RICHARD HEINBERG
1991
Este livro é afetuosamente dedicado a meus amigos Michael e Nancy
Exeter.
Os seres humanos mais antigos viviam sem desejos maus, sem culpa
nem crime, e, por conseguinte, sem penalidades nem compulsões.
Tampouco havia necessidade de recompensas, visto que, pela
instigação da sua própria natureza, trilhavam caminhos virtuosos. E
como nada se desejava contrário à moral, nada se proibia através do
medo.
Tácito, poeta romano (século I d.C.)
Agradecimentos
Prefácio
Já se disse da música de Mozart que ela poderia ter sido escrita antes
da Queda. Poder-se-ia dizer o mesmo das Lembranças e visões do
Paraíso de Richard Heinberg.
Heinberg é um explorador das regiões do mito e da profecia. Essas
regiões são estranhas, no sentido de que o mundo pintado, assim no
mito como na profecia, é tão diferente do mundo que conhecemos que
é capaz de nos tornar, a princípio, incrédulos aos dois. Um explorador,
porém, é mais que um viajante, que pode simplesmente contemplar,
rápido e incrédulo, paisagens exóticas, e, logo, com um suspiro de
alívio, retornar aos lugares familiares que costuma habitar. O
explorador precisa demorar-se em ambientes não-familiares e ter
coragem suficiente para desafiar a desorientação inevitavelmente
resultante da sua estada. Em seguida, reorientado, precisa ter a
mente e o coração abertos para encontrar sentido no que se lhe
deparou, e a generosidade de espírito para transmitir esse sentido a
outros menos aventurosos do que ele. Tudo isso fez Heinberg.
Ele está fazendo muito mais, entretanto, do que apresentar, aos que
vivem longe dos mitos, histórias estranhas e predições forçadas. Está
Ihes dizendo - e a nós também que existe um componente oculto na
nossa relutância em acreditar em histórias antigas e aceitar descrições
de coisas por vir. Esse componente, diz ele, é que, longe de nos
serem alheias, as regiões umbrosas do passado e do futuro não são
ficções. Pelo contrário, o domínio mítico é a realidade a longo prazo
da nossa progênie coletiva, ao passo que o sonho profético é uma
possibilidade para os que desejam atualizá-Ia. Somos como crianças
adotadas que, ao descobrirmos que os nossos pais verdadeiros não
são os que tínhamos presumido, nos recusamos a reconhecer, não
somente o parentesco, senão também as perspectivas alteradas que
dele podem fluir.
A grande tarefa intelectual que Heinberg nos propõe é o que os
psicanalistas junguianos denominam anamnese, ou a recuperação de
lembranças sepultadas, individuais e coletivas. Como sugere a origem
grega da palavra, a anamnese não é uma proposta moderna. Platão
insistiu que todo pensamento é recordação. E os devotos dos
Mistérios Órficos procuraram compensar o Leste, o tradicional rio do
esquecimento, com um lago da recordação, no qual se banhariam os
iniciados para recuperar o apelo do cosmo primevo e o lugar deles
nesse cosmo. No século XIX, Friedrich Nietzsche, cuja carreira de
filósofo se iniciou com um estudo intensivo de filologia clássica,
interessou-se profundamente por essas idéias e advogou o que
denominava mnemotécnica - método sistemático de relembrar alguma
coisa que, a não ser assim, cairia no esquecimento.
Um dos pensadores mais aventurosos que herdaram a visão analítica
foi o médico austro-americano Wilhelm Reich, que declarou que "o
sonho do Paraíso... é racional e necessário". Reich, cujo objetivo
terapêutico era a restauração da criatividade energética das pessoas
que se sentiam profundamente deprimidas, convenceu-se de que os
grandes movimentos políticos do seu tempo, tanto revolucionários,
eram esforços desesperados, porém mal-orientados, para restaurar
uma ordem social pré-histórica perdida.
Conquanto a exposição de Richard Heinberg assuma a forma de
prosa, a sua visão é poética. Para utilizar um termo tomado de
empréstimo ao poema épico Paraíso, do poeta John Milton, Heinberg
mostra-nos o que era, e o que voltará a ser, viver "emparaisado".
Porém a mais rica expressão em versos dessa visão que conheço
vem do admirador e sucessor de Milton, William Wordsworth. É a sua
ode intitulada Intimations of Immortality from Recollections of Early
Childhood [Sugestões de imortalidade tiradas das lembranças da
primeira infância] (em que podemos interpretar a sua "infância" como a
da humanidade em geral, e o pronome "eu" se referisse a toda a
nossa espécie):
Houve um tempo em que o prado, o bosque e o ribeiro, A terra, e
todas as visões comuns, A mim me pareciam Vestidas de luz
celeste, Da glória e do frescor de um sonho.
Agora já não é como foi outrora;
Para onde quer que eu me volte, De noite ou de dia, As coisas que via
antes já não vejo agora...
O amor-perfeito a meus pés Repete a mesma história:
Para onde fugiu o brilho visionário? Onde estão, agora, a glória e o
sonho?...
Nosso nascimento é apenas um sonho e um olvido; A Alma que
nasce conosco, a Estrela da nossa vida, Teve alhures seu ocaso, E
vem de longe:
Não do pleno esquecimento, Nem da completa nudez, Mas, nuvens
roçagantes de glória, viemos De Deus, que é o nosso lar...
Que alegria! que em nossas brasas Haja alguma coisa que vive, Que
a natureza ainda se lembre Do que era tão fugitivo!...
Por isso, numa estação de tempo mimoso, Embora estivéssemos
longe, terra adentro, Nossas almas contemplaram o mar imortal Que
nos trouxe para cá, Que pode, num momento, viajar para lá E ver as
crianças brincando na praia.
E ouvir as águas poderosas rolando para sempre...
Graças ao coração humano pelo qual vivemos, Graças à sua ternura,
alegrias e medos, Para mim, a menor das flores que floresce pode dar
Pensamentos que jazem amiúde profundos demais para lágrimas.
Sumário
PRIMEIRA PARTE
A Memória
Capítulo 1
Os Mistérios do Mito.
Interpretando os antigos.
Dissecando o mito e a religião.
O retorno do sagrado.
A visão mítica do mundo.
Mito: história ou metáfora.
O problema da unidade mítica
Capítulo 2
No Princípio Fiat ex nihilo.
O Ovo Cósmico.
O Mergulhador da Terra.
A Emergência.
A origem dos seres humanos
Capítulo 3
A Procura do Éden Suméria e Dilmun.
O Jardim iraniano.
A era de Rá.
A Raça de Ouro.
Os Paraísos do Oriente.
O Primitivismo entre os Primitivos.
Capítulo 4
Imagens do Paraíso: Temas Comuns.
A paisagem mágica.
As idades do mundo.
A Idade dos milagres e das maravilhas.
A santidade de caráter.
A comunhão com a divindade: os pais divinos.
A imortalidade.
Paraísos celestes e terrenos.
A ponte do arco-íris.
Continentes perdidos.
Capítulo 5
A História Mais Triste.
A Mudança de caráter.
A desobediência.
O fruto proibido.
A ciência do bem e do mal.
O esquecimento.
Os efeitos da Queda.
O Dilúvio.
Outras catástrofes.
SEGUNDA PARTE
A Visão
Capítulo 6
A Profecia: O Paraíso Antigo e o Paraíso Futuro.
No fim como no princípio.
Esperando o milênio.
A grande purificação.
Capítulo 7
O Paraíso como Força na Cultura Humana.
O Paraíso na literatura.
Sonhos de um Paraíso terreno.
Utopia: o Paraíso feito de encomenda.
O poder do exemplo.
A América utópica.
O novo espírito comunal.
TERCEIRA PARTE
A Busca
Capítulo 8
O Paraíso como História.
Aconteceu realmente?
A arqueologia bíblica.
De forrageadores e agricultores.
O Paraíso como jardim.
O Paraíso paleolítico.
Atlântida e Mu.
Anomalias arqueológicas.
Os limites do conhecimento histórico
Capítulo 9
O Paraíso como Metáfora.
Os velhos e bons tempos.
O sexo e a Queda.
O complexo de Édipo.
O Paraíso como infância.
A evolução da consciência.
O Paraíso como união mística
QUARTA PARTE
A Volta
Capítulo 10
Desdobrando Imagens: o Espelho do Mito.
A Mente Original.
O Ego e a Queda.
A Sobrevivência do Milagroso.
Revisionando a História
Capítulo 11
O Paraíso Agora: Entre o Céu e a Terra.
A experiência da quase-morte.
Idéias da vida após a morte.
A experiência de quase-morte como forma de experiência mística.
Imaginação ou realidade?
Capítulo 12
Para Voltar ao Jardim.
A Atingibilidade do Paraíso.
Advertências do Inconsciente Coletivo.
A Nova Cultura.
Compreendendo o Paraíso
Epílogo.
CAPÍTULO 1
Os Mistérios do Mito
Era uma vez uma época em que todos os seres humanos viviam em
amizade e paz, não apenas entre eles mesmos, como também com
todos os outros seres vivos. A gente daquela Idade da Inocência
original era sábia, brilhante, capaz de voar à vontade pelo ar, e estava
em contínua comunhão com as forças e inteligências cósmicas.
Entretanto, uma trágica disrupção acabou com a Primeira Idade, e a
humanidade viu-se alheada do Céu e da Natureza. Desde então
temos vivido de modo fragmentário, nunca nos compreendendo
realmente a nós mesmos, nem o nosso lugar no Universo. De vez em
quando, porém, olhamos para trás, com saudade e pesar, e sonhamos
com uma volta ao Paraíso que outrora conhecemos.
O Paraíso talvez tenha sido a idéia mais popular e intensamente
significativa que alguma vez já se apoderou da imaginação humana.
Encontramo-Ia em toda a parte. "Em formas mais ou menos
complexas, o mito paradisíaco ocorre aqui e ali, no mundo inteiro”!,
escreveu a grande autoridade moderna sobre religiões comparadas
Mircea Eliade. O Jardim do Éden hebraico, a Idade de Ouro grega, o
Tempo de Sonho dos aborígines australianos e a Idade da Virtude
Perfeita do taoísmo chinês são apenas variantes locais do
universalmente relembrado Tempo dos Primórdios, cuja lembrança
coloriu toda a história subseqüente.
O impacto da imagem paradisíaca sobre a consciência coletiva
humana é tão profundo quanto vasto. Em nenhuma tradição o tema é
recente ou periférico; existe, antes, no próprio cerne do impulso
espiritual perene, que reemerge na literatura, na arte e nos ideais
sociais de cada geração. Com efeito, se estivéssemos buscando um
motivo que servisse de base a um esboço sumário de cultura humana,
poderíamos começar perfeitamente com nossas lembranças coletivas
de uma Idade de Ouro perdida e com nossos anseios pela sua volta.
Os grandes empreendimentos da história - as Cruzadas, as revoltas
milenárias da Idade Média, a demanda do Graal, o descobrimento e a
colonização do Novo Mundo, os movimentos utópicos na literatura e
na política, o marxismo e o culto do progresso - todos de certo modo,
estão enraizados no solo do Jardim mítico original. Quanto mais nos
familiarizamos com a essência da história, tanto mais freqüentemente
lhe reconhecemos o reflexo nos devaneios nostálgicos e nas
fervorosas aspirações de todas as culturas em todas as idades.
Interpretando os Antigos
O Retorno do Sagrado
CAPÍTULO 2
No Princípio
Fiat ex Nihilo
O Ovo Cósmico
O Mergulhador da Terra
No princípio não havia sol, nem lua, nem estrelas. Tudo era escuro, e
em toda a parte só havia água. Uma balsa veio flutuando sobre a
água. Ela veio do norte, e nela havia duas pessoas, a Tartaruga e o
Pai-da-Sociedade-Secreta. As águas fluíam muito depressa. Eis
senão quando, do céu desceu uma corda de penas, e por ela veio o
Iniciado-da-Terra. Quando ele chegou à ponta da corda, amarrou-a na
proa da balsa, e pulou nela. Seu rosto estava coberto e nunca foi
visto, mas o seu corpo brilhava como o sol. Ele sentou-se e durante
muito tempo não falou nada. Afinal, a Tartaruga disse: "De onde você
vem?" e o Iniciado-da-Terra respondeu: "Venho do alto". Depois a
Tartaruga disse: "Irmão, você não pode fazer para mim um pouco de
boa terra seca, de modo que eu possa, às vezes, sair da água?" ... O
lniciado-da-Terra replicou: "Você quer um pouco de terra seca: pois
bem, como vou arranjar um pouco de terra para fazê-Ia?" Respondeu
a Tartaruga: "Se você atar uma rocha ao meu braço esquerdo,
mergulharei à procura de alguma". O Iniciado-da-Terra fez o que a
Tartaruga pediu, e, em seguida, estendendo a mão à sua volta, pegou
a ponta de uma corda de um lugar qualquer, e amarrou-a na
Tartaruga...
A Tartaruga desapareceu por muito tempo. Ela partira havia seis anos;
e, quando tornou a subir, estava coberta de limo verde, pois estivera
todo o tempo lá embaixo. Quando chegou à superficie da água, a
única terra que trazia era um pedacinho muito pequeno, debaixo das
unhas; o resto fora levado pelas águas. O Iniciado-da-Terra pegou,
com a mão direita, uma faca de pedra do sovaco esquerdo, e, com
muito cuidado, raspou a terra que ficara sob as unhas da Tartaruga.
Colocou-a na palma da mão, e fê-Ia rolar até deixá-Ia redonda; a terra
tinha o tamanho de um seixo pequeno. Colocou-o na popa da balsa.
De quando em quando, ia olhar para ela: a bola de terra não crescera
nem um pouquinho. Na terceira vez em que foi vê-Ia, ela crescera
tanto que podia ser abarcada com os braços. Na quarta vez que
olhou, ela ficara do tamanho do mundo, a balsa estava encalhada na
terra, e tudo à sua volta, até onde ele podia enxergar, eram
montanhas.
Na seqüência do mito, o Iniciado-da-Terra - o qual, mais que a
Tartaruga, é a verdadeira figura do Criador da história - dá forma aos
primeiros seres humanos:
Pouco a pouco, foi aparecendo grande quantidade de pessoas. O
Iniciado-da-Terra quisera ter tudo confortável e fácil para as pessoas,
para que nenhuma tivesse que trabalhar. Todas as frutas eram fáceis
de obter, e ninguém ficava doente nem morria. À medida que as
pessoas se foram tornando numerosas, o lniciado-da-Terra já não
vinha tantas vezes quanto antes... Ele se foi. Partiu de noite, e subiu
às alturas.
Aqui já vemos, como voltaremos a ver em muitos outros exemplos, o
modelo universal do Paraíso, seguido pela separação entre o divino e
o humano.
A Emergência
Há muito tempo, quando Warau vivia nas felizes terras de caça, acima
do céu, Okonorote, jovem caçador, disparou uma flecha que errou o
alvo e se perdeu; procurando por ela, encontrou o buraco pelo qual ela
caíra; e, abatendo a vista, descortinou a terra lá embaixo, com
florestas e savanas cheias de caça. Por meio de uma corda de
algodão, visitou as terras embaixo e, quando regressou, os seus
relatos foram de tal forma que induziram toda a tribo dos waraus a
segui-Io até lá; mas uma infeliz [mulher], demasiado gorda para
esgueirar-se pelo buraco, ficou entalada nele, e os waraus se viram,
assim, impedidos de voltar algum dia ao mundo do Céu.
CAPÍTULO 3
À Procura do Éden
Suméria e Dilmun
Era uma vez, em que não havia cobra, não havia escorpião, Não havia
hiena, não havia leão Não havia cachorro selvagem, nem lobo, Não
havia medo, nem terror, O homem não tinha rival.
Era uma vez....
Em que todo o universo, o povo em uníssono Louva Enlil numa língua
só.
Em outras passagens, Dilmun é descrita como "terra dos vivos",
reservada para os deuses, ou para os que, como Ziusudra (o
equivalente mítico sumeriano de Noé), receberam "a vida qual um
deus".
Em outras ocasiões ainda, todavia, descreve-se Dilmun como um país
com o qual a Suméria mantinha relações simultâneas de comércio.
Muitos arqueólogos acreditam agora que Dilmun estava localizada nas
ilhas de Bahrein e de Failaka, ou na costa oriental da Arábia Saudita,
centros de comércio internacional no tempo em que a Suméria
dominava a região. Entretanto, a caracterização de Dilmun como
centro internacional de comércio dificilmente explicará por que era
mencionado tão amiúde em termos mágicos e paradisíacos.
Os babilônios, sucessores dos sumerianos, também situavam a sua
"terra dos vivos" em Dilmun. Era ali a "morada dos imortais", onde
Utnapishtim (o personagem babilônico de Noé) e sua esposa tiveram
permissão para morar depois do Dilúvio.
Em suma, os pesquisadores não chegaram a acordo algum no que
concerne à localização ou até à natureza de Dilmun. Os paralelos
gerais entre os textos do Éden e de Dilmun (que ambos descrevem
como terra de paz e imortalidade) são uma prova escassamente
convincente da sua origem comum. A história de Dilmun não partilha
nem das dramatis personae nem da trama da narrativa do Éden; ali
não há serpente, nem fruto proibido, nem um casal primordial.
Paralelos muito próximos da história do Éden podem encontrar-se em
mitos mais distantes. Na antiga Pérsia, ou Irã, por exemplo,
encontramos a tradição de um antepassado universal reminiscente do
bíblico Adão.
O Jardim Iraniano
A Era de Rá
Em seu Myth and Symbol in Ancient Egypt [O mito e o símbolo no
antigo Egito], R. T. Rundle Clark diz-nos que a mitologia egípcia difere
fundamentalmente das outras literaturas do Oriente Médio:
O Deus-Sol Rá
A Raça de Ouro
A que demos o nome de Áurea, foi abençoada com o fruto das árvores
e das ervas que o solo produz, e não poluiu sua boca com sangue
coalhado. As aves, em segurança, abriam caminho com as asas pelo
ar, a lebre, sem temor, errava pelos campos e o peixe não era
apanhado graças à sua falta de inteligência. Não havia armadilhas,
ninguém tinha medo da traição, e tudo era cheio de paz.
Os Paraísos do Oriente
A Krita Yuga [Idade Perfeita] era assim nomeada porque havia apenas
uma religião, e todos os homens eram santos: por conseguinte, não se
exigia deles que celebrassem cerimônias religiosas. A santidade
nunca diminuía, e o povo não decrescia. Não havia deuses na Krita
Yuga, e nem demônios... Os homens não compravam nem vendiam;
não havia pobres e não havia ricos; não existia a necessidade de
trabalhar, porque tudo que os homens requeriam obtinham-no pela
força de vontade; a virtude principal consistia na renúncia de todos os
desejos mundanos. A Krita Yuga era sem doenças; não havia
depreciação com o passar dos anos; não havia ódio, nem vaidade,
nem nenhuma espécie de maus pensamentos; nenhuma tristeza,
nenhum medo. Toda a espécie humana podia lograr a suprema
beatitude.
CAPÍTULO 4
Imagens do Paraíso: Temas Comuns
A Paisagem Mágica
As Idades do Mundo
Se a paisagem mágica fixa o Paraíso no espaço, sua posição no
tempo é definida por sua colocação no início de uma série de idades
do mundo. Já observamos as concepções gregas e hindus das idades
ou yugas do mundo, respectivamente; existem também estreitos
paralelos entre outras culturas. Os iranianos, por exemplo, conheciam
quatro idades cósmicas, que, num livro masdeano perdido, o Sudkar-
nask, são mencionadas como as idades de ouro, prata, aço e
"misturada com ferro". Na concepção iraniana, como nas concepções
grega e hindu, cada idade é um passo na deterioração do mundo,
processo esse que está levando para uma purificação apocalíptica
final.
Os maias contavam suas idades do mundo como Sóis consecutivos -
Sol da Água, Sol do Terremoto, Sol do Furacão e Sol do Fogo -
consoante a natureza da catástrofe que encerrava a época. Os hopis
também falavam de quatro mundos - Tokpela, Tokpa, Kuskurza e
Túwaquchi - o primeiro dos quais é descrito em termos paradisíacos.
Segundo sua criação do mundo Tokpela:
As pessoas seguiam suas direções, eram felizes e começaram a
multiplicar-se. Com a prisca sabedoria que lhes fora concedida, viam
na terra uma entidade viva como elas mesmas. Ela era sua mãe; elas
eram feitas da sua carne. ... Em sua sabedoria, elas também
conheciam seu pai em dois aspectos. Ele era o Sol, o deus solar do
seu universo. ... Entretanto, o seu era apenas o rosto através do qual
olhava Taiowa, seu criador. ... Essas entidades universais eram seus
verdadeiros pais, sendo os pais humanos meramente os instrumentos
através dos quais se Ihes manifestava o poder. ... As primeiras
pessoas, portanto, compreendiam o mistério da sua paternidade. Em
sua sabedoria prístina, também compreendiam a própria estrutura e
funções - a natureza do próprio homem. ... As primeiras pessoas não
conheciam a doença. Só depois que o mal entrou no mundo elas
adoeceram do corpo ou da cabeça.
A Árvore do Universo. Da raspagem de um relevo na Câmara das
Oferendas, por Won Yong, China, 168 d.C.
A Santidade de Caráter
Os seres humanos mais antigos viviam sem maus desejos, sem culpa
nem crime, e, por conseguinte, sem penalidades nem compulsões.
Tampouco havia necessidade de recompensas, visto que, pela
inclinação da própria natureza, eles seguiam caminhos virtuosos. Uma
vez que nada se desejasse contra a moral, nada era proibido através
do medo.
A Imortalidade
A Ponte do Arco-íris
Continentes Perdidos
CAPÍTULO 5
A História Mais Triste
Deus não fez a morte, e ele não se deleita na morte dos vivos; as
forças geradoras do mundo são sadias e nelas não há veneno
destrutivo.
A Sabedoria de SaIomão, 1:13, 14
A Mudança de Caráter
A Desobediência
O Fruto Proibido
O Esquecimento
De teu pai, o rei dos reis, e de tua mãe, a senhora do Oriente, e de teu
irmão, nosso segundo [em autoridade], depois de ti, nosso fIlho.
Lembra-te de que és fIlho de reis! Vê a escravidão - a quem serves!
Lembra-te da pérola, por cuja causa foste mandado para o Egito!
A carta, transformada em águia, voa para o príncipe. Pousando ao
lado dele, fala e volta a transformar-se em carta.
Ao ouvir-lhe a voz e o som do seu roçagar, assustei-me e saí do meu
sono. Tomei-a e beijei-a, e principiei a Iê-Ia; e de acordo com o que
estava traçado em meu coração tinham sido escritas as palavras da
minha carta. Lembrei-me de que era filho de pais reais, e minha nobre
linhagem afirmava a sua natureza. Lembrei-me da pérola, por cuja
causa eu fora mandado para o Egito, e principiei a encantar a terrível
serpente que respirava alto. Fi-Ia dormir e deixei-a imersa num sono
profundo, pronunciando sobre ela o nome de meu pai; apossei-me da
pérola, e virei-me para voltar à casa de meu pai.
Os Efeitos da Queda
De acordo com o texto, o ser humano é leve por sua própria natureza:
"Pois eu te fiz da luz; e queria fazer saírem de ti filhos da luz, e
parecidos contigo.”
E quando ele estava nos céus, nos reinos da luz, nada conhecia da
treva. Mas transgrediu, e eu o fiz cair do céu na terra; e essa treva
veio sobre ele. E em ti, ó Adão, enquanto estavas em Meu jardim, e
eras obediente a Mim, a luz brilhante também descansou. Mas quando
tive notícia da tua transgressão, privei-te da luz brilhante. Entretanto,
graças à Minha misericórdia, não te transformei em treva, mas fiz teu
corpo de carne, sobre o qual estendi esta pele, a fim de que ele
pudesse suportar o frio e o calor.
Nos mitos dos gregos, dos nativos americanos e dos africanos, a
crueldade dos seres humanos levou-os a perder o direito à amizade
com os animais. Mas então, tendo perdido os poderes divinos, as
pessoas vêem-se reduzidas a um estado materialmente equivalente
ao dos animais, com os quais já não podem comunicar-se.
Fazia-se mister desenvolver substitutos para as suas capacidades
mágicas anteriores, e esses substitutos assumem a forma de
invenções e instituições - rudimentos da civilização. Os filósofos
estóicos e cínicos gregos e romanos descrevem a emergência da
civilização como um processo de declínio moral. Conta-nos Ovídio,
por exemplo, que, depois de haver a humanidade perdido a áurea
condição original:
O Dilúvio
Mais uma vez. "a semente de todas as criaturas vivas" é levada para o
barco. Na versão babilônica, o Dilúvio dura sete dias; um corvo, uma
pomba e uma andorinha são mandados à procura de terra. Depois de
emergir do barco, Utnapishtim faz uma oferenda de agradecimento, e
Enlil promete que nenhum dilúvio tornará a destruir o mundo. A seguir,
Utnapishtim e sua esposa recebem uma bênção de Enlil.
Os gregos lembravam-se de três dilúvios: o dilúvio que destruiu a
Atlântida, o dilúvio de Deucalião e Pirra e o dilúvio de Ógiges. A
respeito do cataclisma que destruiu a Atlântida só temos o relato de
Platão; dos últimos dilúvios subsistem diversas versões.
Consoante o mito grego, Deucalião era filho de Prometeu; desposou
sua prima Pirra, filha de Epimeteu e Pandora. Quando Zeus decidiu
destruir a raça humana (a Raça de Bronze de Hesíodo, violenta e
corrupta), Prometeu aconselhou Deucalião a construir uma caixa e
aparelhá-Ia com as necessidades da vida. Nela, Deucalião e Pirra
sobreviveram, enquanto o resto da humanidade perecia. A versão
mais amplamente lida do dilúvio de Deucalião talvez seja a de Ovídio:
A uma ordem sua, as bocas das fontes se abriram Atirando ao mar as
águas das montanhas. Sob o golpe do tridente de Netuno a terra
tremeu, E abriu-se o caminho para um mar de água:
Outras Catástrofes
Vocês irão para certo lugar. O seu Kopavi (centro vibratório no topo da
cabeça) os conduzirá. Essa sabedoria interior lhes dará a vista para
ver determinada nuvem, que vocês seguirão durante o dia, e
determinada estrela, que seguirão durante a noite. Não levem nada
consigo. A sua jornada só terminará quando a nuvem parar e a estrela
parar. ...
Quando estavam todos seguros e instalados, Taiowa ordenou a
Sótuknang que destruísse o mundo. Sótuknang destruiu-o pelo fogo,
porque o Clã do Fogo havia sido o seu chefe. Fez chover fogo sobre
ele. Abriu os vulcões. O fogo veio de cima, de baixo, e de todos os
lados, até que a terra, as águas, o ar, tudo se tornou num só
elemento, o fogo, e nada sobrou a não ser o povo seguro no ventre da
terra.
O relato hopi da segunda destruição do mundo contém uma descrição
do início de uma Idade do Gelo:
Esperando o Milênio
Se bem que a expectativa de convulsões cósmicas e miséria humana
sem precedentes, conducentes ao retorno do Paraíso, seja quase
universal, as profecias mais familiares aos ocidentais são as da
tradição messiânica judaico-cristã. Com suas poderosas imagens de
um apocalipse futuro e do alvorecer de uma idade de paz, a tradição
profética no Ocidente modelou não só a religião, mas também os
movimentos sociais e literários.
Predisseram sistematicamente os profetas hebreus que, após uma
grande catástrofe cósmica, que, ao mesmo tempo, poria em
debandada os pagãos e purificaria o restante dos Filhos de Israel, os
justos voltariam a reunir-se na terra de seus pais e Deus habitaria
entre eles como governante e juiz.
Floririam os desertos; a Luz brilharia como o Sol, e o resplendor do
Sol aumentaria sete vezes; haveria grande cópia de todo o tipo de
alimentos; a doença e a tristeza desapareceriam; as pessoas viveriam
em alegria e paz perpétuas.
Foi, mais ou menos, ao tempo do declínio da sua nação, iniciado no
século VIII a.C., que os profetas hebreus começaram a profetizar que
a restauração do Paraíso dependeria do aparecimento de um herói
milagroso, o Messias. Embora fosse, a princípio, encarado como um
poderoso monarca da descendência de Davi, que levaria o seu povo à
vitória e à prosperidade, o Messias, mais tarde, foi retratado, em
termos sobre-humanos, como Filho do Homem, que apareceria
cavalgando as nuvens no Céu.
De acordo com o Apocalipse de Baruque, siríaco, composto no século
I d.C., o Messias só virá depois de um período de terríveis
atribulações, no tempo do último e do mais opressor dos impérios.
Destruirá o inimigo, aprisionando-lhe o chefe e levando-o,
acorrentado, ao cume do monte Sião. O Messias inaugurará um reino
de paz e uma idade de bem-aventurança, em que a fome, a dor, a
violência e, finalmente, a própria morte serão abolidas. Compelidos
pelo fascínio da crença no advento iminente do rei-salvador, os judeus
moveram a sua guerra suicida contra os romanos, que terminou com a
captura de Jerusalém e a destruição do Templo no ano 70 d.C.
Muitos cristãos primitivos interpretaram os ditos de Jesus segundo a
escatologia messiânica judaica então corrente, acreditado que o seu
advento prognosticava um fim rápido e cataclísmico de todas as
coisas. Suas profecias, vazadas na mesma linguagem da literatura
apocalíptica do tempo, pouco fizeram para diminuir tais expectativas:
A Grande Purificação
O pensamento apocalíptico não é, de maneira alguma, único nas
religiões escriturais. Povos tribais, em todas as partes do mundo,
preservaram suas próprias tradições não escritas falando do fim
eventual do mundo presente, que será seguido pela restauração do
Paraíso original.
No correr dos últimos séculos, as antigas crenças indígenas foram
aumentadas e transformadas pelo contato com missionários, e
centenas de novos movimentos religiosos tribais - não raro de caráter
dramaticamente escatológico apareceram. Embora seja, às vezes,
difícil para os antropólogos distinguir entre elementos indígenas e
elementos emprestados nas novas religiões, em quase todos os casos
os próprios povos tribais acreditavam que suas profecias - antigas ou
recentes - estão sendo cumpridas por acontecimentos que cercam a
colisão de suas culturas, relativamente pequenas e indefesas, com o
momento gargantuesco da civilização. É como se o mundo estivesse
sendo despedaçado por forças sobrenaturais que preparassem o
cenário para uma destruição universal final e o aparecimento de um
modo de ser inteiramente novo. Em muitos casos, as convulsões
culturais, que os povos tribais experimentaram durante os
últimos séculos, parecem apenas confirmar as antigas profecias de
um tempo em que os seres humanos se tornariam tão cúpidos que os
deuses os destruiriam para dar lugar a uma nova Criação.
Quetzalcoatl, a Serpente emplumada e deus civilizador dos toltecas,
foi associado ao planeta Vênus e considerado o deus da magia
CAPÍTULO 7
O Paraíso como Força na Cultura Humana
... A Idade de Ouro, o mais improvável de todos os sonhos que já
existiram, mas o único pelo qual os homens deram a vida e toda a sua
força, pelo qual profetas morreram e foram mortos, sem o qual os
povos não querem viver e não podem sequer morrer!
Fiódor Dostoievski
O Paraíso na Literatura
A literatura, como todas as formas de arte, geralmente se avalia
criticamente em função da sutileza ou delicadeza com que é
trabalhada. Mas somente as considerações formais pouco explicam
por que um poema ou um romance alcançam a imortalidade ao
mesmo tempo que outros caem no esquecimento. Um guia mais
seguro para chegar à força da literatura é a sua capacidade de evocar
e satisfazer anseios arque típicos universais.
Confirmam essa maneira de ver os descobrimentos de uma escola
relativamente nova de análise literária, conhecida como crítica arque
típica ou mítica. Seus pioneiros, Maud Bodkin (autora de Archetypal
Patterns in Poetry) e Northrop Frye (autor de Anatomy of Criticism),
não procuraram a fonte da atração universal da literatura na forma ou
no conteúdo por si só, mas nos padrões universais de imagens e
narrativa, como os que modelaram os mitos e rituais antigos. E os
padrões encontrados pelos críticos míticos saltam quase todos das
imagens do Paraíso e de sua perda, ou da busca heróica da sua
renovação. Em seus estudos minudentes e eruditos, os críticos
míticos mostraram que grande parte da maior e mais profundamente
comovente literatura da história deve seu poder de inspiração ao mito
paradisíaco.
O tema do Paraíso na literatura é tão vasto que não podemos esperar
fazer-lhe justiça numas poucas páginas. A única solução é limitar o
âmbito do nosso estudo, e, por conseguinte, escolhi um pequeno
núcleo de exemplos tirados das literaturas européia e americana.
A divina comédia de Dante Alighieri (1265-1321) é geralmente
considerada a maior obra literária singular escrita em língua italiana.
Poema épico de três grandes divisões - o Inferno, o Purgatório e o
Paraíso - descreve a jornada imaginária de Dante, através do inferno e
do tormento do pecado, para a montanha do purgatório, onde as
almas lutam para aprender a virtude. Dali, Beatriz - em que Dante
personificou a iluminação do outro mundo - conduz o poeta, através
de nove céus, ao Empíreo, oniabrangente e ilimitado, onde lhe é
consentida uma breve visão do próprio Deus:
Vocês vão indo agora, disseram eles, para o paraíso de Deus, no qual
verão árvore da Vida, e comerão dos frutos dela, que nunca murcham:
e, quando chegarem lá, ser-lhes-ão dados mantos brancos, e os seus
passeios e discursos serão todos os dias com o Rei, até todos os dias
da eternidade. ... Naquele lugar vocês usarão coroas de ouro, e fruirão
da vista e da visão perpétuas do Santo: pois ali "o verão como ele é".
O Poder do Exemplo
Enquanto alguns utopistas tentaram modificar a sociedade, através de
uma revolução, de um plebiscito, ou de uma reforma, outros optaram
pelo caminho tranqüilo de construir o modelo de uma comunidade
ideal na esperança de influenciar o resto do mundo pelo exemplo.
Distanciando-se da sociedade, esses experimentadores abriram para
si mesmos a possibilidade de perseguir ideais muito mais radicais do
que os que qualquer nação moderna poderia ser persuadida a aceitar
voluntariamente. Ao passo que muitas comunidades buscaram uma
experiência religiosa partilhada, através da contemplação e da
meditação, outras se arvoraram em defensoras da igualdade dos
sexos e das cores, e da abolição da propriedade privada ou das
instituições da monogamia e do casamento. Ao mesmo tempo que
algumas tentaram atingir um modo de vida mais natural por intermédio
do nudismo ou do vegetarianismo, outras deram ênfase à não-
violência ou ao desenvolvimento do caráter pelo trabalho e pela
escrupulosa habilidade do artífice. De um modo ou de outro, explícita
ou implicitamente, cada uma dessas experiências procurou realizar
algum aspecto da visão arquetípica do Paraíso.
Um dos primeiros experimentos sociais comunais de que se tem
conhecimento foi a comunidade pitagórica, estabelecida no século VI
a.C., em Crotona, no calcanhar da bota italiana. Além de ser um
instituto de educação e uma academia de ciências, a escola de
Pitágoras era uma cidadezinha-modelo, governada pelo Conselho dos
Trezentos, uma espécie de ordem política, científica e religiosa,
composta de iniciados, e cujo chefe reconhecido era o próprio
Pitágoras. A, Ordem Pitagórica, que tinha por meta a iniciação de uma
nova Idade de Ouro, de sabedoria e paz, foi tão bem-sucedida em
governar que logrou o controle de quase todas as colônias gregas
ocidentais. Onde quer que aparecessem Pitágoras e suas sociedades,
a ordem e a concórdia se seguiam. Entretanto, por volta do ano 500
a.C., um homem chamado Cilão, expulso da escola de Crotona,
organizou uma malta a cujas mãos morreram Pitágoras e quarenta
líderes da Ordem. A própria Ordem sobreviveu por mais dois séculos
antes de desaparecer.
Mais ou menos na mesma época, na Índia, Gautama Buda e seus
discípulos - os quais, por ocasião de sua morte, perfaziam o total de
1.200, de ambos os sexos e de todas as castas - estavam criando
uma espécie de aldeia nômade utópica. Na estação chuvosa,
permaneciam num lugar, ouvindo as palestras de Gautama e
estudando, mas, no resto do ano, seguiam o mestre em suas viagens.
O propósito de Buda e dos seus seguidores, no dizer de Nasaru, era
"produzir em todo homem uma transformação interna completa pela
autocultura e pela vitória sobre si mesmo". Se o Buda pudesse ser
qualificado de utópico, pertenceria, claramente, à escola de Zenão.
Após a morte do Buda, a comunidade continuou e formou a base do
monarquismo budista. Os monges budistas foram os grandes
civilizadores da China e do sudeste da Ásia: dirigiram o povo na
transformação de regiões incultas em arrozais, na produção da arte, e
no desenvolvimento da medicina, da ciência e da educação.
Os essênios, irmandade religiosa que floresceu na Palestina por volta
do século II a.C., até o fim do primeiro século d.C., tinham todas as
propriedades em comum, faziam refeições juntos, em silêncio, e
levavam vidas ascéticas de pureza ritualística, fora da sociedade.
Como os pitagóricos, os essênios só admitiam os que se haviam
qualificado mediante um processo de iniciação. O seu estilo de vida
comunal foi exemplo para o de mosteiros cristãos ulteriores, o primeiro
dos quais fundado pelo asceta Pacômio, da Tabaida.
A partir do começo do século V, surgiram mosteiros por toda a
Cristandade. Com o declínio do império romano, surgiram crises
sociais de todo o gênero; paradoxalmente, embora fosse responsável
pela destruição e supressão do antigo conhecimento espiritual e
científico, a Igreja, de vez em quando, atuava também como
preservadora. No mosteiro medieval, escreviam-se e copiavam-se
livros, desenvolviam-se e mantinham-se ofícios e inventavam-se
novas tecnologias. Os monges abriam escolas, distribuíam comida
aos pobres e mercadejavam. Toda essa atividade era uma articulação
do anseio do Paraíso: assim como os jardins murados dos monges se
destinavam a relembrar o Jardim do Éden original, as catedrais e suas
torres, que eles ajudavam a construir, destinavam-se a encarnar uma
visão da celestial Cidade da Revelação.
A América Utópica
Como já vimos, desde o tempo do seu descobrimento, e durante o
período da sua colonização, a América foi objeto dos anelos
paradisíacos de todo o mundo ocidental. Foi também a sede de vários
experimentos comunais, em sua maioria de natureza religiosa, como
as comunidades de Bruderhof - os menonistas e suas derivações
subseqüentes, os huteritas e amish - e os quacres, os shakers e os
mórmons. Todos esses grupos davam valor ao trabalho aturado e à
simplicidade do estilo de vida. Ao passo que alguns floresciam apenas
por alguns decênios, outros continuam a existir. Os amish da
Pensilvânia, por exemplo, evitam a tecnologia agrícola moderna, com
seus equipamentos caros e suas substâncias químicas, e, apesar
disso, figuram entre os lavradores mais bem-sucedidos da América.
Mas nem todas as comunidades experimentais americanas tinham
base religiosa. No correr do século XIX, muitas das mais de 150
comunidades cooperativas, fundadas na América, foram tentativas de
provar as teorias sociais dos teóricos utópicos europeus Robert Owen
e Charles Fourier.
Em seu livro A New View of Society, or Essays on the Principle of the
Formation of the Human Character, o socialista britânico Owen
enunciou a teoria de que o caráter é formado por influências
ambientais desde os primeiros anos da infância. Uma sociedade
perfeita, por conseguinte, deve começar com uma educação
esclarecida. Owen advogava a subordinação das máquinas ao homem
e o estabelecimento de aldeias de "unidade e cooperação", de cerca
de 1.200 pessoas cada uma, em que a competição seria eliminada e
as pessoas estariam livres para aprimorar-se física, mental e
moralmente.
Em 1825, Owen veio para a América com o propósito de pôr à prova
suas teorias. Adquiriu o local de um experimento comunal anterior,
Harmonie (comunidade religiosa fundada em 1815 por George Rapp),
que lhe chegou às mãos completo, com uma cidade de 160 casas, um
forno de tijolos refratários, e moinhos, vinhedos, e fábricas. Owen
dirigiu-se então ao Congresso dos Estados Unidos, descrevendo suas
teorias de reforma educacional e industrial e abrindo a comunidade de
New Harmony a membros em perspectiva. Estes acudiram às
centenas. Posto que os respondentes ao apelo de Owen formassem
um grupo heterogêneo - consiste em idealistas e estudiosos, com não
poucos fanáticos, mandriões e trapaceiros - a vida em New Harmony,
durante algum tempo, foi idílica. Concertos, danças, discussões e
conferências animavam o tempo de lazer dos habitantes. Um poema
owenita expressava-lhes a visão paradisíaca partilhada:
Aconteceu Realmente?
Seria a história sagrada uma história fatual? Houve uma verdadeira
Idade de Ouro, houve uma Queda, e as catástrofes globais ocorreram
dentro da esfera da memória humana? Na Primeira Parte analisamos
certo tipo de evidência - a da mitologia comparada - a qual, em virtude
da sua coerência peculiar de cultura para cultura, sugere, pelo menos,
a possibilidade de um Paraíso histórico. Mas poucos de nós
baseamos nossas idéias do passado na mitologia. Que outra
evidência existe, e o que nos conta ela?
Talvez a melhor maneira de provar a realidade da Ida de de Ouro seja
desvelar a evidência arqueológica inequívo ca - ruínas de cidades de
cristal, com ruas de ouro juncadas de restos de deusas e deuses,
cujos corpos, milagrosamente preservados, ainda desprendem
lampejos de luz. Não manterei o leitor na expectativa: não se
descobriram cidades assim. Mas que podemos realisticamente
esperar encontrar? O que os arqueólogos já acharam? Os seus
descobrimentos descartam ou sustentam uma interpretação
paradisíaca da história?
Embora os artefatos físicos sejam importantes como evidência, não
são os únicos vestígios não-mitológicos de uma Idade de Ouro que
podemos esperar descobrir. É possível investigar também a existência
de artefatos culturais. Poderiam sobreviver, em qualquer cultura do
mundo, aspectos de um modo de vida original, paradisíaco? Sugerem,
acaso, os estudos antropológicos de sociedades "primitivas" , por
exemplo, que elas, de certo modo, são remanescentes de um
Éden pré-histórico?
Toda investigação da relação entre o mito e a história abre um campo
de idéias a um só tempo sagradas e seculares a respeito do passado
para serem reavaliadas, de sorte que o assunto que estamos
examinando é sensível e controvertido. De todos os campos da
ciência, a paleoantropologia - estudo do que eram os seres humanos
no passado distante - é talvez o mais especulativo. Os gêneros de
dados crus que temos à mão podem, quase sempre, ser interpretados
de várias maneiras diferentes. Portanto, em nosso estudo da
evidência de um Paraíso histórico, levaremos em conta tantas
opiniões divergentes quanto possível. E embora comecemos com um
olhar dirigido ao que os arqueólogos mais tradicionais dizem sobre a
possibilidade de uma Idade de Ouro passada, levaremos em conta
outrossim opiniões que, encaradas do ponto de vista do atual
consenso científico, são rematadas heresias.
A Arqueologia Bíblica
Os arqueólogos relutam geralmente em fazer uso de fontes míticas
como guia da pesquisa. Entretanto, graças à sua imensa
popularidade, uma peça da literatura antiga - a Bíblia - revelou-se uma
exceção a essa regra não escrita. Arqueólogos bíblicos de meia dúzia
de países vêm fazendo escavações por todo o Oriente Próximo há
mais de um século, e muitos achados significativos têm resultado das
suas investigações o descobrimento dos muros de Jericó, a
escavação das cavalariças de Salomão em Megido e a descoberta
dos textos de Nag Hammadi e dos rolos do Mar Morto, para citarmos
apenas alguns. Esses achados confirmaram repetidamente a
historicidade dos eventos e personagens, tanto do Antigo quanto
do Novo Testamento. De acordo com o especialista em Bíblia de
Harvard, William F. Albright: "A arqueologia... corroborou finalmente a
tradição bíblica de maneira não incerta." Uma vez que os arqueólogos
investigaram quase todos os sítios nomeados na Bíblia, poder-se-ia
esperar que a primeira localização geográfica mencionada no Gênesis
- o jardim do Éden - fornecesse descobertas importantes. Não é esse
o caso, porém, e não é difícil ver por que os arqueólogos voltam de
mãos vazias. Afinal de contas, que deveriam eles procurar? Não há
nada no Gênesis que nos autorize a presumir que Adão e Eva
deixaram para trás paredes, cerâmica, ou até alguns instrumentos. A
recuperação de artefatos edênicos está quase totalmente fora de
cogitação; o mais que podemos esperar fazer é localizar o próprio sítio
com base em qualquer indício proporcionado pelo Gênesis. Mas até
isso é problemático. Descreve-se a situação geográfica do jardim
apenas em função de quatro rios:
O Paraíso Paleolítico
Eisler e Stevens são de opinião que a Idade de Ouro continuou até
cerca de 5.000 anos atrás (e, segundo Eisler, em Creta até 3.500 anos
atrás). Sahlins, Harris e Diamond diriam que o Paraíso terminou com a
invenção da agricultura por volta de 10.000 anos atrás, mas que
algumas tribos primitivas persistiram no estado "de ouro" até o
presente.
O estudo comparado da mitologia apresenta um fato importante, que
nos obriga a reconsiderar ambas as opiniões. Como já vimos, os mitos
do Paraíso não se restringem aos povos agrícolas; tribos de
colhedores e caçadores também têm histórias de uma Idade da
Inocência original. Se a Queda se referisse à primeira aparição da
agricultura ou a eventos subseqüentes, a presença dos mitos do
Paraíso entre povos pré-agrícolas seria inexplicável. O fato de
manterem os colhedores de alimentos suas próprias versões da
história do Paraíso dá a entender que a linha divisória espiritual,
relembrada como a Queda, deve ter ocorrido antes do
desenvolvimento da agricultura - e, por conseqüência, antes
dos primórdios da sociedade horticultural descrita por Eisler
e Stevens. A sociedade pacífica da Velha Europa talvez representasse
a sobrevivência de alguns aspectos de um tempo anterior, e até mais
feliz, precisamente como as poucas sociedades de colheita e caça
ainda fazem, à sua maneira.
Mas se a Idade de Ouro floresceu antes do advento da cultura da
Velha Europa e do desenvolvimento da agricultura, deve ter existido
no período paleolítico, ou Velha Idade da Pedra. Esse período, que se
estendeu (segundo a maioria dos paleoantropólogos) de cerca de
500.000 anos até por volta de 12.000 anos atrás, é um mistério quase
completo.
Segundo Stanley Diamond:
Atlântida e Mu
Como vimos no Capítulo 3, os mitos de muitas culturas descrevem a
perda da pátria paradisíaca como um continente ora afundado, e a
descrição da Atlântida de PIatão parece repetir a história da Idade de
Ouro escrita por Hesíodo. Localizava-se, pois, o Jardim do Éden, onde
agora só existe o oceano?
Embora o assunto da Atlântida esteja fora dos limites das academias
institucionais, alguns pesquisadores capazes encontraram uma prova
geológica, arqueológica e antropológica plausível da existência
anterior de pelo menos um continente recém-submerso. O dr. M.
Klionova, da URSS, relatou, em 1963, que rochas extraídas de uma
profundidade de 6.600 pés a sessenta milhas ao norte dos Açores,
mostraram ter sido expostas à atmosfera uns 17.000 anos antes.
Encontrou-se areia de praia - que só se forma ao longo de linhas da
costa - a uma profundidade de milhares de pés na parte do Atlântico
situado entre a América e a Inglaterra, e sedimentos na Crista do
Atlântico Médio revelam remanescentes de plantas de água doce, o
que prova que a crista, em outro tempo, estava acima do nível do mar.
Em 1975, explorando a Crista do Atlântico Médio, cientistas marinhos
encontraram fósseis e pedras calcárias que continham quantidades
substanciais de água de chuva, o que indica, mais uma vez, que a
crista, antigamente, se erguia acima da superfície. E, em todos os
oceanos do mundo há indícios de que, 11.500 anos atrás, mais ou
menos, súbito fluxo de água gelada forçou criaturas do fundo do mar a
se adaptarem tão depressa que formaram uma linha de tempo fóssil
para classificar núcleos sedimentares. Os teóricos da Atlântida
insistem em que esse fluxo gelado foi o dilúvio que destruiu o
continente mítico.
Achados arqueológicos, possivelmente relacionados com a Atlântida,
foram encontrados do outro lado do Estreito da Flórida, entre Miami e
a ilha de Bimini, longe da Crista do Atlântico Médio. Desde 1956,
diversos grupos de exploradores avistaram e fotografaram artefatos
submersos, incluindo colunas com caneluras, uma rua, a possível
plataforma de um templo, e uma cabeça estilizada de mármore.
Para o coronel James Churchward, aventureiro inveterado e autor do
livro controvertido The Lost Continent of Mu (1931), a história do
Jardim do Éden não era uma lembrança deturpada da Atlântida, mas
da vida idílica da espécie humana em Mu, continente afundado no
Oceano Pacífico. Provas descobertas desde o tempo de Churchward
deram-lhe à teoria - que se fundava em suas traduções de tabuinhas
da Índia e do México - um apoio intrigante. O cientista soviético V. V.
Belousov escreve em The Geological Structure of the Oceans: "Pode-
se afirmar que, muito recentemente, em parte até na idade do homem,
o Oceano Pacífico cresceu consideravelmente à custa de grandes
pedaços de continentes, os quais, juntamente com suas jovens
cadeias de montanhas, foram inundados por ele. Os cumes dessas
montanhas vêem-se nas grinaldas de ilhas da Ásia Oriental." E
George H. Cronwell, num ensaio apresentado no Décimo Congresso
Mundial do Pacífico, fez menção da descoberta de carvão e flora
antiga na Ilha Rapa (a sudoeste da Ilha Mangareva), "que enseja
testemunho irrefutável de que houve um continente naquela parte do
oceano".
Segundo Platão, a destruição da Atlântida verificou-se por volta de
10.000 a.C. Essa data aproximada aparece também nos escritos de
povos antigos do outro lado do Atlântico. O erudito meso-americano
do século XIX, Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, como o seu
sucessor Augustus Le Plongeon, leu em documentos maias primitivos
relatos, ou coisa que o valha, de uma pátria ilhoa oceânica destruída
numa grande convulsão terrestre. De acordo com Brasseur de
Bourbourg e Le Plongeon, o Codex Troano maia fixa a data do
cataclisma em 9937 a.C.
Como observamos antes, geólogos e paleontólogos datam o fim da
época plistocênica e o princípio da holocênica, em que ora vivemos,
aproximadamente no ano 10.000 a.C. Foi então que a última grande
Idade do Gelo terminou, os níveis dos mares mudaram, e ocorreram
extinções muito difundidas da flora e da fauna. Os cientistas,
outrossim, de um modo geral, não concordam sobre a causa de todos
esses eventos; cada um deles é considerado um mistério. Claro está
que os proponentes da hipótese dos continentes perdidos dizem que o
dilúvio, as mudanças climáticas e as extinções resultaram do
cataclisma que destruiu Atlântida e/ou Mu.
A evidência geológica e arqueológica da existência de Mu e da
Atlântida é inconcludente. Durante treze anos de exploração, o dr.
Maurice Ewing, da Universidade de Columbia, não encontrou sinais de
cidades perdidas na Crista do Atlântico Médio. Mas, como assinala
Ralph Franklin Walworth: "Localizar pequenos fragmentos de uma
cidade sepultada debaixo de jardas de lodo e vasa naquelas
condições é o mesmo que tentar localizar uma arrasada e sepulta
Peoria, em Illinois, cruzando o meio-oeste, numa noite nevoenta e
carregada de nuvens, a bordo de um dirigível, arrastando uma câmara
fotográfica, presa na ponta de uma corda de três milhas de
comprimento." O fato é que ainda não temos dados geológicos e
arqueológicos suficientes para confirmar ou eliminar a hipótese dos
continentes perdidos.
A evidência antropológica da existência da Atlântida e de Mu é
igualmente inconcludente, embora tantalizante. A idéia de uma fonte
desaparecida de cultura humana pareceria extravagante e
desnecessária se pudéssemos remontar às origens humanas na base
de suposições ortodoxas e dados disponíveis, mas este não é o caso.
Existem imensas lacunas em nossa compreensão. Escreve o
antropólogo J. B. Birdsell: "A terra de origem dos tipos vivos de
populações modernas continua desconhecida. O seu aparecimento
em áreas marginais, como a Austrália... apresenta problema reais que
os dados existentes não podem resolver." E, de acordo com outro
antropólogo, Björn Kurtén:
Anomalias Arqueológicas
As anomalias são fenômenos que não podem ser explicados pelas
teorias científicas atuais. Por razões óbvias, a maioria dos defensores
do status quo na ciência sente-se mal diante das anomalias e,
freqüentemente, lhes nega a existência ou tenta racionalizá-Ias. Os
hereges científicos, porém, amam as anomalias, coligem-nas, e
chamam a atenção para elas sempre que podem fazê-Io.
Como o filósofo da ciência, Thomas Kuhn, assinalou, é o acúmulo de
anomalias que acaba forçando o abandono de velhos paradigmas
científicos e a instalação de novos. Este foi o caso, por exemplo, no
princípio do século XIX, quando as autoridades científicas do dia
sustentavam a crença de que os meteoros não podem cair do céu
porque, para começar, no céu não há pedras. Relatos difundidos da
queda de meteoros eram então considerados praticamente como o
são hoje as visões de OVNI’s. Mas depois que um número suficiente
de pedras caiu - e depois de ter sido visto por milhares de pessoas,
incluindo cientistas - o baluarte das autoridades da negação
simplesmente desabou.
As anomalias são definidas pela natureza das teorias atualmente
adotadas; o que é anômalo para uma teoria pode ser aceitável para
outra. Há três décadas, na América, toda prova geológica da corrente
continental era considerada anômala. Hoje em dia, qualquer evidência
que contestasse a teoria da corrente continental seria reconhecida
como anômala.
Na arqueologia e na antropologia, o paradigma atual - que reinou por
mais de um século - é que a cultura humana evolveu
unidirecionalmente do "primitivo" para o "avançado". Qualquer
evidência que contradiga este ponto de vista, por definição, é uma
anomalia. Neste caso, as anomalias são legião. Em cada continente
há terraplenagens, artefatos e remanescentes humanos que não se
enquadram no paradigma atual porque são demasiado velhos,
demasiado avançados, ou simplesmente porque estão no lugar
errado. Assim, por exemplo, encontraram-se na América artefatos e
restos humanos de dezenas de milhares de anos, velhos demais para
se ajustarem às teorias atuais sobre como e quando o Novo Mundo foi
habitado pela primeira vez. Objetos obviamente feitos por humanos
têm sido descobertos encerrados em pedaços sólidos de carvão ou de
pedra. Poderíamos estender-nos indefinidamente; há tantas anomalias
desse gênero, de fato, que alguns cientistas gastam toda a sua
carreira coligindo-as e estudando-as.
Os estudiosos de anomalias arqueológicas notam, com freqüência, a
existência de um modelo peculiar. Para onde quer que olhemos, as
realizações científicas, artísticas e de engenharia dos antigos parecem
ter alcançado o auge muito cedo, tendo, em seguida, sofrido um
declínio. Na Bretanha, os romanos construíram estradas sobre um
pavimento muito mais antigo, de origem desconhecida, mas, não raro,
de construção superior; na América, os esquimós estiveram, outrora,
familiarizados com trabalhos em metal, mas parecem ter sido, mais
tarde, separados da origem da sua cultura referente ao metal; e, no
Egito, algumas das primeiras pirâmides mostram maior habilidade de
engenharia e consecução científica do que os monumentos de
qualquer dinastia ulterior.
Muitas obras da alvenaria ciclópica de sítios na América, na Europa e
na Ásia, de idade e proveniência desconhecidas, dão testemunho de
uma habilidade e de uma força impressionantes. O famoso muro de
Sacsayhuaman, no Peru, por exemplo, consiste em blocos de pedra
que, em alguns casos, pesam centenas de toneladas, ajustados com
uma precisão muito maior do que a que encontramos na maioria das
estruturas de pedra modernas. Num caso depois do outro, os
remanescentes mais velhos de pedra são os mais grandiosos e os
mais perfeitamente executados; em confronto com eles, o que veio
depois não passou de imitações grosseiras.
Com base nessa evidência, diversos arqueólogos e historiadores
independentes foram levados a contestar a opinião ortodoxa de que a
espécie humana evolveu uniformemente a partir de um estado de
barbarismo nos últimos 10.000 anos, e concluíram, em vez disso, que
a nossa atual civilização deve ter começado no início de uma descida
de um cume anterior. Por exemplo, depois de estudar, durante vinte
anos, os monumentos do antigo Egito em primeira mão, o filósofo e
matemático alsaciano R. A. Schwaller de Lubicz concluiu que a
ciência, a medicina, a matemática e a astronomia egípcias estavam
muito mais adiantadas do que o admitiram os egiptólogos modernos.
Afiançou De Lubicz que todas as realizações daquela civilização
fluíam de uma filosofia profunda das relações recíprocas entre os
números, a geometria e o espírito humano - filosofia inacessível aos
egiptólogos modernos por sua incapacidade de seguir antigos estilos
de pensamento. Além disso, concluiu que, visto revelarem esses
textos e monumentos primitivos tal filosofia em sua forma mais pura, a
civilização egípcia deve ter sido um legado de alguma cultura anterior,
até mais adiantada. De Lubicz identificou a cultura anterior, perdida,
com as lendas da Atlântida e da Idade de Ouro.
Em seus livros populares, City of Revelation e The New View over
Atlantis, o historiador John Michell argumentou, similarmente, que
misteriosos monumentos pré-históricos em todo o mundo "foram
projetados de acordo com um plano de proporção, em unidades de
mensuração idênticas em toda a parte". Estas, afirma Michell, são
"relíquias de uma ciência elementar anterior, baseada em princípios
que agora ignoramos". Em The New View over Atlantis, ele propõe
que:
CAPÍTULO 9
O Paraíso como Metáfora
Porque os princípios que fundamentam o universo são, em toda a
parte, os mesmos, a analogia é um meio mais exato, e, ao cabo de
contas, mais "científico” para chegar à compreensão de fenômenos do
que a simples mensuração. Por isso, todos os ensinamentos sagrados
utilizam paráboIas, analogias, mitos e símbolos em lugar de fatos. Os
fatos não ajudam a compreensão.
John Anthony West
O Sexo e a Queda
A maioria dos estudiosos no mito do Paraíso restringiu sua atenção a
uma única versão, a história do Éden no Gênesis. Sem dúvida
alguma, o maior corpo de comentários sobre as imagens paradisíacas
não foi gerado por folcloristas, mas por exegetas judeus-cristãos.
Os primeiros padres da Igreja se preocupavam com o simbolismo do
Éden. Fílon, o Judeu, que viveu em Alexandria no século I, descreveu
os frutos do Jardim como as virtudes da alma, e a atividade do Jardim
como a observância dos mandamentos divinos. Os quatro rios eram
as quatro virtudes da prudência, do domínio de si mesmo, da coragem
e da justiça. Nesse ínterim, Orígenes, Irineu e Cipriano, que viveram
nos séculos II e III, interpretam o relato do Gênesis da vida no Éden
como uma descrição da Igreja antes do crime, interpretação adotada,
mais tarde, por Agostinho: "O Paraíso é a Igreja; os quatros rios do
Paraíso são os quatro evangelhos; as árvores frutíferas, os santos e o
fruto, suas obras; a árvore da vida é o santo dos santos, Cristo”.
Para os primeiros teólogos cristãos, o símbolo mais significativo da
história foi o fruto proibido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. O
padre da Igreja grega do século IV, Atanásio, referiu que, enquanto
alguns contemporâneos presumiam que o fruto havia sido um figo,
outros sustentavam que se tratava de um fruto "espiritual" - algum
pensamento ou atitude importante. Ele notou, contudo, a existência de
um terceiro grupo, cujos membros viam no fruto proibido o encanto
sexual de Eva. Foi essa última interpretação que teve a influência
mais penetrante e duradouro.
Antes da Queda, o casal original andava nu e não conhecia a
vergonha; mas depois de comerem da árvore proibida, os dois se
advertiram, de repente, da sua nudez e confeccionaram aventais de
folha de figueira para se cobrirem. Pela primeira vez, experimentaram
a culpa e a vergonha. A história da perda da inocência no Jardim
primordial parece uma descrição da perda da inocência amiúde
experimentada por crianças ao atingirem a puberdade. Seguramente -
aos olhos de gerações de teólogos isso quer dizer que o próprio crime
dever ter tido alguma relação com o conhecimento do sexo.
A equiparação da Queda ao sexo pode ser atribuída, um século e
meio antes da era cristã, ao filósofo judeu Aristóbolo, para quem Adão
e Eva significavam a razão e a sensualidade, respectivamente, ao
mesmo tempo que a serpente representava o desejo sexual. Foi uma
corrente de pensamento que se mostrou irresistível a inúmeros
intérpretes cristãos subseqüentes (como, por exemplo, Clemente de
Alexandria e Ireneu, bispo de Lião) que concordaram em enxergar na
Queda uma união sexual. Ensinava São Jerônimo que, antes da
Queda, Adão e Eva eram "virgens no Paraíso", e que, portanto, "todo
o comércio sexual é imundo". O teólogo do século XVII Adrian
Beverland, em seu Original Sin [Pecado original], afiançava que a
maçã era o símbolo do amor sexual, e que a palvara arbor [árvore]
equivalia a membrum virile [órgão masculino]. A Queda não foi nem
mais nem menos que o descobrimento do sexo. O crime original foi
um ato de sedução, e toda a culpa cabe a Eva.
Mas se Eva, a primeira mulher e "mãe de todos os vivos", merecia ser
censurada pela perda do Paraíso, que tem isso a ver com todas as
outras mulheres subseqüentes e com a própria natureza, com a qual
Eva sempre foi identificada? Gerações de teólogos, interpretando o
Gênesis através dos olhos de Aristóbulo e Beverland, chegaram à
conclusão de que, visto haver a mulher, de acordo com a história,
iniciado a Queda, ela é, portanto, inerentemente má - uma tentadora
que precisa ser disciplinada e mortificada. Tertuliano, teólogo do
século III, talvez tenha atingido o ápice da misoginia quando escreveu:
E não sabeis que sois, cada uma de vós, uma Eva? A sentença de
Deus sobre o vosso sexo vive nesta idade: a culpa, por necessidade,
precisa viver também. Vós sois a porta do diabo; sois a desseladora
da árvore proibida; sois a primeira desertora da lei divina; vós sois
quem o persuadiu de que o diabo não era tão valente que se
atrevesse a atacar. Destruístes tão facilmente a imagem de Deus, o
homem.
O Complexo de Édipo
Sigmund Freud não publicou uma análise do mito do Paraíso. Nada
obstante, acreditava que as ilusões coletivas da humanidade "devem o
seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram da
repressão do passado esquecido e primevo". Essa "verdade histórica"
foi o drama edípico original, em que os filhos crescidos da era
paleolítica presumivelmente matavam os pais a fim de possuir as
mães. De acordo com o fundador da psicanálise, o grande crime pelo
qual a humanidade toda tem sofrido no transcorrer das idades não foi
o sexo por si mesmo, porém o assassínio motivado pela
concupiscência incestuosa.
Freud, provavelmente, teria equiparado o Paraíso com o período
anterior ao parricídio original. Esta, pelo menos, é a linha de
pensamento seguida por diversos seguidores seus. Em Myth and Guilt
[Mito e culpa], por exemplo, o analista freudiano Theodor Reik
interpretou a árvore sagrada como um totem arcaico e o crime de
Adão como matar e comer o pai/deus da tribo. Observando a
saturabilidade do culto da árvore nos tempos antigos, Reik asseverou
que a árvore não era o lar do deus, mas o próprio deus: "Não há
dúvida de que o deus dos hebreus foi outrora concebido como árvore
sagrada". De mais disso, ele identificou a árvore-deus com o pai da
tribo. O crime do Primeiro Povo consistiu em "comer da árvore" - isto
é, em matar e comer o “cabeça” da família primeva. Para Reik, o
parricídio canibalístico edípico é a origem de todos os tabus de
alimentos encontrados com tanta freqüência nas culturas primitivas. É
a verdadeira fonte do sentido patológico de culpa subseqüente da
humanidade.
Seria ocioso repetir aqui todos os argumentos pró e contra a teoria
edípica. Talvez seja suficiente notar que há pouca evidência
antropológica ou arqueológica que nos permita afirmar que o parricídio
foi, algum dia, difundido, e muito menos universal. Em que pese a isto,
os freudianos conseguiram interpretar virtualmente todos os aspectos
da cultura primitiva em função dessa teoria. Géza Róheim, por
exemplo, remata um artigo intitulado "As mulheres e a vida na
Austrália central" com o seguinte comentário: "Encontramos o
complexo de Édipo, transformado pela repressão em ansiedade, na
raiz de todas as suas crenças sobrenaturais". Expectativas teóricas,
quando mantidas com entusiasmo, tendem a confirmar-se na mente
do pesquisador, até mesmo na ausência de provas. Como comenta o
antropólogo W. E. H. Stanner (com referência específica à teoria
de Édipo): "A antropologia tem fornecido muitas provas de que a
suposição e o método podem dominar de tal maneira o esforço do
descobrimento que o verdadeiro descobrimento não é possível."
Para fazer justiça a Freud, no entanto, temos de notar que partes de
sua obra sugerem outra interpretação, puramente metafórica, da
história do Paraíso.
A Evolução da Consciência
Invertamos a analogia que traçamos no início da seção anterior e
substituamos o indivíduo pela humanidade. Será possível que a
humanidade como um todo tenha conhecido uma experiência relativa
ao desenvolvimento análoga à de toda criança? Terá a nossa espécie
conhecido uma infância paradisíaca coletiva e um desmame e
separação coletivas, em que a natureza desempenha a parte de Mãe
Universal? Será possível, em outras palavras, que o Paraíso e a
Queda sejam descrições alegorizadas dos primeiros estádios da
evolução da consciência humana coletiva?
A idéia remonta, pelo menos, a dois séculos. Immanuel Kant, em suas
Conjecturas sobre os Primórdios da História Humana, interpretou a
Queda como o atingimento da maioridade com o desenvolvimento da
razão e do livre-arbítrio. De maneira semelhante, Hegel via a história
como o processo, experimentado pelo espírito, do pleno
desenvolvimento de suas capacidades, ambições etc.: a natureza é o
espírito caído na matéria, e a evolução é o método do espírito para
libertar-se. O Paraíso, condição primordial anterior à descida do
espírito, destinava-se a ficar para trás. Friedrich Schiller, seguindo a
mesma corrente de pensamento, entendia ser a narrativa do Éden
contida no Gênesis um relato do modo com que a humanidade se
elevou da inconsciência para a razão. A desobediência do primeiro
casal em relação ao mandamento divino foi o afastamento inicial do
instinto, por parte da humanidade, um "passo gigantesco de
progresso". Schiller escreveu que:
A Mente Original
O estudo psicológico de estados alternados de consciência ainda está
na infância, mas já desvendou vasta fronteira. Sabemos agora que o
nível da percepção vigilante, que consideramos normal, é apenas
parte de uma série infinda de estados conscientes potenciais. Assim
como existem condições psicológicas subnormais, em que o indivíduo
é isolado, retirado e incapacitado de interagir com o ambiente ou de
funcionar efetivamente dentro dele, existem também estados
supranormais, em que o indivíduo atinge poderes e percepções
usualmente inacessíveis, de modo que o momento presente se torna
uma janela para a possibilidade ilimitada.
Já vimos que as qualidades de inocência e poder criativo,
universalmente atribuídas ao Primeiro Povo, não sugerem uma
condição psicológica infantil ou subnormal, mas uma condição
supernormal. Mas supernormal de que maneira? Tomados em
conjunto, poderão os antigos mitos e os achados da psicologia
moderna (particularmente a psicologia da religião e dos estados
alterados de consciência) dar-nos alguma idéia do que era realmente
a consciência paradisíaca?
Em 1901, o médico psiquiatra Richard Maurice Bucke publicou o seu
estudo clássico intitulado Cosmic Consciousness [Consciência
Cósmica], em que descreveu, em linhas gerais, as experiências de
cinqüenta homens e mulheres cuja vida era assinalada por um clarão
resplandecente de introvisão, seguido de um processo de
transformação interior. A consciência cósmica, de acordo com Bucke,
é "uma forma mais elevada de consciência do que a possuída pelo
homem comum". É "a consciência do cosmo, isto é, da vida e da
ordem do universo". Com isto vem uma "iluminação intelectual", uma
"exaltação moral, um sentimento indescritível de elevação, exaltação e
júbilo, e uma aceleração do sentido moral", juntamente com "um
sentido de imortalidade, uma consciência da vida eterna, não a
convicção de que a terá, mas a consciência de que já a tem". Em
1902, o psicólogo William James publicou outro estudo clássico ao
longo das mesmas linhas, The Varieties of Religious Experience [As
Variedades da Experiência Religiosa]. Confirmando a afirmação de
Bucke sobre a existência de condições de percepção tão
fundamentalmente diferentes da consciência desperta normal quanto
a última é diferente do sono, James tentou classificar os estados
místicos em níveis e categorias distintos. Segundo ele, todos têm duas
características em comum: a inefabilidade - ou seja, desafiam a
expressão, de modo que não se pode fazer com palavras nenhum
relato adequado do seu conteúdo; e uma qualidade noética - a saber,
eles parecem aos que os experimentam estados de conhecimento.
São, escreveu James, "estados de introvisão nas profundezas da
verdade, não sondados pelo intelecto discursivo".
Mais recentemente, em 1975, o psiquiatra Stanley Dean esboçou as
características do que ele denomina "ultraconsciência":
Visto que, ainda hoje, muitas pessoas sentem ter, pelo menos de vez
em quando, mas comunhão espiritual imediata com muitas espécies
de plantas e animais, é pouco provável que as mentes mais instáveis
dos nossos antepassados paradisíacos a tivessem menos. Com
efeito, eles podem ter tratado com consciências, em cuja própria
existência achamos difícil acreditar, e muito menos experimentar. Tais
consciências poderiam ter estado associadas - senão ligadas - a
fenômenos inorgânicos de toda a sorte, dos minerais a estrelas. Além
do mais, muitas tradições míticas concorrem no asseverar que, na
Idade de Ouro, os seres humanos se associavam, fácil e
freqüentemente, com seres desencarnados ou apenas
intermitentemente encarnados, que iam desde as apavorantes
divindades cósmicas até os espíritos locais brincalhões.
O Ego e a Queda
Como vimos no Capítulo 5, a despeito das numerosas descrições da
tragédia primeva da Queda, fornecidas pelas várias mitologias do
mundo, o evento retém um elemento de mistério. Se pudermos reunir
o mito e a psicologia para esclarecer a natureza do Paraíso,
poderemos fazer o mesmo com o evento principal que acabou
encerrando a Idade de Ouro?
Quase todas as religiões distinguem entre dois modos de ser, ou
condições de percepção fundamentais. Um dos modos caracteriza-se
pela ausência de necessidades e medos pessoais e pelo
reconhecimento da interligação de todas as coisas; expressa-se em
atitudes de responsabilidade, tranqüilidade, altruísmo e compaixão.
Essa condição se identifica, de um lado, com o objeto de toda a
devoção e prática religiosas, e, de outro, com o estado original da
humanidade no Paraíso. O segundo modo básico de ser consiste na
assunção da autonomia individual, proveniente de Deus e da
Natureza; expressa-se nas atitudes de carência, medo, arrogância,
dominação e censura. Como vimos, alguns psicólogos modernos,
assim como muitos filósofos religiosos, identificam esse modo de
consciência com o ego: quanto mais egocêntricos nos tornamos,
menores probabilidades temos de perceber e apreciar a base
unificada do ser, de que jorra toda a diversidade. Os mitos do Paraíso
e da Queda parecem estar-nos dizendo que a tragédia primeva
consistiu na transferência do foco da consciência humana coletiva da
condição de unicida de e participação para a de separação, ganância
e medo. A Queda, em suma, foi o aparecimento inicial do ego
humano.
A compreensão desses dois modos de ser essenciais é fundamental
não só para o mito e para a religião, mas também para a psicologia.
Todas as religiões do mundo, de um modo ou de outro, equiparam
virtualmente a presença do ego à ilusão, ao sofrimento e à morte, e
associam a experiência da unidade universal, ou união divina, à
liberação, à criatividade, à vida e à bem-aventurança. Descobrimentos
recentes em psicologia e medicina tendem a confirmar esses truísmos
religiosos. Experimentos médicos têm mostrado, consistentemente,
que as atitudes mentais e os estados emocionais exercem significativa
influência sobre a saúde. Os estados emocionais associados à
separação egoísta - cólera, culpa e sentimentos de isolamento -
tendem a reduzir os níveis das substâncias químicas do corpo que
servem de elevar o limiar da dor (endorfinas) e mantêm a imunidade à
infecção (imunoglobulinas). As emoções associadas à transferência
do ego - por exemplo, a empatia, o perdão e a educação produzem
níveis mais altos dessas substâncias químicas críticas do corpo.
Numa investigação, estudantes de universidade para os quais foi
exibido um filme da detentora do Prêmio Nobel da Paz, Irmã Teresa,
tratando de doentes e moribundos, em Calcutá, experimentaram
aumentos imediatos de imunoglobulina salivar. Tais descobrimentos
sugerem que, se houve uma idade de consciência mística partilhada,
deve ter havido igualmente um tempo de relativa saúde e ausência de
dor.
A equiparação da Queda com a origem do ego também ajuda a
esclarecer, e, por sua vez, é por ela esclarecida, a metáfora mítica do
fruto proibido. Como se observou no Capítulo 5, a história da ingestão
do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal pode ser vista como
uma alegoria que descreve o que acontece quando os seres humanos
permitem seja o seu comportamento governado por carências ou
medos obsessivos. Quando focalizamos egoisticamente nossa
atenção em nossos próprios desejos pessoais, tornamo-nos menos
sensíveis às necessidades dos modelos sociais e ecológicos mais
amplos à nossa volta. Visamos metas e produtos finais, mas não
fazemos caso das implicações mais extensas de nossos atos.
Chegamos a imaginar que nos é possível colher o fruto "bom" da
árvore e deixar o fruto "mau". Imaginamos, por exemplo, que podemos
continuar abatendo florestas para fazer lenha sem jamais desfalcá-Ias
de árvores. Porque a nossa absorção em nossas próprias carências
nos levou a não dar atenção aos efeitos inevitáveis dos nossos atos,
esses efeitos, quando se fazem sentir, parecem arbitrários e
imerecidos. Começamos a imaginar que estamos vivendo num mundo
hostil, o medo toma conta de nós, e os nossos sentimentos de
isolamento se intensificam.
O modo egóico de ser é hoje considerado tão inconteste por quase
todo o mundo que é amiúde equiparado à natureza humana. Tornou-
se parte do nosso direito hereditário, uma gaiola dentro da qual
nascemos e da qual ninguém - aparentemente - consegue escapar de
todo. Como vimos no Capítulo 9, alguns filósofos (incluindo Kant,
Hegel e Jung) sustentaram que o desenvolvimento do ego era uma
parte necssária da evolução humana. Os mitos insistem em
outra coisa. O argumento favorável à concepção mítica foi expresso,
com clareza e introvisão características, pelo filósofo Alan Watts em
seu Psychotherapy East and West [Psicoterapia no Oriente e no
Ocidente]:
A Sobrevivência do Milagroso
Como vimos no Capítulo 3, os mitos de todas as culturas descrevem o
Primeiro Tempo como uma idade de milagres e maravilhas em que as
pessoas refulgiam com sua luz e possuíam a capacidade de conversar
com animais e voar. Muitos intérpretes dos mitos do Paraíso deixam
de lado essas imagens por demasiado problemáticas. Para nós,
contudo, são pistas importantes. Como é que a nossa tese projeta luz
sobre a natureza e o significado de fenômenos milagrosos? E com
o que contribui para a compreensão do mito um estudo de poderes e
percepções paranormais?
Seria demasiado simples encarar os milagres do Primeiro Povo como
metáfora pura. Podemos ver a capacidade mágica de voar, por
exemplo, como metáfora da habilidade de obter acesso a níveis
transcendentes de consciência, e podemos enxergar a luminosidade
do Primeiro Povo como uma "luz interior", que Ihes permitia "ver" as
obras do Cosmo e da Natureza. Mas o estudo antropológico de povos
tribais e o estudo comparado de religiões sugere outra
possibilidade, mais intrigante: talvez as capacidades milagrosas do
Primeiro Povo fossem objetivamente reais.
Os chamados milagres - exibição de capacidades humanas
inexplicáveis em função do nosso atual conhecimento científico - não
são desconhecidos do mundo histórico, pós-paradisíaco, e quase
sempre se associam a estados místicos de consciência. Ademais,
encontramos descrições do exercício de capacidades "impossíveis"
em todos os continentes e em todos os períodos da história.
Para os africanos, os aborígines e os nativos americanos, a
capacidade do xamã ou do feiticeiro de entender-se com espíritos
animais e, em certos casos, de voar é lendária. O "homem talentoso"
australiano, por exemplo, é capaz de convocar um animal "familiar"
para assisti-Io, e dizem até que é capaz de transformar-se em um
animal. Domina os elementos, cura doenças, torna-se invisível, move-
se pelo ar, ou corre rapidamente sem tocar o chão com os pés.
E existem provas de que notícias dessa capacidade, ainda que às
vezes exageradas, não são totalmente imaginárias. Eliade escreve:
"grande número de documentos etnográficos já colocou fora de dúvida
a autenticidade desses fenômenos". Exemplos de capacidades
milagrosas, confirmadas, de outras culturas tribais incluem a
clarividência e a telepatia entre os camãs de Tonga; clarividência entre
os zulus; levitação e comunicação com espíritos animais entre os
feiticeiros dos nativos americanos; e profecia e clarividência em
sonhos entre os pigmeus.
Uma discussão de todos os poderes paranormais seria aqui
descabida. Em lugar disso, concentrar-nos-emos em relatos que
parecem ecoar descrições míticas das três principais capacidades ou
características milagrosas atribuídas ao Primeiro Povo.
A capacidade de entender-se com animais está preservada nas
tradições xamânicas de quase todas as culturas tribais. Uma parte
notável do ritual de iniciação do xamã é o encontro com um animal,
que se torna seu espírito familiar, revelando-Ihe conhecimentos
secretos, que, não raro, incluem a linguagem dos animais. Entre os
índios da América Central, o espírito animal guardião é conhecido
como nagual. Escreve o antropólogo Áke Hultkranz que o "elo estreito
e íntimo” entre o humano e o nagual - que é "às vezes o
representante espiritual generalizado de toda uma espécie animal,
outras vezes um simples animal real" - se expressa na capacidade
do xamã de transformar-se nesse animal familiar.
Relações semelhantes entre humanos e espíritos animais foram
descritas pelo antropólogo australiano A. P. Elkin em seu estudo dos
"homens de grau elevado" aborígines. O animal totêmico "avisa a
réplica humana do perigo, e chega a prestar-lhe serviços, como obter
informações sobre eventos a distância". Eliade sumaria a situação
dizendo que "a amizade com os animais, o conhecimento da sua
linguagem e a transformação em animal são outros tantos sinais de
que o xamã restabeleceu a situação 'paradisíaca' perdida no
aurorescer do tempo".
Existem pessoas em sociedades civilizadas que revelaram uma
capacidade semelhante de comunicar-se com os animais. Esta, por
exemplo, foi atribuída a certo número de santos cristãos, incluindo São
Francisco de Assis. Em 1954, Allen Boone publicou o livro clássico
Kinship with All Life [Parentesco com toda a vida], em que referiu suas
experiências de profunda comunhão com membros de várias espécies
- comunhão baseada no respeito, nas brincadeiras e na expressão de
nobreza de caráter. Mais recentemente, o cientista John Lilly e o
músico Jim Nollman escreveram sobre os seus experimentos bem-
sucedidos de comunicação com golfinhos. Lilly e Nollman chegaram à
conclusão de que níveis profundos de comunicação com animais
estão abertos a quem tiver paciência e abertura de coração,
suficientes.
Como se observou, a capacidade de voar é também amplamente
imputada a feiticeiros e xamãs em sociedades tribais. O funcionário
Ray Kelly do departamento australiano de Parques e Incêndios é um
iniciado em segundo grau dos Bhunguttis e havido pelo maior
conhecedor dos "homens talentosos" do que qualquer outra pessoa no
nordeste da Austrália. Kelly diz que, antes da disrupção da cultura
aborígine pelos colonos brancos, havia quatro graus de iniciação, e
que era no quarto que os iniciados aprendiam a voar. Dez por cento
dos aborígines, no máximo, atingiam esse grau. As chacinas da
década de 1860 e a subseqüente atividade dos missionários entre os
aborígines suspenderam as iniciações, com poucas exceções. Diz
Kelly que o último dos "homens talentosos" do quarto grau deve ter
morrido há coisa de vinte anos. Um tio, que alcançara o terceiro grau,
contou-lhe ter visto um homem do quarto grau "voar de uma montanha
para outra". O poder do vôo mágico não é desconhecido entre os
povos civilizados - onde, mais uma vez, está quase sempre associado
a estados religiosos ou místicos de percepção. Existe uma tradição
entre os chineses, por exemplo, segundo a qual os sábios e
alquimistas taoístas eram capazes de erguer-se no ar. Na Índia,
também, a tradição do vôo mágico é antiga e difundida: para os
iogues, a levitação é apenas um dos siddhis (poderes milagrosos) que
podem ser conseguidos através de exercícios espirituais. E, para o
budista, o vôo é uma capacidade natural do arhat (o iluminado).
Afirma-se ainda que certos santos cristãos levitaram; um exemplo é
São José de Cupertino, que viveu no século XVII. Conta uma
testemunha: "Ele ergueu-se no espaço, no meio da igreja, voou como
um passarinho até o altar-mor, onde abraçou o tabernáculo. ... Às
vezes, também, era visto voando para o altar de São Francisco e para
o da Virgem do Grotello".
Até o mito da luminosidade original dos seres humanos tem
correspondências na experiência e tradições, tanto dos povos tribais
quanto dos povos civilizados. De acordo com o etnólogo Knud
Rasmussen, os xamãs esquimós relatam uma experiência mística de:
Uma luz misteriosa que o xamã sente, repentinamente, no corpo,
dentro da cabeça, no interior do cérebro, um farol inexplicável, um
fogo luminoso, que lhe permite ver no escuro, literal e
metaforicamente falando, pois ele pode agora, até de olhos fechados,
ver no escuro e perceber coisas e acontecimentos porvindouros, que
estão ocultos dos outros.
Seu rosto começou a brilhar como o sol. E ele disse aos outros: "Aqui
está o Aba Antônio chegando". E, pouco depois: "Aqui está o grupo de
profetas", e o rosto lhe brilhou ainda mais. Depois disse: "Aqui está o
grupo dos apóstolos", e a luz do seu rosto ficou ainda mais brilhante.
Revisionando a História
Conforme a tradição universal, nós, seres humanos, trocamos a alegre
e milagrosa experiência da unidade universal pela condição alienada
da separação egóica. De um ponto de vista psicológico e espiritual,
isso dificilmente soará como progresso. Não obstante, a maioria dos
estudiosos encara a história humana como uma longa série de
aprimoramentos gradativos, conducentes à nossa civilização industrial
presente, que, para eles, é a meta desejável e inevitável da evolução
cultural.
Adam and Eve Sleeping [Adão e Eva dormindo], de William Blake
(1808). Uma das doze Ilustrações para o Paraíso perdido de Milton.
Adão e Eva dormem pacificamente no Jardim do Éden, antes da
Queda, velados pelos anjos Ituriel e Zefan, que acabam de descobrir
Satanás, como um sapo escarrapachado, perto do ouvido de Eva,
tentando-a num sonho.
CAPÍTULO 11
O Paraíso Agora: Entre o Céu e a Terra
O Celeste está no interior, o humano está no exterior. A Virtude reside
no Celeste. Compreenda as ações do Céu e do homem, baseie-se no
Céu, tome a sua posição na virtude, e, então, embora você se apresse
ou recue, se incline ou se retese, poderá voltar ao essencial e falar de
definitivo.
Chuang Tzu
A Experiência da Quase-Morte
Em anos recentes, novas técnicas em cuidados sanitários de
emergência têm resultado num aumento significativo do número de
pessoas salvas quando já estão à beira da morte. Freqüentemente,
um paciente ressuscitado recorda uma experiência de paz, júbilo e de
comunhão telepática com seres de luz. Diversos médicos e
psicólogos, intrigados pela freqüência e similaridade de tais relatos,
decidiram-se a investigá-Ios.
Dois dos primeiros estudos publicados sobre experiências de quase-
morte foram os livros populares de Raymond Moody Life after Life
[Vida após a vida] e Reflections on Life after Life [Reflexões sobre a
vida após a vida]. Filósofo e psiquiatra, Moody descobriu que as
histórias de experiências de quase-morte tendem a concordar com a
seguinte descrição generalizada:
Imaginação ou Realidade?
Os mitos do Outro Mundo paradisíaco são, às vezes, tão esquisitos ou
tão fantasiosamente enfeitados que é fácil ver neles invenções de
seres humanos que buscam uma fuga imaginária do dilema do nada
eterno. A maioria dos antropólogos adotou a opinião de que, quando
os povos primitivos enfrentavam o paradoxo final da existência e da
não-existência, como Arthur Koestler escreveu em Life after Death
[Vida após a morte]: "Suas mentes ficavam transtornadas e saturavam
a atmosfera de fantasmas dos mortos e outras presenças invisíveis.
que eram, na melhor das hipóteses, inescrutáveis, porém malévolas
na maioria, e tinham de ser aplacadas por rituais grotescos."
Muitos rejeitariam o Céu como não tendo lugar no mundo natural. Mas
pode aparecer - como aparece para os emergentes de experiências
de quase-morte - como mais real do que o que comumente se nos
afigura realidade. Será puramente imaginário o Paraíso do Outro
Mundo? Ou será um reino natural de experiência, do qual, de um
modo ou de outro, nos excluímos? Nossa linguagem concreta,
materialista, é incapaz de descrever ou definir o que não é
inteiramente objetivo nem meramente imaginário. Entretanto, por mais
esquiva que seja a visão profética para se contemplar, não podemos
deixar de lado a sua dimensão mítica. Em momentos de crise
decisiva, na iminência da morte, o que supúnhamos fosse mais real e
concreto se vai, e o Outro Mundo - que antes parecera inexistente -
toma-se, subitamente, mais intenso do que o terá sido, alguma vez, a
experiência dos nossos sentidos.
Nós, ocidentais modernos, temos feito o possível para banir os reinos
subjetivos e viver inteiramente num mundo material, objetivo,
Reprimido, o conteúdo do inconsciente investe conosco nas
compulsões irracionais da loucura e da profecia. Entrementes, o
mundo acordado, objetivo, libertado das suas amarras subterrâneas,
passa a ser a pior espécie de pesadelo. Os psicólogos. com exceção
de Jung e seus seguidores. têm tendido a encarar o mundo interior
como uma coleção de imagens abstraídas da realidade fisica. Quase
todos os sonhos parecem ser apenas a mente inconsciente
empenhada em limpar a casa, reunir fragmentos de emoções e
pensamentos que sobraram da estada de um dia no mundo material.
Mas há, de vez em quando. sonhos perturbadores de nível muito mais
profundo - sonhos proféticos, ou sonhos de voar e de falar com seres
angélicos - que não têm a sua origem no mundo mundano, mas em
algum lugar inteiramente diferente. Já nos esquecemos de como
interpretar estes últimos sonhos, e hesitamos até em reconhecê-Ios.
Os tibetanos talvez tenham chegado mais perto da solução das
contradições aparentes da psicologia do Paraíso com a sua descrição
dos reinos do bardo da alma, como se fossem projetados
mentalmente, mas sendo reais mesmo assim. Num sentido, até a
nossa experiência do mundo fisico é auto criada: duas pessoas nas
mesmas circunstâncias podem vê-Ia de maneiras diferentes. Não
obstante, tendemos todos a concordar em que existe um mundo
finalmente real "lá fora", com regras e limites inerentes, independente
das nossas interpretações e crenças. A darmos algum peso às
observações dos maiores sábios da história, precisamos também
estar dispostos a refletir na possibilidade de que, além dos bardos da
existência depois da morte, mentalmente projetados, existe uma Fonte
interior, finalmente real, de identidade, sentido e propósito que pouco
se incomoda com as nossas convicções religiosas a respeito da sua
existência ou inexistência.
Pode ser que o mundo objetivo de forma física e esta Fonte interior
final estejam separados por um sem-número de estados de emoção e
pensamento, condicionados pelo medo e pelo desejo - e pode ser que
neste continuum esteja incluída a nossa consciência desperta
"normal". Quando o véu de ilusão, mantido pelos estados de emoção,
se torna mais tênue - como acontece em momentos extremos -
podemos captar um vislumbre de um Ser de Luz, que é a Fonte
interior final. Nesse momento de unidade com a Fonte há paz,
segurança e inefável conhecimento. E esse é o Paraíso.
CAPÍTULO 12
Para Voltar ao Jardim
Pode ser que alguma raizinha da árvore sagrada ainda esteja viva.
Alimente-a, para que ela possa deitar folhas, florescer e encher-se de
pássaros canoros.
Alce Negro
A Atingibilidade do Paraíso
A antropologia e a arqueologia talvez não provem (embora, decerto,
não a negue) a existência anterior de uma Idade de Ouro - isto é, de
uma cultura unitária em que as pessoas eram universal e
continuamente telepáticas, viviam na intimidade da natureza e
possuíam poderes milagrosos. Mas, como vimos no Capítulo 8,
descobrimentos antropológicos e arqueológicos mostraram, quase
sem nenhuma sombra de dúvida, que dois dos aspectos mais
destrutivos da civilização (o emprego e a justificação da violência
como meio de mudança social, e o desejo de dominar outros seres
humanos e a natureza) só foram adquiridos recentemente. Os
achados dos arqueólogos mostram que, no passado, os seres
humanos viviam - e, portanto, em princípio, são capazes de viver - em
paz e harmonia, não só entre eles mesmos, mas também com a
natureza.
Além disso, a psicologia sugere que tanto é atingível uma condição
subjetiva de unidade, paz e inocência, quanto este é o modo natural e
saudável da consciência humana. Se o corpo humano funciona melhor
na ausência dos estados-do-ego de culpa, medo e ressentimento
(como as experiências médicas mostram que o faz), o fato de
estarmos vivendo num mundo baseado no ego, em que o Paraíso é a
experiência excepcional, há de ser, por conseguinte, um estado de
coisas inusitado e temporário.
Se fomos capazes de viver no Paraíso outrora, devemos ser capazes
de fazê-Io outra vez. E se o modo de vida mais natural e saudável, ao
alcance dos seres humanos, é definido pela expressão das qualidades
paradisíacas essenciais de caráter e pela experiência subseqüente de
harmonia universal, o que é natural deve ser, em princípio, atingível.
Em outras palavras, podemos estar destinados a viver no Paraíso.
Por que, então, presumimos rotineiramente que o Paraíso está além
do nosso alcance? Talvez seja, em parte, porque temos um conceito
não-realista do que esse estado é ou deve ser. Inclinamo-nos a
pensar no Paraíso como um lugar ou tempo em que todos os desejos
humanos são satisfeitos; e como os desejos das pessoas tendem a
conflitar uns com os outros, presumimos, portanto, que o Paraíso
nunca poderia existir realmente. Mas o Paraíso do mito e da visão não
é um estado em que os desejos pessoais conflitantes são todos,
de um jeito ou de outro, satisfeitos. Antes, é um estado em que todos
os desejos e motivos humanos são completamente incluídos dentro de
um propósito criativo maior. Se os desejos individuais são satisfeitos
no Paraíso, isso só acontece porque o desejo avassalador de todos os
indivíduos é que o acordo consumado da Natureza e do Cosmo seja
alimentado e mantido.
Os habitantes do Paraíso - quer nos mitos da Primeira Idade, quer nas
visões da quase-morte - caracterizam-se universalmente por sua
expressão de valores específicos e qualidades de caráter. E, como
mostrou Aldous Huxley (entre outros), um estudo comparado das
religiões do mundo revela que esses valores e qualidades -
honestidade, compaixão e amor - são universais e inatos. Tenha sido
ou não uma realidade histórica, o Paraíso existe no presente eterno
como imagem que expressa o nosso sentido mais profundo do que é
direito e verdadeiro em relação a nós mesmos.
Visto por esse prisma, o Paraíso pode ser considerado como se
exercesse uma função específica, um propósito de vida embutido no
circuito da consciência humana. Todos os organismos biológicos,
incluindo os seres humanos, contêm elementos de propósito.
Sabemos, por exemplo, que o padrão das moléculas do DNA em
nossas células governa o propósito básico do nosso corpo físico.
Talvez contenhamos também, dentro de nós, um programa
neurológico ou psíquico que visa à perfeição das relações sociais e
espirituais entre nós, o Cosmo e a Natureza - um propósito de unidade
telepática e comunhão entre as espécies, que representa a meta em
cuja direção nossa experiência individual e coletiva tende,
naturalmente, a desenrolar-se.
Em não havendo interferências significativas, o propósito inerente às
moléculas de DNA em nossas células se expressa automática e
acuradamente na formação do nosso corpo físico. O mesmo talvez
seja potencialmente verdadeiro em relação ao propósito neurológico
do Paraíso: contanto que não se lhe bloqueie a expressão, o padrão
de unidade com as correntes universais da vida, assim como das
capacidades milagrosas, deveria refletir-se automática e precisamente
em nossa experiência ordinária.
Atualmente, porém, não se refletem. Como vimos, quase todas as
tradições espirituais do mundo concordam em que o propósito
paradisíaco inato está sendo cerceado em sua expressão por certos
padrões, agora universais, de atitude, pensamento e comportamento.
Advertências do Inconsciente Coletivo
Quando divergimos do modo com que devíamos funcionar, a natureza
nos manda sinais de advertência. Por exemplo, quando comemos
alimentos que somos incapazes de digerir, nosso estômago rebela-se;
quando usamos nossos membros em atividades a que eles não foram
destinados, nossos músculos e ossos protestam. Quando fazemos
essas coisas habitualmente em excesso, estamos sujeitos a receber
não somente sinais externos em forma de dor, acidentes ou moléstia,
mas podemos também receber alguns sinais externos, que assumem,
não raro, a forma de pesadelos e premonições, por cujo intermédio a
própria sabedoria inconsciente do corpo tenta alertar-nos e influir em
nosso comportamento.
Se isto é verdade para nós individualmente, talvez também o seja para
a humanidade coletivamente - isto é, se a humanidade está pondo de
lado um propósito paradisíaco inato (visionando um mundo
caracterizado pelo artificialismo, pela separação e pela supressão da
natureza, e trabalhando para ele), então deveríamos esperar estar
recebendo advertências externas e internas. No nível coletivo, tais
advertências externas podem assumir a forma da guerra, da
degradação ambiental, da fome, ou da peste; os sinais de advertência
interna surgem como visões, que ocorrem amplamente, de
acontecimentos apocalípticos.
Como Normam Cohn mostrou em The Pursuit of the Millenium, as
visões apocalípticas tenderam a aparecer em profusão durante
períodos históricos de opressão política e religiosa, sublevação social,
guerra e pestilência. Os profetas hebreus viveram numa idade de
derrota e cativeiro; Jesus viveu no auge do Império Romano
decadente e opressor; e os movimentos milenários medievais
pareciam sempre florescer em lugares e épocas de dificuldades
insólitas. Vemos a mesma associação entre a visão apocalíptica e a
tensão social entre os povos tribais: na América do Norte, na África e
nas ilhas do Pacífico, os novos movimentos espirituais, surgidos no
transcorrer do último século em resposta ao ataque violento da
civilização, têm apresentado, invariavelmente, um caráter profético e
milenário.
Existem muitas razões para pensar que a civilização ocidental
contemporânea está-se aproximando de um período de máxima
divergência do ideal paradisíaco. Em vez da simplicidade, da
inocência e da capacidade de trabalhar em harmonia com processos
naturais, a civilização industrial dá valor à sofisticação, à abstração, à
concentração das riquezas e à completa subjugação da natureza.
Esses valores não surgiram de repente nem recentemente; ao
contrário, podem ser acompanhados até os primórdios da própria
civilização. Mas parecemos estar presenciando a culminação da sua
influência. E, à medida que compreendemos as implicações finais de
tendências à longo prazo, que conduzem à centralização do poder
social, à dominação tecnológica da natureza, e à fragmentação da
consciência humana, vemo-nos no que parece ser uma colisão de
percurso com uma realidade mais profunda.
Distinguimos os sinais externos que aparecem em toda a parte à
nossa volta. Ouvimos falar, por exemplo, da morte de milhares de
lagos e florestas produzida pela chuva ácida. Enquanto o
adelgaçamento da camada de ozônio cria uma epidemia de câncer da
pele, descobrimos simultaneamente que um efeito de estufa - criado
pelo dióxido de carbono liberado na queima de combustíveis fósseis -
está alterando os padrões de clima globais. Ouvimos falar no
desaparecimento de dezenas de milhares de espécies, em resultado
do corte definitivo de florestas de chuva, e da perda de milhões de
toneladas de camadas superficiais do solo, insubstituíveis, à conta das
práticas agrícolas mecanizadas modernas. Estes e outros sinais de
advertência pressagiam catástrofes realmente apocalípticas,
catástrofes que só poderão ser evitadas se se tomarem medidas
imediatas para alterar o nosso relacionamento fundamental com o
ambiente natural.
Ao mesmo tempo, estamos vendo uma erupção sem precedentes do
que poderia ser interpretado como sinais de advertência internos,
psíquicos. As duas últimas décadas viram números cada vez maiores
de pessoas voltarem-se para o fundamentalismo milenariano, em
busca de um sentido de significação e propósito. Os fundamentalistas
cristãos olham para o fim iminente do mundo, a destruição dos infiéis,
e a restauração de um Paraíso terreno caracterizado por todas as
qualidades do Éden original - paz, felicidade e, acima de tudo,
oportunidade de viver na imediata presença do Senhor.
Mas ao passo que o mileniarismo fundamentalista extrai visões
escriturais apocalípticas de eras passadas, estamos também cercados
de proclamações proféticas, novas e originais. O cenário apocalíptico
clássico - a batalha final entre as forças do bem e do mal, seguida do
advento de uma condição restaurada de paz e beatitude - aparece,
por exemplo, em entrechos de ficção científica e nas predições
psíquicas de Edgar Cayce e dos "abridores de canais" da década de
1980. Além disso, as experiências de quase-morte estão dando a sua
própria contribuição para o que equivale a uma explosão de profecias
apocalípticas.
Depois de levar a efeito os estudos sobre as experiências de quase-
morte, Kenneth Ring começou a ouvir relatos de visões proféticas
acerca do futuro da humanidade, e decidiu coligi-Ios e cotejá-Ios. Ring
descobriu que as visões proféticas parecem ocorrer com mais
freqüência durante as experiências centrais de quase-morte, e que
existe uma "similaridade impressionante" entre elas. Em Heading
toward Omega, Ring compendia os elementos comuns da visão
profética clássica:
A Nova Cultura
Os fundamentalistas cristãos acreditam que o apocalipse é inevitável.
Os ativistas sociais e os utopistas, por outro lado, acreditam que
podemos evitar o Armagedon operando uma transição gradual e
pacífica das atitudes e presunções da civilização industrial moderna,
para um modo de vida regenerativo e pacífico. De acordo com este
último modo de ver, o apocalipse só virá se nos recusarmos a
trabalhar, consciente ou coletivamente, pela reforma construtiva de
nossas instituições presentes.
Mas quer a humanidade rume para uma transição pacífica, quer
caminhe para uma purificação apocalíptica, o curso de ação dos que
estão comprometidos com um resultado paradisíaco é o mesmo:
começar deliberadamente a plantar as sementes de uma nova cultura,
baseada em valores espirituais universais. Uma transição pacífica
pode ser preferível a um cataclisma humanamente produzido, mas só
se verifica em resultado de mudanças nas atitudes e ações dos indiví-
duos. Entretanto, se for inevitável um período de purificação global, a
massa da humanidade exigirá modelos de integridade e estabilidade
para os quais possa orientar-se quando ocorrerem as comoções, se
houver alguma coisa para ser construída depois do período de
purificação.
Como Marilyn Ferguson, Willis Harman e outros agudos observadores
das tendências sociais nos disseram durante a última década, as
sementes de uma nova cultura já estão aparecendo. Essa nova
cultura não é o plano de nenhuma organização ou agência humana
específica, mas está-se erguendo espontaneamente, num milhar de
maneiras impredizíveis, através dos esforços de pessoas que, na
maior parte dos casos, não têm idéia da interligação - e muito menos
das implicações míticas ou arquetípicas - das suas ações.
Uma das sementes está representada no interesse difundido e
crescente pela ecologia e pelo ambientalismo. Ao passo que o
interesse de muitas pessoas pelas questões ambientais pode ser
motivado simplesmente pelo interesse próprio - o desejo de escapar
ao desastre - a contemplação da interligação dos sistemas da
natureza parece deflagar inevitavelmente concepções radicalmente
novas da nossa relação adequada com o resto da biosfera. À
proporção que nos tornamos cônscios das implicações dos princípios
básicos da ecologia, atitudes herdadas de exploração tendem a dar
lugar a atitudes de cooperação e aprovisionamento. Finalmente, as
pessoas que abraçam o ambientalismo parecem ser levadas de volta
à antiga concepção de que a Terra não está aqui apenas para
satisfazer as necessidades e desejos humanos; senão, pelo contrário,
que nós, seres humanos, aqui estamos para alimentar e aprovisionar
a Terra.
Outro presságio do tipo de mudança criativa, que pode conduzir à
emergência de uma nova cultura paradisíaca, é o interesse crescente
por religiões nativas e mitologia comparada. A própria palavra religião
vem do latim religare, que significa "ligar de novo". A religião sempre
foi o modo com que a humanidade procura recuperar alguma coisa
perdida. É a expressão de um anelo universal, que ambiciona um
estado de inocência e completude - estado projetado no passado, no
futuro, ou em outra dimensão da existência, mas que, apesar disso,
sempre se sentiu real e inato, se bem que um tanto afastado da nossa
experiência comum. O objetivo da religião é sempre a recuperação da
presença divina e o retorno do mundo milagroso do Paraíso.
O novo renascimento espiritual das duas últimas décadas parece estar
dirigido para a própria essência da experiência religiosa. Ao mesmo
tempo que se abebera das tradições nativas americanas, cristãs
místicas, sufistas e budistas (entre outras) existentes, seu objetivo
final é o ressurgimento do espírito do qual todos os sistemas de
revelação derivam o seu sentido.
Os tipos de mudanças fundamentais em valores e atitudes, que
estamos considerando, propendem a ocorrer primeiro nos pormenores
da vida das pessoas, e só mais tarde se refletem na linha de conduta
pública. Em seus relacionamentos mais íntimos, por exemplo, muitas
pessoas estão descobrindo o que é passar de um modo
dominante/submisso, baseado na necessidade e no medo, para um
modo de parceria, baseado no sentido partilhado de um propósito
mais elevado. Em suas vocações mundanas, as pessoas descobrem
que os velhos valores e motivos, centrados na necessidade
econômica e no impulso competitivo, são pressionantes e
insatisfatórios. À medida que ganha predominância o desejo inato de
elevação, santificação e alimentação, muitas pessoas mudam de
carreira, não raro trocando um salário maior por um meio mais
satisfatório de contribuir para a vida dos outros.
Para alguns, a mudança de valores é sutil; para outros, a busca do
Paraíso transmuda-se numa paixão oniabrangente. Como se notou
num capítulo anterior, milhares de comunidades utopistas foram
fundadas nos últimos vinte anos, particularmente na América do Norte.
Muitas delas são verdadeiras estufas, onde germinam as sementes da
nova cultura, fomentando estilos de vida pioneiros, fundados na
consciência ecológica, e em novos meios de revelar e reconhecer o
sagrado. Tais comunidades proporcionam um meio de explorar a
mudança através do comprometimento total do tempo e dos recursos
das pessoas envolvidas. Em última análise, entretanto, todo indivíduo,
toda ação ou movimento social, que favorecem os valores da unidade,
da paz e do respeito aos processos naturais, representam sementes
da nova cultura.
Por enquanto, é muito provável que não conheçamos em suas
minudências o aspecto que terá a nova cultura quando, e se, a
transição tiver sido feita. Não será, por certo, uma reprodução exata
do Paraíso terreno original. Embora a nossa permanência na
consciência egocêntrica tenha sido necessária à nossa evolução, ou
não passou de um erro trágico, a experiência nos terá ensinado uma
lição momentosa. Podemos regressar à inocência, mas esta não será
a mesma inocência que teríamos conhecido se nunca tivesse ocorrido
a Queda. Tampouco podemos predizer com precisão a natureza da
nova cultura, extrapolando simplesmente as tendências presentes: os
desenvolvimentos que acabamos de ponderar podem estar
conduzindo na direção de um estado paradisíaco renovado, mas ainda
não passam de sementes. Seja qual for o critério usado, a magnitude
da transformação requerida para que a humanidade, como um todo,
volte a um estado de ser integrado, regenerativo, é imensa. Mal
encetamos o processo.
Compreendendo o Paraíso
Paradoxalmente, enquanto a transição para uma nova cultura é um
projeto de vastas proporções, pode ser que ela só seja levada a cabo
através de mudanças nas atitudes e valores de indivíduos de ambos
os sexos - mudanças virtualmente invisíveis para o conjunto da
sociedade. Como, então, poderemos, você e eu, realmente levar a
cabo essas mudanças em nosso modo de ver as coisas e em nosso
comportamento, de maneira que realizemos o Paraíso em nossa
própria vida, aqui e agora, e, por essa forma, contribuamos para a
criação da nova cultura?
A civilização é construída de compromissos e trocas. Diariamente
comprometemos a integridade, a intimidade, a empatia e a
honestidade por um milhar de razões aparentemente válidas, e nos
sentimos apoiados, ao fazê-Io, pelo exemplo e pelo incitamento de
outros. Tornamos a nossa vida complexa e abstrata. Parecemos viver
para servir aos nossos inventos destinados a poupar trabalho. Muitos
de nós estamos dispostos a dedicar grande proporção de nossas
horas de vigília a tarefas intrinsecamente sem sentido em troca do
poder econômico. Em algum ponto precisamos perguntar se isso é
realmente justificável. A volta ao Paraíso requer que examinemos com
sinceridade a nossa vida, e, quando nos vemos agindo de maneiras
que contradizem nossos valores mais profundos, que mudemos de
direção - não retrocedendo para algum passado místico, mas
interiorizando-nos e buscando a nossa visão mais elevada de amor e
verdade. Precisamos estar dispostos a deixar a participação nos
meca nismos do mundo humano à medida que aprendermos a
simplificar, santificar e celebrar cada aspecto da vida.
O processo de transformação não precisa ser árduo. Na realidade, em
alguns sentidos ele é mais um jogo do que um trabalho - embora não
seja um jogo de ganhar ou perder de adultos civilizados, porém o jogo
espontâneo, mutuamente confiante, experimental e o extático das
crianças pequenas e dos animais selvagens. No dizer do psicólogo O.
Fred Donaldson, "O jogo é o triunfo da natureza sobre a cultura." Se o
Paraíso é o nosso estado de ser natural, a força mais profunda e
compulsiva existente no cerne do inconsciente coletivo é uma força
que sempre nos empurra para esse estado de equilíbrio. Enquanto
trabalhamos deliberadamente para um futuro caracterizado pelo
respeito e zelo da Natureza, e para alimentar o amor, o perdão, a
compaixão, e a celebração em nós mesmos e uns nos outros, nossos
esforços conscientes ressoam seguindo o padrão no âmago do nosso
ser. O Céu e a Natureza apressam-se a voltar a uma condição de
equilíbrio e consenso.
Também é verdade que, enquanto nos movemos no processo de
transformação, estamos trabalhando contra o condicionamento social,
que tende continuamente a separarnos uns dos outros e da mesma
base do nosso próprio ser. Daí a necessidade da busca espiritual,
que, em todas as aparências, é essencialmente um processo de
romper a crosta do ego, que nos impede de experimentar e revelar
nosso próprio caráter paradisíaco inato.
Essa busca não é nova e nem sem precedentes. Não é nem mais nem
menos do que ajornada do herói arquetípico, identificado por Joseph
Campbell como o centro de todas as tradições míticas. Toda cultura
se recorda de homens e mulheres exemplares, que realizaram
transformações internas, e deixaram instruções com o auxílio das
quais outros podem fazer o mesmo. Conquanto os pormenores
possam diferir, todos os exemplares espirituais concordam no tocante
aos largos lineamentos do processo. Este consiste, primeiro, numa
retirada do mundo tal qual é, e num ato deliberado, de purificação.
Segue-se um período de integração, dentro do sistema de valores
espirituais universais. O processo culmina numa realização final da
unidade com o Princípio fundamental de tudo o que é. Embora as
minúcias do processo sejam individuais, o esboço essencial da
jornada é sempre o mesmo, como o é a sua meta: o Paraíso - a
realização da unidade com o Céu e a Natureza.
A busca heróica, em essência, é uma jornada simbólica, que
representa o desdobramento progressivo do caráter e do destino
transcendentes do herói. Jesus e o Buda são figuras que levaram a
efeito a profunda transformação interior graças a qual uma porta se
abriu entre os mundos, e a sociedade humana foi levada a uma
condição parcial ou temporariamente restaurada. Finalmente, os
registros de suas vidas são metáforas do que deve ocorrer na
experiência de quem quer que encete a busca.
No mito de cada herói, a primeira fase da jornada consiste
simplesmente em ouvir o chamado e responder a ele. O herói, ou
heroína, precisa compreender que o mundo necessita de tratamento,
e que as suas ações farão diferença para outros. Para o Buda, o
chamado veio quando, aos trinta anos de idade, viu, pela primeira vez,
a doença, a velhice e a morte. Ficou tão comovido com o sofrimento
que presenciava que se afastou em silêncio da esposa e dos filhos
adormecidos, a fim de procurar a chave da libertação da condição
humana universal. Para Jesus, a primeira percepção do chamado veio
quando ele tinha apenas doze anos de idade. Deixou os pais e passou
três dias no templo entre os doutores, discutindo teologia. Quando os
pais, preocupados, enfim o encontraram, disse simplesmente: "Não
sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?”
À proporção que erguemos a atenção acima das nossas carências e
medos condicionados pelo tempo suficiente para darmos tento dos
propósitos de um Todo maior, vemos de súbito que a nossa vida
poderia ter um sentido que está além do conforto e da satisfação
pessoal. O chamado pode ser pressentido debilmente, ou pode
clangorar. Em qualquer caso, será preciso tomar a decisão consciente
de ouvi-Io ou dispensá-Io. Não ter conhecimento do chamado é morrer
para os propósitos da vida. Mas para ouvir e aceitar o desafio do
chamado, será necessária a disposição de deixar para trás os carris
que nos foram estabelecidos pela hereditariedade e pelo ambiente, e
explorar territórios não familiares. Não podemos entrar no Paraíso
sem nos descartarmos do nosso ambiente cultural ou psíquico atual.
A segunda fase da busca envolve o acordo com um dragão, um
demônio ou um inimigo. Vendo o sofrimento, buscamos a sua causa, e
as causas do sofrimento humano são inúmeras. No princípio da fase,
podemos ver um dragão fora de nós mesmos - fonte imediata de
injustiça e crueldade. Podemos concluir que o dragão está encerrado
numa filosofia que detestamos, ou numa pessoa cujos atos
parecem causar sofrimento a outros. Muitos indivíduos fixam-se nessa
fase da busca e negam-se a prosseguir. Passam a vida combatendo
os demônios do mundo, os quais, mesmo quando aparentemente
mortos, parecem formar novas cabeças e voltar para atormentá-Ios de
novo.
Enquanto continuarmos combatendo demônios externos, seremos
incapazes de trazer plenamente a paz ao nosso mundo. Por fim, se
continuarmos fiéis ao chamado - se continuarmos a ouvir -
chegaremos a compreender que o verdadeiro dragão está dentro de
nós: todos os problemas do nosso mundo foram produzidos por
tendências presentes em nós. Enquanto nossos dragões internos não
forem enfrentados, e a menos que o sejam, nem a mais valorosa
batalha externa produzirá frutos plenos. Alguns dos grandes heróis da
literatura religiosa parecem tê-Io compreendido desde o princípio.
Tanto Jesus quanto o Buda, por exemplo, sabiam, desde o princípio,
que a vitória que buscavam era um triunfo sobre as suas próprias
naturezas inferiores. Gandhi, por outro lado, iniciou sua carreira com a
crença de que o dragão consistia inteiramente no racismo posto em
prática pelo governo; e só aos poucos veio a enxergar, em suas
próprias atitudes e comportamento, o campo de batalha das forças do
bem e do mal.
Assim que se reconhece o dragão como força interna, começa uma
espécie diferente de batalha. Essa fase do processo, em que o herói
luta com os próprios demônios internos, não parece especialmente
paradisíaca. Envolve a exposição de nossas fraquezas e a renúncia a
apegos pessoais. Dir-se-á, paradoxalmente, que só podemos chegar
ao Paraíso se estivermos dispostos a passar pelo inferno. Mas esse
conflito também precisa chegar a um fim. A resolução da batalha com
o demônio interno está representada na história das tentações
deJesus no deserto. Antes de Jesus dar início ao seu ministério
público, e depois de haver jejuado no deserto por quarenta dias, o
Diabo apareceu-lhe. Primeiro, o Diabo ofereceu-lhe pão, simbolizando
a satisfação pessoal no nível físico; em seguida, desafiou a autoridade
de Jesus; e, por fim, ofereceu-lhe os reinos do mundo, "se, prostrado,
me adorares". Mas Jesus, recusando o desejo físico, a necessidade
de provar-se e a ambição pessoal como motivos para o seu
comportamento, replicou: "Retira-te, Satanás!" Para ele, o demônio se
fora.
Diz uma história semelhante do Buda que, enquanto estava sentado
debaixo da árvore Bodhi, imediatamente antes de atingir a iluminação,
veio tentá-Io o deus-demônio Mara. Em meio à violência e aos
oferecimentos de prazer e poder, ele sentou-se e permaneceu calmo,
"como um leão sentado no meio de bois". Mara e seus exércitos,
frustrados, saíram amargando a derrota.
O dragão ou demônio só pode ser plenamente domado por meio de
um trabalho interior sistemático, por um período de anos. Entretanto, a
transformação essencial que acaba vindo possui uma qualidade
instantânea: a qualquer momento ocorre uma súbita mudança de
estado e o Paraíso estápresente, nem que seja por um instante. O
herói não doma o dragão pelejando com ele, mas recusando-se a
pelejar com ele enfrentando-o, mantendo-se corajosamente firme, e
expressando o caráter da inocência e do amor. Subitamente o herói
percebe que o Paraíso estivera lá durante o tempo todo, sem ser
notado.
Mesmo depois de haver atingido momentaneamente a percepção
paradisíaca, o herói ainda precisa aprender a sustentar e comunicar
esse estado. A partir desse ponto, tem a certeza de haver conhecido a
condição verdadeira e natural da consciência humana - a pérola de
grande valor, pela qual a pessoa prudente venderá tudo o que possui
(Mateus 13:46).
Depois de haver desenvolvido a capacidade de manter
consistentemente a consciência paradisíaca, o herói volta ao mundo
terrestre com um bálsamo curativo. Tendo encontrado o Céu, precisa
partilhá-Io - o que significa partilhar-se, partilhar o seu estado de ser.
Para o indivíduo, o regresso é a culminação da jornada, mas a busca
não estará completa enquanto o mundo não tiver sido restaurado.
Epílogo
O Paraíso terrestre existiu realmente alguma vez, ou é produto da
imaginação humana? Mesmo agora, no fim da nossa investigação,
precisamos reconhecer que este é um problema que talvez nunca seja
resolvido por arqueólogos ou antropólogos. De um lado, é impossível
provar a realidade histórica de uma Idade de Ouro só por intermédio
de provas físicas; por outro lado, a evidência material não elimina, de
maneira alguma, a possibilidade, e as provas menos tangíveis do mito
e da cultura simplesmente não nos permitirão dispensá-Ia. Claro está
que a resposta que aceitarmos depende, em grande parte, da nossa
definição do que era o Paraíso, ou do que deveria ser.
Os mitos e tradições dos antigos não retratam o Éden como uma
espécie de Paraíso tecnológico que a nossa civilização atual tende a
projetar no futuro. Se a Idade de Ouro realmente existiu, deve ter sido,
ao contrário, como os chineses a descrevem, uma Idade de Virtude
Perfeita - uma idade em que:
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