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Marinheiros que perderam as graças do mar:

três personagens de Branquinho da Fonseca


Por mais arduamente que tentasse tomar uma decisão realista, os assuntos de terra mantinham-
se-lhe envoltos nas névoas da fantasia.
YUKIO MISHIMA, O marinheiro que perdeu as graças do mar.

Branquinho da Fonseca nunca mostrou grande entusiasmo pela reflexão de


carácter teórico ou crítico, nisso se distinguindo muito de José Régio, João Gaspar
Simões e Adolfo Casais Monteiro, seus companheiros presencistas com obra ensaística
de grande relevo. Têm, pois, particular interesse todos os seus textos que saem das
fronteiras da criação literária estrita, salientando-se os prefácios e as nótulas de apre-
sentação das várias antologias que organizou e, de modo especial, a conferência que
pronunciou na universidade de São Paulo, no dia 16 de Agosto de 1966, e que viria
a ser publicada no número treze da revista Espiral com o título «Situação do escritor».
Nesse ensaio, Branquinho começa por fazer uma pequena introdução sobre o valor
da arte na história da civilização, agrupando alguns «retratos de família que temos na
nossa sala de estar»: «Homero, Platão, Aristóteles, Fídias, Dante, Vinci (...)» e também
«o avô Camões, o tio Fernão Mendes Pinto, o primo Cervantes e outros de igual fama
e proveito...» (Fonseca, 1966: 13). Ancorando-se, em seguida, numa longa citação
extractada de A Rebelião das Massas, de Ortega e Gasset, o texto vai abordando
várias questões, como, por exemplo, a conexão entre o desenvolvimento da técnica
e a difusão da cultura, postulando, como consequência, a necessidade de diferenciar
cultura e arte, sobretudo ao nível pragmático, o que implica um reajustamento das
relações estabelecidas entre os domínios da criação e da recepção.
No contexto deste trabalho, importa pôr em relevo as considerações que
sinalizam um percurso reflexivo, cujos marcos, distribuídos por textos de diferente
natureza modal e genológica, consubstanciam uma visão do mundo e revelam um
dos temas centrais da obra literária de Branquinho da Fonseca: a idiossincrasia do
homem português como ser dividido entre o apelo promitente do mar e a inquietação
paralisante da terra. Neste plano, são intencionalmente significativas as referências
a Fernão Mendes Pinto 1 , uma figura que funciona como uma espécie de arquétipo

1No Prefácio à primeira série da antologia As Grandes Viagens Portuguesas, Fernão Mendes Pinto é
apresentado da forma seguinte: «Mas, entre todos os portugueses que até hoje viajaram, sobressai Fernão

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tutelar das personagens fonsequianas mais energéticas; bem como a convocação
de nomes grandes da literatura de língua portuguesa, apresentados da forma seguinte:

A humildade de andar na aula dos velhos mestres não quer dizer que se
escreva como eles, pois só isso bastaria para os envergonhar do discípulo, a eles
que escreveram como ninguém antes tinha escrito. Antes de Fernão Lopes quem
escreveu como ele? E antes de Mendes Pinto, que é dos maiores escritores da nossa
língua e dos maiores que narraram, em todos os tempos, histórias ou romances?
Alguém antes dele escreveu uma prosa mais viva e mais rica? E antes de Camilo? e
do Eça? e do Machado de Assis? quem escreveu como eles, que leram, sem tresler,
o Fernão Lopes e Mendes Pinto e Vieira e Garrett e tantos quantos foram grandes
pelo que em si próprios eram e pelo que não perdem da herança legítima? (ibid.: 19).

Os escritores portugueses convocados inscrevem-se num modelo exemplar


de dupla significação. Por um lado, representam a excelência narrativa — coadjuvados
nessa exemplaridade pela grandeza de Machado de Assis —; por outro lado, pertencem
a uma linhagem de autores, cujas obras são, de diferentes modos, uma reflexão sobre
Portugal e os Portugueses. Ao referir a «humildade de andar na aula dos velhos
mestres», Branquinho da Fonseca partilha, portanto, dessa «herança legítima» que
vai de Fernão Lopes a Eça de Queirós e que, atravessando todo o século vinte, se
mantém hoje bem viva no lirismo desencantado e resistente dos romances de António
Lobo Antunes. Na obra do autor de Rio Turvo é bem visível, mesmo nos géneros
líricos e dramáticos, esse impulso narrativo que, nos momentos mais relevantes, é
conduzido pela vontade de representar ficcionalmente uma realidade humana, definida
por contornos que, não deixando de ser universais, são também marcadamente
portugueses. É, pois, muito pertinente a opinião de António Quadros, segundo a qual
toda a obra de Branquinho é «uma revelação do português, na singularidade de que
se reveste no mundo». E alguns dos elementos constitutivos dessa singularidade são
os seguintes: «sentido de aventura, capacidade de sonho, vocação de viagem e
descobrimento, impulso para ultrapassar a fronteira do real, consciência do mistério,
drama da frustração, ciclicamente renovado, vivência do amor, obediência a um
chamamento obsessivo, para lá da razão teórica» (Quadros, 1992: 152).

Mendes Pinto. Além do grande escritor, ele é o aventureiro sem igual na nossa história, e a que raros de
outras nações se poderão aproximar» (Fonseca, 1984: 10).

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Enfatizando a «vocação de viagem e descobrimento» em contraste com o
«drama da frustração, ciclicamente renovado», António Quadros desenvolve uma lei-
tura da obra fonsequiana coordenada por uma visão antropológica da literatura, cujos
resultados se afiguram muito proveitosos. O ensaísta confronta quatro textos desiguais
de Branquinho, procurando circunscrever, através de aproximações e dissemelhanças,
os contornos de uma figura que se vai metamorfoseando ao longo dos vários textos,
exprimindo, em diferentes momentos, a vocação energética da viagem e a paralisia
motivada pela frustração. A novela Mar Santo, o conto O Barão, o romance Porta de
Minerva e o ciclo de contos Bandeira Preta são as obras analisadas.
Mar Santo é um livro magnífico sobre a vida desprotegida dos pescadores
da Nazaré. A mistura de realismo, lirismo e alento épico expande, no entanto, o núcleo
diegético da novela, inserindo-a em esferas de significação propiciadoras de leituras
históricas, míticas e simbólicas. O jovem pescador Orega, a personagem masculina
principal, é um «cavaleiro do mar» (ibid.: 148) 2, cujo carácter, combativo e íntegro,
o torna descendente de uma nobre e antiquíssima estirpe. Lutando, com ânimo intré-
pido, contra as adversidades do oceano, ele representa, na sua cultura sem erudição
escolar, a confiança nas capacidades empreendedoras do homem. No universo
ficcional de Branquinho, Orega reifica uma axiologia, cujos valores essenciais viabilizam
uma cosmovisão alicerçada num optimismo antropológico que nem as reiteradas difi-
culdades quotidianas conseguem enfraquecer. A coragem, o trabalho, a resistência
e o amor são, entre outros de semelhante natureza, os sustentáculos que fazem das
personagens nucleares de Mar Santo uma comunidade de gente limpa, sendo a lim-
peza, física e anímica, bem reflectida no sobrado da casa da mãe de Orega, «amarelo
de bem lavado como tábuas de mesa» (Fonseca, 1971: 90).
Nos contos de Bandeira Preta, o protagonismo é repartido por duas perso-
nagens, dois adolescentes de classes sociais totalmente diferentes: Pedro é filho de
senhores rurais e Chinca é filho de Joaquina, «criada da quinta» dos pais de Pedro
(Fonseca, s/d: 210). Consequentemente, o menino rico é «D. Pedro, capitão» e o
menino pobre é «o piloto Chinca» (ibid.: 11). Na conferência que Branquinho apre-

2 Vide a seguinte passagem de Mar Santo: «Aos pescadores, deitados na praia, ou nas tabernas, a beber
e a jogar a laranjinha, o que se passa em terra interessa-lhes pouco. Mas para o mar estão alerta, num
instinto aventureiro de nómadas. O cavalo é o barco. Não sabem andar a pé, têm um passo pesado e
oscilante. Ou no batel que corre ao vento, que salta na crista das ondas, ou estendidos na areia a dormir»
(Fonseca, 1971: 161).

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sentou na universidade de São Paulo, a citação de Ortega y Gasset diz, a dado passo,
o seguinte: a «divisão em massas e minorias excelentes não é uma divisão em classes
sociais, mas em classes de homens. Dentro de cada classe social há massa e minoria
autêntica» (Fonseca, 1966: 14). Esta distinção ajusta-se perfeitamente à situação dos
dois rapazes de Bandeira Preta. Com efeito, apesar de irremediavelmente afastados
em termos de classe social, Pedro e Chinca pertencem à mesma «classe de homens»;
são ambos «minoria autêntica»: provêm da linhagem dos cavaleiros do mar de que
faz parte o jovem pescador de Mar Santo. Note-se, no entanto, que as diferenças
sociais não são obliteradas nos planos em que importa acentuá-las. Há, em todos
estes textos, um realismo minucioso, feito de pormenores intensos, que, em momentos
de grande impacto emocional, revelam e denunciam situações de miséria e de
exploração, sem haver a necessidade de recorrer a uma retórica do grito, totalmente
contrária à estética fonsequiana 3.
Em Bandeira Preta, os traços de classe social de Pedro e Chinca são bem
marcados, não havendo, portanto, a esse nível, nenhuma intencionalidade de teor
escapista, como também não há em Mar Santo. Mas, esclarecida esta questão, é
preciso reafirmar que os dois rapazes pertencem à mesma «classe de homens», e
nessa esfera de humanidade, eles são iguais; o capitão e o seu piloto partilham os
mesmos valores: são movidos pelo espírito da descoberta, regem-se por códigos de
honra e de justiça; executam, com energia inesgotável, um programa de tarefas em
que fica bem demonstrado o vigor físico e ético de que são herdeiros 4. As suas an-
danças, soltos na natureza, têm um saldo pedagógico eficaz; consequentemente,
até ao penúltimo conto, Bandeira Preta é um livro enquadrável, através das suas
personagens centrais, numa visão antropológica regida pela confiança.
O último conto, intitulado «Um Peixe Gordo», é assombrado pela morte de

3 Veja-se, por exemplo, a reacção de Pedro ao saber, inesperadamente, no conto «O Ninho», que Chinca
passava fome: «Pedro olhava o oiro das acácias floridas e pensava no fato do companheiro que ia ali a
seu lado. Não queria agora olhar para ele, não fosse atraiçoá-lo algum ar de pena» (Fonseca, s/d: 102).
E no último conto do livro, «Um Peixe Gordo», perante o corpo morto de Chinca, Pedro presta atenção
ao casaco do amigo «tão velho, todo cosido. A mãe tinha razão: estragava muito os fatos. — O menino
Pedro dá-lhos que são novos, ele derrete-os» (ibid.: 210).
4
No conto «O Ninho», a questão é bem apresentada. Chinca só confiava em Pedro, «não por pergaminhos
de menino rico, nem por terem sido companheiros de escola, mas por um natural à-vontade, categoria
e qualidades que o outro sentia completarem as suas, só Pedro tratava com Chinca de igual para igual,
e era companheiro desejado e conveniente» (ibid.: 99).

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Chinca, e Pedro, com dezoito anos, já é «quase Sr. Doutor» (Fonseca, s/d: 201). Aca-
bou a infância; o fim é bem simbolizado pelo barco das descobertas: «a velha “Nau
Falcão”, de fundo para o ar, mostrava o limoso das tábuas podres» (ibid.: 205). As
lágrimas do capitão D. Pedro no último parágrafo do livro exprimem a dor pela morte
do amigo. Mas não só: o corpo afogado de Chinca, preso no rio, «num oscilar lento
de erva aquática» (ibid.: 208), e «o barco, sem dono» que «batia contra os salgueiros»
(ibid.: 209) são imagens poderosas que ultrapassam as fronteiras do conto e alcançam
um sentido contextualmente mais alargado.
Em O Barão o protagonismo também é repartido por duas personagens mas-
culinas. Mas não há, entre o Barão e o Inspector, a fraternidade sadia que une os
dois amigos de Bandeira Preta. O encontro entre os dois comparsas de uma noite
de desregramento serve um propósito meramente funcional que consiste, por um
lado, em expor a vida represada do Inspector, dominado por uma necessidade de
sobrevivência que inibe a fruição da vida verdadeira; e, por outro lado, serve ao autor
como encenação dramática do espectáculo de decadência patética protagonizado
pelo Barão. Este conto tem merecido uma atenção crítica bastante assinalável, haven-
do hoje várias teorias interpretativas, que ao focalizarem aspectos diferenciados dão
conta da complexidade estética do texto. Por ora, importa apenas salientar as relações
que O Barão permite estabelecer com Bandeira Preta e para isso torna-se necessário
chamar à colação o quarto livro, que, na opinião de António Quadros, completa o
conjunto, ou seja, Porta de Minerva, pois é neste romance que se encontra o elo que
estabelece a coesão dos vários textos em análise.
Tentando despertar o interesse do Inspector, o Barão conta-lhe histórias do
tempo de estudante em Coimbra, pressupondo que o seu interlocutor entende todas
as insinuações que a cidade desperta no imaginário nacional; percebe-se, nesta pers-
pectiva a afirmação seguinte: «Na segunda-feira temos aí uns amigos de Coimbra e
umas sócias, que é o fim do mundo! Conhece Coimbra? Pois claro! Quem é que não
conhece Coimbra?!!! Até tive um cavalo que andou em Coimbra» (Fonseca, 1998:
38). O Barão conta em seguida o episódio burlesco do doutoramento em direito do
seu cavalo Melro, recordando uma parte do discurso que da Porta Férrea dirige aos
estudantes. A arenga começa com a seguinte pergunta: «Há aí alguém que tenha
dúvidas de que isto (e apontei a Universidade) é para cavalos?». Um uníssono «Naaaão»
desfaz todas as incertezas. Ao terminar o breve relato, o Barão faz ao Inspector a
seguinte confidência: «Meu amigo, tenho nove anos no lombo; nove anos de Coimbra
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no lombo já dão que falar...» (ibid.: 38).
Este tipo de discurso sintoniza-se perfeitamente com a faceta mais agressiva
da personagem, que se considera «um animal, uma pura besta» (ibid.: 46), embora
também seja «um pobre homem» e «um poeta» (ibid.: 51). Mas a representação da
universidade como local de boémia pouco sofisticada, sem qualquer ligação com o
estudo e o desenvolvimento das capacidades intelectuais dos alunos, constitui um
factor de perturbação que, na leitura de António Quadros, adquire contornos de tragé-
dia nacional. Diz o ensaísta que «o Barão é afinal, o capitão D. Pedro da Bandeira
Preta, depois de ter passado pela universidade» (Quadros, 1992: 152). Entre o ado-
lescente animado pelo espírito aventureiro e o adulto tolhido pela frustração, situa-
-se o protagonista de Porta de Minerva, Bernardo Cabral, um jovem proveniente de
um espaço geográfico e social similar ao de Pedro, e que frequenta a universidade
com a displicência e o desaproveitamento revelados pelo Barão. As três personagens
partilham, de facto, um conjunto de características que as aproxima, permitindo imagi-
nar uma mesma figura em diferentes momentos. Pedro e Bernardo são naturais de
um lugar entre Viseu e Coimbra, facilmente identificável com Mortágua, terra natal do
escritor. O Barão, perdido na serra do Barroso, foge a este espaço de marcação
autobiográfica, e é natural que assim seja, pois ele representa um desenvolvimento
de carácter que não tem nada que ver com os biografemas autorais reconhecíveis
em Bandeira Preta e Porta de Minerva. O empenho de Branquinho na fundação de
bibliotecas constitui um exemplo de intervenção cívica modelar, totalmente contrário
ao insulamento sáfaro e anacrónico figurado no Barão. Mas o alcance simbólico da
personagem permite integrá-la num hipotético futuro de Bernardo, imaginável a partir
da ineficácia da formação universitária e do consequente sentimento de frustração
e desistência, destruidor do espírito de iniciativa anunciado por Pedro e o seu amigo
Chinca.
Em Porta de Minerva, impera um ambiente de clausura que se manifesta
desde o primeiro contacto de Bernardo com Coimbra. A sensação de cerco exercida
pelo espaço físico — as ruas, os quartos, as repúblicas — transforma-se rapidamente
em opressão, defluente de uma tirania que bloqueia o indivíduo, cerceando-lhe a
liberdade física e mental. A praxe é o símbolo máximo desse estado repressivo. É,
pois, perfeitamente compreensível a reacção de Bernardo contra os comportamentos
acéfalos dos praxistas, porquanto ele mantém ainda o vigor de uma educação
alicerçada no respeito pelos outros. As suas incursões na natureza, durante as férias,
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ou a reconstrução da adolescência na figura do capitão D. Pedro, permitem dar conta
de uma grande capacidade de entender a dignidade de cada ser vivo, como se pode
ver no belo conto «O Ninho», inserto em Bandeira Preta. Ora, a praxe significa exacta-
mente o contrário: a violência exercida sobre os estudantes mais novos e desprotegidos,
bem como a selvática caça aos gatos, também denunciada por Miguel Torga no pri-
meiro volume do Diário 5 , são comportamentos que colidem com a formação de
Bernardo e de Pedro e que, recordando as considerações de Ortega y Gasset acima
referidas, comprovam a prevalência de «massa» num grupo em que seria de esperar
o predomínio de «minoria autêntica». Na verdade, é impressionante em Porta de
Minerva a indigência da vida cultural dos estudantes, e a incapacidade de a universidade
funcionar como lugar de verdadeira aprendizagem. O império obsoleto da «sebenta»
e o tirocínio continuado da subserviência perante o poder anunciam um resultado
pouco auspicioso, tendo em conta o facto não despiciendo, de se tratar do alfobre
onde eram recrutados os dirigentes do país. O pessimismo realista de António Quadros
descreve da maneira seguinte o fracasso da formação universitária: «O país ficará
povoado de uma falsa elite e será dirigido por uma oca hierarquia» (Quadros, 1992:
151). Doutorando em direito o seu cavalo Melro, o Barão denuncia essa oca hierarquia
doutoral que tem sido alimentada pela prepotência de corporações que dominam o
país e exigem «respeitinho». Mas a atitude derrisória do Barão comporta, na sua
essência grotesca, um lamento profundo que se sobrepõe à inicial impressão de
hilaridade. Caricaturando, de forma tão violenta, os rituais académicos, o Barão não
pretende apenas ser cómico, pois mantém, apesar de tudo, uma atenção crítica, que
se manifesta, por exemplo, no momento em que interrompe a narração do episódio
do doutoramento equino, bradando: «Isto é que são estradas!...Em os buracos
estando mais jeitosos trago cá o Governo e esfrego-lhes aqui as trombas...» (Fonseca,
1998: 38). Este tipo de reacção aproxima-o das atitudes enérgicas de Pedro: recorde-
se o momento em que o adolescente conclui que Deus não existe e começa «a
marchar em volta do quarto» cantando a «Maria da Fonte», em sinal de glorificação
da «santa liberdade» (Fonseca, s/d: 60); ou quando, «numa espécie de responsabilidade
por si próprio» (ibid.: 122) atravessa uma noite de todos os medos para conquistar
uma folha de castanheiro que era «a prova da sua coragem» (ibid.: 127). O protagonista

5 «Coimbra, 1 de Março de 1933 — Continuam as matanças de gatos, à mocada, cá na república. Uma


selvajaria. Só quem assiste a isto pode avaliar o que é um homem primitivo. Não há Universidade que nos
tire da idade da pedra lascada» (Torga, 1989: 10).

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de Porta de Minerva mantém, ao longo do romance o carácter aprumado que o
assemelha ao capitão D. Pedro; são, no entanto muito significativas as palavras do
primeiro diálogo que Bernardo estabelece com Inácio, seu conterrâneo e protector,
logo à chegada a Coimbra, ao ser recebido pelos zelosos cumpridores da praxe:

Inácio virou costas empurrando o caloiro. Os da troupe eram sete ou oito,


mas ficaram a vê-los atravessar a gare, lentamente, conversando como se nada
tivesse acontecido.
Inácio era da mesma vilória serrana, lá para as bandas de Viseu, quartanista
de Medicina, simples e franco como um bruto.
- Mas onde raio vinhas tu que não houve maneira de te ver? Devias vir à
janela...
- Para quê? É bom que estes gajos vão sabendo que sou duro de roer...
- Põe-te com essas...Eles amolecem-te... (Fonseca, 1968: 14)

A ameaça assegurada pela experiência do quartanista Inácio — «Eles amole-


-cem-te» — é, logo à entrada do romance, um indício ominoso, que terá repercussões
em toda a experiência académica dos alunos. «Eles» são, nesta cena inicial os praxistas
que aterrorizam os caloiros; mas no contexto de Porta de Minerva o pronome vai
adquirindo vários nomes: «Eles» são também os professores, cujo magistério é descrito
de forma totalmente negativa. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:

A meio do ano já Bernardo tinha dado todas as faltas permitidas, e via-se


obrigado a ir às aulas. (...) Sentia-se fatigado e melancólico daquela sensação de
tempo perdido que lhe davam as aulas. Considerava-as mais do que inúteis, prejudiciais.
Os professores repetiam de uns anos para os outros o que vinha já nas sebentas.
Em verdade os alunos iam lá só porque eram obrigados, mas não os ouviam e nem
mesmo os ursos iam com o interesse de quem vai aprender alguma coisa. Fingiam,
sentados nas carteiras, habituando-se a usar uma máscara de conveniência. Talvez
fosse essa a utilidade que dali traziam para a vida: aprender a afivelar a máscara.
(ibid.: 154)

A ilação sobre a utilidade das aulas é realmente desconcertante: fingir,


habituando-se a usar uma máscara de conveniência, significa, entre outras coisas,
uma aprendizagem da hipocrisia, da dissimulação, da falta de frontalidade. Transposta
para os vários planos da vida nacional, esta elite reprimida transformar-se-á rapidamente
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em agente de repressão. A promessa de amolecimento que Bernardo recebe ao
chegar a Coimbra será eficaz; a prova disso está no último parágrafo do romance:

(...) Apressando o passo pela rua estreita, sentia o alívio de lhe terem arrancado a
camada que aqueles anos lhe tinham acumulado sobre a pele. E todo nu, como num
regresso simbólico à pureza primitiva, debaixo da velha capa que o vento sacudia,
parecia-lhe ser agora, enfim, um homem livre. (Fonseca, 1947: 345) 6

A tradição do rompimento das roupas no fim do curso tem neste romance


um significado mais profundo do que é habitual 7. Alheando-se totalmente do ambiente
de festa e brincadeira, Bernardo entrega-se a um sentimento em que não há a mínima
nota de nostalgia de um tempo que está inscrito na mitologia nacional com as marcas
da saudade. Abandonar a universidade é para a personagem fonsequiana um acto
de libertação e um «regresso simbólico à pureza primitiva», como se Bernardo
recuperasse a adolescência solta na figura do capitão D. Pedro. Mas o romance não
nos diz que caminhos ele seguirá. Branquinho pretendeu escrever a continuação do
livro, em que mostraria a transformação dos jovens estudantes em adultos bem
instalados «nos quadros da plutocracia e nos ministérios governamentais» (cf. Ferreira,
2004: 135). Mas esse livro não chegou a ser escrito, porquanto, a partir de 1957,
quando aceita o convite de Azeredo Perdigão para criar e dirigir o serviço de Bibliotecas
Itinerantes da Fundação Calouste Gulbenkian, entrega-se com tal afinco a essa tarefa
que a sua actividade como escritor fica reduzida à organização de antologias. Não
sabemos, portanto, o que aconteceu realmente a Bernardo. Um muito jovem Egito

6 Cito a partir da primeira edição do romance, pois na edição das Obras Completas o final do romance é
um pouco diferente: «Mas Bernardo ia alheio às divagações do amigo. Atravessou o jardim da Universidade;
pela nobre Porta de Minerva, com seu arco de pedra coroado pela deusa antiga, desceu à rua estreita.
E como num regresso simbólico à pureza primitiva, nu, debaixo da velha capa sacudida pelo vento, sentia
que era, enfim, um homem livre» (Fonseca, 1968: 315).
7 Miguel Torga descreve assim a sua experiência, no primeiro volume do Diário: «Coimbra, 8 de Dezembro

de 1933 – Médico. Conforme a tradição, mal o bedel disse que sim, que os lentes consentiam que eu
receitasse clisteres à humanidade, conhecidos e desconhecidos rasgaram-me da cabeça aos pés. Só
deixaram a capa. E aí vim eu pelas ruas fora o mais chegado possível à minha própria realidade: um homem
nu, envolto em três metros de negrura, varado de lado a lado por um terror fundo que não diz donde vem
nem para onde vai» (Torga, 1989: 11). E no segundo volume de A Criação do Mundo também é referido
o mesmo episódio, precedido das seguintes considerações: «O velho costume universitário de ser rasgado
no fim do curso, aplicado à minha pessoa, parecia-me duplamente absurdo. Sempre combatera abertamente
a praxe, e considerava a capa e batina símbolos anacrónicos dum passado morto» (Torga, 1970: 103).

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três personagens de Branquinho da Fonseca
Gonçalves, em carta dirigida a Branquinho, e datada de 6 de Janeiro de 1948, começa
por manifestar o seu apreço por Porta de Minerva, que considera «de todos os
romances saídos de há anos para cá o mais empolgante», e acaba por fazer a seguinte
consideração: «Talvez Bernardo triunfe no foro ou na política. Não o creio. Acho-o
sério em demasia para isso» 8. A desarmante constatação do jovem poeta é, inadverti-
damente, uma condenação total da formação universitária descrita no livro: Bernardo,
demasiado sério, esqueceu o que lhe ensinaram, e por isso não pode triunfar nem
no foro nem na política; mas depreende-se que os outros, os que não viram no
rasgar das roupas um indício da necessidade de libertação, esses aprenderam bem
a lição da falsidade doutoral e serão os dirigentes do País.
Regressando à leitura de António Quadros, é neste ponto que está o cerne
dramático da questão. A matriz de sonho e espírito de descoberta que anima Pedro
e Bernardo refugia-se, para não morrer, na figura do Barão levando à Bela-Adormecida
uma rosa, que é, ao mesmo tempo, um símbolo de esperança e desistência. Como
os marinheiros que no cais, olhando a distância apetecida soubessem que haviam
perdido as graças do mar.

Referências bibliográficas
FERREIRA, António Manuel (2004). Arte Maior: os contos de Branquinho da Fonseca. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
FONSECA, Branquinho da (1966). «Situação do escritor». Espiral 13, 13-22.
— (1971). Mar Santo. Lisboa: Portugália.
— (1998). O Barão. Lisboa: Relógio D'Água.
— (s/d). Bandeira Preta. Lisboa: Portugália.
— (1984). As Grandes Viagens Portuguesas. 1ª Série. Sintra: Manuscrito.
— (1947). Porta de Minerva. Lisboa: Ática.
— (1968). Porta de Minerva. Lisboa: Portugália.
MISHIMA, Yukio (2000). O marinheiro que perdeu as graças do mar. Lisboa: Assírio & Alvim.
QUADROS, António (1992). «As matrizes arcaicas da psicologia portuguesa na obra novelística
de Branquinho da Fonseca». In Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura portuguesa.
Lisboa: Átrio, 145-153.
TORGA, Miguel. (1989). Diário. Coimbra.
— (1970). A Criação do Mundo II. Coimbra.

8 A carta de Egito Gonçalves encontra-se no espólio de Branquinho da Fonseca.

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