGE de 2010, poderemos relacionar religião com
idade, renda mensal, nível educacional, cor, sexo e área domiciliar, por
exemplo. Desta forma, se formos construir o tipo ideal do evangélico de
missão no Brasil, teríamos o seguinte esquema: o tipo ideal evangélico
no Brasil é mulher, branca, 30 a 39 anos, com ensino médio comple-
to, urbana, que recebe entre R$ 1064,01 e R$ 4591,00 por mês. Quando
construímos esse tipo ideal, não o fazemos para achar pessoas na rea-
lidade, mas sim para respondermos questões tais como: a) por que há
mais mulheres evangélicas do que homens?; b) por que estão ligados à
classe C?; c) por que são mais novos que os Católicos e mais velhos do
que os Pentecostais?; d) existe alguma relação entre religião evangéli-
ca e escolaridade mais alta? etc. São questões que surgem a partir da
formulação do tipo ideal. Assim, é possível comparar o modelo cons-
truído com a dinâmica da realidade analisada.
Para Weber, a análise do capitalismo elaborada por Marx tem a ca-
racterística do tipo ideal, ou seja, mesmo que teoricamente ela esteja
correta, não se deve lhe atribuir a validez empírica ou crer que são
tendências reais.

Tais construções (...) permitem-nos ver se, em traços particulares


ou em seu caráter total, os fenômenos se aproximam de uma de

134
nossas construções, determinar o grau de aproximação do fenô-
meno histórico e o tipo construído teoricamente. Sob esse aspec-
to, a construção é simplesmente um recurso técnico que facilita
uma disposição e terminologia mais lúcidas (WEBER, 1946).

Em seu livro, A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber,


aplicando o conceito de tipos-ideais, analisa o “espírito do capitalis-
mo”. Durante a obra, Weber explica as razões pelas quais o Ocidente
foi o lugar onde tal espírito nasceu e desenvolveu-se até chegar na
forma final que o autor apresenta no final de seu trabalho.

O tipo ideal é utilizado como instrumento para conduzir o autor


numa realidade complexa. O autor reconhece que seu ponto de
vista é um entre outros. Cabe à Sociologia e à História, como parte
das ciências da cultura, reconstruir os atos humanos, compreen-
der o significado que estes tiveram para os agentes, e o universo
de valores adotado por um grupo social ou por um indivíduo en-
quanto membro de uma determinada sociedade e, por fim, cons-
truir conceitos-tipo e encontrar “as regras gerais do acontecer”
(QUINTANEIRO, 2003:104).

4.4. Ação e Ação Social


Weber define ação como toda conduta humana, quer ato, omissão
ou permissão, dotada de um significado subjetivo dado por quem a
executa e que orienta essa ação (WEBER, 1920). Quanto a orientação
da primeira ação tem por objetivo a ação, passada, presente ou futu-
ra, do outro ou de outros agentes, que podem ser individualizados e
conhecidos, ou plural e desconhecidos, a ação passa a ser definida
como ação social. Por exemplo, comer é uma ação, mas compartilhar
o alimento com outro é uma ação social. Tomar banho é uma ação, dar
banho em alguém é uma ação social. Desta forma, a Sociologia é a ci-
ência que pretende entender, interpretando a ação social, para, dessa

135
maneira, explicá-la causalmente em seu desenvolvimento e efeitos,
“observando suas regularidades as quais se expressam na forma de
usos, costumes ou situações de interesse” (WEBER, 1920). De fato, a
Sociologia não analisa apenas o fato social, mas este é fundamental
para a explicação das relações dos indivíduos.
A Sociologia busca entender e explicar o sentido, o desenvolvi-
mento e os efeitos da conduta de um indivíduo em relação a outro,
sem julgar a validez dos atos. Compreender a ação é ser capaz de
dar sentido a ela, captando e interpretando tal sentido. Ou seja, ação
compreensível é ação com sentido. Por exemplo, se alguém usa de
violência com o outro por estar em um surto psicótico, a ação não tem
sentido, não é ação social, pois não é feita de forma racional. Por outro
lado, se a violência é usada por ciúmes, é necessário entender quais as
causas e os efeitos desta ação, que é social.
Quanto mais o agente se orientar por sua razão, e por um planeja-
mento de ação, mais racional a conduta será. Por outro lado, quanto
maior for o efeito dos costumes ou sentimentos sobre a ação, menor
seu grau de racionalidade. Quanto mais racionais as ações, mais so-
ciologicamente compreensíveis serão. O que não significa que ações
religiosas, fanáticas ou afetivas não podem ou devam ser interpreta-
das. Serão, no entanto, mais difíceis de serem compreendidas racio-
nalmente e demonstradas empiricamente.
Para compreender a ação através do método científico, o sociólo-
go desenvolve um conceito ou elaboração, a saber, o tipo ideal. Com
relação à ação, Weber constrói quatro tipos ideais: 1) ação racional
com relação a fins; 2) ação racional com relação a valores; 3) ação
tradicional; 4) ação afetiva. Como são tipos ideais de ação, são ele-
mentos para interpretá-las no agir dos indivíduos. Há diversas combi-
nações que leva o agente a agir desta ou daquela forma, mesmo que
perceba ou não as razões, os meios e as condições existentes, assim
como as consequências advindas de suas ações.

136
Os quatro tipos de ação desenvolvidos por Weber são formados
em uma escala de racionalidade pura até a irracionalidade. Quanto
maior a influência de valores, emoções e tradições na tomada de de-
cisão, menos racional ela é, ao passo que a maior racionalidade exige
a menor influência de valores e emoções.
A ação do indivíduo será considerada racional com relação a
fins, se, para atingir um objetivo definido, o indivíduo utiliza meios
avaliados e combinados através de uma interpretação racional. Por
exemplo, quando alguém compra um carro, entra em uma relação eco-
nômica com o vendedor, onde o que importa é a troca econômica, o
pagamento pelo bem. A amizade e a tradição, por exemplo, são secun-
dárias. O que realmente importa é o preço a ser pago e o dinheiro para
pagar. Uma ação racional, com relação a fins, significa uma ação que
o indivíduo utiliza a razão para atingir um objetivo.

A questão para o agente que visa chegar ao objetivo pretendido


recorrendo aos meios disponíveis é selecionar entre estes os mais
adequados. A conexão entre fins e meios é tanto mais racional
quanto mais a conduta se dê rigorosamente e sem a interferência
perturbadora de tradições e afetos que desviam seu curso. Assim,
provavelmente é mais racional aplicar em ações da bolsa de valo-
res a partir da avaliação de um especialista no assunto do que ce-
der a um impulso, decidir com base num jogo de dados ou aceitar
o conselho de um sacerdote (QUINTANEIRO, 2003:106).

A ação será racional em relação a valores, quando o agente se orien-


tar por princípios, agindo de acordo com suas convicções e consideran-
do apenas fé e fidelidade aos seus valores. São estes valores que guiam
e inspiram sua conduta, validando ou invalidado a ação. Por exemplo,
o indivíduo não mente, pois é honesto; não se relaciona sexualmente,
pois é casto; não se alimenta de carne, pois é religioso. Desta forma, sua
ação é orientada por seus valores. Ao realizar ou não uma ação, o in-
divíduo cumpre um dever, uma obrigação ou uma demanda, baseado

137
em seu senso moral, de dignidade, de beleza e de justiça, ou em suas
crenças religiosas ou políticas. Ele não é guiado pelo resultado das suas
ações, mas pela convicção que as embasa. Dizer que tal ação é racional
em relação a valores, significa dizer que o indivíduo entende, reconhe-
ce, racionaliza ações a partir de seus valores, ou seja, ele entende que
age de certa forma porque é movido por seus valores.

O significado da ação não se encontra, portanto, em seu resultado


ou em suas consequências, mas no desenrolar da própria condu-
ta, como, por exemplo, a daqueles que lutam em prol dos valores
que consideram indiscutíveis ou acima de quaisquer outros, como
a paz, o exercício da liberdade (política, religiosa, sexual, de uso
de drogas etc.), em benefício de uma causa como a nacional ou
pela preservação dos animais. O que dá sentido à ação é sua fide-
lidade aos valores que a guiaram (QUINTANEIRO 2003:107).

Por outro lado, por vezes, tal ação pode apresentar um grau de
irracionalidade, uma vez que o agente aja de certa forma movido por
um princípio que não consegue racionalizar ou entender completa-
mente, mas que o influencia para tomar a ação.
Além desses dois tipos ideias de ação racional, seja com relação
a fins, ou com relação aos valores, há também tipos de ação irracio-
nais, sem motivação racional, como é o caso da ação daquelas de
tipo afetivo ou de tipo tradicional. A ação afetiva ocorre e é orientada
por um sentimento ou desejo, como ciúme, vingança, ódio, paixão e
tantos outros sentimentos. Ao agir de modo afetivo, o indivíduo tem
sua ação inspirada em emoções imediatas, tais como medo, desejo,
compaixão e gosto, sem considerar os meios ou os fins de sua ação.
“Ações desse tipo podem ter resultados não pretendidos, desastrosos
ou magníficos como, por exemplo, magoar a quem se ama, destruir
algo precioso ou produzir uma obra de arte, já que o agente não se
importa com os resultados ou consequências de sua conduta” (QUIN-
TANEIRO 2003:108).

138
Ações afetivas se diferem das ações racionais orientadas por va-
lores, uma vez que, nestas últimas, o indivíduo elabora consciente-
mente o caminho e os pontos que o guiarão e, desta forma, se orienta
segundo o que indicam, de maneira consciente, racionalmente. Já as
ações afetivas são orientadas por sentimentos do agente que as reali-
za, como agir violentamente a um comentário, torcer para um time de
futebol, chorar ao ver uma cena triste e levar a namorada para assistir
um filme que ela quer ver.
Quando a ação do indivíduo é realizada por costumes ou hábitos
enraizados, ou por agir de uma forma porque “sempre foi assim”, ou
ainda, agir por estímulos habituais, - a ação é considerada tradicio-
nal. Por exemplo, a ação de perguntarmos “- Tudo bem? ”, para alguém
que encontramos, não é feita porque realmente queremos saber se
está tudo bem, mas é um hábito da convivência social. Outros exem-
plos: o costume de batizar o filho, mesmo não praticando a religião,
pedir a bênção aos pais são exemplos de ações tradicionais, pois são
realizadas por força do hábito e não do sentimento ou da razão. We-
ber compara as ações tradicionais com imitações reativas, pois não
é possível conhecer o grau de racionalidade da ação. Desta forma, a
ação tradicional ou a ação afetiva são realizadas com pouca ou ne-
nhuma racionalidade.
Assim, Weber desenvolve os quatro tipos ideais de ação. a fim de
avaliar como os indivíduos atribuem significado a suas ações. Atra-
vés das quatro categorias pode-se avaliar uma imensa quantidade de
ações ou não-ações dos indivíduos, as razões pelas quais fazem ou
deixam de fazer algo, praticam ou deixam de praticar atos, como estu-
dar, doam alguma coisa, compram, se casam, vão à igreja, comem ou
não algum alimento, usam a internet, vão à guerra, ajudam alguém
ou ferem outro.
É certo que uma ação pode ser orientada por diferentes razões, We-
ber afirma que “muito raras vezes a ação, especialmente a social, está
exclusivamente orientada por um ou outro destes tipos”. Por isso, elas

139
são tipos ideais. São uma ferramenta de avaliação da realidade, que
procura entender a sociedade, mas não uma tentativa de limitar o real.
Isto significa que, por vezes, as ações são realizadas com base em mais
de um desses tipos. Busca-se classificar a ação no tipo que o sociólogo
julga predominante, para melhor analisá-la e dar significado a ela.

4.5. Relação Social


Weber denomina relação social a conduta de vários indivíduos,
que agem com significado, causando a probabilidade que agirão so-
cialmente.

Podemos dizer que relação social é a probabilidade de que uma


forma determinada de conduta social tenha, em algum momen-
to, seu sentido partilhado pelos diversos agentes numa sociedade
qualquer. Como exemplos de relações sociais temos as de hostili-
dade, de amizade, as trocas comerciais, a concorrência econômi-
ca, as relações eróticas e políticas. Em cada uma delas, as pessoas
envolvidas percebem o significado, partilham o sentido das ações
dado pelas demais pessoas. Como membros da sociedade moder-
na, todos nós somos capazes de entender o gesto de uma pessoa
que pega o seu cartão de crédito para pagar uma conta. O mesmo
não aconteceria, por exemplo, com um índio ainda distante do
contato com a nossa sociedade, pois ele seria incapaz de partilhar,
numa primeira aproximação, o sentido de vários dos nossos atos
(QUINTANEIRO, 2003:108).

Uma relação social ocorre quando um ou mais indivíduos agem


levando em consideração a resposta que o outro terá e como agirá em
resposta. Um indivíduo age com expectativas sobre a ação do outro.
Por exemplo, quando alguém estica a mão para cumprimentar um co-
nhecido, ele espera que o outro responda ao gesto. Assim, tem-se uma
relação social.

140
O gerente do supermercado solicita a um empacotador que aten-
da um cliente. Temos aqui três agentes cujas ações orientam-se
por referências recíprocas, cada um dos quais contando com a
probabilidade de que o outro terá uma conduta dotada de sentido
e sobre a qual existem socialmente expectativas correntes. Tome-
mos o exemplo desde o ponto de vista da conduta e expectativas
de um desses agentes. O cliente, ao fazer suas compras, já conta
tanto com a possibilidade de ser auxiliado pelo empacotador, as-
sim como tem conhecimento de que, se necessário, poderá recor-
rer ao gerente para que este faça com que o funcionário trabalhe
adequadamente. Substituindo-os por um cidadão, um assaltante
e um policial, ou por um casal, ou por pais e filhos, temos outros
tipos de relação social que se fundam em probabilidades e expec-
tativas do comportamento de cada um dos participantes (QUITA-
NEIRO, 2003:109).

O conteúdo da relação social é diverso, variando desde as relações


de conflito, de poder até as relações de amor e respeito. As relações
são caracterizadas pelas reciprocidades, ou seja, na capacidade de
um indivíduo compreender a ação do outro. Por reciprocidade, We-
ber não afirma que as relações são recebidas de forma boa ou positi-
va, mas quer dizer que os indivíduos são capazes de compreender as
ações do outro. “Um cidadão pode temer o assaltante que, embora
reconheça os sofrimentos de sua vítima, é indiferente a eles. O empa-
cotador pode ser solidário com o cliente e este tratá-lo friamente, um
parceiro pode sentir paixão pelo outro que abusa da generosidade
advinda de tal sentimento”. Portanto, a característica da ação social é
a compreensão existente entre os indivíduos envolvidos, mesmo que
esta compreensão não seja completa e perpétua.

Tomemos uma ilustração. Ana notou que Beto tem interesse nela:
vários de seus atos assim o indicam. Ele a convida para sair, conce-
de-lhe muita atenção. Mas Ana não tem intenção de namorar Beto e

141
procura fazê-lo entender isso através de recusas polidas. Conquan-
to ambos guiem suas ações por expectativas da ação do outro, nes-
se caso o conteúdo de ambas não é recíproco, apesar de totalmente
compreensível para cada uma das partes. Da mesma forma, somos
capazes de entender o sentido de um gesto violento numa agressão,
e é isto o que nos leva a reagir de acordo com ele, mesmo que não
haja reciprocidade de nossa parte. O que importa para identificar
relações sociais como tais é que estejam inseridas em e reguladas
por expectativas recíprocas quanto ao seu significado. Os agentes
podem conduzir-se como colegas, inimigos, parentes, comprador e
vendedor, criminoso e vítima, admirador e astro, indiferente e apai-
xonado, patrão e empregado, ou dentro de uma infinidade de possi-
bilidades, desde que todas elas incluam uma referência comum ao
sentido partilhado (QUINTANEIRO, 2003:110).

Uma relação social pode ser passageira ou durável, deixando de


ser positiva e transformando-se em negativa, ou de negativa para
positiva. Quanto mais racional uma relação social é, mais fácil é a
formulação de normas e regras. Por exemplo, quando a relação é de
compra e venda em um supermercado, o valor do produto estabelece
quanto será pago, de forma simples. Contudo, quando a relação é afe-
tiva, como a guarda de um filho após um divórcio, mais complexa será
o estabelecimento de regras. A Sociologia se interessa pelas ações re-
gulares, seja porque o mesmo indivíduo repete tal conduta com fre-
quência, ou porque muitos indivíduos reproduzem tal ação, dando
a ela sentido. Quando a ação, ou conduta, torna-se válida para um
ou mais agentes, diz-se que ela adquiriu legitimidade. Quando possui
legitimidade, “aumenta a probabilidade de que a ação se oriente por
ela em um grau considerável, tanto mais quanto mais ampla for a sua
validez” (WEBER, 1920). A manutenção da validade ou da legitimida-
de da ação se mantém, dada a “probabilidade de que, dentro de um
determinado círculo de homens, uma conduta discordante tropeçará
com uma relativa reprovação geral e sensível na prática” ou “na pro-

142
babilidade de coação física ou psíquica exercida por um quadro de
indivíduos instituídos com a missão de obrigar à observância dessa
ordem ou de castigar sua transgressão”. No primeiro caso, a ordem
chama-se convenção e, no segundo, direito (WEBER, 1920).

4.6. Classe, Estamento e Partido


Weber também se aplica a analisar um dos problemas centrais da
Sociologia, as diferenças sociais. Para ele, tal problema pode ser ex-
plicado de formas distintas. Weber analisa, então, as formas históricas
de coletividade, formas de organização dos indivíduos em diferentes
sociedades. Nas sociedades chinesas, por exemplo, as posições hie-
rárquicas da sociedade eram dadas pelos cargos mais do que pela
riqueza, assim como ocorria nas sociedades tradicionais do feudalis-
mo da Idade Média. Já nas sociedades capitalistas modernas capita-
listas, a posição social se dá pela posse de bens e a possibilidade de
usá-los nas suas relações. “Assim, o predomínio da esfera econômi-
ca nas sociedades capitalistas tornou a riqueza e as propriedades os
principais fundamentos da posição social, enquanto nas sociedades
feudais europeias valorizava-se a origem, ou linhagem - fatores que
são relevantes quando a esfera predominante é a social - como prin-
cipal elemento de classificação” (QUINTANEIRO, 2003:112).
A sociedade moderna, para Weber, é caraterizada pela diferen-
ciação estrutural, ou seja, uma separação das esferas, onde o fun-
cionamento se dá com regras e lógica próprias. Cada esfera, como
a econômica, política, religiosa, artística, atua de forma autônoma,
influenciando-se mutualmente, mas não controlando uma a outra.
Por exemplo, nas sociedades antigas, a religião era a esfera dominan-
te sobre as demais. Se a pessoa quisesse publicar uma tese científica,
ou produzir uma obra de arte, precisava da autorização da autoridade
religiosa. Nas sociedades modernas, a religião pode influenciar, mas
não controlar as demais esferas.

143
Ao agir socialmente, o indivíduo participa de uma ordem, cujo
sentido é compartilhado por aqueles que participam da relação. Por
exemplo, ao comprar um carro, o comprador e o vendedor compreen-
dem a ação e troca ali existentes, isto é, para levar o carro, o indiví-
duo necessita dispor de certa quantidade de recursos financeiros. Ao
participar das relações sociais, os indivíduos agem conforme os pa-
drões estabelecidos em cada esfera, como a troca financeira na esfera
econômica, ou o voto, na esfera política, articulando diferentes ações
com distintos sentidos em cada relação instituída. Weber demonstra
essa relação, com as esferas sociais específicas, na vida do protestan-
te calvinista. Os cristãos calvinistas orientam suas ações para o mun-
do secular de uma forma, e de outra forma para o mundo religioso,
buscando a salvação da alma. Na relação com o mundo secular, o
calvinista se porta de forma ascética, isto é, negando os “prazeres”
do mundo e agindo nele de forma puramente econômica. As ações
ascéticas calvinistas demonstram o conflito ético e moral com a so-
ciedade que os rodeia, mas tais ações permitiram aos protestantes
adquirirem poupança e acumulação.
A partir do contexto de significados que a ordem possui em uma so-
ciedade, isto é, como que os indivíduos entendem as relações de po-
der e hierarquia sociais, que se pode compreender sociologicamente
o significado existente nas relações sociais. Assim, “a forma pela qual
a honra social é distribuída dentro de uma comunidade, entre gru-
pos típicos pertencentes a ela pode ser chamada de ordem social”
(WEBER, 1920). “Cada pessoa pode participar, ao mesmo tempo, de
diferentes esferas, como: ser membro de um partido, desfrutar de um
certo grau de prestígio, ter uma propriedade, praticar uma religião... e
da infinidade real das ações individuais é que devem extrair-se as re-
gularidades do comportamento humano” (QUINTANEIRO, 2003:113).
Entendendo que as consciências individuais são capazes de dar
sentido à ação social, e que este sentido pode ser compartilhado por
múltiplos indivíduos, Weber estabelece diferentes tipos ideais em re-

144
lação à organização coletiva, observando que os indivíduos podem
se organizar socialmente em classe, estamentos ou partidos. Através
desta divisão, Weber analisa como o poder é distribuído e a riqueza é
adquirida.
Quando os indivíduos possuem a mesma posição com relação à
propriedade de bens, eles estão em uma mesma situação de classe.
Neste contexto social, as ações sociais são mais racionalizadas, sendo
definidas pelo mercado, onde os indivíduos buscam adquirir poder
econômico. A partir desta relação, Weber estabelece seu conceito de
classes,

Falamos de uma classe quando: 1) é comum a um certo número


de pessoas um componente causal específico de suas probabili-
dades de existência na medida em que 2) tal componente esteja
representado exclusivamente por interesses lucrativos e de posse
de bens 3) em condições determinadas pelo mercado (de bens ou
de trabalho) (WEBER, 1920).

Weber cita, como exemplo, aqueles que pertencem à classe posi-


tivamente privilegiada devido à sua situação no mercado, tais como,
os proprietários de terra ou de escravos, os industriais, trabalhadores
qualificados, e profissionais liberais, aqueles que possuem algum tipo
de propriedade com valor (moeda, terra, máquinas, conhecimento).
Já a classe negativamente privilegiada é constituída por trabalhado-
res não-qualificados. É, no entanto, na classe negativamente privile-
giada que se encontram, com mais frequência, as ações comunitá-
rias, que envolvem um sentimento de pertencimento. Desta forma,
as ações dos indivíduos são realizadas com base na sua classe, na sua
posição em relação ao mercado. O sentido comum das ações desses
indivíduos que faz com que eles pertençam à mesma classe.
Por outro lado, o significado delas pode ocorrer por outras razões,
que não a racionalidade econômica. Busca e distribuição de honra e

145
prestígio ocorrem por outros critérios. As relações sociais são então
baseadas em regras de pertencimento a grupos de status ou esta-
mentos. A lógica de funcionamento que confere racionalidade a es-
fera é outra.

Em oposição às classes, os estamentos são normalmente comuni-


dades, ainda que, com frequência de caráter amorfo. Em oposição
à situação de classe condicionada por motivos puramente econô-
micos, chamaremos situação estamental a todo componente típi-
co do destino vital humano condicionado por uma estima especí-
fica - positiva ou negativa - da honra adscrita a alguma qualidade
comum a muitas pessoas. (...). Quanto ao seu conteúdo, a honra
correspondente ao estamento é normalmente expressa, antes de
tudo, na exigência de um modo de vida determinado para todos
os que queiram pertencer ao seu círculo (WEBER, 1920).

Em algumas regiões brasileiras, ser membro de certa família ga-


rante honra e prestígio ao indivíduo, como ocorre nos Estados Unidos
com as primeiras famílias da Virgínia ou ainda entre as tribos indíge-
nas norte-americanas (WEBER, 1920). Os grupos de status, ou esta-
mentos, expressam sua honra através de um estilo de vida próprio,
consumindo certos bens, comportando-se de certa forma ou ainda
ostentando festas e vestimentas específicas. Os grupos de status são
mais excludentes e dificultam, ou proíbem, a participação de qual-
quer indivíduo, limitando e isolando a vida social. A honra do grupo
não se mantém por uma relação específica com o mercado, mas sim
por regras distintas de pertencimento. A validade das ações ocorre
por convenções e os que agem de forma transgressora são coagidos a
manter tais violações em segredo.
Grupos de status, contudo, não existem só em camadas mais al-
tas da sociedade. De fato, em camadas mais altas, há a tendência de
se basear a posição social em sangue, ou seja, por ascendência. Por
outro lado, em camadas mais baixas, os grupos de status são afirma-

146
dos pela crença em alguma missão divina, como os frades francisca-
nos, mantendo sua honra e sentimento comunitário na sua ligação
com Deus. Logo, o estamento pode ser fechado, como aqueles que se
mantém por causa dos ascendentes, ou abertos, como os dos frades
franciscanos.

Ora, uma casta é, sem dúvida, um estamento fechado, pois to-


das as obrigações e barreiras que a participação num estamento
encerra existem numa casta, na qual são intensificadas em grau
extremo. O Ocidente conheceu estados legalmente fechados, no
sentido de que o intermatrimônio com não-membros do grupo
estava ausente. (...) A Europa ainda reconhece essas barreiras de
estamento para a alta nobreza. A América admite-a entre brancos
e negros (inclusive todos os sangues mistos) nos estados sulistas
da União. Mas na América tais barreiras significam que o casamen-
to é absoluta e legalmente inadmissível, à parte o fato de que tal
intermatrimônio provocaria um boicote social (WEBER, 1920)

Os grupos de status foram mais comuns em sociedades antigas e,


sendo assim, podem se chocar com a racionalidade da esfera econô-
mica que atualmente impera. Daí, mesmo que a posse de bens não
seja algo definidor da honra em estamentos, a longo prazo a proprie-
dade se torna reconhecida como uma qualificação estamental, uma
vez que, para manter um certo estilo de vida, é necessário dispor
de recursos, que são adquiridos por participação regular na esfera
econômica. Por isso que muitas famílias perdem seu status quando
perdem também seus bens. De fato, “enquanto as classes têm seu
verdadeiro solo pátrio na ordem econômica, os estamentos o têm na
ordem social e, portanto, na esfera da distribuição de honras” (Weber,
1920). Contudo, a importância dos estamentos, de forma clássica, foi
reduzida historicamente.
Diferentemente de Marx, Weber compreende que a sociedade
possui esferas diferenciadas. Enquanto Marx não diferenciava o per-

147
tencimento à consciência de classe, Weber distingue o conceito de
classe entre o fenômeno econômico e definido na esfera do merca-
do e a consciência de classe, pertencente à esfera social. Para Weber,
pertencer a determinada classe não significa possuir sentimento de
comunidade ou consciência de interesses ou direitos. A consciência
comum ocorre mais facilmente entre membros do mesmo grupo de
status, mas nem sempre entre os membros da mesma classe. De fato,
é possível que, em uma mesma classe, os membros ajam homogene-
amente, transformando tal ação em ação comunitária, isto é, aquela
inspirada pelos sentimentos (afetivos ou tradicionais) de seus mem-
bros de pertencimento a um todo. Todavia, a ação comunitária não
é uma regra entre membros de classe. Tipicamente, os membros de
uma classe participam de um outro tipo de ação, a societária, que
está baseada em interesses racionalmente motivados.

A partir das formas de ação social que os componentes de uma


classe são capazes de empreender enquanto grupo, torna-se viá-
vel a compreensão do sentido das greves ou da constituição dos
fundos de ajuda mútua entre trabalhadores, mas também o da
associação entre empresários. O significado das condutas não se
encontra em possíveis transformações estruturais da sociedade
ou na manutenção do status quo... mas pode ser essencialmen-
te racional com respeito a fins. Nas duas situações, aquelas ações
remetem ao mercado: a seu modo de funcionamento, à configura-
ção específica de interesses que nele se desenha e à maneira como
os diversos agentes nele se posicionam (QUINTANEIRO, 2003:116).

Uma das diferenças entre estamento e classe diz respeito à exis-


tência, nos estamentos, de um sentimento de pertencimento e, nas
classes, ainda que exista uma base para a existência de tal sentimen-
to, a regra é a presença de interesses racionalmente motivados. Os
membros dos grupos de status estão de acordo com a manutenção
das características de fechamento nele existentes, isto é, não é qual-

148
quer pessoa que pode fazer parte deste grupo, pois está baseado em
critérios de exclusão sociais, tais como privilégios ou monopólios.
Participar de um grupo estamental é viver de acordo com certas re-
gras que diferenciam um grupo dos outros. A razão da distinção dos
grupos é justamente caracterizar e orientar as condutas dos indivídu-
os que fazem parte deles. Condutas em relação a estilos de vida, tra-
dições, etiquetas, lugares de residência, estabelecimentos matrimo-
niais e até mesmo gostos estão diretamente ligadas à diferenciação
dos grupos de status, separando um grupo de outro e caracterizando
seus membros. Por outro lado, tal diferenciação não ocorre da mes-
ma forma em uma sociedade de classes, uma vez que

o mercado e os processos econômicos não conhecem nenhuma


acepção de pessoas. Os interesses materiais dominam então sobre
a pessoa. Nada sabe de honra. Ao contrário dele, a ordem estamen-
tal significa justamente o inverso: uma organização social de acordo
com a honra e um modo de viver segundo as normas estamentais. Tal
ordem e, pois, ameaçada em sua própria raiz quando a mera aquisi-
ção econômica e o poder puramente econômico, que revelam clara-
mente sua origem externa, podem outorgar a mesma honra a quem
os tenha conseguido, ou podem inclusive (...) outorgar-lhes uma hon-
ra superior em virtude do êxito, que os membros de um estamento
pretendem desfrutar em virtude de seu modo de vida. Por isso os
membros de toda organização estamental reagem com rigor contra
as pretensões do mero lucro econômico e quase sempre com tanta
maior aspereza quanto mais ameaçados se sentem (WEBER, 1920).

Nem sempre membros das classes privilegiadas são capazes de


participar de grupos de status privilegiados. Pense na sociedade bra-
sileira. Os ricos que mantém sua riqueza por gerações e tem hábitos
“finos” não consideram os novos ricos emergentes como participan-
tes do mesmo grupo. O mesmo acontecia na sociedade europeia
feudal, onde a nobreza decadente não considerava a burguesia enri-

149
quecida como parte do mesmo grupo e era, ainda assim, vista como
socialmente superior. Para Weber, “As classes se organizam segundo
as relações de produção e aquisição de bens, os estamentos, segundo
princípios de seu consumo de bens nas diversas formas específicas
de sua maneira de viver” (WEBER, 1920). Assim,

o estamento é uma qualificação em função de honras sociais ou


da falta destas, sendo condicionado principalmente, bem como
expresso, através de um estilo de vida específico. A honra social
pode resultar diretamente de uma situação de classe sendo, na
maioria das vezes, determinada pela média da situação de classe
dos membros do estamento. Isso, porém, não ocorre necessaria-
mente. A situação estamental, por sua vez, influi na situação de
classe, pelo fato de que o estilo de vida exigido pelos estamentos
os leva a preferir tipos especiais de propriedade ou empresas lu-
crativas e rejeitar outras (WEBER, 1920)

Um exemplo dos grupos de status pode ser encontrado nas castas.


Castas podem ser definidas como grupos de status fechados, cujos
privilégios e distinções estão desigualmente garantidos por leis, con-
venções ou rituais.

Isso se dá geralmente quando há diferenças étnicas, como no caso


dos povos párias, podendo ocorrer repulsa e desprezo mútuos, se-
gregações rígidas em termos ocupacionais e às vezes até de qual-
quer tipo de relacionamento social como compartilhar refeições
e frequentar certos locais. Costuma haver regras de endogamia,
de comensalidade e de dieta. Os contatos físicos com membros
de castas inferiores podem contaminar aqueles das castas supe-
riores e às vezes tal impureza deve ser expiada por meio de um
ato religioso. Por sua estrutura, as sociedades de castas implicam
num tipo de subordinação entre grupos com maiores ou menores
privilégios (QUINTANEIRO, 2003:118).

150
Ao analisar distintas sociedades, Weber percebe que muitas vezes
as castas são vinculadas com certas profissões ou tarefas específicas.
As castas mais altas, por exemplo, exercem os serviços religiosos, sa-
cerdotais ou políticos, afastando-se, desta forma, “de toda ideia de
racionalização do modo de produção que se encontra na base de
toda técnica racional moderna - sistematização da exploração para
convertê-la em uma economia lucrativa racional - de todo capitalis-
mo moderno” (WEBER, 1920).
Se as classes dizem respeito as diferenças na esfera econômica, e
os estamentos estão relacionados com a distribuição da honra, os par-
tidos estão relacionados à esfera do poder, isto é, como o poder é ra-
cionalmente distribuído dentro de uma associação ou comunidade. O
partido é uma organização que luta especificamente pelo domínio, mas
só adquire caráter político se puder utilizar a coação física ou ameaça.

Em oposição à ação comunitária exercida pelas classes e pelos es-


tamentos (...) a ação comunitária dos partidos contém sempre uma
socialização, pois sempre se dirige a um fim metodicamente estabe-
lecido, tanto se se trata de um fim objetivo - a realização de um pro-
grama com propósitos ideais ou materiais - como de uma finalidade
pessoal - prebendas, poder e, como consequência disso, honras
para seus chefes e sequazes ou ambos de uma só vez. (...). Por isso,
só podem existir partidos dentro de comunidades de algum modo
socializadas, isto é, de comunidades que têm uma ordem racional
e um aparato pessoal dispostos a assegurá-la, pois a finalidade dos
partidos consiste precisamente em influir sobre tal aparato e, onde
seja possível, ocupá-lo com seus seguidores (WEBER, 1920)

4.7. A Dominação
Uma das importantes questões na Sociologia weberiana está re-
lacionada com a manutenção das relações sociais, por um determi-

151
nado tempo e em um determinado espaço. Weber entende que tal
questionamento pode ser entendido tendo em vista uma questão
basilar para a própria relação social, a saber, a dominação ou ainda a
produção de legitimidade, daquilo que faz com que um grupo se sub-
meta a autoridade de um indivíduo. Para isso é necessário diferenciar
as noções de poder e dominação.
Poder deve ser entendido como a capacidade de fazer com que
outro indivíduo faça sua vontade. “Significa a probabilidade de impor
a própria vontade dentro de uma relação social, mesmo contra toda
a resistência e qualquer que seja o fundamento dessa probabilidade”
(WEBER, 1920). Desta forma, o poder não está limitado a uma relação
social específica, pois a imposição da vontade pode ocorrer em diver-
sas ocasiões.

Os meios utilizados para alcançar o poder podem ser muito diver-


sos, desde o emprego da simples violência até a propaganda e o
sufrágio por procedimentos rudes ou delicados: dinheiro, influên-
cia social, poder da palavra, sugestão e engano grosseiro, tática
mais ou menos hábil de obstrução dentro das assembleias parla-
mentares (WEBER, 1920).

Por outro lado, Dominação está relacionada com a obediência vo-


luntária dentro de um grupo, seja a alguém ou a alguma ordem.
Analisar a dominação é relevante para a Sociologia, pois possibi-
lita explicar as regularidades deste tipo de ação nas relações sociais.
Portanto, a dominação é

um estado de coisas pelo qual uma vontade manifesta (mandato)


do dominador ou dos dominadores influi sobre os atos de outros
(do dominado ou dos dominados), de tal modo que, em um grau
socialmente relevante, estes atos têm lugar como se os domina-
dos tivessem adotado por si mesmos e como máxima de sua ação
o conteúdo do mandato (obediência) (WEBER, 1920).

152
Quando legítima, a dominação pode ser justificada por três moti-
vos de submissão ou de princípios de autoridade, a saber, racionais,
tradicionais ou afetivos.

Pode depender diretamente de uma constelação de interesses,


ou seja, de considerações utilitárias de vantagens e inconvenien-
tes por parte daquele que obedece. Pode também depender de
mero costume, do hábito cego de um comportamento inveterado,
ou pode fundar-se, finalmente, no puro afeto, na mera inclinação
pessoal do súdito. Não obstante, a dominação que repousasse
apenas nesses fundamentos seria relativamente instável. Nas re-
lações entre dominantes e dominados, por outro lado, a domina-
ção costuma apoiar-se internamente em bases jurídicas, nas quais
se funda a sua legitimidade, e o abalo dessa crença na legitimida-
de costuma acarretar consequências de grande alcance. Em for-
ma totalmente pura, as bases de legitimidade da dominação são
somente três, cada uma das quais se acha entrelaçada - no tipo
puro - com uma estrutura sociológica fundamentalmente diversa
do quadro e dos meios administrativos (WEBER,1920).

A partir deles, Weber estabelece três tipos ideais de dominação le-


gítima: a legal, a tradicional e a carismática. Cada tipo de dominação
está relacionado com uma fonte específica de autoridade. A domina-
ção tradicional é caracterizada pelo “passado eterno”, pela tradição
e pelos hábitos enraizados. O sacerdote religioso utiliza este tipo de
dominação, pois a obediência a ele prestada ocorre, porque ele re-
presenta uma tradição antiga e a glorificação do passado. Por outro
lado, a dominação carismática, há o dom pessoal, o carisma que o
dominador possui. Os outros o obedecem, pois veem nele uma re-
velação divina ou uma vocação sobre-humana. Os profetas bíblicos
e os heróis antigos dominavam pelo carisma. Por fim, a dominação
racional legal, onde a obediência é dada pela crença na capacidade
das normas e pela fé nas leis racionalmente criadas.

153
A do “ontem eterno”, isto é, dos mores santificados pelo reconhe-
cimento inimaginavelmente antigo e da orientação habitual para
o conformismo. É o domínio tradicional exercido pelo patriarca e
pelo príncipe patrimonial de outrora. (...) A do dom da graça (caris-
ma) extraordinário e pessoal, a dedicação absolutamente pessoal
e a confiança pessoal na revelação, heroísmo ou outras qualida-
des da liderança individual. É o domínio carismático exercido pelo
profeta ou - no campo da política - pelo senhor de guerra eleito,
pelo governante plebiscitário, o grande demagogo ou o líder do
partido político. Finalmente, há o domínio da legalidade, em virtu-
de da fé na validade do estatuto legal e da competência funcional,
baseada em regras racionalmente criadas. Nesse caso, espera-se
o cumprimento das obrigações estatutárias. É o domínio exercido
pelo moderno servidor do Estado e por todos os portadores do
poder que, sob este aspecto, a ele se assemelham (WEBER, 1920).

Dentre as formas de dominação legítima, Weber se interessou, es-


pecialmente, pela burocracia, ou a dominação racional-legal, e a caris-
mática. A dominação burocrática corresponde ao tipo especificamente
moderno de administração, racionalmente organizado, ao qual tendem
as sociedades ocidentais e que pode ser aplicada tanto a empreendi-
mentos econômicos, quanto políticos, religiosos e profissionais. A legi-
timidade deste tipo de dominação se estabelece através da crença na
legalidade das leis e das normas existentes na sociedade, que exercem
autoridade. Em oposição à dominação racional-legal, as outras formas
de dominação legítima, tradicional e carismática, fundamentam-se em
condutas de sentido não-racional. Mesmo sendo legítimas, as formas de
dominação podem ser alteradas. Weber analisa como as formas de do-
minação tradicional e racional-legal podem ser rompidas pela domina-
ção carismática, que se baseia na “entrega extra cotidiana à santidade,
heroísmo ou exemplaridade de uma pessoa e às regras por ela criadas ou
reveladas” (WEBER, 1920). Pense em uma igreja onde o pastor mantém as
tradições e doutrinas da denominação, exercendo uma dominação tradi-

154
cional. Pode surgir um novo pastor, que através de seu carisma, critica a
denominação e propõe uma nova forma de viver aquela religião, alteran-
do, assim, a forma de dominação exercida sobre aquele povo. Contudo,
como o carisma está diretamente ligado à figura individual, é necessário
que, em algum momento, o carisma transforme-se em dominação tra-
dicional ou racional-legal a fim de manter a dominação mesmo depois
da morte do portador do carisma. Esse processo de transformação do
carisma é chamado por Weber de rotinização do carisma.

4.8. Carisma e Desencantamento do Mundo


Ao analisar a sociedade moderna, Weber adota um tom crítico e
pessimista quanto as consequências do processo de racionalização
pelo qual a sociedade passava. A evolução da sociedade traz, junto
de si, uma diminuição das possibilidades de escolha dos homens, fa-
zendo com que eles se tornem mais semelhantes e automatizados.
Sociedade moderna “limita cada vez mais o alcance das escolhas efe-
tivas abertas aos homens”.
A diminuição das possibilidades de escolhas é consequência do
que Weber chama de desencantamento do mundo, ou seja, a perda
de força do místico e do mágico no mundo moderno. Nas sociedades
anteriores, o mundo era povoado por forças sobre-humanas, pelo
sagrado e pela interferência de forças sobrenaturais na realidade. O
mundo se torna, na modernidade, um mundo racionalizado, domina-
do pela ciência e pela técnica. O mundo dos mitos, lendas e deuses
foi substituído pelo conhecimento científico e pelo desenvolvimento
das organizações racionais e burocratizadas10, e “os valores últimos

10  Burocracia, para Weber, não está ligada com a dificuldade para realizar algo. Mas
é, na verdade, o domínio das relações técnicas e impessoais. Pense em um concurso
público. Neste caso, não importa seu nome de família, mas sua capacidade de fazer
o exigido na prova. Ou seja, existe impessoalidade, não diferenciação dos indivíduos
por questões de família, cor, sexo, etc. Ademais, o mais qualificado é aquele que
melhor consegue realizar a tarefa, isto é, o técnico.

155
e mais sublimes retiraram-se da vida pública, seja para o reino trans-
cendental da vida mística, seja para a fraternidade das relações hu-
manas diretas e pessoais” (WEBER, 1917). Contudo, para Weber, os
efeitos desta transformação não geram um conhecimento efetivo e
satisfatório, gera apenas uma maior intelectualização.

A menos que seja um físico, quem anda num bonde não tem ideia
de como o carro se movimenta. E não precisa saber. Basta-lhe po-
der contar com o comportamento do bonde e orientar sua condu-
ta de acordo com essa expectativa; mas nada sabe sobre o que é
necessário para produzir o bonde ou movimentá-lo. O selvagem
tem um conhecimento incomparavelmente maior sobre suas fer-
ramentas. (...) A crescente intelectualização e racionalização não
indicam, portanto, um conhecimento maior e geral das condições
sob as quais vivemos. Significa mais alguma coisa, ou seja, o co-
nhecimento ou crença em que, se quiséssemos, poderíamos ter
esse conhecimento a qualquer momento. Significa principalmen-
te, portanto, que não há forças misteriosas incalculáveis, mas que
podemos, em princípio, dominar todas as coisas pelo cálculo. Isto
significa que o mundo foi desencantado. Já não precisamos re-
correr aos meios mágicos para dominar ou implorar aos espíritos.
(...). Os meios técnicos e os cálculos realizam o serviço. Isto, acima
de tudo, é o que significa a intelectualização (WEBER, 1917).

Todavia, o mundo burocrático não está impedido de transforma-


ções, caminhando linearmente para o fim total da magia. Na verdade,
há espaço para o surgimento de figuras carismáticas capazes de gerar
uma ruptura e mudança, principalmente quando o mundo burocrati-
zado falha em atender às necessidades dos indivíduos. Para Weber, o
carisma é

a qualidade, que passa por extraordinária (cuja origem é condicio-


nada magicamente, quer se trate de profetas, feiticeiros, árbitros,

156
chefes de caçadas ou comandantes militares), de uma personali-
dade, graças à qual esta é considerada possuidora de forças so-
brenaturais, sobre-humanas - ou pelo menos especificamente ex-
tra cotidianas, não-acessíveis a qualquer pessoa - ou, então, tida
como enviada de Deus, ou ainda como exemplar e, em consequ-
ência, como chefe, caudilho, guia ou líder (WEBER, 1920).

Ao perceber a possibilidade do surgimento de uma figura capaz


de romper com a rotina do dia a dia e o domínio burocrático, Weber
aponta a existência de um tipo de liderança que é hábil para romper
com as formas de dominação vigentes, seja na política ou na religião,
seja em um tipo de dominação burocrática ou tradicional.

4.9. Sociologia da Religião


A Religião ocupa um importante espaço na obra weberiana. Weber
analisou cinco grandes religiões mundiais, a saber, o Confucionismo,
o Hinduísmo, o Judaísmo, o Islamismo e o Cristianismo, buscando
compreender a relação das crenças e das práticas religiosas com as
necessidades e anseios dos indivíduos em diferentes sociedades.
Como acontece em outras esferas sociais, tais como a economia e
política, Weber também observa o impacto da racionalização, espe-
cialmente no Ocidente, sobre a esfera religiosa, onde alguns grupos
religiosos, especialmente protestantes, adotam conjuntos de valores
e práticas de fé mais racionalizados na conduta dos fiéis. Weber en-
tende que essa transformação de práticas e valores foi fundamental
para a formação das estruturas da sociedade moderna, ou seja, parti-
ram da religião as bases do mundo moderno.

O estudo da religiosidade é essencial para a compreensão das dis-


tintas formas de vida social, assim como de sua evolução, sendo a
racionalização das relações sociais a mais clara tendência presen-

157
te nas sociedades ocidentais - questão de grande centralidade no
conflito sociopolítico internacional contemporâneo (QUINTANEI-
RO, 2003:125).

Como cada religião reflete questões particulares complexas em


cada momento histórico, a profecia religiosa se apresenta com dife-
rentes conteúdos. Weber analisa as consequências que a religiosida-
de produz na vivência prática e diária dos indivíduos, enfatizando a
forma que a racionalidade religiosa atua sobre a vida social.
Toda religião desenvolve um caminho ou técnica de salvação, seja
pelo êxtase, pela possessão do espírito divino, ou pela conduta prá-
tica. Todo renascimento gerado por esta salvação só está acessível
através de uma luta constante contra a natureza humana, contra os
desejos, apoiando-se em uma ética dos virtuosos. A religião pode,
assim, basear-se em um racionalismo prático. O que significa que,
ao levar um modo de vida estimulado pela religiosidade, o indivíduo
constrói diferentes formas de relacionamento consigo próprio, com o
outro e com a sociedade como um todo.
As principais diferenças entre as religiões de salvação do Ociden-
te e do Oriente estão baseadas na técnica para alcançar a salvação.
As religiões do Oriente, de forma geral, baseiam-se na contemplação,
enquanto as religiões do Ocidente, no ascetismo. Uma das muitas di-
ferenças entre as religiões do Ocidente e do Oriente se encontra no
relacionamento com o mundo. Enquanto as religiões ascéticas parti-
cipam dos processos do mundo e fogem dos “prazeres do mundo”, as
religiões de contemplação se afastam do mundo, ligando-se ao sagra-
do, onde “o indivíduo não é um instrumento, mas um recipiente do
divino”, fugindo do mundo para se unir aos deuses. A ascese religiosa
conduz o indivíduo a submissão de seus desejos e impulsos naturais
ao modo sistematizado de levar a vida, orientando sua vida social por
um sentido ético religioso, em uma análise racional do mundo.

158
Para concentrar-se nas obras de salvação pode ser necessária uma
separação do mundo - incluindo-se aí as relações familiares, os
interesses econômicos, eróticos etc. (ascetismo negador do mun-
do) - ou a atividade dentro e frente à ordem do mundo (ascetismo
orientado para o mundo, secular ou intramundano). No primeiro
caso, o crente defende-se contra as distrações que a vida terrena
oferece, no segundo, o mundo torna-se uma obrigação, e a missão
do crente, que se torna um reformador ou revolucionário racional,
consiste em transformá-lo segundo os ideais ascéticos (QUINTA-
NERO, 2003:126).

Envolver-se com o mundo põe em risco a salvação. É preciso, por-


tanto, afastar-se dele, negá-los. Para o crente asceta, a forma de se re-
lacionar com as demais esferas sociais, como a economia e a política,
é uma vocação que precisa ser cumprida racionalmente. Tal vocação
está diretamente relacionada com o domínio dos desejos, e a condu-
ta ética.
Para compreender a evolução das doutrinas ascéticas no Ociden-
te, Weber analisa as organizações religiosas que se desenvolveram
nesta região do globo e como os processos de racionalização existen-
tes em suas organizações são efetivos em restaurar a ordem tradicio-
nal, após o aparecimento de lideranças carismáticas que abalam a
ordem vigente.
Weber define Igreja como “associação de dominação que se utiliza
de bens de salvação por meio da coação hierocrática exercida através
de um quadro administrativo que pretende ter o monopólio legítimo
dessa coação”. O quadro administrativo é composto por sacerdotes
que através da dominação tradicional mantém vivas as tradições e a
liturgia religiosa. Portanto, os sacerdotes, ou ainda, a organização reli-
giosa submete seus membros de modo racional e continuado. Weber
diferencia Igreja de congregação. Uma congregação é ligada a figura
de um profeta, isto é, um portador de carisma, que possui um conjun-

159
to de auxiliares permanentes. Já uma igreja se baseia na tradição e
é composta por sacerdotes, indivíduos socializados por meio da hie-
rarquia religiosa, com funções administrativas distintas. Isto significa
que uma igreja existe para manter a tradição que, um dia, foi iniciada
por um líder carismático, um profeta. A transformação de congre-
gação em igreja exige um processo onde o carisma “morre” para dar
lugar a uma estrutura com serviços com fins objetivos. O processo de
transformação do carisma em tradição é chamado, por Weber, de ro-
tinização do carisma. Significa que os mandamentos do salvador, ou
a profecia do líder carismático precisam ser levados adiante depois
de sua morte, fazendo com que os crentes continuem a modificar seu
modo de vida a fim de alcançar um ideal sagrado. Para alcançarem
este ideal, o crente precisa ser guiado. A responsável por guiá-los é
a classe sacerdotal, que organiza, sistematiza e torna acessível aos
leigos o conteúdo da profecia ou da tradição sagrada. Portanto,

se uma comunidade religiosa surge na onda de uma profecia ou da


propaganda de um salvador, o controle da conduta regular cabe,
primeiro, aos sucessores qualificados carismaticamente, aos alu-
nos, discípulos dos profetas ou do salvador. Mais tarde, sob certas
condições que se repetem regularmente (...) essa tarefa caberá a
uma hierocracia sacerdotal, hereditária ou oficial (WEBER, 1920).

O processo de racionalização das comunidades religiosas constrói


concepções de mundo e explicações para as mais diversas questões
do dia a dia. Uma das explicações que as religiões desenvolvem está
relacionada com a justificativa para a desigualdade social no mun-
do, por que alguns são mais afortunados que outros e por que alguns
sofrem mais do que outros, ou ainda, por que alguns sofrem ime-
recidamente, nem sendo sempre os bons que vencem. As religiões
mais antigas focavam sua explicação nos mais afortunados, como os
proprietários, os heróis e os virtuosos, “homens dominantes, os pro-
prietários, os vitoriosos e os sadios”, os dotados de “honras, poder,

160
posses e prazer”. Suas ações e fortunas eram, assim, legitimadas pela
religião.
Era necessário, entretanto, dar respostas também aos mais po-
bres, mais carentes e oprimidos, que precisavam de não só entender
sua situação, mas encontrar esperança para a redenção futura e me-
lhoria de vida. Respondendo também questões sobre a injustiça e a
imperfeição do mundo. Era necessário desenvolver uma teodiceia do
sofrimento, uma interpretação sobre “a incongruência entre o des-
tino e o mérito”, uma forma de dar uma concepção positiva para o
sofrimento.

O velho problema da teodiceia consiste na questão mesma de


como um poder, considerado como onipotente e bom, criou um
mundo irracional, de sofrimento imerecido, de injustiças impu-
nes, de estupidez sem esperança. Ou esse poder não é onipoten-
te, nem bom, ou, então princípios de compensação e recompensa
totalmente diversos governam nossa vida. (...). Esse problema - a
experiência da irracionalidade no mundo - tem sido a força pro-
pulsora de toda evolução religiosa (WEBER, 1919).

Objetivando atender às necessidades dos menos afortunados,


magos e sacerdotes passam a aconselhar os indivíduos sobre a vida
diária, desenvolvendo uma religião de salvação com foco na existên-
cia de um salvador dos que sofrem, produzindo uma visão de mundo
onde o sofrimento possui valor positivo. “No caso do cristianismo,
construiu-se sobre a figura de um redentor uma explicação racional
para a história da humanidade, sendo a mortificação e a abstinência
voluntária justificáveis pelo seu papel na salvação” (QUINTANEIRO,
2003:128).
Toda necessidade de salvação é uma expressão de opressão, seja
econômica ou social. Para que não seja acessível exclusivamente aos
virtuosos e poderosos, a salvação e os meios de salvação existirão de

161
formas distintas de acordo com o conteúdo da religião, sejam elas a
redenção, a absolvição, a salvação pela fé e a predestinação.

A salvação poderá ser atribuída não às próprias obras, mas aos


atos de um herói em estado de graça ou de um deus encarnado.
O pecador que obtém a absolvição mediante atos religiosos pode
passar sem uma metódica vida ético-pessoal já que, nessas reli-
giões antigas, não é valorizado o habitus total da personalidade,
conquistado graças a uma vida ascética ou contemplativa, ou à vi-
gilância perpétua. A salvação pela fé tampouco exige um domínio
racional do mundo e sua mudança. Por fim, os indivíduos podem
ser predestinados à salvação e, de acordo com o caráter da pro-
fecia na qual se origina tal interpretação, o crente tem ou não in-
dícios sobre seu destino, o que pode ocasionar ou não uma ação
transformadora no mundo (QUINTANEIRO 2003:128)

Quando a religião deixa de ser apenas ligada aos virtuosos e aos


poderosos para ser acessível às massas e aos menos afortunados, é
necessário a realização de ajustes que permitam que distintos grupos
sociais alcancem a promessa religiosa. Estes ajustes causaram impor-
tantes impactos na vida cotidiana, principalmente na esfera econô-
mica, com o desenvolvimento de uma ética racional voltada para o
trabalho e para a produção. Uma esfera que, tradicionalmente, apre-
sentou grandes discordâncias com a moralidade religiosa. Quando os
virtuosos propõem uma racionalidade religiosa voltada para a esfera
econômica, tem-se uma prática ascética, isto é, que se afasta dos pra-
zeres do mundo, a fim de modelar a vida neste mundo de acordo com
a vontade de Deus. A prática ascética propunha regras de conduta
para os crentes, onde a vida individual e coletiva passa a ser orienta-
da por princípios racionalizadores. Com o objetivo de dar fim às ten-
sões existentes entre a esfera econômica e religiosa, o protestantis-
mo, mais especificamente o puritanismo, desenvolve a ética puritana
da vocação, ou seja, a ideia que a prática ascética e o trabalho eram

162
uma vontade de Deus para os crentes no mundo. Assim, o puritano
“renunciou ao universalismo do amor e rotinizou racionalmente todo
o trabalho neste mundo, como sendo um serviço à vontade de Deus e
uma comprovação de seu estado de graça” (WEBER, 1920).

De acordo com suas características, cada ética religiosa penetra di-


ferentemente na ordem social (por exemplo, nas relações familiares,
com o vizinho, os pobres e os mais débeis), na punição do infrator,
na ordem jurídica e na econômica (como no caso da usura), no mun-
do da ação política, na esfera sexual (inclusive a atitude a respeito da
mulher) e na da arte. Ao produzirem um desencantamento do mun-
do e bloquearem a possibilidade de salvação por meio da fuga con-
templativa, as seitas protestantes ocidentais - que trilharam a via do
ascetismo secular e romperam a dupla ética que distinguia monges e
laicos - fomentaram uma racionalização metódica da conduta... que
teve intensos reflexos na esfera econômica! (QUINTANEIRO 2003:129)

A tese weberiana sobre a relação da religião com as demais esferas


sociais indica que sempre que o modo de vida, em sua totalidade,
foi metodicamente racionalizado, ele foi profundamente impactado
e condicionado por valores últimos religiosos. Através do estudo das
relações entre modo de vida e religião, Weber encontra as bases para
explicar o predomínio das práticas econômicas capitalistas nas socie-
dades ocidentais. No Ocidente, as organizações protestantes obtive-
ram sucesso em superar as tensões entre o campo religioso e econô-
mico, onde a ética protestante, isto é, a prática ascética e a vocação
do trabalho, lançaram os fundamentos para o desenvolvimento do
capitalismo enquanto uma forma de orientar a ação econômica.

4.10.Racionalização e Burocracia
Na concepção weberiana, uma característica fundamental que dis-
tingue as sociedades ocidentais das demais diz respeito à tendência à

163
racionalização presentes em todas as esferas da vida social. Até mesmo
em sua Sociologia da Religião, Weber busca entender como a racionali-
zação religiosa afeta e é afetada por outras esferas sociais. De fato, ain-
da que a sociedade moderna seja marcada pela tendência de raciona-
lização das esferas, isto não significa que esta tendência sempre existiu,

Em sua forma primitiva, todo afanar-se dos homens por sua ali-
mentação é muito semelhante àquilo que nos animais tem lugar
sob o império dos instintos. Do mesmo modo, encontra-se pouco
desenvolvido o grau de calculabilidade da ação econômica cons-
cientemente orientada pela devoção religiosa, pela emoção guer-
reira, pelos impulsos de piedade ou por outros afetos semelhantes
(WEBER, 1920).

Uma das formas pelas quais a tendência à racionalização marca


as sociedades ocidentais está presente na organização burocrática.
“Da administração pública à gestão dos negócios privados, da máfia
à polícia, dos cuidados com a saúde às práticas de lazer, escolas, clu-
bes, partidos políticos, igrejas, todas as instituições, tenham elas fins
ideais ou materiais, estruturam-se e atuam através do instrumento
cada vez mais universal e eficaz de se exercer a dominação que é a
burocracia” (QUINTANEIRO, 2003:131).
Dos três tipos puros de dominação legítima, a racional-legal é
aquela marcada pela presença de leis e regulamentações adminis-
trativas, diminuindo a importância de família, amigos, costumes e
riqueza. As ordens são dadas de modo mais previsível e estável, com
o foco na execução das obrigações. Ademais, é cada vez maior a espe-
cialização necessária para exercer as funções, como também é cada
vez maior a existência de leis, registros e arquivos organizadores das
relações sociais, valendo para todos do grupo.

A burocracia enquanto tipo ideal pode organizar a dominação


racional-legal por meio de uma incomparável superioridade

164
técnica que garanta precisão, velocidade, clareza, unidade, es-
pecialização de funções, redução do atrito, dos custos de ma-
terial e pessoal etc. Ela deve também eliminar dos negócios o
amor, o ódio e todos os elementos sensíveis puramente pesso-
ais, todos os elementos irracionais que fogem ao cálculo (WE-
BER, 1920).

O tipo-ideal do burocrata é o funcionário que age em cooperação


com os demais, cujo ofício é separado da vida familiar e pessoal, re-
gulamentado por regras, mandatos e pela exigência da competência,
conhecimento e técnica, com a consciência que não se pode utilizar
os bens do Estado para benefício próprio ou apropriar-se deles. Há a
existência de uma hierarquia de cargos que pode ser percebida pela
diferença dos salários que são pagos por cargos distintos. Quando
ocupa um posto, o funcionário

não se subordina - como, por exemplo, sucede na forma de do-


minação feudal ou patrimonial - a uma pessoa como a um senhor
ou patriarca, mas coloca-se a serviço de uma finalidade objetiva
impessoal. (...) O funcionário público, por exemplo - pelo menos
num estado moderno avançado -, não é considerado um empre-
gado particular de um soberano (WEBER, 1920).

O processo de burocratização está presente também na economia


e nas empresas modernas a partir da organização racional do traba-
lho, da mecanização do trabalho e do controle contábil de gastos.
“Com a finalidade de obter o máximo lucro, as empresas capitalis-
tas procuram organizar de modo racional o trabalho e a produção,
necessitando, para tanto, garantir-se contra as irracionalidades dos
afetos e das tradições que perturbam a calculabilidade indispensá-
vel ao seu desenvolvimento” (QUINTANEIRO 2003:132). Assim, os in-
divíduos tendem a se tornar mais racionais também em suas ações.
A sociedade moderna tende à racionalização e à burocracia também

165
nas formas de conhecimento, como é o caso da ciência, que se coloca
como a principal avaliadora do que é verdadeiro, útil e bom.

4.11.Racionalização e Capitalismo
O surgimento e desenvolvimento do capitalismo na sociedade oci-
dental moderna não possui, para Weber, a característica principal na
acumulação de metais preciosos ou no aumento populacional. Sua
principal característica se encontra na existência “da empresa per-
manente e racional, da contabilidade racional, da técnica racional e
do Direito racional. A tudo isso se deve ainda adicionar a ideologia
racional, a racionalização da vida, a ética racional da economia (WE-
BER, 1905). Weber entende que o capitalismo está diretamente ligado
à racionalização da vida prática. Para ele,

Foi a presença muito significativa de protestantes de várias seitas


entre os empresários e os trabalhadores qualificados nos países
capitalistas mais industrializados que sugerira a Weber a possibi-
lidade da existência de algum tipo de afinidade particular entre
certos valores presentes na época do surgimento do capitalismo
moderno e aqueles disseminados pelo calvinismo (QUINTANEIRO,
2003:133).

Analisando a vida dos puritanos nos Estados Unidos e na Europa,


bem como as obras de autores que praticavam e defendiam a ética
calvinista, baseado em um trabalho incessante para a transformação
do mundo ao passo que se abstinha dos prazeres, Weber estabelece
uma relação entre valores e condições para o estabelecimento do ca-
pitalismo. Para os puritanos, “a perda de tempo (...) é o primeiro e o
principal de todos os pecados. (...) A perda de tempo, através da vida
social, conversas ociosas, do luxo e mesmo do sono além do necessá-
rio para a saúde - seis, no máximo oito horas por dia - é absolutamen-
te dispensável do ponto de vista moral” (WEBER, 1905).

166
Todas as esferas da vida, até mesmo o esporte, deveriam “servir a
uma finalidade racional: a do restabelecimento necessário à eficiên-
cia do corpo” e nunca como diversão ou como meio “de despertar o
orgulho, os instintos, ou o prazer irracional do jogo” (WEBER, 1905).
A atividade que não possuía finalidade racional voltada para o traba-
lho e para a melhoria da produção era abandonada, entendida como
“prazeres do mundo” e, portanto, passível de reprovação. Atividades
estéticas e artísticas como o teatro, poesia, música, literatura, tipos
de vestuário e decoração pessoal, como maquiagem e joias, são re-
provadas em prol de uma melhor disposição do tempo e energia para
o trabalho e transformação do mundo.
Weber demonstra esta relação entre a esfera religiosa e a econômi-
ca ao analisar as obras de Benjamin Franklin, em meados no século
XVIII, que servem como base daquilo que Weber chamou de espírito
do capitalismo:

Lembra-te de que tempo é dinheiro. Aquele que pode ganhar dez


xelins por dia por seu trabalho e vai passear ou fica vadiando me-
tade do dia, embora não dispenda mais do que seis pence durante
seu divertimento ou vadiação, não deve computar apenas essa
despesa; gastou, na realidade, ou melhor, jogou fora, cinco xelins
a mais. Lembra-te deste refrão: o bom pagador é o dono da bolsa
alheia. Aquele que é conhecido por pagar pontual e exatamente
na data prometida, pode, em qualquer momento, levantar tanto
dinheiro quanto seus amigos possam dispor. Isso é, às vezes, de
grande utilidade. Depois da industriosidade e da frugalidade, nada
contribui mais para um jovem subir na vida do que a pontualidade
e a justiça em todos os seus negócios; portanto, nunca conserves
dinheiro emprestado uma hora além do tempo prometido, senão
um desapontamento fechará a bolsa de teu amigo, para sempre. O
som de teu martelo às cinco da manhã ou às oito da noite, ouvido
por um credor, o fará conceder-te seis meses a mais de crédito;
ele procurará, porém, por seu dinheiro no dia seguinte se te vir

167
em uma mesa de bilhar ou escutar tua voz numa taverna quando
deverias estar no trabalho (WEBER, 1920).

O trabalho deixa de ser um meio, um instrumento para alcançar


algum objetivo e passa a ter finalidade em si mesmo. “Trabalhar é
glorificar a Deus”. Donos de fábricas, de empresas e trabalhadores
puritanos passam a viver em função de sua atividade produtiva ou de
seu negócio, obtendo, a partir de seu trabalho, a sensação de cumpri-
mento da vocação divina que receberam. Por isso, o puritano conde-
na o ócio, a preguiça, a perda de tempo e o luxo.

Assim, a peculiaridade dessa filosofia da avareza parece ser o ideal


de um homem honesto, de crédito reconhecido e, acima de tudo,
a ideia do dever de um indivíduo com relação ao aumento de seu
capital, que é tomado como um fim em si mesmo. Na verdade, o
que é aqui pregado não é uma simples técnica de vida, mas sim
uma ética peculiar, cuja infração não é tratada como uma tolice,
mas como um esquecimento do dever. (...). Não é mero bom senso
comercial (...), mas, sim, um ethos (WEBER, 1905).

Os empresários protestantes se viam abençoados ao dedicar-se à


produção da riqueza. Este conjunto de valores foi encontrado por We-
ber em países como os Estados Unidos, Alemanha e Holanda. Desta
forma, o sociólogo percebeu que tal conjunto de valores “uma vida
econômica racional e burguesa” (WEBER, 1905). “A essa dedicação
verdadeiramente religiosa ao trabalho ele chamou vocação, fruto
de um ascetismo mundano, oposto ao ascetismo católico em dois
pontos fundamentais: primeiro, no seu caráter de ação metódica no
mundo e, segundo, na valorização do sucesso econômico” (QUINTA-
NEIRO, 2003:134).

... o trabalho é velho e experimentado instrumento ascético, apre-


ciado mais do que qualquer outro na Igreja do Ocidente, em acen-

168
tuada contradição não só com o Oriente, mas também com quase
todas as ordens monásticas do mundo (...) O trabalho vocacional
é, como dever de amor ao próximo, uma dívida de gratidão à graça
de Deus (...) não sendo do agrado de Deus que ele seja realizado
com relutância. O cristão deve assim mostrar-se industrioso em
seu trabalho secular (WEBER, 1905).

A doutrina católica existente na época analisada por Weber conde-


nava a ambição pelo lucro e a usura. Para os calvinistas, contudo, dese-
jar ser pobre era algo doentio e absurdo, “a prosperidade era o prêmio
de uma vida santa” (WEBER, 1905). O mal não estava presente na posse
da riqueza, mas no uso da riqueza para o prazer, o luxo e a preguiça. A
riqueza utilizada para melhorar o processo de produção e investimen-
to no trabalho era agradável a Deus e, portanto, deveria ser valorizada
pelos homens. “Para os calvinistas, o deus inescrutável tem seus bons
motivos para repartir desigualmente os bens de fortuna, e o homem se
prova exclusivamente no trabalho profissional (WEBER, 1905).
A nova ética e nova visão de mundo permitiram ao empresário e
ao burguês deixarem seu baixo prestígio social e se transformarem
em modelos na nova sociedade que se instalava. Esta nova ética teve
consequências essenciais na vida econômica deste novo mundo, ao
combinar a “restrição do consumo com essa liberação da procura da
riqueza, é óbvio o resultado que daí decorre: a acumulação capitalista
através da compulsão ascética da poupança” (WEBER, 1905). Contudo,
a relação entre religião e capitalismo não durou infinitamente. Na ver-
dade, foi apenas inicial sua influência. O capitalismo foi bem-sucedi-
do em se livrar das amarras religiosas e construir uma forma de vida
baseada na ética protestante, mas sem o fundamento religiosos por
detrás dela. “O capitalismo moderno já não necessita mais do suporte
de qualquer força religiosa e sente que a influência da religião sobre a
vida econômica é tão prejudicial quanto a regulamentação pelo Esta-
do” (QUINTANEIRO, 2003:136).

169
4.12. Conclusão
A análise weberiana das relações sociais oferece diversas possibi-
lidades para entender a forma pela qual os indivíduos se relacionam
com os demais e com a sociedade que os cerca. De fato, tais relações
são complexas e atingem os indivíduos nas mais diversas esferas so-
ciais, desde a religião, política e até a economia.
Ao desenvolver os tipos-ideais, Weber formula uma importante
ferramenta para entender, analisar e julgar as relações sociais. Seus
tipos de ação social auxiliam na compreensão dos combustíveis que
movem a tomada de decisão dos indivíduos. Ademais, as formas de
dominação auxiliam na compreensão das razões pelas quais os in-
divíduos aceitam obedecer a seus comandantes. Em consonância, a
tendência da sociedade moderna à impessoalidade e à técnica pode
ser profundamente analisada com os conceitos de burocratização e
racionalização.
Além disso, a análise da religião realizada por Weber ajuda o estu-
dioso a compreender como as religiões mundiais se relacionam com
diferenças necessidades e interesses dos indivíduos, não apenas re-
velando tais interesses, como também promovendo soluções para es-
tes. Por fim, Weber dá uma importante contribuição na compreensão
das razões pelas quais o capitalismo se desenvolveu de forma sem
igual no Ocidente, ao relacionar o surgimento e desenvolvimento do
capitalismo à ética protestante e a visão de mundo a partir de tal éti-
ca. Portanto, Weber lanças as bases sociológicas para a interpretação
de uma gama de temas sociais e formas de análise da rica realidade
que nos cerca.

4.13.Referências
QUINTANEIRO, T.; OLIVEIRA, M.; OLIVEIRA, B. Um toque de Clássi-
cos: Marx, Durkheim, Weber. Ed. UFMG, 2ª Ed.; Belo Horizonte, 2003

170
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ght. Max Weber. Ensaios de Sociologia. Tradução de Waltensir Dutra.
Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Primeira Publicação: 1917
WEBER, Max. A política como vocação. In: GERTH, Hans; MILLS,
Wright. Max Weber. Ensaios de Sociologia. Tradução de Waltensir Du-
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Primeira Publicação: 1919
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Primeira Publicação: 1905
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Hans; MILLS, Wright. Max Weber. Ensaios de Sociologia. Tradução de
Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
WEBER, Max. Economía y sociedad. México: Fondo de Cultura,
1984. WEBER, Max. Índia: o brâmane e as castas. In: GERTH, Hans;
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tensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Primeira Publicação: 1920
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Maurício. Textos selecionados - Max Weber. Tradução de Maurício Tra-
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WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In:
GERTH, Hans; MILLS,Wright. Max Weber. Ensaios de Sociologia. Tra-
dução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar, 1979

171

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