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Índice

Capa
Pá gina de direitos autorais
CONTEUDO
Aprovaçã o O icial da Ordem Dominicana
Prefá cio
Capı́tulo 1
Capı́tulo 2
Capı́tulo 3
Capı́tulo 4
capı́tulo 5
Capı́tulo 6
Capı́tulo 7
Capı́tulo 8
Capı́tulo 9
Capı́tulo 10
Capı́tulo 11
Capı́tulo 12
Capı́tulo 13
Capı́tulo 14
Capı́tulo 15
Capı́tulo 16
Capı́tulo 17
Capı́tulo 18
Capı́tulo 19
Capı́tulo 20
Bibliogra ia
Notas

São Martinho de Porres

Apóstolo da caridade

Giuliana Cavallini
Imprimatur: ✠ Cletus F. O'Donnell,
Vigário Geral JCD
, 19 de setembro de 1963
Este volume é uma traduçã o de I Fioretti del Beato Martino de Giuliana Cavallini, publicado pela
Edizioni Cateriniane em Roma em 1957.

Originalmente publicado em inglê s pela B. Herder Book Company em 1963.

Copyright © 1963 por B. Herder Book Company.

Copyright © 1979 por TAN Books, uma editora de Saint Benedict Press, LLC.
Cartã o de Catá logo da Biblioteca do Congresso nº: 79-65530

ISBN: 978-0-89555-092-7

Design da capa por Tony Pro.

Foto da capa com copyright © 2009 por Milo Persic. Tirada em Cappella di S Martino di Porres, S
Maria delle Grazie, Milã o, Itá lia.

Livros TAN
Charlotte, Carolina do Norte
www.TANBooks.com

2012

CONTEÚDO

Aprovaçã o O icial da Ordem Dominicana


Prefá cio
Capı́tulo 1
Capı́tulo 3
Capı́tulo 4
capı́tulo 5
Capı́tulo 6
Capı́tulo 7
Capı́tulo 8
Capı́tulo 9
Capı́tulo 10
Capı́tulo 11
Capı́tulo 12
Capı́tulo 13
Capı́tulo 14
Capı́tulo 15
Capı́tulo 16
Capı́tulo 17
Capı́tulo 18
Capı́tulo 19
Capı́tulo 20
Bibliogra ia
Notas

Aprovação O icial da Ordem Dominicana


Esta interessante e inspiradora biogra ia de Sã o Martinho de
Porres foi originalmente intitulada I Fioretti del Beato Martino e foi
apresentada ao pú blico em 1957. Nesse mesmo ano, o Mestre Geral da
Ordem Dominicana, agora Michael Cardinal Browne, OP, escreveu uma
carta de elogio à autora, Giuliana Cavallini.
Por ocasiã o da canonizaçã o de Sã o Martinho de Porres, a biogra ia
foi publicada em uma nova ediçã o pelo Postulador Geral Dominicano,
sob o tı́tulo Vita de San Martino . Ao mesmo tempo, a versã o em inglê s
foi preparada para a série Cross and Crown of Spirituality da B. Herder
Book Company por Caroline Holland de Chicago. Novo material foi
adicionado ao volume original para tornar esta biogra ia o mais
de initiva possı́vel.
Estou muito satisfeito que o Padre Jordan Aumann, OP, Editor Geral
da Série da Cruz e Coroa de Espiritualidade , tenha selecionado esta
biogra ia para distribuiçã o americana. Estou certo de que, por meio
desta excelente traduçã o para o inglê s, a vida de Sã o Martinho de
Porres se tornará conhecida a muitos mais leitores e aqueles que já se
dedicam a ele obterã o um conhecimento mais ı́ntimo de sua vida
sagrada.
Apraz-me també m informar que, pela autoridade do Rev.mo
Aniceto Ferná ndez, OP, Mestre Geral da Ordem Dominicana, este
volume é reconhecido e apresentado como uma biogra ia o icial de Sã o
Martinho de Porres.
Que Deus, por intercessã o de Sã o Martinho, abençoe este volume
com todo o sucesso.

Padre Tarcisius Piccari, OP


Postulador Geral
Santa Sabina, Roma, Itá lia

Prefácio
No verã o de 1955, quando terminei esta biogra ia de Martin de
Porres, escrevi um Prefá cio como explicaçã o do tı́tulo que havia dado à
obra: I Fioretti del Beato Martino ( As Pequenas Flores do Beato
Martinho ).
Agora, apó s a canonizaçã o de Martin e com a publicaçã o
desses ioretti em inglê s, nã o encontro nada a ser mudado no Prefá cio
original, embora o tı́tulo do livro nã o possa permanecer como era na
ediçã o italiana. Uma traduçã o do tı́tulo original para o inglê s teria
pouco signi icado.
Esses ioretti nã o sã o uma histó ria cronoló gica nem crı́tica da vida
de Martin de Porres. Sã o episó dios retirados de depoimentos prestados
durante o processo de sua beati icaçã o. As pessoas que deram o
testemunho conheceram Martin durante sua vida e foram solicitadas a
declarar sob juramento o que sabiam sobre ele. E certo, portanto, que
essas testemunhas apresentaram ielmente os fatos como os
conheciam. Os eventos eram extraordiná rios demais para serem
esquecidos, especialmente porque tã o pouco tempo havia se passado
desde que aconteceram.
A ú nica justi icativa para a apresentaçã o desses detalhes
extraordiná rios da vida de Martin de Porres - inexplicá veis de qualquer
ponto de vista natural - é a pessoa que emerge do depoimento
juramentado das testemunhas. A inclusã o de tais detalhes é natural e
até necessá ria, pois nenhum retrato do Santo estaria completo se essas
manifestaçõ es exteriores de sua santidade fossem omitidas.
Podemos aceitar e até desfrutar desses detalhes incrı́veis, sabendo
que a autê ntica santidade do O Irmã o dominicano de Lima repousa
sobre outra base: a prá tica constante e heró ica das virtudes e
principalmente da caridade, virtude que inquestionavelmente marcou
toda a sua vida.
Muitas vidas de Martin de Porres foram escritas nos ú ltimos cem
anos, especialmente nos Estados Unidos, onde a devoçã o a ele cresceu
de maneira notá vel desde 1866. Naquele ano o padre Felice Barotti
ergueu uma capela em Washington como centro para os afro-
americanos a quem dedicou o seu apostolado. A capela foi colocada sob
o patrocı́nio de Sã o Martinho, que o Padre Barotti propô s como modelo
e sı́mbolo de esperança para as vı́timas do preconceito racial.
Martin de Porres, cuja santidade era tã o rica e variada em seus
aspectos, atrai e conforta. Um verdadeiro ilho de Sã o Domingos, iel à s
tradiçõ es mais severas de sua Ordem, Martinho tinha a mente e o
coraçã o abertos e prontos para responder a todas as necessidades de
seus semelhantes. E enquanto planejava e executava magnı́ icos
projetos no que hoje chamarı́amos de apostolado social, nã o desprezou
ao mesmo tempo exercer suas habilidades e até seu dom de curar a
serviço dos animais e das plantas.
Entre os numerosos livros escritos sobre Martin, muitos deles de
grande importâ ncia, estes ioretti lorescem com toda a
humildade. Florescem como fruto do desenvolvimento espiritual
daquela “á rvore do amor” que foi a alma de Martinho de Porres, para
usar uma expressã o de Santa Catarina de Sena. Em sua alegoria da
á rvore plantada no solo da humildade e nutrida pela oraçã o, ela a irma
que tal á rvore loresce na caridade, para louvor de Deus e benefı́cio dos
homens.

Acrescento ao Prefá cio original apenas a esperança de que


estes ioretti , cruzando as fronteiras da terra onde loresceram, possam
levar ao vasto mundo odoce cheiro da santidade de Martin de Porres e
inspira nas almas o amor pela beleza de uma vida santa. Que eles
també m contribuam com sua pequena maneira para aquela
revitalizaçã o do Corpo Mı́stico de Cristo que o Papa Joã o XXIII desejou
ardentemente como resultado do Concı́lio Ecumê nico, como a irmou
em seu discurso solene por ocasiã o da canonizaçã o de Martinho de
Porres.
Giuliana Cavallini
Missioná ria das Escolas

Capítulo 1
“Seus caminhos sã o lindos: e todos os seus caminhos sã o pacı́ icos.” ( Prov . 3:17).

S
t. Martin de Porres nasceu em Lima, Peru, em 9 de dezembro de 1579.
Nã o é preciso descrever Lima nem traçar sua histó ria. Para quem
nã o tem certeza de sua posiçã o geográ ica, basta consultar um mapa da
Amé rica do Sul. Se seguirmos o contorno da costa oeste de norte a sul,
Lima será encontrada a cerca de um terço da extensã o do continente,
perto de seu porto, Callao.
A histó ria da primeira dé cada da conquista espanhola é uma
mistura de ousadia e crueldade que a admiraçã o por esses intré pidos
pioneiros é interrompida pelo horror por sua desumanidade. Os
primeiros brancos a chegar à s margens do Novo Mundo foram, é
verdade, destemidos de enfrentar e superar os mil perigos
desconhecidos apresentados por um clima mortal e uma terra selvagem
infestada de animais selvagens e de insetos ainda mais perigosos que as
feras. . Mas, ao mesmo tempo, a sede de ouro os tornava mestres da
crueldade, contrastando estranhamente com aquele cará ter de arautos
do Evangelho, em que se gloriam, e provavelmente com intençõ es
sinceras.
E quase um milagre que a fé cató lica tenha se estabelecido entre os
ı́ndios, apesar da brutalidade praticada pelos conquistadores.
Quando Hatuey, chefe de Cuba, foi batizado no exato momento em
que os invasores, insatisfeitos com o ouro que ele tinha oferecido para
saciar sua cupidez, se preparavam para queimá -lo vivo, perguntou ao
padre missioná rio: “Os cristã os brancos també m entrarã o
em paraı́so?" Recebendo uma resposta a irmativa, ele respondeu:
"Entã o, pre iro icar sem isso!"1
Mas os ı́ndios logo encontraram defensores ferrenhos. Em 1510,
doze Frades Pregadores fundaram um mosteiro na ilha de Santo
Domingo e, num domingo do mesmo ano, um deles, o Padre Antó nio de
Montesino, denunciou do pú lpito a crueldade dos espanhó is: “Por causa
da crueldade e tirania que você in ligiu a um povo inocente e pacı́ ico,
você está mais longe da salvaçã o do que os muçulmanos que negam o
nome de Nosso Senhor Jesus Cristo! ” E ele declarou que nem ele nem
seus companheiros sacerdotes dariam absolviçã o aos que maltratassem
os nativos.
Indiferente a todos os protestos e ameaças, Padre Montesino
continuou a pregar constantemente sobre o mesmo tema até o dia em
que embarcou em um navio que partia para a Espanha para que
pudesse pleitear a causa dos ı́ndios perante o rei. Nã o foi fá cil conseguir
uma audiê ncia com o rei Fernando; todos os interessados na pilhagem
ilimitada da terra do outro lado do mar o impediram. Parece que
inalmente o padre Anthony (um homem cujo coraçã o corajoso foi
igualado por seu fı́sico de atleta) ganhou entrada na presença do rei por
pura força, jogando de lado um assistente estacionado na porta para
impedir sua entrada. As primeiras leis de proteçã o dos direitos dos
ı́ndios, conhecidas como Leis de Burgos de 1514, resultaram de sua
audiê ncia com o rei.
Mas a pregaçã o do Padre Antô nio teve um efeito ainda maior. Isso
despertou o interesse de Bartolomeu de Las Casas, entã o sacerdote
diocesano, mas que mais tarde se tornou dominicano e bispo. Ele
dedicaria toda a sua vida à causa dos ı́ndios e se tornaria um modelo
para todos os defensores dos ı́ndios contra a tirania dos brancos.2
As novas leis, que iriam coroar os esforços de Las Casas, em 1542,
ainda nã o havia sido promulgada quando Pizarro e Almagro, com
poucos homens mas grande ousadia, desceram do Panamá em um
pequeno barco, viajando para o sul em direçã o à lendá ria terra dos
incas. E triste, mas nã o surpreendente, que a conquista do Peru tenha
sido marcada pelas mesmas cenas de horror que haviam sido
encenadas nas regiõ es conquistadas nos anos anteriores. Os
habitantes do Peru haviam alcançado um alto grau de cultura e seu
sistema de governo estava perfeitamente organizado. O contraste entre
os mé todos brutais de conquista e os costumes de uma populaçã o
nada primitiva era, portanto, ainda mais notá vel. Na verdade, em
alguns aspectos, os peruanos eram mais civilizados do que os
europeus, que usaram meios violentos para substituir a autoridade dos
incas por sua autoridade.3
Em poucos anos todo o paı́s foi conquistado pelos espanhó is. Na
festa da Epifania de 1535, Pizarro lançou as bases da nova capital,
destinada a substituir a antiga capital de Cuzco, que se situava nas
montanhas e muito longe do porto marı́timo. Esta nova capital foi
inicialmente chamada de “Cidade dos Reis”, em memó ria do dia da sua
fundaçã o, mas posteriormente a comemoraçã o dos Trê s Reis foi
suplantada pela presença viva e sonora do rio que atravessa a cidade, o
Rimac . E de “Rimac” o nome “Lima” foi derivado.4
Os primeiros anos da histó ria de Lima foram atormentados, cheios
de lutas nã o só entre espanhó is e indı́genas, mas entre os pró prios
espanhó is. A sede de poder e riqueza, que tornou os conquistadores
capazes de qualquer crueldade que pudesse abrir a porta para o
tesouro, levou-os a lutar uns contra os outros para alcançar os postos
de honra e lucro. A cidade ainda nã o tinha sete anos quando Pizarro foi
assassinado em seu pró prio palá cio, vı́tima de um complô encabeçado
pelo ilho deo mesmo James de Almagro que fora companheiro de
Pizarro na conquista do Peru e de cuja morte Pizarro nã o pode ser
considerado inocente.
No entanto, com a rapidez com que cada semente trazida do Velho
Mundo parecia se desenvolver no Novo, Lima rapidamente adquiriu
calma su iciente para se tornar um centro de cultura e també m a capital
polı́tica e comercial. Em 1551, os dominicanos fundaram ali uma
universidade, a Universidade de Sã o Marcos, a primeira a ser
estabelecida em todo o territó rio das duas Amé ricas. Lima havia sido
fundada apenas dezesseis anos antes.
Os ilhos de Sã o Domingos foram os primeiros a pregar o
Evangelho na terra dos Incas. Eles haviam compartilhado os perigos da
aventura peruana com Pizarro no mesmo barco em que ele e seus
homens navegaram para o sul pelo Pacı́ ico. Os missioná rios de muitas
outras ordens os seguiram: franciscanos, agostinianos, mercedá rios,
jesuı́tas. Mas a Divina Providê ncia reservou aos primeiros
trabalhadores missioná rios os melhores frutos da semente do
Evangelho semeada entre o litoral e as alturas proibidas dos Andes.
O primeiro bispo foi um dominicano, Vincent de Valverde. O
primeiro centro de cultura foi Dominicana, a Universidade de Sã o
Marcos. E, muito mais importante do que tudo, o primeiro santo foi um
dominicano, Santa Rosa de Lima.
Mas antes mesmo que as á guas do batismo tivessem infundido,
junto com a graça santi icadora, o germe da santidade na alma da
pequena Rosa de Santa Maria - aliá s, sete anos antes - outra alma
privilegiada, destinada a atingir os altos da perfeiçã o na Ordem. dos
Frades Pregadores, recebeu o dom da vida sobrenatural na mesma pia
batismal da igreja de Sã o Sebastiã o, em Lima.
Martin era ilho de John de Porres, um nobre cavalheiro espanhol e
Cavaleiro da Ordem de Alcá ntara, e de Anna Velá zquez uma negra
livre. Quando o pai viu que a pele do bebê era preta, ele nã o quis
reconhecer o bebê como seu ilho. O registro de batismo traz a entrada,
"Martin, ilho de um pai desconhecido." Mais tarde, poré m, John se
arrependeu e reconheceu legalmente Martin e Joan, a ilha nascida dois
anos depois.5
Os primeiros anos de Martin foram passados com a mã e e a irmã
mais nova. Como ele era perspicaz, à s vezes Anna o enviava para fazer
compras. Martin saiu com o dinheiro e a cesta vazia. Freqü entemente -
mas nem sempre - ele voltava sem dinheiro e a cesta ainda vazia. Havia
tantos pobres em Lima, e Martin nã o podia recusar quem pedia
caridade.
E quanto tempo ele demorou para ir ao mercado! Ele poderia
passar metade da manhã eliminando alguns centavos. Nã o porque ele
parou no caminho para brincar com outros rapazes de sua idade, mas
porque se ele se deparou com uma igreja, ele entrou para
cumprimentar seu Pai celestial, que o fez Seu ilho, enquanto seu
pró prio pai terreno o repudiou. Ele passou da luz da rua para as
sombras misteriosas e orantes da igreja, e percorrendo toda a extensã o
da espaçosa nave com o passo leve de uma criança, ajoelhou-se diante
do altar. Ali icou, absorto na oraçã o, os olhos enormes, bem abertos e
muito brancos no rosto negro, ixos no cruci ixo ou num quadro da
Virgem, envolto no silê ncio dos arcos altı́ssimos e na paz profunda tã o
diferente da misé ria barulhenta de sua pró pria casa.
Mas em casa ele tinha que acertar contas com sua mã e, que, tendo
muito pouco dinheiro, nã o podia aprovar a generosidade de seu ilho
pequeno. “Veja, é sua culpa que hoje nã o temos nada para comer; nã o
só você , mas també m sua irmã zinha e eu! ”
Martin recebeu sua puniçã o em silê ncio. Se ele chorou, foi por
causa das di iculdades da mã e. E no primeirooportunidade, ele repetiu
a ofensa.6
Nesse ı́nterim, o pequeno cı́rculo de conhecidos de Anna Velá zquez
começou a notar a criança, tã o inteligente e tã o boa. Talvez houvesse
quem abanasse a cabeça e criticasse John de Porres que, embora rico,
deixou a mã e e os ilhos viverem na misé ria.
Naquela é poca, John de Porres nã o morava em Lima, mas em
Guayaquil, Equador, onde exercia um cargo governamental. Ele ia a
Lima apenas de vez em quando. Depois de uma dessas visitas a Lima,
ele voltou para Guayaquil com os dois ilhos e os manteve com ele,
tratando-os como um pai deve tratar seus pró prios ilhos. Alé m de
contratar professores competentes para eles, ele pró prio completou sua
educaçã o por meio do contato diá rio, gastando com eles todas as horas
livres que podia dispensar de seus deveres o iciais.
Assim aconteceu que em certa ocasiã o, ao passear com Martin e
Joan, John de Porres conheceu um de seus tios, James de Miranda, que
lhe perguntou quem eram os dois ilhos. Ele respondeu com franqueza:
“Eles sã o meus ilhos e os de Anna Velá zquez. Estou com eles aqui e
estou cuidando de sua educaçã o ”.7
Martin tinha entã o oito anos, Joan seis.
Esse interlú dio sereno nã o durou muito, talvez nã o mais de quatro
anos. Foi interrompido e encerrado quando John de Porres deixou o
Equador para governar o Panamá . Joan foi con iada ao tio, James de
Miranda, e John levou Martin de volta para Lima para sua mã e. Ele
queria que o menino fosse con irmado antes de sua partida para o
Panamá . Antes de sair de Lima, John deu a Anna fundos su icientes para
permitir que Martin concluı́sse sua educaçã o e aprendesse um ofı́cio, e
també m dinheiro su iciente para garantir que eles fossem libertados da
privaçã o.

Capítulo 2
“A sabedoria de um homem discreto é compreender o seu caminho.” ( Prov . 14: 8).
UMA
NA IDADE de doze anos ou um pouco mais, Martin teve que tomar sua
primeira decisã o importante, a escolha de um comé rcio que o ajudasse
a ganhar a vida para si e para sua mã e, já que sua irmã era sustentada
por seu tio-avô , James de Miranda.
E possı́vel que tenha tomado sua decisã o com a aprovaçã o afetuosa
de seu pai antes que este deixasse Lima, pesando com ele os fatores a
favor e contra as vá rias possibilidades. Mas nã o parece que John de
Porres impô s sua autoridade paterna sobre a vontade de seu
ilho; parece antes que Martin fez sua escolha livremente, de acordo
com suas pró prias inclinaçõ es e desejos.
Como consequê ncia dessa livre escolha, Martin foi à loja de Marcel
de Rivero para aprender a ser barbeiro, o que naquela é poca signi icava
nã o só cortar cabelos e barbas, mas també m deixar sangue, tratar
feridas e fraturas e até mesmo prescrever remé dios para os casos mais
comuns de doença. Um barbero ou cirujano era, de fato, ao mesmo
tempo barbeiro, cirurgiã o, mé dico e farmacê utico.
Martin aplicou-se arduamente ao estudo de sua pro issã o. Talvez
ele tenha previsto como isso seria ú til para ajudar os pobres. Junto com
muita boa vontade, um grau de inteligê ncia acima do comum começou
a se manifestar nele. Logo Marcel de Rivero nã o tinha muito mais a lhe
ensinar, e vá rias vezes, quando teve que se ausentar da loja, deixou
Martin encarregado da sala de “primeiros socorros”.
Em uma dessas ocasiõ es, Martin viu trê s ou quatro homens
entrando no consultó rio, carregando um ı́ndio que havia sido
espancado e estava sangramento de vá rios ferimentos recebidos em
uma briga de rua. Ao saber que o mé dico nã o estava lá , seus rostos
caı́ram. Con iar um homem nessa condiçã o a um mero menino, um
aprendiz? Mas todas as suas dú vidas desapareceram quando viram
Martin começar a trabalhar com segurança e habilidade. Martin lavou
as feridas e amarrou-as com habilidade, depois deu um copo de bom
vinho ao homem, que estava exausto pela perda de sangue. Ficaram
ainda mais satisfeitos quando, depois de alguns dias, o ı́ndio voltou ao
trabalho, tã o bem e forte quanto antes.1
Por causa desse e de outros incidentes semelhantes, a fama do
jovem estudante indı́gena começou a se espalhar por Lima, pois
mostrava possuir uma habilidade nã o inferior à de seu professor
estrangeiro. E tal era a habilidade do aluno que, aos poucos, os clientes
passaram a preferir seu olho e sua mã o ao olho e à mã o do professor.
Martin poderia ter ganhado muito dinheiro e vivido
confortavelmente com sua mã e. Mas a mesma caridade que o impeliu,
quando criança, a dar aos pobres o dinheiro que sua mã e lhe con iara
para comprar o pã o de cada dia, agora o impeliu a se dedicar aos
pobres. Ele recusou dinheiro quase com horror. Nã o parece, entretanto,
que seu desinteresse pro issional despertasse em sua mã e a mesma
indignaçã o que a caridade impensada de sua infâ ncia havia causado. Já
que John de Porres assumira a responsabilidade pela pequena famı́lia,
eles nã o precisavam mais, e Anna Velá zquez, que, como seu ilho, tinha
bom coraçã o, nã o era mulher que desejasse supé r luos quando tinha o
necessá rio.2
Ela també m nã o se opô s ao há bito que Martin adquiriu quando
muito jovem de visitar as igrejas ao longo de seu caminho. E verdade,
claro, que Martin, quando menino e estudante, sabia melhor do que
quando criança; entã o agora, em vez de voltar para casa mais tarde, ele
saiu mais cedo.Partiu ao amanhecer e, no caminho entre sua casa na
rua Malambo e a loja de Marcel de Rivero, parou muito tempo na igreja
de Sã o Lá zaro, servindo quantas missas podia. Mas ele sempre chegava
na hora na loja.
Entã o, depois de ter passado o dia inteiro no esforço de se
aperfeiçoar na pro issã o e usá -la para ajudar os pobres, fechou-se em
seu quarto para alimentar sua alma com leituras espirituais e
oraçã o. Mas porque nã o aceitava dinheiro de seus pacientes, e talvez
porque nã o queria que sua mã e soubesse de suas longas vigı́lias, ele
implorou ao dono da casa, Ventura de Luna, que lhe desse os tocos de
vela pequenos demais para ela. usar. Ela os deu a ele de boa vontade. No
entanto, sua curiosidade foi despertada por esse pedido contı́nuo de
tocos de vela, e uma noite Ventura decidiu descobrir o que Martin fazia
à noite. Ela foi até a porta dele, encostou o ouvido nela e ouviu. Ela
pensou ter ouvido suspiros e gemidos abafados. Ela se abaixou para
espiar pelo buraco da fechadura. De joelhos, imó vel, o rosto banhado
em lá grimas, os braços estendidos em cruz, os olhos ixos no cruci ixo,
Martin parecia ter concentrado todo o seu ser naquele olhar e naquela
postura que re letiam o objeto de sua contemplaçã o. .
Ventura o observou, prendendo a respiraçã o, e depois foi embora
suavemente. Como sua descoberta a impressionou profundamente e ela
nã o conseguia tirá -la da mente, ela se sentiu impelida a falar sobre isso
com seus amigos.
Ela fez ainda mais; ela os convidou a vir e compartilhar sua
descoberta. Noite apó s noite, os amigos de Ventura de Luna espiavam
pelo buraco da fechadura o segredo da misteriosa troca de amor entre
Cristo cruci icado e Martin, enquanto ele permanecia felizmente
inconsciente de sua indiscriçã o.3
Foi nesse perı́odo da vida de Martin que Deus deu a primeira
indicaçã o - ou uma das primeiras - dos prodı́gios que Ele realizaria
mais tarde por meio de Martin. O menino havia plantado limã o no
quintal da casa em que morava. Em pouco tempo, ali lorescia um
pequeno limoeiro e dava frutos em todas as estaçõ es do ano. Muitos
anos depois de sua morte, “o limoeiro do irmã o Martin” ainda estava
crescendo e dando frutos o ano todo.4

Capítulo 3
"Venha me seguir." ( Mat . 19:21).

O
NA MANHA, os pacientes de Marcel de Rivero - aqueles que iam à sua
loja para cortar o cabelo, aparar a barba; aqueles que queriam ser
sangrados, que tinham uma ferida para tratar, ou que queriam algumas
ervas para um cataplasma; todos os clientes de Rivero que agora se
poderia dizer que eram antes clientes de Martin; os jovens e os velhos,
brancos, mulatos e negros - todos icaram consternados ao saber que
Martin estava se aposentando de sua pro issã o.
Mas por que? Para entrar em um mosteiro.
Se ao menos ele os tivesse informado sobre seus planos alguns dias
antes, eles teriam tentado dissuadi-lo. Eles o fariam ver que era uma
loucura, uma louca ilusã o decorrente do egoı́smo, ou talvez do orgulho,
pensar em abandonar uma vida dedicada a ajudar os pobres para se
retirar da sociedade e pensar apenas em si mesmo. A gló ria de
Deus? Havia muito o que fazer para a gló ria de Deus aqui na vida
cotidiana, onde os pobres sofriam e os poderosos abusavam de seu
poder, proclamando-se cató licos e mensageiros da fé , enquanto na
maioria das vezes viviam negaçõ es do Evangelho.
Mas havia mais a ser dito do que isso. Nesta sociedade, ainda tã o
distante de uma ordem justa e pacı́ ica, a raça negra - os ı́ndios
deserdados e os negros presos à s suas terras e relegados ao ú ltimo
lugar - nã o tinha o direito de considerá -lo um libertador? Sua vida foi
uma resposta incontestá vel para aqueles que, nã o faz muito tempo,
haviam perguntado seriamente se os negros tinham alma como a dos
brancos e, portanto, podiam ser batizados.
Por que retirar o conforto de seu exemplo luminoso, de sua vida
inteiramente gasta no exercı́cio da mais pura caridade, numa é poca em
que as trevas pareciam extinguir a luz? Por que abandonar os
pobres? Ningué m poderia ocupar seu lugar entre eles.
Martin deve ter sentido essas objeçõ es surgindo em seu pró prio
coraçã o. Mas a vida que ele levou até aquele momento, mesmo sendo
uma vida de trabalho e oraçã o, nã o era mais su iciente para ele.
Existem aqueles que se propõ em um objetivo e, uma vez
alcançado, seguem alegremente seu caminho para o resto de suas
vidas. E há aqueles que, cada vez que alcançam uma meta, olham ainda
mais alto para as metas a serem alcançadas, e nunca encontram paz até
que tenham alcançado a plenitude de seus desejos, ansiando por
descansar “aı́, onde está melhor ser, nas alturas puras e lı́mpidas. ”1
Martin era um do ú ltimo grupo. Tinha aquela sede de perfeiçã o e
de dom de si plena que é uma exigê ncia da caridade, daquela caridade
que cresceu nele durante as suas longas meditaçõ es noturnas, durante
as quais experimentou ao má ximo as palavras de Sã o Paulo: “Cristo se
humilhou, tornando-se obediente até a morte, até a morte de cruz ”e“
me amou e se entregou por mim ”. ( Fil . 2: 8; Gal . 2:20).
O grito de Cristo morrendo na cruz, "Tenho sede", havia
despertado em Martin uma sede pela honra de Deus por meio da
salvaçã o das almas, e ele sentiu um desejo irresistı́vel para responder
ao clamor de Cristo com todo o ardor de sua alma. “O doce e bom
Jesus”, escreveu Santa Catarina de Sena, “ao mesmo tempo, clama
'Tenho sede' e pede para ser dado de beber. E quando pedes à alma que
te dê de beber? Quando você mostra sua caridade e seu amor. Portanto,
é certo que Aquele que ama seja amado. Entã o, a alma dá ao seu
Criador para beber, quando ela retribui amor por amor. ”2
Para aceitar este convite imperioso, Martin deixou de trabalhar
com Rivero e se apresentou aos Frades Pregadores do mosteiro do
Santo Rosá rio. Lá , ele solicitou o posto mais humilde do mosteiro, que
até pelo pró prio tı́tulo, expressava seu desejo de doar-se. Pediu o há bito
de donado , ajudante leigo ou coadjutor leigo. Os donados eram
membros da Ordem Terceira que ofereciam seus serviços a um
mosteiro e ali viviam permanentemente, recebendo alimentaçã o e
hospedagem como compensaçã o por seu trabalho. Eles assumiram as
tarefas mais pesadas e foram considerados abaixo dos irmã os
leigos. Seu há bito era uma tú nica branca e uma capa preta, mas sem o
escapulá rio e a capuz.
Martin sentiu que receber este há bito, a marca de menor nı́vel de
dignidade religiosa, valia mais do que sua liberdade, sua pro issã o, seu
apostolado no mundo. Com absoluta simplicidade de coraçã o, ele
ofereceu todas essas coisas para obtê -lo. Ele tinha entã o quinze ou
dezesseis anos.
Quando Martinho se apresentou ao mosteiro do Santo Rosá rio e
pediu para ser admitido na famı́lia de Sã o Domingos, é possı́vel que ele
nã o fosse desconhecido ali. Os frades podem tê -lo notado orando em
sua igreja, ou alguns deles podem ter ouvido elogios por seus esforços
para ajudar os pobres e por sua vida tã o cheia de boas obras. Nã o é de
todo imprová vel que ele já tivesse encontrado um diretor espiritual
entre os dominicanos.
Alé m disso, um pedido tã o humilde nã o exigia grandes
recomendaçõ es. O prior do mosteiro do Santo Rosá rio falou ao Padre
Provincial, e ambos - Padre John de Lorenzana, o provincial, e Padre
Francis Vega, o prior - concordaram em abrir as portas do mosteiro e da
Ordem Dominicana para Martin.
Eles agiram com sabedoria ao fazê -lo. Por meio deles, a Ordem
ofereceu a Martinho a vida segura de suas constituiçõ es, o consolo de
uma tradiçã o fortalecida pela experiê ncia de vá rios sé culos e uma
espiritualidade cuja fecundidade já estava comprovada pela vida de
numerosos santos dominicanos. Tudo isso era bom do ponto de vista de
Martin.
Mas, por sua vez, Martin trouxe à Ordem uma vontade de seguir o
caminho traçado, sempre e em toda parte, sem intençã o de voltar
atrá s. Sua vontade é o tipo de vontade que produz santos. E isso era
bom do ponto de vista da Ordem que, nele, veria aumentar o nú mero de
seus santos.
Muitos anos depois, quando todos sabiam da santidade de Martin e
ele foi procurado como conselheiro pelos mais proeminentes
eclesiá sticos e leigos, um colega religioso um dia disse-lhe à queima-
roupa: “Irmã o Martin, nã o seria melhor você icar no palá cio de Sua
Excelê ncia o arcebispo do Mé xico, em vez de icar aqui, limpando os
banheiros do mosteiro? ”
Sem hesitar, Martin respondeu, usando as palavras do salmista:
“Escolhi ser um abjeto na casa do meu Deus”. ( Salmos 83:11).
No momento em que ele entrou na vida religiosa, é prová vel que
Martin nã o soubesse citar as palavras dos salmos. Mas o signi icado
daquele versı́culo já estava gravado em sua alma, e ele sabia como
expressá -lo por meio de suas açõ es. Ele expressou isso claramente
quandoteve que defender sua decisã o irme contra as fortes objeçõ es
de seu pai.
Para John de Porres, parecia que Martin tinha ido longe demais. Ele
nã o se opô s ao desejo de seu ilho de se tornar um membro daquela
ilustre Ordem dos Pregadores, que nasceu do coraçã o e do gê nio de um
grande espanhol, e já era famosa na Espanha e em outras terras por
causa de seu apostolado e seus santos gloriosos. Mas ele nã o podia
conceber nem tolerar a idé ia de que seu ilho desejasse entrar na
Ordem como um ajudante leigo, para passar toda a sua vida no nı́vel de
um servo. Joã o de Porres usou toda a sua in luê ncia e pressionou o
Padre Provincial para induzi-lo a receber Martin pelo menos como
irmã o leigo, senã o como clé rigo. Um impedimento poderia impedir que
Martin fosse admitido ao posto de clé rigo, mas nada o impedia de ser
recebido como irmã o leigo.
Para satisfazer John de Porres, o padre Lorenzana tentou persuadir
o jovem a “levar o capuz”. Ele o achou irme em sua decisã o, duro como
uma rocha: “Eu escolhi ser um abjeto”. E nada poderia fazê -lo mudar de
ideia.3Exemplos dessa irmeza ocorreram vá rias vezes na vida de
Martin. Visto que ele era verdadeira e profundamente humilde, bem
como profunda e completamente obediente, devemos concluir que ele
recusou por motivos mais elevados.
O Padre Lorenzana compreendeu esses motivos e por isso fez com
que John de Porres visse que nã o devia insistir no seu ponto de vista. E
John de Porres, tã o acostumado a ver os outros se curvarem à sua
vontade, teve que se curvar à vontade do pró prio ilho. Mas talvez o
tenha feito sem amargura. Era seu pró prio ilho, e nenhum estranho,
que se opunha a ele; e por essa mesma oposiçã o o ilho mostrou-se
digno de seu pai. O ilho mostrou que sua alma era tã o nobre quanto a
de seus nobres ancestrais: a alma de um cavaleiro,responsá vel pelo
chamado de um ideal e pronto para lutar até o ú ltimo suspiro para
atingir esse ideal.
O bom senso cristã o de John pode tê -lo feito supor que Martin, por
meio desse desejo determinado de ser abjeto, daria ao nome da famı́lia
Porres sua maior e mais pura gló ria.
Capítulo 4
“O homem paciente é melhor do que o valente; e aquele que domina o seu espı́rito, do que aquele
que toma cidades. ” ( Prov . 16:32).

C
HEN Martin entrou no mosteiro, ele nã o parou de trabalhar. Signi icava
trabalhar como antes e ainda mais. Ele recebeu a tarefa de varrer o
claustro e os corredores, e de limpar os banheiros. Martin aplicou-se a
esse trabalho desagradá vel com simplicidade e ardor e nã o o achou
incomum. Ele havia buscado a posiçã o humilde de ajudante leigo, e era
ló gico que a obra menos agradá vel fosse designada a ele.
Muitas vezes somos iló gicos porque somos inconstantes; nossa
generosidade se esgota em seu empreendimento inicial. Almas
profundas - os santos - sã o consistentes até o im, e quando, à luz da fé ,
eles viram seu pró prio valor perante a majestade de Deus, tudo se torna
simples e natural para eles, nã o importa o que aconteça.
Este trabalho fı́sico visava o trabalho espiritual, que era o mais
importante e o ú nico verdadeiro trabalho para o qual ele havia entrado
na vida religiosa, e Martin percebeu isso perfeitamente. A vida religiosa
é ordenada para a aquisiçã o da perfeiçã o; conduzir a alma ao pleno
desenvolvimento da caridade. Santa Catarina compara a alma a uma
á rvore proveniente do amor, que para se alimentar do amor, de acordo
com as necessidades de sua natureza, deve mergulhar suaraı́zes no
solo da verdadeira e profunda humildade. A humildade é a mã e adotiva
da caridade e de todas as virtudes que brotam do tronco da caridade. “A
primeira doce verdade nos ensina como ser grandes. Como? Atravé s da
humildade da verdadeira humildade. ” O Santo de Sena escreveu estas
palavras ao bispo de Florença, exortando-o a ser viril na prá tica da
virtude, porque “quem nã o é forte na virtude, nã o é constante”.1
Em si mesma, a humildade é uma virtude oculta que escapa à
nossa percepçã o. Existe nas profundezas da alma, e ningué m pode
dizer com certeza se realmente existe ou nã o, porque nenhum olho
criado pode penetrar nessas profundezas. Mas quando a humildade
existe na alma, ela tem uma companheira que serve de indicaçã o de sua
presença: a paciê ncia, que segura o campo da humildade sem evitar os
assaltos, mas se alegra na batalha e “pelo sofrimento vence”.2
Martinho, portanto, agarrou sua vassoura e a empunhou com boa
vontade para limpar as passagens, os claustros, os corredores e as celas
do mosteiro do Santo Rosá rio. Ele tinha uma vassoura nas mã os com
tanta freqü ê ncia que mais tarde se tornou uma marca distintiva nas
pinturas e está tuas de Martin de Porres. Minú sculas vassouras ainda
sã o distribuı́das aos ié is no Peru em sinal de devoçã o a ele.
Mas a vassoura nã o foi o ú nico instrumento que Martin
empregou. A tesoura do barbeiro, a lanceta do cirurgiã o e muitas,
muitas outras ferramentas logo izeram companhia à vassoura. E
Martin, sempre ativo e sempre calmo, soube alternar o trabalho
delicado e pesado ao longo do dia, sem permitir que uma tarefa fı́sica
anterior tornasse pesada a mã o de seu cirurgiã o, e sem permitir que a
idé ia de um importante dever que o esperava causar ele a negligenciar
sua vassoura. Ele se jogou completamente no que estava fazendo,
momento a momento.Se nã o o tivesse feito, teria sido incapaz de
cumprir todas as tarefas que, com o passar do tempo, se juntaram
à quela primeira simples responsabilidade domé stica, e que aos poucos
se tornaram tã o numerosas e tã o importantes que parece impossı́vel
que um homem poderia ser su iciente para eles.3
Os deveres trouxeram consigo uma multidã o de ocasiõ es
magnı́ icas para o exercı́cio da paciê ncia. Muito bom, desse ponto de
vista, foi o de seu trabalho como barbeiro. Retomando sua antiga
pro issã o no mosteiro do Santo Rosá rio, Martinho se viu seguro de
trezentos clientes, nem sempre os mais fá ceis de satisfazer. As coisas
correram bem com os religiosos mais velhos, mas Martin teve de
recorrer a suas reservas de paciê ncia quando os jovens chegaram.
Durante o processo informativo para a beati icaçã o de Martinho, o
Padre Francis Velasco Carabantes testemunhou um acontecimento
ocorrido durante os seus primeiros anos na Ordem, quando ainda era
noviço. Ele foi ver Martin, mas nã o queria ter a cabeça raspada; entã o
ele permaneceu lá , hesitando, incapaz de decidir se deveria ir embora
ou ter sua cabeça tonsurada. Sua indecisã o baseava-se em um motivo
de inido: a miserá vel coroa de cabelos prescrita pela regra nã o o
agradava em nada, mas ele nã o teve coragem de pedir ao barbeiro que
lhe poupasse o cabelo, pois sabia que Martin era surdo quando era um
questã o de relaxar o menor ponto da regra.
Enquanto estava mergulhado em seus pensamentos e hesitaçõ es,
de repente ele encontrou sua cabeça nas mã os de Martin,
completamente molhada, entã o coberta com sabã o e, em seguida,
barbeada, com a coroa de cabelo até o mı́nimo prescrito pela regra. Ele
deu um pulo furioso e começou a atacar Martin, chamando-o de
cachorro mulato, hipó crita, trapaceiro. Sem prestar atençã o a este
dilú vio de insultos, Martin secou a cabeça de Francis completamentee
pediu-lhe que se olhasse no espelho, acrescentando que Francisco veria
que a coroa nã o estava tã o cortada como ele havia imaginado.
Enquanto isso, o padre Afonso Gamarra, que presenciara a cena,
completava a obra de Martinho com severa repreensã o, culminando
com a imposiçã o ao noviço de severa penitê ncia, como tinha o direito e
o dever de fazer como disciplinador do mosteiro.
Em parte pela intervençã o do Padre Gamarra e em parte porque
viu no espelho que era menos feio do que temia, o Irmã o Francis icou
mais calmo. Martinho entã o colocou a mã o na cabeça do frade, dizendo:
“Se esta cabeça continuar a in lamar assim, terá muita di iculdade na
Ordem”.
Mas o assunto nã o para por aı́. Qualquer um que insultasse Martin
desse modo adquiria o tı́tulo mais seguro para sua gratidã o e, portanto,
Francisco nã o deveria ter que arcar com a penalidade da linguagem
abusiva que ele havia espalhado sobre Martin. Consequentemente,
Martinho foi ao mestre dos noviços e implorou-lhe que perdoasse a
Francisco. O jovem noviço tinha toda a razã o no que dissera, porque ele,
Martin, era realmente um grande pecador, e sua mã e era uma negra
pobre e, portanto, o tı́tulo de “cachorro mulato” combinava
perfeitamente com ele. Por que punir algué m que falou apenas a
verdade absoluta? Francisco nã o merecia puniçã o, mas uma
recompensa. E tendo garantido a revogaçã o da penitê ncia de Francisco,
Martinho lhe enviou um presente de frutas frescas no mesmo dia.
E quase uma lei natural que as almas sedentas de humilhaçã o
encontrem outras almas ao seu redor prontas para saciar essa
sede. Cada vez que o irmã o Francis queria que Martin izesse algo por
ele, ele se preocupava em polvilhar generosamente sua conversa com
os mesmos epı́tetos que tã o bem conseguiram da primeira vez. Martin,
sempre calmo e imutá vel, riae dar ao jovem frade tudo o que ele
quisesse, fazendo-o acreditar que, para agradá -lo, cedeu como um
idiota aos seus caprichos e aos seus insultos.
Finalmente o inevitá vel aconteceu. Os olhos de Francis se abriram
de repente e ele viu as coisas sob uma luz bem diferente. Ele percebeu
que Martin era mais sá bio do que ele; ele percebeu que, dos dois, ele
mesmo era o idiota. Ele mudou completamente e começou a observar
cada açã o, a observar cada palavra do Irmã o Negro e a tentar imitar sua
vida santa. E tendo conservado fresca e intacta até a velhice a memó ria
do que vivenciou na juventude, o Padre Francis Velasco Carabantes
pô de fornecer um dos testemunhos mais vivos e valiosos da é poca do
processo informativo.4
Na é poca de Martin, o ofı́cio de barbeiro se estendia ao campo que
hoje é reservado a mé dicos e cirurgiõ es. Os superiores do mosteiro do
Santo Rosá rio perceberam rapidamente quã o ú til poderia ser para a
enfermaria da comunidade qualquer especialista neste ofı́cio. Martinho,
portanto, logo se viu encarregado de cuidar dos enfermos e retomou o
exercı́cio pleno de sua pro issã o, exatamente como a exercia antes de
entrar no mosteiro.
Ele serviu os enfermos com amor, cuidando de todas as suas
necessidades, e principalmente das mais repugnantes, com total
devoçã o. Freqü entemente, ele os servia de joelhos, “com o coraçã o
lamejante de um anjo”, de acordo com o testemunho de algué m que o
observara.5Essa foi a posiçã o que ele preferiu, especialmente na
presença dos padres da Ordem. Ele nunca se sentou na presença
deles. Seus joelhos se dobraram naturalmente, por um impulso de seu
coraçã o humilde, e seu rosto foi abaixado para a terra para beijar os
pé s dos pregadores do Evangelho da paz.6
Martin nunca perdeu sua paz de espı́rito, nã o importa quanto os
outros o colocam à prova. Freqü entemente, os pacientes retribuı́am seu
cuidado com palavras insultuosas, mas Martin nã o se
surpreendeu. Como mé dico, ele sabia como o sofrimento localizado em
uma parte do corpo humano pode perturbar profundamente o
equilı́brio normal de um homem. Ele simpatizou com seus pacientes e
icou feliz em servir como uma vá lvula de escape para seu mau humor.
Um dia, o prior o encontrou prostrado no chã o de uma venia aos
pé s de um padre doente.7 O que pode ter acontecido?
“Estava recebendo as cinzas, embora o primeiro dia da Quaresma
ainda esteja longe”, explicou Martin, erguendo o rosto sorridente, como
se achasse graça da estranheza da situaçã o. “Este reverendo padre me
lembrou de meu nascimento humilde e borrifou as cinzas de meus
defeitos na minha cabeça. Para lhe agradecer, beijo nã o as suas
venerá veis mã os que todos os dias tocam a Deus e que nã o sou digno
de tocar, mas os seus pé s, e faço-o com grande reverê ncia porque sã o
os pé s de um ministro de Cristo. ”8
A verdade é que Martin estava sinceramente convencido de sua
pró pria inutilidade. Estamos todos dispostos a dizer isso de nó s
mesmos, mas se icarmos felizes em ouvir outras pessoas dizerem isso
de nó s, é um sinal de que realmente acreditamos nisso. Sua humildade
“profunda e consumada”, segundo o padre Joseph de Villarsbia,
“baseava-se no conhecimento da grandeza de Deus”; e à luz desse
conhecimento, nã o era exagero para Martin se considerar nada, "o mais
imperfeito, o mais vil e o maior pecador do mundo." Firmemente
enraizado nessa convicçã o, ele achou completamente natural que
outras pessoas compartilhassem da mesma convicçã o e o contassem
com clareza. Ele, portanto, sentiu que deveria ser grato à queles que o
izeram. “Devo cuidar melhor dele e amá -lo mais”, disse ele sobre um
paciente que o tratou bruscamente, “porque ele me conhece melhor do
que os outros”.9
Uma virtude assim manifesta teve que ser testada por aqueles que
eram responsá veis pela vida espiritual de Martinho, e os superiores do
mosteiro do Santo Rosá rio nã o falharam em seu dever. O Padre
Carabantes testemunhou que nã o era incomum que os superiores, para
morti icá -lo, o repreendessem severamente, “como se ele fosse
gravemente delinquente”. Martin agradeceria de joelhos e seu rosto
sorridente manifestaria a alegria que sentia por ser tã o maltratado. “Eu
mereço muito pior”, dizia ele, “e Deus sofreu muito mais por mim!”10
Assim temperada, a humildade de Martin resistiu a todas as
pressõ es exercidas sobre ela, dobrando-se sob todas as provaçõ es de
sua longa vida sem nunca se quebrar. Sua humildade resistia ao elogio
como resistia aos insultos, e sua reaçã o aos insultos daqueles que eram
seus superiores era a mesma que à rudeza daqueles a quem ele ajudava
de todas as maneiras e que poderiam ser considerados seus inferiores.
E verdade, claro, que ao entrar na Ordem como coadjutor, Martinho
desejava evitar de uma vez por todas todas as distinçõ es e todas as
honras. Mas també m é verdade que suas muitas habilidades e seu gê nio
para a organizaçã o inevitavelmente lhe trouxeram funçõ es à s quais se
juntou uma certa autoridade. Mas a humildade o havia estabelecido tã o
irmemente na posiçã o mais baixa - “Eu escolhi ser um abjeto” - que ele
nã o conseguia imaginar qualquer posiçã o abaixo da sua.
E assim, enquanto cuidava de seus pobres “com grande mansidã o,
docilidade e humildade”, alegrou-se, a irmou o padre Christopher de
Toro, “que todos o comandavam imperiosamente como se fosse o
escravo pessoal de cada um”. Mas o padre Toro forneceu o motivo
quando disse que, ao fazer isso, Martin via essas pessoas como Jesus
Cristo.11
Muitos anos se passariam antes que Martin pudesse dar a prova
de initiva de sua humildade e paciê ncia no cuidado com os pobres. No
entanto, há um evento que é citado pela maior parte dos bió grafos de
Martin para indicar a medida plena de sua humildade e
abnegaçã o. Aconteceu nos primeiros anos de sua vida religiosa.
Um dia Martin soube que o prior havia saı́do para vender vá rios
objetos de valor, nã o tendo dinheiro su iciente para pagar certas dı́vidas
do mosteiro e prover as necessidades da comunidade. A notı́cia o
deixou pensativo. Certamente o prior deve ter icado muito angustiado,
se decidiu vender coisas que pertenciam ao patrimô nio do
mosteiro. Nã o foi possı́vel encontrar alguma outra soluçã o?
Talvez Martin se lembre de ter ouvido como Sã o Domingos, a im
de redimir o irmã o de uma pobre mulher da escravidã o dos sarracenos,
se ofereceu para ir como escravo em seu lugar. Martin pode ter dito a si
mesmo que se seu pai espiritual tivesse sido capaz de pensar em
sacri icar sua preciosa vida para consolar aquela pobre mulher, entã o
nã o seria nada estranho que ele, um mero nada, oferecesse sua vida
pelo mosteiro a ao qual ele pertencia.
Entã o Martin correu pelas ruas de Lima atrá s do prior, que se
dirigia ao bairro dos mercadores. Ele alcançou o prior e, ainda sem
fô lego, explicou sua ideia, implorando-lhe que nã o vendesse os objetos
que tinha consigo, mas que o vendesse - Martin - já que o mosteiro
estava desperdiçando seus fundos mantendo esse pobre idiota do
mulato, enquanto escravo. comerciante pagaria bem por ele porque ele
era forte e poderia trabalhar. E seria uma grande bê nçã o para ele
encontrar, inalmente, algué m que o tratasse como ele merece!
O prior icou pasmo. No começo, ele nã o entendeu Martin. Quando
ele entendeu o plano de Martin, seus olhos se encheram de
lá grimas. “Volte para o mosteiro, irmã o. Você nã o está à venda. ”12

capítulo 5
“A voz do meu amado: eis que ele vem. . . . Eis que ele está atrá s de nossa parede, olhando pelas
janelas, olhando pelas grades. ” ( Cant . 2: 8-9).

H
UMILITY é a enfermeira das virtudes, mas a oraçã o é sua mã e. A relaçã o
que se estabelece entre a alma e Deus pela humildade é , ao mesmo
tempo, um meio de conhecer e amar o bem, e um canal pelo qual todo o
bem chega até nó s do Bem Soberano.
A vida religiosa, que é uma escola de virtude, segundo Sã o
Tomá s,1é inconcebı́vel sem uma intensa vida de oraçã o. Isto é
especialmente verdadeiro para a vida religiosa dominicana, pois todo o
programa da Ordem dos Pregadores pode ser condensado em trê s
palavras: contemplata aliis tradere , para dar aos outros os frutos da
contemplaçã o. A contemplaçã o é o pré -requisito necessá rio do
apostolado; somente aqueles que se nutriram com os frutos da
contemplaçã o tê m uma mensagem para seus irmã os.
Martin havia cultivado a arte da oraçã o antes mesmo de entrar no
mosteiro e, apó s sua chegada, começou a intensi icar sua oraçã o até
que se tornasse quase contı́nua. O padre Stephen Martı́nez atestou que
em cada ocupaçã o a alma de Martin encontrava os meios para se elevar
quase que espontaneamente à contemplaçã o das coisas de Deus. Em
todas as suas funçõ es, fosse ajudando os enfermos, varrendo o chã o ou
ajudando os pobres, seus pensamentos estavam sempre ixos em
Deus.2Esse estado de oraçã o geralmente nã o é um dom, mas o fruto de
um esforço constante e generoso e de muita boa vontade. “A oraçã o
perfeita”, diz Santa Catarina, “nã o se adquire com muitas palavras, mas
com desejo amoroso”.3
Obrigado a dividir seu tempo entre tantas ocupaçõ es, Martin
entendeu que deve usar tudo para alimentar sua vida de oraçã o. Para
isso, bastouapenas para olhar ao redor. O pró prio lugar em que ele vivia
era uma lembrança constante das coisas de Deus e do espı́rito. Havia,
por exemplo, as imagens sagradas. Nos corredores, nos patamares das
escadas, nas paredes da enfermaria, na sala do capı́tulo, nas celas, a
Virgem sorria para ele, mostrando-lhe o Menino Jesus; o Cristo
cruci icado abriu os braços e o coraçã o como se o convidasse a uma
uniã o mais ı́ntima com ele; os santos da Ordem Dominicana, apesar da
rigidez um tanto incô moda de suas imagens esculpidas em madeira ou
modeladas em argila, encorajavam-no incessantemente: “Coragem,
Martin, você é nosso irmã o; o que izemos, você també m pode fazer. ”
Martin amava todas essas imagens que semeavam em seu coraçã o
a semente dos bons pensamentos e, quando passava por elas enquanto
andava pelo mosteiro, nunca deixava de saudá -las baixando a cabeça
ou ajoelhando-se. Ele os decorou com lores e velas, especialmente a
imagem de uma certa Madonna na entrada do dormitó rio. Mas acima
de tudo, ele tentou honrar a Deus, a Virgem Santı́ssima e os santos com
a oferta de atos virtuosos. Seus atos virtuosos, aliados à devoçã o de
seu coraçã o, exalaram “uma fragrâ ncia melhor. . . do que dos
ramalhetes e lores que colocou nos altares ”, testemunhou o ajudante
leigo, Francis de Santa Fe.4
Em seguida, havia a igreja, com seu taberná culo e seus altares. A
capela que Martin mais frequentava era a da Rainha do Santı́ssimo
Rosá rio. Ele foi lá para contar a ela sobre o desejo ardente em seu
coraçã o de amar seu Filho, assim como ele levou todas as di iculdades
para ela, e lá todas as noites ele implorou que ela zelasse por ele e nã o
permitisse que ele jamais caı́sse em pecado.
Seu amor por Maria era espontâ neo, o amor de um ilho por sua
mã e. Martin estava sempre na presença de Maria. Seus momentos
livres, à noite ou no silê ncio da tarde, eram passados na capelada
Virgem Mã e. Nã o havia perigo de se ausentar do rosá rio recitado à
noite, ou do Pequeno Ofı́cio da Bem-Aventurada Virgem Maria, que
precedia as Matinas do Divino Ofı́cio noturno. Todas as manhã s, antes
do nascer do sol, ia ao campaná rio para enviar sobre a cidade, com as
pinceladas do Angelus, o convite a saudar Maria, Aurora
consurgens . Ele nunca renunciou a este dever, mesmo quando sua
idade avançada e força, diminuı́da pela morti icaçã o incessante,
tornava isso difı́cil para ele.5
Mas esses foram apenas momentos arrancados das vinte e quatro
horas do dia. Martinho nã o podia multiplicar inde inidamente as
visitas à capela e à s imagens de Maria; ele tinha muitas outras coisas
para fazer. Felizmente, havia o rosá rio. Martin usava um grande rosá rio
de quinze dé cadas ao pescoço, de acordo com o costume de seus
irmã os da Provı́ncia de Sã o Joã o Batista do Peru. Ele usava outro preso
ao cinto, ou melhor, segurava-o quase constantemente nas mã os,
deixando-o pendurado no cinto apenas quando suas mã os estavam
ocupadas com o trabalho. Mas ele o retomou assim que suas mã os
icaram livres e continuou seu louvor a Maria, regozijando-se com suas
alegrias, sofrendo com suas dores e exultando em sua gló ria.6
Martin amava Mary. Até uma criança teria percebido, apenas por
ouvir Martin pronunciar seu nome.7
E Mary amava Martin. Agradou-lhe vê -lo vir a ela como um
professor, mas como era um aluno atencioso, bastou instruı́-lo sobre
um assunto apenas uma vez. Dia apó s dia, quer na capela do Rosá rio,
quer nos intervalos entre as Ave-Marias do seu rosá rio, Maria ensinava
muitas coisas a Martinho. Foi realmente ela quem lhe disse que ele
devia recolher tudo o que pudesse alimentar o fogo ardente do seu
amor, mesmo os pedaços de palha que caı́am ao longo do
caminho. Eraaquela que lhe explicou que a sede da alma só se apaga em
Deus e que a graça - que é Deus na alma - é recebida em sua plenitude
nos sacramentos. Foi ela quem o fez compreender que Deus se encontra
em todas as suas criaturas, mas sobretudo nas que mais precisam e nas
que mais sofrem. Ela, que guardou em seu coraçã o cada palavra de
Jesus, amor, sacrifı́cio, obediê ncia, pureza, bondade - palavras que nã o
passam de cı́mbalos que tilintam, a menos que se tornem realidades
vivas. Ela o fez entender o poder que essas palavras adquiriram depois
que seu Filho, a Palavra de Deus, as falou e exempli icou aqui na terra.
Mary ensinou tudo isso a Martin. E uma noite, quando a aula tinha
sido bastante longa, para que todos vissem o quã o satisfeita ela estava
com sua pupila e para evitar que ele tropeçasse no escuro enquanto
corria para o coro das matinas, ela enviou dois anjos em vestes do mais
puro branco para acompanhá -lo ao coro com velas acesas.8
Nã o é surpreendente, portanto, que Martin tenha conseguido
encontrar Deus em todas as coisas e transformar toda a sua vida em
oraçã o. Ele foi um aluno muito iel e dedicado de Maria, Sede da
Sabedoria.
Outra atraçã o poderosa, um amor vivo e profundo, atraiu Martin
com insistê ncia à capela do Rosá rio. No altar icava o taberná culo no
qual o Santı́ssimo Sacramento estava reservado. As vezes, em vez de
rezar na capela, Martin subia sob o telhado da igreja onde havia
descoberto um recanto ideal. Lá , ele poderia olhar para o taberná culo
sem ser visto por aqueles que estã o lá embaixo. Francis de la Torre,
o icial da guarda e seu bom amigo, encontrou-o um dia depois de tê -lo
procurado em todos os cantos do mosteiro. Martin estava de joelhos,
mas ergueu-se a alguma distâ ncia do chã o. A contemplaçã o havia se
transformado em ê xtase. Sua idelidade incessante havia atraı́do este
presente do cé u.9
Cada vez que passava pelo claustro superior, no qual havia uma
janela que iluminava a capela do Rosá rio, Martin caı́a de joelhos e
adorava a Presença invisı́vel atravé s da grade.
Os seus grandes dias foram os das celebraçõ es eucarı́sticas: a festa
e a oitava do Corpus Christi, o terceiro domingo de cada mê s e todas as
quintas-feiras. Quando o Santı́ssimo Sacramento foi exposto para
adoraçã o, Martin passou horas diante da custó dia, imó vel. A fé e o amor
de sua alma humilde resplandeciam na pró pria atitude de seu corpo.
Cada manhã assistia a vá rias missas, como fazia quando estava em
casa com sua mã e. Quando os padres se aproximaram do altar para
iniciar as primeiras missas, ele já estava na capela. Muitos celebravam
a missa à quela hora, e Martin estava livre de todos os deveres. Sua
devoçã o enquanto servia no altar era contagiante. Era como um fogo
ardente que in lamava todos ao seu redor.10
Naqueles dias, os irmã os leigos geralmente recebiam a Sagrada
Comunhã o nas grandes festas de Nosso Senhor e Nossa Senhora, e
todos os domingos. Martin obteve permissã o para adicionar todas as
quintas-feiras a esses dias. Mas sua consciê ncia nã o o deixava em paz e
o acusava de ser muito presunçoso. Para acalmar um pouco e
reconciliar sua humildade e seu forte desejo de se unir a Deus, ele
imaginou que recebia a Sagrada Comunhã o à s quintas-feiras como
viá tico. No momento da morte, pensava ele, mesmo quem é tã o indigno
como ele pode pedir o Pã o Vivo que Nosso Senhor deixou em memó ria
da Sua morte, para nos dar a vida.11
Quando ele se aproximou para receber a Sagrada Comunhã o, seu
rosto estava iluminado "como uma brasa".12Ele conseguiu ser o ú ltimo
na capela, entã o desapareceu na sala do capı́tulo, e ningué m poderia
encontrá -lo por algum tempo depois disso. Ele se escondeu em algum
canto escuro ou se tornou invisı́vel em algum lugarvisı́vel para
todos? Talvez ambas as explicaçõ es sejam vá lidas. Aconteceu de uma
maneira uma vez e de outra outra vez. Os testemunhos, de fato, falam
de horas e horas de açã o de graças passadas por Martin na solidã o de
Limatambo, uma propriedade a alguma distâ ncia de Lima pertencente
ao mosteiro, e falam de Martin ter sido inutilmente procurado em todo
o mosteiro, e depois apresentando ele mesmo sob o comando do
superior sem que ningué m o tivesse visto chegar. Ele estava lá de
repente, apenas um momento antes de se ausentar.13
Depois de uma jornada eucarı́stica passada em Limatambo,
quando Martin tornou-se visı́vel novamente, ele voltou à noite e se
ocupou com as mulas e o gado da fazenda do mosteiro. Ele colocava
feno fresco nas manjedouras do celeiro e trocava a palha nas baias. Se
algué m comentou com ele que nã o era necessá rio assumir este
trabalho, visto que havia servos contratados para fazê -lo, ele
respondeu que os servos trabalharam o dia todo enquanto ele nã o
tinha feito nada, e era realmente uma graça poder poder para reparar
tal inatividade antes do anoitecer.14A sua humildade o levou a tomar
todas as precauçõ es contra o orgulho, lembrando as palavras de Sã o
Paulo: “Para que a grandeza da revelaçã o nã o me ensoberbece”. ( 2
Coríntios 12: 7).
Assim, os dias em que recebeu a Sagrada Eucaristia foram dias
inteiramente dedicados à oraçã o ininterrupta, à conversa ı́ntima e doce
com o seu Senhor. Naqueles dias, enquanto estava imerso na
contemplaçã o do Dom por excelência , a chama do amor se fortalecia e
se reabastecia nele, para depois irromper em palavras tã o ardentes que
parecia um “Etna de fogo” cada vez que falava. o amor que impeliu o
Verbo a se encarnar e a permanecer conosco no sacramento do altar.15
De acordo com Santa Catarina, tudo o que fazemos, seja na palavra
ou no trabalho, para a salvaçã o do pró ximo, é a verdadeira oraçã o,
embora devamos consagrar algum tempo à oraçã o em sentido
estrito.16
No decorrer do dia e em meio à s suas vá rias ocupaçõ es, Martin
ouviu o chamado para mergulhar neste oá sis da presença de
Deus. “Enquanto ele estava desempenhando suas funçõ es. . . ele ouviria
o chamado do Espı́rito, e o Servo de Deus iria para sua cela, fecharia a
porta e cairia de joelhos em um canto, onde icou como se os trabalhos
anteriores fossem apenas uma preparaçã o para a oraçã o ”. Este é o
testemunho do irmã o Ferdinand de Aragoné s, o enfermeiro-chefe, que
tinha uma duplicata da chave da cela e por duas vezes surpreendeu
Martin absorvido em oraçã o. Duas vezes, mas nã o trê s, porque na
segunda vez, vendo que era inú til trancar a porta da cela atrá s de si e
nã o desejando ser surpreendido na intimidade do coló quio divino,
Martin prendeu uma campainha na porta.17
Martin tinha certos perı́odos totalmente livres para orar. A noite
era, naturalmente, o principal perı́odo de oraçã o. A cama de Martin
geralmente consistia de tá buas cobertas por uma esteira, com um
pedaço de madeira como travesseiro. Mas ele raramente dormia à
noite. Na melhor das hipó teses, ele cochilava um pouco durante o dia
em momentos estranhos enquanto esperava que algué m o chamasse. A
noite, se o sono o alcançasse apesar de seus esforços, ele dormia em
qualquer lugar, onde quer que estivesse no momento, à s vezes nas
posiçõ es mais precá rias.18Mas à noite ele tinha outras coisas para
fazer. Como a noiva do Câ ntico dos Câ nticos, Martinho foi em busca de
sua Amada. Depois de ter implorado a Maria que lhe mostrasse o santo
rosto de seu Filho, ele foi em busca dele, no coro alto onde se demorou
depois das matinas. Ele o procurou na sala do capı́tulo, onde seus
companheiros religiosos à s vezes o encontravam erguido do chã o à s
alturas do grandecruci ixo sobre o altar, os braços estendidos em forma
de cruz, as mã os sobre as mã os pregadas do Cristo cruci icado, como se
o abraçasse. Procurou-O na sala sob a torre do sino, onde encerrou sua
noite de oraçã o e penitê ncia enquanto aguardava o momento de tocar
o Angelus.
Martin aprendeu muito rapidamente uma coisa importante que
nã o escaparia a ningué m que se colocasse sob a tutela de Maria. Ele
percebeu que a morti icaçã o é necessá ria para o progresso na
oraçã o. Sã o Filipe Neri, quase contemporâ neo de Martinho e
proverbialmente o mais alegre entre os santos, havia dito: “Desejar
devotar-se à oraçã o sem morti icaçã o é como um pá ssaro que deseja
voar sem ter crescido penas”.
Pode-se dizer que Martin aprendeu essa liçã o muito bem. Os
santos, é verdade, nã o fazem as coisas pela metade, mas ele exagerou,
pois fez coisas que superaram a resistê ncia do corpo humano. No
entanto, ele os suportou. A ú nica explicaçã o possı́vel é que, por causa de
seu amor a Deus, que o levou a buscar o sofrimento com tanta irmeza,
um dom de força sobrenatural foi dado a ele para compensar a fraqueza
da natureza humana.
O padre Gaspar de Saldañ a uma vez lhe ordenou que dissesse se
havia alguma verdade nos boatos que circulavam sobre suas
morti icaçõ es. “Nã o vale a pena falar sobre isso”, respondeu Martin,
confuso. “Em seu pró prio tempo, Deus revelará tudo o que precisa ser
conhecido sobre isso.” Mas como seu superior nã o estava satisfeito
com uma resposta tã o vaga, Martin teve que admitir que todas as
noites ele fazia a disciplina trê s vezes, como seu pai, Sã o Domingos,
havia feito. Em seguida, implorou ao padre Saldañ a que nã o lhe
perguntasse mais a respeito.19
Um certo jovem chamado Joã o Vá zquez, que vivia no mosteiro e
era uma espé cie de assistente voluntá riotant a Martin, tinha livre
acesso a todas as partes do mosteiro. Ele nos deixou algumas
informaçõ es sobre as morti icaçõ es noturnas de Martin.20
Era costume de Martin fazer a disciplina pela primeira vez em sua
cela, para onde se dirigiu imediatamente apó s o entardecer De
profundis . Lá ele orou e açoitou-se por trê s quartos de hora com uma
tripla corrente de ferro incrustada com pontas de ferro. Ele ofereceu
todo o seu corpo, nu, aos golpes porque desejava sofrer o que Jesus
Cristo havia sofrido quando foi amarrado a uma coluna, despido e
açoitado. A pele de Martin icou inchada, quebrou sob os golpes e o
sangue jorrou.21
Martin olhou para trá s, para sua vida, para cada açã o de sua vida
como religioso, oferecida como holocausto à gló ria de Deus, e achou
tudo tã o ignó bil, tã o frio, tã o vazio! Ele olhou para si mesmo na luz
deslumbrante da majestade de Deus; ele pertencia a essa perfeiçã o
in inita por uma escolha especial, por causa de um convite gratuito
aceito livremente.
E o que ele poderia encontrar que fosse agradá vel aos olhos de
Deus, aqueles olhos voltados para ele? O que os olhos mais puros do Pai
acharam agradá vel a Ele na terra ao longo de todos os sé culos, senã o
Seu Filho amado e a dolorosa oferta de Seu amor? Mas a paixã o de Jesus
continua em Seu corpo mı́stico. Cada membro unido à Cabeça e
participando de Seus sofrimentos pode ouvir palavras de inefá vel
doçura vindas do Pai: “Tu també m é s Meu ilho amado, em quem me
comprazo”.
Martin açoitou-se com tanta força e se alegrou com o sangue que
luı́a de suas feridas, porque sabia que a oferta que estava fazendo ao
Pai deste sangue em uniã o com o sangue de Jesus era agradá vel ao
Pai. Quando terminou, ligou para John Vá zquez para ajudá -lo a
tratarsuas feridas. O remé dio que usou, vinagre forte, só aumentou a
dor. A carne de John se arrepiou ao ver Martin em um estado tã o
lamentá vel, e ele implorou que nã o continuasse com esse tipo de
penitê ncia, mas que escolhesse outra. Martin o interrompeu. “E o que
preciso para a minha saú de”, disse ele alegremente e rindo com
vontade. Se ele, um mé dico, dissesse isso, que objeçã o poderia Joã o
Vá zquez fazer?
Quinze minutos depois da meia-noite, Martin se lagelou pela
segunda vez. O instrumento era uma corda com nó s, o lugar era a sala
do capı́tulo. Esta segunda lagelaçã o era pelos pecadores, para reparar
as ofensas cometidas contra Deus, para implorar a graça para que
pecadores distantes de Deus pudessem voltar para Ele.
A vida daquela é poca em Lima fornecia amplos motivos para o
vigor com que Martinho manejava seus instrumentos de penitê ncia. A
cidade estava cheia de pecados: os pecados dos orgulhosos e injustos,
dos avarentos que fecharam seus coraçõ es à misé ria de seus irmã os,
dos sensuais que negaram o espı́rito. Martin dobrou os golpes que
choveram sobre seu corpo. Que pâ ntano horrı́vel de lama o olho
dAquele que “vê os segredos dos coraçõ es dos homens” deve ter
percebido sob a riqueza da cidade, tã o bela com seus palá cios recé m-
construı́dos, suas igrejas, suas ruas se estendendo em direçã o aos
quatro pontos do horizonte! Todos os dias, nas multidõ es de pobres que
vinham a ele, Martin experimentava em primeira mã o as condiçõ es que
prevaleciam na cidade e via as consequê ncias desastrosas do mal que
foi feito e do bem que foi omitido.
Mas aqui, diante do grande cruci ixo da sala do capı́tulo, o
pensamento do amor que manteve o Deus-Homem preso à cruz, onde
nenhum poder criado poderia tê -lo retido, um amor que o reteve ali
para reparar o pecado. e para perdoar pecadores, sobrepujou todos os
outros pensamentos. E dea dolorosa humilhaçã o dos exercı́cios
penitenciais de Martinho, Nosso Senhor atraiu-o a si, ergueu-lhe o
corpo da terra, abriu-lhe as profundezas inacessı́veis do amor divino, o
“segredo do seu coraçã o”. Diversas vezes Joã o Vá zquez encontrou
Martin em oraçã o, elevado do chã o à altura do cruci ixo.
Tendo terminado a segunda parte de seu itinerá rio noturno, Martin
permitiu-se um pouco de descanso. Sem subir à cela, deitou-se para
dormir no catafalco da sala do capı́tulo. A melhor maneira que conhecia
de moderar o conforto do descanso era juntar a ele o desconforto do
catafalco e a ideia da morte.
Finalmente, perto do amanhecer, Martin deu inı́cio ao terceiro e
mais doloroso lagelo. Até o local escolhido para esta penitê ncia tinha
algo de horrı́vel. Era uma sala subterrâ nea, sob a torre do sino, ú mida e
escura. Mais uma vez, sua camisa estava rasgada pelas feridas, ainda
fresca das açoites anteriores. Mas depois do esgotamento das duas
primeiras açoites, da longa, ardente e quase ininterrupta noite de
oraçã o, Martin nã o con iava mais na força de seus pró prios
mú sculos. Entã o ele chamou outro para ajudá -lo. As vezes era o jovem
Vá zquez, mas na maioria das vezes algué m que ajudava, ı́ndio ou negro,
que armava com um robusto galho de marmelo, implorando-lhe, se
tivesse alguma gratidã o, que o golpeasse sem misericó rdia. Esses
ajudantes sempre foram homens fortes, de coraçã o simples, prontos
para fazer um favor a um amigo sem questionar seus gostos, e seus
mú sculos, fortalecidos pelo trabalho á rduo, eram iguais a esse tipo de
giná stica matinal.
Na escuridã o da sala, tã o semelhante a uma prisã o, enquanto os
golpes caı́am sobre seu corpo atormentado pela dor e suas feridas eram
reabertas, Martin uniu-se à quelas almas para quem a luz inefá vel de
Deus está escondida pelas grades da prisã o de purgató rio essas
almas que nã o podem apressar o momento de sua libertaçã o, mas
devem esperar ser ajudados pela caridade dos outros. Possivelmente,
para ser mais parecido com eles, Martin queria ser açoitado pelos
amigos, sentindo-se impotente, passivo, sem nenhum outro meio de
socorro que sua pró pria voz. Ele nã o usou sua voz para gritar “chega”,
mas apenas para implorar e implorar a seus amigos que batessem com
mais força, sem piedade.
Eles pararam quando a hora do Angelus chamou Martin das
sombras da sala subterrâ nea para a luz rosada em que a torre do sino
estava banhada. Talvez naquele mesmo momento as almas por amor à s
quais ele ofereceu suas oraçõ es e sofrimentos - e quem pode dizer
quantos? - tenham passado das sombras para a visã o da luz eterna e
saudado a Rainha do Cé u naquele alvorecer de seu dia sem im.22
Assim, inspirado pela caridade, Martin uniu a contemplaçã o à
penitê ncia durante sua oraçã o noturna. Ele olhou e amou sua pró pria
alma e as almas de seus pró ximos à luz do amor de Deus. Ele olhou e
procurou a Deus e o encontrou participando dos sofrimentos de
Cristo. E se, quando a noite começou, ele tomou para si as palavras do
Câ ntico dos Câ nticos: “Eu irei levantar. . . Procurarei aquele a quem
minha alma ama ”, ao raiar do dia, apó s ter saboreado a inefá vel doçura
da uniã o divina no sofrimento, certamente sua alma repetiu:“ Eu o
segurei e nã o o deixarei ir. ”23
Mais uma vez, ele retomou o seu dia de trabalho, decidido que nã o
seria separado do objeto de seu amor. E ele conseguiu. Dele pode-se
dizer, segundo o padre Agostinho de Valverde, o que se diz de Sã o
Martinho de Tours: Numquam spiritum ab oratione relaxabat , porque
aprendeu a unir a atividade de Marta à contemplaçã o de Maria.24
E um belo ideal, fá cil de formular, mas nã o é fá cil de conseguir. Para
muitos, parece totalmente impossı́vel. Martin encontrou a chave do
misté rio na espiritualidade dominicana e, com o seu esforço pessoal e
assı́duo, teve tanto ê xito que foi um exemplo vivo do ideal de vida mista
que é caracterı́stico da Ordem dos Frades Pregadores.
Ele prolongou seus exercı́cios piedosos da noite ao longo do dia,
tanto oraçõ es quanto morti icaçõ es, vestindo uma camisa de cabelo e
uma corrente de ferro em volta da cintura. E como fazia a disciplina à
noite em sua cela, na sala do capı́tulo ou na sala sob a torre do sino,
muitas vezes ia lagelar-se na solidã o de Limatambo durante o dia.25
Alé m disso, jejuou continuamente, pois aos tempos de jejum
prescritos pelas leis da Igreja e pelas Constituiçõ es da Ordem
acrescentou muitos mais por seus pró prios motivos pessoais de
devoçã o, de modo que jejuou praticamente o ano inteiro. “Para o dito
Servo de Deus, cada dia era um dia de jejum por preceito”, segundo um
de seus colegas, o leigo, Francis de Santa Fe. Para se ter uma ideia do
rigor desses jejuns, basta saber quais eram as refeiçõ es de Martinho
nos dias de festa. Depois de passar toda a Quaresma com pã o e á gua, e
depois de se abster de todos os alimentos durante os ú ltimos trê s dias
da Semana Santa, no domingo de Pá scoa, “em sinal de alegria, ele
comeu alguns vegetais de raiz chamados camotes (batata doce). E na
segunda-feira de Pá scoa comeu um ensopado de pã o e um pouco de
repolho, mas sem comer carne ”.26
Em suma, pode-se dizer que Martinho jejuou a pã o e á gua durante
toda a vida, pois a batata-doce ocupou o lugar do pã o na alimentaçã o
dos ı́ndios e, portanto, deve ser considerada apenas como pã o.27
Martin foi muito generoso com Deus, mas Deus nã o foi menos
generoso com Martin. Ele inundou sua almacom tanta doçura que
Martin nã o conseguiu se conter e quase foi forçado a gritar: “Quã o doce
é o Senhor e quã o digno de ser amado!”28
Joã o Vá zquez estava a serviço do mosteiro do Santo Rosá rio há
pouco tempo quando, certa noite, por volta das onze horas, foi
acordado por um violento terremoto. Totalmente assustado, ele pulou
da cama e chamou Martin, mas icou ainda mais assustado ao ver a cela
inundada de luz e Martin deitado de bruços no chã o, os braços abertos
em forma de cruz e o rosá rio na mã o. Quase fora de si, John se inclinou
sobre ele, agarrando-se a Martin como um homem se afogando,
chamando-o para se levantar, para ter cuidado para que a cela nã o
caı́sse em ruı́nas sobre eles.
As paredes da cela izeram uma dança de embriaguez e as vigas
estalaram. Martin icou onde estava, imó vel, e John Vá zquez sentiu que
iria enlouquecer de medo. Ele juntou suas roupas, colocou-as debaixo
do braço e correu para o claustro. Ali, enquanto se vestia, viu outro
coadjutor, Miguel de Santo Domingo, e contou-lhe a grande maravilha
da noite: a luz envolvendo Martinho, que permaneceu imó vel em oraçã o
enquanto tudo cambaleava.
“Ah, sim, eu acredito”, respondeu Michael, “mas se você continuar
com o irmã o Martin, verá muitas coisas assim”.
Mesmo assim, para agradá -lo, Michael voltou com ele para a cela
onde Martin ainda estava envolto no esplendor daquela luz, embora as
paredes tivessem recuperado sua estabilidade normal e todo o edifı́cio
parecesse mais só lido e compacto do que nunca. Cheio de pena do
rapaz assustado que, até entã o, pouco vira dessas coisas, Michael o
conduziu para sua pró pria cela e lá preparou uma cama para ele.
Na manhã seguinte, quando ele voltou para a casa de
Martin celular, John foi informado educadamente e com irmeza:
“Cuidado para nã o falar sobre nada que você possa ver aqui. . . . Nã o
importa se você vê algo extraordiná rio, mas nã o saia por aı́ tagarelando
sobre isso com todo mundo. ”29 Martin desejava salvaguardar o
"segredo do Rei".

Capítulo 6
“A luz dos olhos alegra a alma.” ( Prov . 15:30).
UMA
EMBORA A ORAÇAO, a morti icaçã o e um pouco de sono no catafalco da
sala capitular ocuparam a maior parte da noite, Martin teve que
reservar algum tempo para visitar os enfermos quando um deles estava
tã o gravemente enfermo que precisava de atençã o durante a noite.
Havia uma escada velha no mosteiro, escura e tã o gasta pelo uso
que era quase intransitá vel. Para evitar que algué m caia dos degraus
quebrados, a escada foi fechada. Mas Martin descobriu que era o
caminho mais direto entre sua cela e a enfermaria e, portanto, o usava
quando visitava os enfermos à noite.
Uma noite, ele estava seguindo seu caminho habitual, com as mã os
e os braços cheios de suprimentos para a enfermaria. Ao chegar à
escada, ele se deparou com uma imagem que faria o sangue
congelar. Um corpo monstruoso barrou seu caminho, e da coisa sem
forma emergiu uma caricatura horrı́vel de um rosto humano, seus olhos
lı́vidos brilhando com malı́cia e ó dio. Nã o foi difı́cil para Martin saber
quem era.
"O que você está fazendo aqui, maldito?" perguntou Martin.
Os demô nios sã o considerados muito inteligentes, mas à s vezes, a
julgar por suas açõ es, o contrá rio parece ser verdade.
“Estou aqui porque me agrada estar aqui”, respondeu o outro
atrevidamente, “e porque espero lucrar estando aqui”.
"Fora com você para as profundezas amaldiçoadas onde você
mora!" gritou Martin.
O outro nã o se mexeu, e Martin nã o viu motivo para perder tempo
em discussõ es infrutı́feras. Ele largou o braseiro e o linho que carregava
para a enfermaria, tirou o cinto de couro que prendia sua tú nica e
começou a chicotear o monstro com ele.
O demô nio desapareceu imediatamente, certamente nã o por causa
dos golpes, que nã o podiam ferir um espı́rito, mas porque ele estava
convencido de que nã o havia nada a ganhar icando.
Martin entã o pegou uma tiçã o de fogo do braseiro, traçou o sinal
da cruz na parede e se ajoelhou para orar e agradecer a Deus que lhe
concedeu a vitó ria sobre o espı́rito maligno. Cerca de trezentos anos
antes, o irmã o espiritual de Martin, Santo Tomá s de Aquino, izera
exatamente a mesma coisa, depois de desmascarar o inimigo que,
naquela ocasiã o, escolhera outro disfarce.1
E bastante natural que o progresso da virtude feito por uma alma
aborreça o inimigo do bem. E por isso que os santos, na maioria das
vezes, tê m de enfrentar lutas abertas ou ocultas com ele. Por outro lado,
é muito menos natural que a virtude desagrade à s boas almas. E, no
entanto, à s vezes acontece, como pode ser visto na vida dos santos de
todos os tempos, bem como em nossa vida normal. Essa inveja, que
pode ser despertada em pessoas boas por causa da virtude de outras, é
uma das experiê ncias mais vexató rias e dolorosas da terra. E como uma
armadilha que impede a açã o, ou uma agulha que penetra
dolorosamente nas profundezas da alma.
Martin nã o parece ter passado por esse tipo de sofrimento. E
verdade que muitas vezes ele foi maltratado. Mas se algué m o chamou
de “cachorro mulato”, nã o foi por inveja de sua virtude. Simplesmente
porque alguma irritaçã o havia despertado imediatamente aquele
complexo de autodefesa que estava enraizado na alma e no
temperamento do espanhol do sé culo XVI. Hoje nó s chamarı́amos de
preconceito racial. Mas foi feito, se é que se pode dizer, de boa fé , e
Martin entendeu dessa forma, pois ele “sabia” que todo o mal que se
dizia dele era verdade.
Por outro lado, se reprovaçõ es, humilhaçõ es ou tratamento duro
vinham de um superior, eram administrados com muito mais calma. Os
superiores religiosos tê m o dever de testar seus sú ditos e, assim, ajudá -
los a trilhar um caminho mais acidentado do que aquele que nossos
fracos seguirã o tã o prontamente.
No caso de Martin, seu evidente gosto pela humilhaçã o teve que
ser testado para ver se era realmente genuı́no. E relativamente fá cil
para nó s nos colocarmos em ú ltimo lugar, mas bastante difı́cil nos
submetermos a ser designados em ú ltimo lugar por outros. Os
superiores do mosteiro do Santo Rosá rio deviam descobrir como
Martinho reagiria ao ser derrubado por outro. Eles també m tiveram
que testar a autenticidade de seus muitos dons sobrenaturais assim
que começaram a circular notı́cias sobre as graças extraordiná rias que
aquele pobre mulato estava recebendo. Nã o era estranho, portanto, que
eles exercessem escrupulosamente seu direito e cumprissem seu
dever.2
No entanto, do inı́cio ao im, houve um senso de jogo justo entre
Martin e seus superiores e entre Martin e seus irmã os. Ele teve que ser
colocado à prova para ver como ele agiria sob provaçõ es, e seus
superiores o izeram. Mas assim que icou evidente que ele suportou os
testes admiravelmente, eles nã o hesitaram em reconhecê -lo como
sendo de“Bom metal”, independentemente de ser negro ou branco de
pele.
Para sua honra, deve ser dito que quando a santidade de Martinho
se tornou aparente, nenhum preconceito de nascimento ou cor impediu
os membros do mosteiro do Santo Rosá rio de reconhecer e admitir essa
santidade. Os membros da comunidade, que por sua dignidade
sacerdotal foram elevados a um nı́vel superior ao do coadjutor,
tomaram Martin como modelo de vida e até pediram que ele os
adotasse como ilhos espirituais.
Isso era ainda mais uma honra para Martin, pois aqueles que assim
o estimavam nã o eram homens inexperientes. Os dominicanos, como
grupo, sã o homens positivos, acostumados mais à razã o do que a
sonhar, nada inclinados à fantasia, ao exagero ou a entusiasmos
injusti icados. Isso era especialmente verdadeiro para os membros do
mosteiro do Santo Rosá rio, visto que era uma casa de estudos e a sede
da primeira universidade do Novo Mundo. Eles poderiam, portanto, ser
considerados como uma aristocracia da vida espiritual e
cultural. Quando esses religiosos disseram: “Martin é um santo”, é certo
que nã o o disseram levianamente. Resta ver como eles chegaram a essa
conclusã o.
O Padre Francis Velasco Carabantes era dessa opiniã o, assim como
o Padre André de Lisó n, que era mestre de noviços e, portanto, erudito
em assuntos espirituais. O padre André uma vez declarou a um grupo
de noviços e vá rios professos: “Este mulato é um santo e deve ser
venerado como um santo. Na noite passada, ele teve uma batalha
terrı́vel com o demô nio e o conquistou. ”3
Realmente houve uma batalha naquela noite, nã o na escada da
enfermaria, mas na cela de Martin, e o mestre dos noviços recebeu um
relato dela de Martin em uma longa conversa. Desta vez, Martin nã o
estava sozinho com o adversá rio. Francisde la Torre, o o icial da guarda
que encontrou Martin em ê xtase sob o teto da igreja e estava
compartilhando a cela de Martin por vá rios meses, estava presente
durante a luta e narrou os detalhes mais tarde.
Francis ocupava a parte de trá s da sala, separada da frente por uma
alcova. Ele já ia para a cama quando ouviu a porta abrir e fechar, e a voz
de Martin, sempre tã o comedida e uniforme, se elevou em um tom
raivoso: “Por que você veio aqui, seu criador de problemas? O que você
está procurando? Este nã o é o seu quarto. Saia!"
Desta vez, o diabo deve ter planejado um grande ataque e nã o
prestou atençã o à ordem de Martin, embora tenha sido reforçada por
um luxo de invectivas. Talvez o bando reunido para o ataque tivesse o
nome de Legiã o, como aquele que descarregou sua raiva em um
rebanho de porcos quando o poder da Palavra os obrigou a se afastar
de uma criatura humana na qual haviam feito residê ncia.4Seja qual for
o caso, um barulho infernal seguiu as palavras de Martin. Os demô nios
o agarraram e o maltrataram furiosamente.
Francis de la Torre quis saber do que se tratava tanto alvoroço e
en iou a cabeça para fora de sua alcova. Ele viu Martin sendo rolado de
um lado para outro no chã o e atirado contra as paredes. Ele o viu
estremecer e entã o o ouviu gemer sob os golpes. Mas Francisco nã o viu
nem a sombra de um agressor.
De repente, a cé lula e tudo dentro dela explodiram em
chamas. Francis de la Torre nã o era tı́mido. Ele correu para combater o
fogo e ele e Martin conseguiram apagar as chamas. Entã o, tã o
repentinamente quanto começou, o grande barulho acabou e tudo icou
calmo novamente.
Francis voltou para sua cama e Martin se esticou em sua prancha,
colocando perto da pedra que estava usando como travesseiro, a
caveira que foi sua inspiraçã o para pensamentos piedosos. E os dois
adormeceram, cansados mas tranquilos.
As trê s horas, quando Martin se levantou para tocar a campainha
da madrugada e deixou uma vela acesa para o companheiro, Francis
saltou da cama, curioso para ver os estragos que o fogo havia
causado. Maravilha das maravilhas! Nem as paredes, nem os mó veis,
nem os lençó is dispostos nas prateleiras, todos os quais Francis tinha
visto algumas horas antes envoltos em chamas, apresentavam o menor
vestı́gio de fogo ou fumaça.5 A “terrı́vel batalha” terminou com a
derrota completa dos espı́ritos malignos.
O julgamento do mestre dos noviços, padre André de Lisó n, nã o
recaiu exclusivamente sobre este encontro, por mais glorioso que
seja. Eventos extraordiná rios nã o podem ser a pedra de toque da
santidade. Para um religioso, a pedra de toque da santidade é a vida
comum. O eremita se santi ica em sua ermida, o leigo na sociedade, mas
os religiosos tê m tomado como meio de santi icaçã o a vida comum, que
signi ica caridade fraterna e bom exemplo, mas també m irmeza e
resistê ncia diante do mau exemplo, e tolerâ ncia e paciê ncia com
diferenças de cará ter. A virtude de Martin provou ser ouro puro em face
das fricçõ es da vida em comunidade.
As vezes, aqueles que levam uma vida muito austera tornam-se
rudes em seus caminhos e até , o que é pior, um pouco á cido. Quando
isso acontece, é uma pena, porque a virtude, em vez de ser doce e
atraente, torna-se repelente. Talvez para evitar isso, bem como para
salvaguardar o frescor e a pureza das boas obras, o Evangelho ensina
que a morti icaçã o, como a oraçã o e a esmola, deve ser oferecida ao Pai
em segredo: “Quando jejuar, nã o ique triste como os hipó critas , que
des iguram seus rostos. ” ( Mat . 6:16).
Quã o bem Martin entendeu este ensino do Evangelho! Tudo o que
ele fez foi totalmente simples, totalmente atraente. As austeridades de
dia e de noite, osofrimentos constantes de sua constituiçã o heró ica,
estavam escondidos, segredo con iado à custó dia ciumenta do amor
que reservava a oferenda à vista de seu Amado. Mas eles eram
aparentes, no entanto, à luz de seu sorriso, como alegria brotando da
conquista espiritual.
Se os retratos de Martin, ou melhor, os vá rios esboços deixados
por seus irmã os, sã o con iá veis - e como poderiam ser de outra forma?
- ele era o tipo perfeito de homem que é senhor absoluto de si
mesmo. Toda a sua atitude revelava um domı́nio interior e uma
idelidade à s exigê ncias da regra: os olhos baixos, as mã os cruzadas no
peito ou escondidas nas largas mangas do há bito. O silê ncio dele era
“raro”, disse o padre Christopher de Toro, signi icando que seu silê ncio
foi levado a um grau raramente encontrado. Só quando a obediê ncia ou
a caridade para com o pró ximo o exigia, Martin interrompia aquele
silê ncio, e mesmo assim suas palavras eram “breves, poucas, santas,
necessá rias”, correspondendo à s necessidades de seus irmã os. Mas
quando ele abriu a boca, sua fala foi tã o cheia de graça que seus
ouvintes teriam se contentado em ouvir por horas a io. Padre Anthony
de Morales nã o hesitou em usar a palavra “estilo” ao descrever a
maneira de falar de Martin, elogiando sua e icá cia, concisã o, eloqü ê ncia
e enfatizando o quã o maravilhosos eram todos esses dons na pessoa de
um humilde leigo.6
Martin tinha o poder, aperfeiçoado por sua prá tica do silê ncio, de
dizer "coisas" em vez de "palavras". Em seu discurso condensado e
objetivo, cada palavra contada; nenhuma palavra foi ociosa. Era
bastante ló gico que fosse assim, quando se pensa nos assuntos de sua
conversa. “Toda a conversa dele. . . quando surgiu uma ocasiã o para
falar, foi sobre coisas celestiais. . . expressando a esperança que todos
deveriam ter de salvaçã o pelos mé ritos de Nosso Senhor e Salvador
JesusCristo e Sua Santı́ssima Mã e. ”
Sã o Domingos sempre falou com Deus ou de Deus. E Martinho,
pouco inclinado a falar, seguiu o exemplo do Santo à sua maneira
individual, “falando sempre mais com Deus do que de Deus”.7
A natureza foi generosa com Martin. Em seu fı́sico, os melhores
traços das duas raças das quais ele nasceu estavam em harmonia. Os
traços nobres e regulares de seu pai espanhol combinavam-se com a
esbeltez e o vigor de sua mã e negra.
Os dons morais que recebera eram ainda mais atraentes: um
personagem naturalmente quieto, re lexivo, silencioso; uma
inteligê ncia aguda e ativa; uma alma ı́ntegra, amorosa verdade, cheia de
bondade e compaixã o.
Com a ajuda da graça divina, Martin aperfeiçoou todos esses dons a
ponto de icarem completamente sob o controle de sua vontade, até que
ele estivesse no comando total da cidade de sua alma e nunca deixasse
um ato ou palavra precipitada escapar dele. Martin era como uma
"sentinela viva".
Mas isso nã o é su iciente para explicar por que os outros, apenas
ao vê -lo, sentiram atraçã o pelo bem, nem por que os a litos e
sofredores se sentiam consolados quando apenas olhavam para ele.8
A compreensã o humilhante de nossos defeitos pode criar um
abismo entre nó s e um homem que atingiu um alto grau de
perfeiçã o. Os dons naturais, especialmente aqueles que nã o esperamos
encontrar em algué m cuja condiçã o social é inferior à nossa, facilmente
despertam inveja e ciú me. Alé m disso, uma in lexı́vel idelidade ao
silê ncio somada a uma certa atitude exterior - os olhos ixos no chã o, os
braços cruzados e as mã os nas mangas - pode à s vezes incomodar em
vez de atrair quem vê .
Mas, no caso de Martin, tudo isso era atraente. Acredito que tenha
sido por causa do sorriso dele. Este detalhe nã o parece ter escapado a
nenhuma das testemunhas queesboçou um per il de Martin em seu
depoimento para sua beati icaçã o. Todos eles tinham algo a dizer sobre
seu sorriso.
Nã o era apenas um sorriso normal. Nã o era um sorriso que ia e
vinha de acordo com os acontecimentos agradá veis ou desagradá veis
ocorridos. Muito menos foi um sorriso provocado pela maré baixa nos
assuntos alheios.
O sorriso de Martin foi velado pela tristeza pela tristeza dos outros,
mas quando ele pró prio estava sofrendo, era mais luminoso do que
nunca. Era um sorriso constante, mas nã o ixo. A pureza e o ardor de
sua alma foram revelados por ela, e em seus contatos com outras
pessoas tinha nuances de delicadeza inexprimı́vel, como a luz assume
tons inde inı́veis e matizes de cores dos objetos sobre os quais
incide. Seu sorriso deu coragem aos tı́midos, conforto aos sofredores,
con iança aos que vacilaram, esperança aos oprimidos. Mais importante
de tudo, sempre despertou aversã o pelo mal e amor pelo bem.
A virtude é a verdadeira virtude quando desperta o desejo de
imitaçã o. Quando algué m consegue continuar a sorrir, como fez Martin,
apesar de todos os incô modos do contato com os outros, superando as
pró prias lutas internas, é sinal de que a caridade reina nessa alma. “O
mais doce fogo do amor, enchendo a alma com toda doçura e
deleite!” exclamou Santa Catarina. “Nem a tristeza nem a amargura
podem apoderar-se da alma que arde com este doce e glorioso fogo.”9
E o que é a santidade, senã o o reinado da caridade na alma? O
padre Andrew de Lisó n e os demais tinham razã o ao dizer: “Martin é
um santo”.
Tendo formado esta opiniã o, os dominicanos do mosteiro do Santo
Rosá rio tiraram dela uma conclusã o ló gica: sendo Martinho tã o santo,
nã o é justo que lhe seja negada a graça da pro issã o religiosa.
O Pe. Anthony de Morales a irma claramente que a possibilidade de
fazer a pro issã o solene foi oferecida a Martin em conseqü ê ncia da
fama de santidade que conquistou entre seus irmã os. Padre Morales
menciona o fato de sua pro issã o como prova da reputaçã o de Martin
como santo, “porque, embora os leigos ajudantes, que no Peru sã o
chamados de donados , nã o costumam fazer a pro issã o solene, o
referido Servo de Deus o faz com total formalidade. , como um
verdadeiro religioso, e assim sua pro issã o foi celebrada como
excepcional, e os outros religiosos estimavam o Servo de Deus como
um religioso verdadeiramente professo ”.10
Martin já havia passado nove anos como auxiliar leigo. Quando ele
pediu para ser admitido na Ordem, seu pai protestou, exigindo que seu
ilho fosse recebido pelo menos entre os irmã os leigos. Mas, como os
protestos e demandas de seu pai foram inspirados apenas por orgulho
ferido e vangló ria, Martin recusou irmemente, como vimos.
Entã o, durante os nove anos passados no mosteiro do Santo
Rosá rio, a compreensã o e o conhecimento de Martin de muitos
aspectos da vida religiosa aumentaram. Nã o é incrı́vel. Nenhuma mente,
por mais aguçada que seja, pode penetrar nas profundezas das coisas à
primeira vista. Ningué m apreende toda a beleza de uma paisagem à
primeira vista, nem toda a beleza de uma obra literá ria à primeira
leitura. Da mesma forma, o simples fato de ter vocaçã o nã o é su iciente
para permitir apreender desde o primeiro momento toda a
profundidade da vida religiosa, que, na grande sinfonia das coisas deste
mundo, é uma das melodias mais misteriosas e intrigantes. . E preciso
mergulhar nessa vida e vivê -la.
Isso é o que Martin fez. Durante esses nove anos viveu como
religioso, com uma idelidade que teria sido louvá vel até mesmo para
um religioso professo, embora nã o estivesse vinculado a nenhum outro
laço que nã o o de sua pró pria constâ ncia. Mas marçotin percebeu que
algo estava faltando - nã o para sua ambiçã o, nã o para sua dignidade,
mas para as exigê ncias do impulso que o trouxera ao mosteiro. Ele se
ofereceu, seguindo aquela atraçã o; ele se deu por um ato que, em seu
pró prio coraçã o, era de initivo; e ele deu prova da validade desse ato
pelo fato de que, embora livre, ele permaneceu iel. No entanto, faltava
algo para tornar seu presente perfeito.
Na sala do capı́tulo, aos pé s do grande cruci ixo que testemunhava
as suas oraçõ es e penitê ncias, ou diante do taberná culo da Eucaristia e
da imagem da Rainha do Santo Rosá rio, Martin poderia dizer: “Senhor,
na simplicidade do meu coraçã o Eu Te dei tudo com alegria e jurei
seguir-Te para onde quer que fores. ” Mas ele nã o podia dizer: “Senhor,
te comprometeste a mim, para que eu possa seguir qualquer caminho
que me mostres”.
A vocaçã o religiosa nasce do amor, realiza-se por amor, e o amor
tem suas exigê ncias. Ele precisa se dar, mas també m precisa saber que
seu presente foi aceito. Nã o é por acaso que a pro issã o religiosa se
compara ao casamento, no qual cada um dos dois que ama se doa ao
outro e aceita o dom do outro. Na pro issã o religiosa, a Igreja aceita o
dom em nome de Cristo, seu Esposo, e promete uma troca divina ao
doador.
Durante o seu longo noviciado, Martin deve ter sentido a falta deste
selo, desta aceitaçã o solene por parte da Igreja, mas nã o falou disso
porque, por humilde que fosse, esse desejo parecia presunçoso. Mas
quando seus superiores o convidaram a dar o passo, ele aceitou com
alegria.
Assim, um dia, na presença de toda a comunidade reunida na sala
capitular, depois de ter implorado a misericó rdia de Deus e da Ordem,
mar.tin fez a pro issã o solene, prometendo obedecer a Deus, à Bem-
aventurada Virgem Maria, a Sã o Domingos e aos superiores da Ordem
até a morte, de acordo com a Regra de Santo Agostinho e as
Constituiçõ es da Sagrada Ordem dos Frades Pregadores.
E Cristo olhou com amor desde o grande cruci ixo e, na pessoa do
superior que recebeu os seus votos, deu-lhe o beijo da paz.
Capítulo 7
"Põ e-me como um selo em teu coraçã o, como um selo em teu braço." ( Cant . 8: 6).

E
XTERIORMENTE, nada mudou na vida de Martin por causa de sua
pro issã o. A mudança foi totalmente interior, em seu espı́rito. A alma de
Martin recebeu o selo de estabilidade e foi banhada em paz. Ao mesmo
tempo, ele descobriu um novo impulso para o progresso espiritual,
permanecendo iel à obrigaçã o solene que havia assumido perante
Deus e seus irmã os. A alegria alegre com que ele assumiu todos os
deveres da vida religiosa lembra as palavras do salmo: “Como um
gigante se alegrava em correr pelo caminho”.1
Sua vida era "um espelho vivo de vida religiosa, um modelo de
piedade, um ideal perfeito de observâ ncia regular".2 O Irmã o Lauren de
los Santos acrescenta que Martin foi tã o perfeito na observâ ncia dos
trê s votos e das constituiçõ es da Ordem que nunca falhou em nenhum
desses pontos.3
As virtudes que constituem o objeto dos trê s votos religiosos eram
o pã o de cada dia de Martin, mesmo antes de ele se vincular a elas por
sua pro issã o. Depois de fazer seus votos, ele praticou essas virtudes
com um esforço ainda maior, se isso fosse possı́vel.
Seu modo de vestir era tal que satisfazia as exigê ncias da pobreza,
humildade e morti icaçã o. Alé m de nã o ter nada como seu - o que é uma
obrigaçã o elementar para quem faz voto de pobreza - Martin nunca
usou nada de novo. Todas as suas roupas eram de segunda mã o. Mas
para que seu grande amor pela pobreza nã o despertasse elogios, ele o
escondeu sob o vé u de uma brincadeira, dizendo que preferia as coisas
feias e usadas para nã o ter que cuidar muito delas ou pensar muito
nelas.
Qualquer há bito que aspirasse à honra de fazer parte de seu
guarda-roupa tinha que ser do material mais desgastado
possı́vel. Tendo alcançado essa honra, foi obrigado a permanecer em
serviço até o ú ltimo momento em que a urdidura e a trama
conseguiram se manter unidas, e mesmo quando começaram a se
separar. Patch foi colocado sobre patch para prolongar a vida das
roupas esfarrapadas. Quando o material foi reduzido a trapos,
traiçoeiramente se desfez e revelou à piedosa curiosidade dos irmã os
os segredos que deveria ter escondido: a roupa ı́ntima de serapilheira e
a camisa de crina de cavalo.4
A irmã de Martin, Joan, uma vez tentou dar a ele um novo há bito
para que ele pudesse lavar o que estava usando. "Por que?" ele
perguntou. “Quando eu lavo meu há bito, a roupa de baixo é su iciente
enquanto o há bito está secando, e quando eu lavo a roupa de baixo, eu
consigo muito bem icar só com o há bito, como sempre faço. Seria
totalmente supé r luo ter dois há bitos. ”
E ele recusou o presente de Joan. Mas ele tinha um bom motivo
para fazer isso. Ele teve o exemplo - tã o vital e e icaz para ele quanto
uma ordem - de seu pai, Sã o Domingos, que sempre usava “um há bito
remendado, usando há bitos mais feios do que os dos outros irmã os”.5
Martin tinha um chapé u, també m muito velho, mas como lhe
parecia uma forma de autoindulgê ncia usá -lo para proteger a cabeça
dos raios do sol equatorial, costumava deixá -lo cair entre os ombros,
pendurado no pescoço por um cabo.
Seus sapatos foram escolhidos entre os descartados por seus
irmã os. Parece que sua principal fonte para este artigo de seu guarda-
roupa foi o padre John Ferná ndez que, segundo o padre procurador do
mosteiro, era “um religioso de vida exemplar e bons há bitos”. Assim
sendo, nã o há dú vida de que ele també m praticou a virtude da pobreza
e nã o se aposentou até que eles tivessem bem merecido a
aposentadoria.6
Martin nã o tinha celular pró prio. A cela considerada sua era na
verdade o depó sito ou almoxarifado da enfermaria, onde guardava sua
famosa cama de pranchas. O ú nico ornamento nas paredes era uma
cruz de madeira nua e uma imagem grosseira da Virgem e de Sã o
Domingos.
Como havia feito antes de entrar no mosteiro, ele nunca tocou em
um centavo de tudo o que foi capaz de ganhar com sua habilidade
mé dica.7A certa altura de sua vida, as obras de caridade que brotavam
de seu coraçã o e sua genialidade izeram com que as esmolas de toda
Lima luı́ssem em suas mã os, formando uma espé cie de banco de
caridade. Entã o, mais do que nunca, Martin continuou pobre. O
dinheiro entrava e saı́a de suas mã os sem nunca deixar rastros.
Esse amor intransigente pela pobreza é ainda mais notá vel quando
considerado em relaçã o à observâ ncia religiosa do sé culo XVI, que
interpretava o voto de pobreza em um sentido bastante amplo. Com
efeito, os religiosos nã o viviam entã o a vida comum com a plenitude
pretendida pelos fundadores das vá rias ordens e à qual felizmente o
Direito Canô nico os restituiu nos sé culos seguintes.
A Regra de Santo Agostinho a irma que tudo deve ser considerado
em comum, e que quem tenta guardar algo para si, mesmo que seja uma
necessidade, será punido como se fosse um ladrã o. Quã o ié is os
primeiros seguidores de Sã o Domingos foramna observâ ncia deste
conceito de pobreza é mostrado por um episó dio relatado por Gerard
de Frachet em Vitae Fratrum . Depois de ter implorado solenemente a
Deus para libertar a alma de um irmã o leigo do demô nio da avareza, o
beato Reginald o puniu severamente na presença dos frades
simplesmente porque ele aceitou um pedaço de pano como um
presente e depois o escondeu para si mesmo.
Mas, no sé culo dezesseis, ao contrá rio, esperava-se que cada
religioso provesse suas pró prias necessidades e, portanto, era-lhes
permitido usar, total ou parcialmente, tudo o que conseguissem ganhar
com seu trabalho. Embora isso tivesse a vantagem de tornar mais leve a
tarefa dos encarregados do cuidado material da comunidade e de
estimular a iniciativa individual, o costume nã o representava o ideal
perfeito de pobreza religiosa. Alé m disso, criou disparidades de vida
que se opunham ao espı́rito da caridade fraterna, que é a alma da vida
comum.
Martin amava a pobreza em toda a sua integridade, como Sã o
Domingos a amava e exortava seus ilhos a amá -la, ameaçando com sua
maldiçã o qualquer um que pudesse ser culpado de in idelidade a esse
respeito. Na medida em que sua observâ ncia dependia dele
pessoalmente, Martin praticava a pobreza com o mesmo rigor como se
vivesse no sé culo XIII em vez do sé culo XVI, e tentou realizar uma
observâ ncia mais estrita da virtude sagrada por parte de seus irmã os.
Nem a razã o de sua existê ncia nem seu im se encontram na
pró pria pobreza. Parte da humildade e do desejo de se conformar ao
exemplo do pobre Cristo e prepara o caminho para outras
virtudes. Santa Catarina explica assim a origem da pobreza na
humildade: “O homem humilde desprezou as riquezas, de onde
derivaria a sua obstinaçã o, e deseja a verdadeira e santa pobreza. Para
ele verque a pobreza voluntá ria no mundo enriquece a alma e a liberta
da escravidã o; a pobreza torna a alma branda e mansa e a liberta da vã
esperança das coisas transitó rias, e dá -lhe uma fé viva e verdadeira
esperança; a alma espera no seu Criador, por meio de Cristo
cruci icado. . . . Por amor à s verdadeiras riquezas, a alma despreza as
vã s riquezas e busca a pobreza, esposando-a pelo amor de Cristo
cruci icado, cuja vida inteira foi de pobreza.8
A pobreza abre caminho à s outras virtudes, fechando a porta aos
vı́cios que sã o inimigos da alma: “Por meio da pobreza, a alma foge do
orgulho e das conversas mundanas e das amizades indignas. . . . Livre
da vaidade do coraçã o e da frivolidade da mente, a alma delicia-se com
a calma de sua cela. . . e chega à pureza perfeita. ”9
A funçã o da pobreza é , portanto, limpar o terreno dos obstá culos,
para que a alma, agora puri icada e serena, se abra à açã o da
graça. Feito isso, a alma encontra-se naturalmente chamada ao seu
centro, a uma vida pura, laboriosa e recolhida. Mas voltar ao centro da
alma nã o é envolver-se no egoı́smo. E, antes, como viver em uma cela, e
nã o em uma cela de prisã o, mas em uma cela moná stica. Neste
contexto, Santa Catarina a irmou: “Sua cela torna-se um paraı́so porque
Deus está oculto em sua alma”.
Na alma de Martin, a pobreza era o prelú dio e o ornamento de uma
pureza lı́mpida. Todos aqueles que o conheceram em vida concordaram
que ele preservou sua virgindade intacta até o momento de sua
morte. Ele tinha um amor profundo pela beleza espiritual da alma, um
amor ciumento que o fazia procurar os meios adequados para preservá -
la e aumentá -la. Fê -lo conforme o espı́rito da sua vocaçã o dominicana,
nã o isolando-se de todo o contacto com o pró ximo, mas utilizando os
meios para proteger a virtude angé lica sem impedir a sua açã o
apostó lica. O homem negrolebre sobre o há bito branco era um sı́mbolo
de sua morti icaçã o pela idelidade à regra e penitê ncia voluntá ria, de
sua humildade clarividente, que estava sempre alerta, nã o sofria de
ilusõ es e sabia onde encontrar ajuda na fraqueza e um guia na dú vida
caminhos.
Martin esforçou-se por aumentar e aperfeiçoar esta virtude numa
uniã o cada vez mais ı́ntima com o Deus in initamente puro, cujo amor
torna a alma casta, cujo contacto a puri ica e que, ao doar-se à alma, a
consagra virgem, como a liturgia canta na festa de Santa Inê s. Para
proteger e intensi icar a virtude da pureza, Martin fez bom uso do
sacramento da penitê ncia. As vezes, icamos surpresos ao ver a
assiduidade com que os santos usavam esse sacramento. Mas
esquecemos um fato muito simples: na ascensã o à santidade, o olho da
alma é puri icado e aguçado para que veja mais claramente a beleza do
im a ser alcançado, os passos em falso a serem evitados e os menores
desvios. a linha reta que leva a ele. També m esquecemos que a
con issã o tem um valor positivo porque este sacramento submerge a
alma no sangue de Cristo como num banho que nã o só a puri ica, mas
renova todas as suas forças por uma nova infusã o de graça.
Os santos nã o esquecem nem ignoram essas coisas simples, e é por
isso que se tornam santos. Isso foi verdade no caso de Martin. O
sacramento da penitê ncia re inou a sua alma e aumentou a sua
brancura brilhante, de modo que quando a pureza absoluta se tornou o
seu estado habitual e o ar indispensá vel que a sua alma sopra, tornou-
se també m o seu instrumento mais e icaz no apostolado.
Nos corredores de seu mosteiro e nas ruas ensolaradas de Lima,
ao lado do leito dos enfermos e entre os pobres que vinham pedir
comida à porta do mosteiro, Martin escondia seu tesouro sob suas
roupas remendadas e sua simplicidade de maneiras, mas o o perfume
de sua virtude espalhou-se e, quase sem ele saber, despertou nos
outros o gosto pelas coisas de Deus. “Cada gesto, açã o e palavra
manifestavam a pureza de seu coraçã o” e seu semblante irradiava tal
graça que “despertou outros à devoçã o. Simplesmente olhando para
ele, os a litos eram consolados. ”10
Pobreza e castidade andavam de mã os dadas e, juntas, conduziram
Martin ao longo do caminho da santidade. Mas certamente a terceira e
mais importante virtude da vida religiosa nã o foi negligenciada. Santa
Catarina chama a obediê ncia de “a terceira coluna que preserva a
cidade da alma”, e é realmente a obediê ncia que é o alicerce de todo o
edifı́cio.11
Martin percebeu isso perfeitamente. No dia da pro issã o religiosa
tinha feito apenas este voto, o ú nico que pode conter e implicar os
outros dois. Se, a partir de entã o, foi obrigado à observâ ncia da pobreza
e da castidade, foi por causa do voto de obediê ncia conforme as
constituiçõ es da Ordem Dominicana.
Essa soma de todas as obrigaçõ es da vida religiosa no ú nico voto
de obediê ncia, peculiar à tradiçã o dominicana, é o meio mais e icaz de
enfatizar o fato de que a pró pria essê ncia da vida religiosa consiste em
dar todo o ser a Deus em um holocausto perpé tuo, consumido dia a dia
com o pleno consentimento do livre arbı́trio, que é a posse mais nobre
do homem. E o meio pelo qual o religioso se conforma ao seu Divino
Mestre, cuja vida inteira Sã o Paulo resumiu na frase concisa: “Ele se
humilhou, tornando-se obediente até a morte”.12
A idelidade de Martinho à s virtudes subordinadas da pobreza e
castidade, se assim podemos chamá -las, foi su iciente para nos
mostrar quã o iel ele era à principal virtude da obediê ncia. Alé m disso,
temos amplotestemunho direto sobre sua obediê ncia. Em Martin, essa
virtude baseava-se em um profundo senso de respeito pela autoridade
que equivalia à veneraçã o. Isso se aplicava a toda autoridade, seja
eclesiá stica ou civil, porque ele via em cada uma uma participaçã o na
autoridade de Deus. O Padre Anthony de Morales testemunhou que
sabia por experiê ncia que Martin “obedecia e reverenciava tanto os
prelados religiosos como diocesanos, e todas as pessoas investidas de
dignidade eclesiá stica ou secular, como se venerassem Deus nelas, Sua
autoridade e Seu poder delegado.”13 Ele, portanto, obedeceu
prontamente e induziu outros a obedecer.
O padre Andrew Martı́nez a irmou que Martin nunca se esquivou
de nenhum comando, mas fez tudo o que lhe foi ordenado. Na verdade,
ele até buscou os desejos de seus superiores.14
“Ele cumpriu o voto de obediê ncia com vontade pronta, alegre e
viril”, a irmou um irmã o leigo, Tiago de Acuñ a, e seria difı́cil expressar
um elogio mais completo em tã o poucas palavras.15
A verdadeira obediê ncia é a virtude das almas fortes. Se entre
todas as virtudes morais, cuja funçã o é libertar a alma da tirania das
coisas criadas para que ela possa se unir ao Criador na caridade, aquela
virtude tem a maior excelê ncia que exerce seu domı́nio sobre o livre
arbı́trio, que é o maior de todos os bens criados, em seguida,
obediê ncia, mais do que qualquer outra virtude, deve possuir a
qualidade de virtus ou masculinidade.
Santa Catarina o viu revestido da beleza da dignidade ré gia: “O
obediê ncia, sempre unida na paz e na obediê ncia da Palavra, é s uma
rainha coroada de força!” E ela conta a fortaleza entre as virtudes que a
acompanham: “Esta virtude nunca está só na alma, pois é
acompanhada pela luz da fé , baseada na humildade. . . com irmeza e
perseverança e a joia preciosa da paciê ncia. ”16
Em outro lugar, o Santo de Sena faz um retrato do homem
verdadeiramente obediente que parece, por antecipaçã o, ser um
retrato de Martin: “O homem verdadeiramente obediente nã o obedece
apenas de uma maneira, em um lugar ou em um momento, mas de
todas as maneiras , em todos os lugares, sempre. . . . Com todo o
cuidado ele manté m sua regra, respeita os costumes e as cerimô nias,
cumpre a vontade de seu superior com alegria, nã o desejando julgar
nem questionar as intençõ es do superior. Ele nã o pergunta: 'Por que
um fardo mais pesado é colocado sobre mim do que sobre outro?' Ele
meramente obedece paci icamente, com calma e com uma mente
tranquila. ”17
Padre Francis Velasco Carabantes disse de Martin: “Ele exerceu
esta virtude ao má ximo, com tanta alegria de espı́rito, prudê ncia,
constâ ncia, profunda humildade, e de forma tã o religiosa, que todos
sabiam. . . que o dito Servo de Deus nã o buscou em nada a sua pró pria
vontade, mas apenas a daqueles que o comandavam, e com tal
virilidade de alma, com tal constâ ncia só lida, que nada, por menor que
fosse, jamais poderia ser encontrado nele em oposiçã o a esta
virtude."18
Essa insistê ncia dos irmã os de Martin na qualidade da alegria e
força de sua obediê ncia é admirá vel. E igualmente ú til porque, vendo-o
como uma realidade na vida de um santo, podemos ter uma ideia mais
exata dessa virtude. Obediê ncia nã o é uma “virtude passiva”, como
muitos parecem pensar que olham para ela na perspectiva acinzentada
de expressõ es como “obediê ncia cega”, “obediente como um cadá ver” e
assim por diante. Essas expressõ es sã o freqü entemente usadas e
abusadas na literatura espiritual contemporâ nea.19
Obediê ncia é certamente a renú ncia à pró pria vontade, mas uma
renú ncia efetuada por um ato livre da vontade que, em vista do objetivo
a ser alcançado, contraria as tendê ncias do que Santa Catarina chama
de “vontade sensı́vel”, que quer dizer, o amor pela pró pria satisfaçã o e
indulgê ncia. Está aı́diante de uma virtude no sentido mais amplo da
palavra ( virtus ); uma virtude que, mais do que qualquer outra, exige o
livre arbı́trio do homem. Segundo Santo Tomá s, quanto mais a
obediê ncia obriga a vontade de superar as repugnâ ncias naturais, mais
é genuı́na e agradá vel a Deus.20
Em vista dessa doutrina, é fá cil entender como o Padre Velasco
poderia elogiar a obediê ncia de Martin dizendo: “Ele obedeceu. . . com
alegria de espı́rito e de sua própria vontade ”, o que quer dizer que
obedeceu com toda a força de sua vontade, de maneira inteligente,
como é digna de um ser dotado de vontade e inteligê ncia. E o padre
Velasco poderia acrescentar, sem sombra de contradiçã o, que Martin
foi “obediente até o im da vida, sem buscar a pró pria vontade em coisa
alguma”.21
De maneira quase paradoxal, Santa Catarina de Sena explica como
a atividade e o desprendimento podem ser conciliados na prá tica da
obediê ncia, quando convida seus discı́pulos a “correrem como mortos”
nas pegadas de Cristo cruci icado. Ela elogia a vitó ria da obediê ncia
com as seguintes palavras: “O doce obediê ncia, que nunca causa
dor! Você mata a obstinaçã o e assim faz os homens viverem e
correrem, embora estejam mortos; e quanto mais eles estã o mortos,
mais rapidamente eles correm, porque a mente e a alma que estã o
mortas para o amor de uma perversa sensı́vel irã o correr a corrida
mais facilmente e estã o unidas pelo amor ao Esposo eterno. ”22
Outro aspecto atraente da obediê ncia de Martin aparece no
testemunho de quem o conheceu: sua constâ ncia e sobriedade
simples. Algué m procuraria em vã o entre os detalhes de sua vida - tã o
rica em outros aspectos com fatos notá veis - por “milagres de
obediê ncia”. Em seu jardim nã o há couves plantadas com as raı́zes para
o alto, nenhuma á gua derramada em ileiras de gravetos secos.
Nã o digo isso para criticar os mestres da vida espiritual que
achavam sá bio testar a virtude de seus noviços com tais expedientes. Se
algué m deve acreditar nas lendas, o Senhor mostrou que icou satisfeito
com esses exemplos de fé ingê nua porque à s vezes Ele colocou Seu
poder a serviço deles e operou milagres.
Em vez disso, digo isso apenas porque estou feliz que, no caso de
Martin, nenhum milagre foi necessá rio. Deus nunca opera um milagre
sem um propó sito sé rio, e o propó sito no caso dos “milagres de
obediê ncia” é induzir algué m a praticar essa virtude. Mas Martin nunca
teve dú vidas sobre o valor da obediê ncia e ele nunca teve que ser
convencido de que ela deveria ser praticada. Desde o primeiro dia
compreendeu e praticou a obediê ncia em todas as ocasiõ es que lhe
foram oferecidas pela vida no mosteiro do Santo Rosá rio. Essa
“constâ ncia invariá vel” e “longa perseverança” simples é muito mais
impressionante do que qualquer milagre. Uma virtude que dura toda a
vida, na obscura sucessã o de acontecimentos corriqueiros de que se
preenche todos os dias - dia a dia, ano a ano - alé m de ser virtude
heró ica, pode també m servir de modelo para os outros.
A vontade de Martin foi decididamente submetida à de seus
superiores. Ele constantemente seguia cada indicaçã o de sua vontade,
nã o apenas nos caminhos fá ceis - como quando ele foi ordenado a
varrer os claustros e fazer um trabalho humilde e cansativo - e nã o
apenas em caminhos intrincados - como no acú mulo de deveres que ele
cumpriu, sem ser esmagado por eles - mas també m nas veredas
ı́ngremes e espinhosas, quando a obediê ncia lhe impunha algo
repugnante à sua humildade. Assim, o padre de Saldañ a impô s o
preceito formal da obediê ncia (sem o qual nã o teria vencido a
resistê ncia da humildade de Martin) para fazê -lo falar de suas
morti icaçõ es noturnas.
Pode à s vezes acontecer que as virtudes, que normalmente se dã o
bem e se ajudam, lutem entre si, por assim dizer, e uma luta para
prevalecer sobre a outra. Algo assim aconteceu uma vez quando Martin
estava doente. Martin icava doente com frequê ncia e geralmente nã o
dava atençã o ao fato. No inverno, ele sofreu de febre quartã , mas
continuou a trabalhar. Ele foi para a cama apenas quando nã o conseguia
mais icar de pé , mas mesmo assim, a cama de pranchas nã o lhe
proporcionou muito alı́vio.
Durante um desses ataques de malá ria, o prior ordenou que ele
izesse uma cama para si mesmo como os outros, com colchã o, lençó is e
cobertores. Naturalmente, Martin obedeceu, mas sem querer
deliberadamente, olhou alé m da intençã o do prior e escorregou para
debaixo dos lençó is vestindo seu há bito, roupa ı́ntima, camisa de cabelo
e també m, creio eu, os sapatos do padre John Ferná ndez. Ele
adormeceu, feliz por ter reconciliado a obediê ncia com o espı́rito de
morti icaçã o, que a princı́pio parecia prestes a romper relaçõ es.
Algué m relatou os fatos ao prior, que os julgou da pior maneira
possı́vel. Ele ligou para Martin, deu-lhe um bom sermã o e acusou-o de
desobediê ncia.
Martin se defendeu brilhantemente. “Mas padre, como pude
acreditar que pretendia dar a uma pobre escrava mulata como eu, aqui
em um mosteiro, uma cama luxuosa como eu jamais poderia ter em
minha pró pria casa? Era muito confortá vel para mim, mesmo da
maneira como o usei. ”
Quando a mesma coisa aconteceu novamente, o prior, que era
entã o o Padre John Surate, respondeu sorrindo ao que viera informá -lo
da nova “desobediê ncia” de Martin: “Deixe-o em paz; O irmã o Martin é
um bom mestre em teologia mı́stica e entende muito bem as leis da
obediê ncia ”. Uma necessidadeapenas acrescente que o mestre dos
noviços e o mestre dos alunos acusaram Martin de suas acusaçõ es
como um modelo de obediê ncia e de “renú ncia à pró pria vontade”.23
Martin se viu envolvido em um duelo mortal entre humildade e
obediê ncia quando Felician de Vega, o arcebispo eleito do Mé xico,
adoeceu em Lima enquanto viajava para sua sede residencial. Quando
todos os remé dios prescritos pelos melhores mé dicos se revelaram
inú teis, o padre Cipriano de Medina, sobrinho do arcebispo, disse-lhe:
“Por que nã o telefonou para o nosso irmã o Martin? Ele certamente
poderia curar você . "
Pareceu uma boa ideia ao arcebispo, e ele imediatamente
encarregou o padre Cipriano de pedir ao provincial dominicano que
enviasse Martin para ele.
Quando o padre Cipriano chegou ao mosteiro, Martin nã o foi
encontrado, pois ele estava invisı́vel em um de seus ê xtases
eucarı́sticos. Mas, ao comando do superior, ele apareceu
instantaneamente, vestindo seu manto negro, as mã os cruzadas nas
mangas, os olhos voltados para baixo - sua aparê ncia usual, composta e
tranquila.
“Você já está preparado para sair? Muito bem. Você deve ir
imediatamente ver o arcebispo do Mé xico e fazer tudo o que ele lhe
pedir. E você nã o deve retornar ao mosteiro até que o arcebispo esteja
curado. ”
Martin ainda estava um tanto absorvido pelo ê xtase. Ele nã o
entendeu completamente o que fazer e, portanto, nã o levou nenhum
remé dio.
Martin havia realizado muitas curas maravilhosas durante sua
longa carreira mé dica, antes dessa ocasiã o em particular. Sempre que
ele descobriu que precisava curar alguma doença incurá vel, ele tomou
precauçõ es inteligentes para desviar todas as suspeitas de si mesmo,
deixando o cré dito ir para os remé dios muito inocentes que ele usou -
algumas folhas de ervasou um copo de á gua com açú car. Mas també m é
possı́vel que, nesta ocasiã o particular, o Padre Provincial nã o lhe tenha
dado tempo de subir à farmá cia para recolher os mantimentos. Martin
seguiu seu caminho, consolando-se re letindo que, a inal, um copo
d'á gua e um torrã o de açú car certamente poderiam ser encontrados no
palá cio onde o arcebispo estava hospedado.
Mas, como costuma acontecer, quando ele chegou lá , as coisas nã o
correram como ele esperava. Ele foi levado imediatamente à presença
do arcebispo, que começou a repreendê -lo por nã o ter vindo
antes. Martin caiu de joelhos perto da cama para receber sua
repreensã o. O arcebispo disse-lhe que se levantasse e Martin levantou-
se e icou à espera. Entã o o arcebispo ordenou a Martin que lhe desse a
mã o.
Martin começou a farejar o perigo e tentou se defender. “Mas o que
um prelado como Vossa Excelê ncia iria querer com a mã o de um pobre
mulato?”
O arcebispo sabia que se tratava de um caso de vida ou de morte e
respondeu serenamente, com a dignidade segura de quem está
acostumado a mandar: “O Padre Provincial nã o lhe disse para fazer o
que eu disse?”
“Sim, meu Senhor”, foi tudo o que Martin conseguiu responder,
vendo todas as formas de fuga desligadas.
“Entã o ponha sua mã o aqui”, ordenou o arcebispo.
Ele estava sofrendo de uma dor aguda e persistente na lateral do
peito, uma dor que di icultava sua respiraçã o e nã o o deixava descansar
durante a noite ou o dia. Mal a mã o de Martin tocou o local, a dor
desapareceu.
Martin estava ciente da maravilha que fora forçado a realizar e,
corando até a ponta das orelhas e suando como se tivesse varrido todo
o mosteiro, tentou retirar a mã o.
"Nã o é o su iciente, meu Senhor?" ele perguntou gentilmente.
O arcebispo inexoravelmente segurou a mã o de Martin com ambos
de sua autoria. "Deixe onde está ."
Ele estava certo em insistir, porque depois de mais um pouco de
tratamento, nã o só a dor havia passado, mas a febre e todo o
desconforto també m.24
Só entã o Martin foi autorizado a retornar ao seu mosteiro sem mais
demora, e a humildade que fora forçada a ceder à obediê ncia
imediatamente buscou vingança. Martin lembrou-se de que certos
banheiros precisavam de limpeza. Um dos padres, encontrando-o
absorvido naquele trabalho desagradá vel e sabendo que o arcebispo
havia chamado por sua ajuda, disse: "Irmã o Martin, você nã o estaria
melhor no palá cio do arcebispo do Mé xico?" Sem dú vida, ele pensou
que o tempo de Martin poderia ter sido mais bem empregado
conversando com o arcebispo, que tanto o estimava, do que fazendo um
trabalho que qualquer pessoa poderia ter feito.
Martin deu-lhe a famosa resposta com as palavras do salmista:
“Escolhi ser um abjeto na casa do meu Deus”, e acrescentou, quase
parafraseando inconscientemente outro versı́culo do mesmo salmo:
“Padre Joã o, acho que um momento gasto fazendo o que estou fazendo
agora é mais importante do que muitos dias passados na casa do
Senhor Arcebispo ”.25
Martin nã o era mais jovem quando disse isso. Na verdade, ele
estava no ú ltimo ano de sua vida. A resposta que deu ao Padre John de
Ochoda, pregador geral, foi uma prova de que cumpriu ielmente, ano
apó s ano, ao longo de toda a sua vida, o programa que escolheu na
juventude: a prá tica da humildade na casa da obediê ncia, por amor ao
humilde e obediente Senhor Jesus.
Foi també m uma pro issã o de fé e de amor de um ideal preservado
intacto: “Escolhi ser um abjeto na casa do meu Deus. . . pois melhor é
um dia em Tua corte acima de milhares. ” ( Salmos 83:11, 10).

Capítulo 8
“Diga à sabedoria: tu é s minha irmã .” ( Prov . 7: 4).

C
HEN Martin decidiu abraçar o estado de vida religioso, nã o sabemos
por que escolheu a Ordem dos Frades Pregadores e nã o uma das tantas
que em seus dias tinham mosteiros em Lima. Talvez seja por seu amor à
Rainha do Santı́ssimo Rosá rio, que os dominicanos veneram como sua
padroeira especial. Talvez porque a Santı́ssima Virgem tenha dado a S.
Domingos a missã o de pregar e divulgar a devoçã o do Rosá rio como
remé dio para os muitos males do seu tempo e de todos os
tempos. Talvez seja por seu amor a Cristo cruci icado, um amor tã o
forte no coraçã o dos dominicanos, de Henrique Suso a Catarina de
Sena. Talvez seja por seu amor à Sagrada Eucaristia, cujo poeta é Sã o
Tomá s de Aquino. As possibilidades podem ser discutidas
inde inidamente.
Algué m arriscou a hipó tese, humanamente possı́vel, de que por
causa de seu grande amor pelos animais, a atençã o de Martin foi
atraı́da para a igura de Sã o Domingos por conta do cachorro com a
tocha acesa na boca, invariavelmente representado aos pé s de o Santo
Patriarca.1
De um ponto de vista natural, é possı́vel que qualquer um desses
motivos tenha exercido alguma in luê ncia, porque é verdade que muitos
fatores in luenciam a escolha de cada vocaçã o. Mas, para alé m das
atracçõ es e repulsõ es naturais, existe o elemento sobrenatural: aquela
voz misteriosa, quieta, interior que fala à alma e a faz desejar
ardentemente uma vida ainda desconhecida, sem que a alma possa
de inir as suas razõ es. As razõ es sã o conhecidas por Aquele cuja voz se
ouve na alma, que com in inita sabedoria escolhe para cada alma o
caminho pelo qual pode atingir a perfeiçã o.
Assim que entrou no mosteiro do Santı́ssimo Rosá rio, Martinho
percebeu que escolha perfeita a Sabedoria Eterna tinha feito por ele, e
amou a Ordem de Sã o Domingos com um amor forte e infalı́vel até o
im de sua vida. “As cordas caı́ram até mim em lugares bons”, ele
poderia ter repetido com o salmista, “porque a minha herança me é
excelente”.2
Seu amor era composto de estima por tudo na Ordem, de idelidade
a todas as exigê ncias da regra, de trabalho incansá vel, de zelo pela
pró pria perfeiçã o e a de seus irmã os. Seu amor foi expresso por um
esforço constante para instilar em sua pró pria alma o espı́rito de seu
pai, Sã o Domingos, pela imitaçã o de seu exemplo e pela aquisiçã o das
virtudes que caracterizam a vida dominicana em seu duplo aspecto - as
virtudes do interior vida que loresce nas virtudes da vida apostó lica - e
assim dar aos outros algo do tesouro abundante em seu coraçã o. A
maior prova do amor de Martinho pela Ordem é o fato de que ele se
esforçou ao longo de toda a vida para concretizar o ideal dominicano
em sua pró pria vida e na vida dos outros.
Mas aqui surge uma di iculdade. Se o Papa Honó rio III, ao aprovar a
Ordem dos Frades Pregadores, chamou os seguidores de Sã o Domingos
de pugiles idei et vera mundi lumina (defensores da fé e verdadeiras
luzes do mundo), parece evidente que a perfeiçã o deste ideal nã o pode
ser alcançado sem um conhecimento profundo da ciê ncia das coisas
divinas. “E se você olhar a casca de seu pai Domingos, meu ilho
amado”, lemos no Diálogo de Santa Catarina, “você verá como ele a
construiu perfeitamente, desejando que seus ilhos busquem apenas
Minha honra e a salvaçã o das almas à luz da ciê ncia. ”3
Essa luz deve ser o guia de toda a atividade dominicana para se
conformar ao ideal do fundador. Mas como pode a perfeiçã o do ideal
dominicanoser realizado em um simples auxiliar leigo, absorvido o dia
todo em mil ocupaçõ es materiais, sem nunca ter tido oportunidade de
estudar? Este é um dos aspectos mais surpreendentes da vida de
Martin. Por compreender a imprescindı́vel necessidade do estudo
(coisa bastante rara em quem nã o estuda) e sua importâ ncia na
formaçã o de um dominicano, Martinho ajudou os alunos o má ximo que
pô de, tentando eliminar ao menos algumas de suas di iculdades. Ele
estava sempre pronto para fornecer-lhes papel, canetas, tinta e até
mesmo os livros necessá rios para os vá rios cursos de estudo. Teve um
cuidado especial com a vestimenta dos alunos e professores, e como
eles nã o tinham tempo para cuidar das pró prias necessidades, por
causa das muitas horas que passavam ensinando, Martin os libertou de
toda preocupaçã o por aquele assunto e assumiu o tarefas em seus
pró prios ombros.
Claro, esse é o dever dos irmã os em um mosteiro
dominicano. Participam dos mé ritos da vida apostó lica assumindo as
preocupaçõ es materiais para que os sacerdotes tenham liberdade para
dedicar seu tempo exclusivamente ao estudo, à pregaçã o e ao
ministé rio sacerdotal.
O estado religioso é uma exempli icaçã o viva do dogma da
comunhã o dos santos. Nenhum cristã o - e, por falar nisso, nenhum
homem - pode se considerar um indivı́duo isolado, independente de
todos. Mas aquele que é membro de uma comunidade religiosa, pelo
pró prio fato de ser membro, é constantemente lembrado das relaçõ es
existentes entre ele e os outros membros, unidos em um corpo coletivo
para a consecuçã o de um im comum a ser alcançado por meio esforço
ao mesmo tempo individual e coletivo. E o esforço do indivı́duo na
coletividade da qual recebe e para a qual dá sua contribuiçã o.
A colaboraçã o de Martin no esforço de fornecer o As melhores
condiçõ es possı́veis de estudo para os jovens da comunidade era tã o
inteligente e tã o solı́cito que se podia dizer que era o que se supunha
que fosse na Ordem: uma nota em perfeita sintonia com o todo. Mas
Martin nã o parou por aı́. Com amor quase paternal, cuidou dos
membros mais jovens da comunidade, que eram a esperança do futuro
da Ordem. Ele queria que eles fossem perfeitos em todos os aspectos. Se
ele sentia que faltava um pouco o amor ao estudo em um ou outro, ele
chamava os delinquentes de seu dever individual ou em
grupo. “Rapazes”, dizia ele, “estudem com atençã o porque o cré dito e a
gló ria da Provı́ncia um dia dependerã o de você s”. E abandonando a
reserva e o silê ncio habitual, ele empregou palavras cheias de fogo para
reavivar o entusiasmo pelo ideal de sua Ordem.
Ele foi ainda mais longe do que isso. Um dia, quando as aulas
acabaram, dois alunos começaram a discutir uma difı́cil questã o
teoló gica sobre a perfeiçã o da essê ncia e da existê ncia em Deus. Eles já
estavam envolvidos na discussã o há algum tempo, sem fazer qualquer
progresso, quando Martin passou por ali. Pode parecer estranho para
nó s, mas para eles parecia muito simples e natural perguntar a ele o
que ele pensava sobre o ponto em discussã o. Eles se voltaram para ele,
movidos pelo mesmo impulso e usando as mesmas palavras: “Irmã o,
irmã o Martin! O que você acha disso? Qual é sua resposta?"
Certamente era estranho questionar francamente um irmã o leigo
que estava cuidando de seus pró prios negó cios, deslizando as contas de
seu enorme rosá rio entre os dedos; um irmã o leigo que talvez um
momento antes tivesse colocado sua vassoura em um canto e alguns
momentos depois estaria servindo sopa no refeitó rio. Por que colocar
um problema para ele que teria sido mais facilmente esclarecido pelo
professor que acabara determinou a palestra a que
assistiram? Certamente queriam fazer o irmã o mulato de bobo!
Nã o, os dois alunos nã o estavam brincando. E a pergunta nã o
parecia nada estranha para Martin. Ele respondeu de forma muito
simples, com seu sorriso gentil de costume: "Nã o diz Sã o Tomá s que a
existê ncia é mais perfeita do que a essê ncia, mas que em Deus a
essê ncia e a existê ncia sã o uma?" E ele seguiu seu caminho
tranqü ilamente.4
Os dois alunos icaram sem palavras. Eles foram ver o mestre de
estudos e repetiram a resposta de Martin. Ele con irmou sua exatidã o e
explicou aos jovens frades que Martinho era capaz de responder tã o
corretamente e com tanta segurança porque estava muito avançado na
“ciê ncia dos santos”.5
Em outra ocasiã o, um grande grupo de estudantes iniciou uma
discussã o que ameaçou degenerar em uma disputa. A discussã o
começou com bastante calma, mas gradualmente tornou-se acalorada, e
cada um começou a levantar a voz para ser ouvido acima dos outros.
No auge da discussã o, Martin chegou e perguntou o motivo de todo
o barulho. O irmã o Bernard de Valilla respondeu que estavam
discutindo uma certa questã o proposta pelo mé dico angé lico. “Mas por
que icar tã o animado com isso”, perguntou Martin, “quando o pró prio
Sã o Tomá s resolveu a di iculdade?” E imediatamente deu ao irmã o
Bernard o lugar exato em St. Thomas com o nú mero da pergunta e do
artigo.6
Que explicaçã o pode ser oferecida para um conhecimento tã o
direto e preciso da Summa Theologica ? Martin consultou a biblioteca
do mosteiro durante seu tempo livre? Mas que tempo livre ele tinha? Já
era um milagre ele conseguir cumprir todas as suas funçõ es normais
no decorrer de um ú nico dia. A questã o permanece enigmá tica, como
muitas outras coisas na vida de St. Martin. O que é certo é
queacontecimentos como esse nã o eram esporá dicos se, em uma casa
de estudos dominicana, como o mosteiro do Santo Rosá rio, Martin
fosse “estimado, considerado e tido a fama de um homem culto”.7
Sua era a “ciê ncia dos santos”, que nã o se adquire simplesmente
pelo exercı́cio das faculdades intelectuais, mas é um dom que Deus
concede aos Seus escolhidos. E o dom pelo qual o Salmista diz que foi
enriquecido porque foi iel à Lei; o dom que o Evangelho promete aos
puros de coraçã o.8 Sã o Domingos reconheceu que havia aprendido
essa ciê ncia com o livro da caridade, e Sã o Tomá s a irmou que havia
aprendido muito mais na contemplaçã o do cruci ixo do que nos livros.
Mas admitir que o dom era divino nã o diminui o fato de que Martin
era dotado de uma inteligê ncia aguçada. Prova disso é a rapidez com
que concluiu os estudos de medicina e o pouco tempo em que dominou
todos os segredos da sua pro issã o, a tal ponto que se igualou ao seu
professor. As vezes, em casos sem esperança, seu uso de remé dios era
apenas uma tela para seus dons sobrenaturais de cura, mas isso só
acontecia em casos sem esperança. Para todos os outros, Martin agia
como um mé dico, aplicando com consciê ncia e inteligê ncia os remé dios
de sua pro issã o. Lembro-me de falar uma vez com um mé dico sobre o
tratamento que Martin havia usado para um paciente. O mé dico me
disse: “Martin fez exatamente o que era adequado e necessá rio”.
A graça aperfeiçoa a natureza, e as habilidades naturais sã o dons
de Deus nã o menos do que os dons da graça. O pró prio Deus criou a
terra e a semente, e se Ele deseja que a semente dê frutos abundantes,
Ele torna a terra mais fecunda. Ou, se desejar, pode fazer o deserto
lorescer.
Do solo naturalmente rico do espı́rito de Martin, os dons
sobrenaturais de conhecimento e sabedoria luemesplendidamente
erigido no sulco preparado pelo seu amor à fé . E també m a esse
respeito Martin imitou seu pai, Sã o Domingos.
Por amor à fé , Sã o Domingos buscou as ciê ncias sagradas. A
doutrina da qual ele se fez mestre nã o era fria e á rida, mas um
conhecimento ardente das coisas divinas, extraı́do da fonte da
caridade. Seguindo o exemplo de Sã o Domingos, Martinho dedicou à fé
seus mais puros e vivos afetos, alimentados pela caridade.
O amor à fé , que impeliu Sã o Domingos a adquirir uma só lida
doutrina teoló gica, també m o inspirou a trabalhar pela fé com uma
veemê ncia compará vel à de “uma torrente que uma veia alta força”.9O
amor de Martin pela fé era també m um princı́pio de açã o. As boas
obras sã o um sinal da vitalidade da fé , mas a fé , por sua vez, é a alma
das boas obras.
O bem deve necessariamente se difundir. “Assim como é melhor
iluminar do que apenas brilhar, é melhor dar aos outros os frutos da
pró pria contemplaçã o do que simplesmente contemplar.”10
Estas trê s palavras, contemplata aliis tradere , contê m a essê ncia de
todo o programa dominicano de vida e açã o: dar ao pró ximo o fruto da
pró pria contemplaçã o.
Esta forma perfeita de caridade nasce do amor de Deus, que se
quer dar a conhecer para ser amado como merece, e do amor ao
pró ximo, que será elevado e enobrecido por conhecer e amar a
Deus. Um dominicano deve se preocupar com essa forma de caridade
mais do que com qualquer outra. E a caritas veritatis , o dom, dado por
amor, "daquela verdade que nos eleva tanto."11
Sã o Domingos estava bem ciente da devastaçã o produzida no
Cristianismo pelo erro e percebeu que a heresia havia se enraizado
porque a terra estava coberta de ervas daninhas da ignorâ ncia e da
negligê ncia. Pregar e ensinar as verdades da fé eram obviamente o
ú nico meio de restaurar a saú de da sociedade cristã e libertá -la das
causas bá sicas do mal.
Sã o Domingos ansiava nã o apenas por restaurar o cristianismo à
sua beleza imaculada, mas també m estendê -lo pela pregaçã o do
Evangelho à s naçõ es ainda contadas entre os in ié is, e ele esperava
selar seu apostolado com o testemunho de seu sangue. Embora a
vontade expressa do pontı́ ice reinante constrangesse o Santo a
permanecer no campo de batalha, travando uma guerra contra a
heresia albigense, alguns de seus primeiros seguidores eram
missioná rios e má rtires.
Desde o seu inı́cio, o apostolado da Ordem Dominicana foi
direcionado para estes dois ins: a restauraçã o e consolidaçã o da fé no
coraçã o da cristandade e a propagaçã o da fé entre os in ié is. Os
objetivos eram os mesmos na é poca de Sã o Martinho, a ú nica diferença
sendo que os contemporâ neos de Sã o Domingos encontraram terras
missioná rias pró ximas no leste e no sul da Europa, enquanto no sé culo
XVI as missõ es dos Frades Pregadores se estendiam ao redor do terra.
Em seu desejo de espalhar a verdade, Martin era um verdadeiro
ilho de Sã o Domingos. Seu amor pela fé , alimentado pela
contemplaçã o, foi o princı́pio ativador de toda a sua vida, e sua vida
tornou-se um ı́mã que atraiu as almas à fé .
Martin amou as almas à luz da fé , amou-as à luz do seu destino
glorioso. Ele as via como pedras preciosas destinadas a serem usadas
na construçã o da Jerusalé m celestial depois de terem sido puri icadas e
re inadas pelas provaçõ es da vida.
Martin amou a Cidade de Deus e as almas com um amor
ciumento. Ele desejava que eles estivessem, mesmo na terra, livres de
todas as manchas. Se ele tivesse sido capaz de fazer isso, ele teria
desejado ver a luz que brilha noIgreja triunfante brilhando també m no
rosto da Igreja militante.12
Seu amor encontrou expressã o nas boas obras: seu trabalho, sua
oraçã o, sua penitê ncia, seus esforços para persuadir os outros, por
palavra e exemplo, a buscar o bem. E verdade que Martin nã o poderia
pregar em um pú lpito ou ensinar em uma sala de aula, mas quando o
coraçã o transborda de amor, a lı́ngua nã o pode se calar. A pobreza e a
doença trouxeram-lhe tantas criaturas lamentá veis em busca de ajuda
material. Ele tentou ajudar a todos eles materialmente, mas a isso
acrescentou ajuda espiritual també m.
Todos os dias, depois de servir o jantar aos enfermos e aos criados
do mosteiro e de distribuir comida aos pobres que esperavam à porta,
reunia na enfermaria um grupo de rapazes e outros leigos que
trabalhavam no mosteiro de o Santo Rosá rio. Depois, ao dar os
primeiros socorros aos enfermos, ensinou-lhes a doutrina e oraçõ es
cristã s, e explicou o que deve ser feito para viver uma vida de acordo
com a fé .13
Quando ia passar o dia em Limatambo, fazia ali o mesmo com os
servos e escravos negros da fazenda e das propriedades vizinhas.14
Suas conversas nã o eram complicadas. Em seu estilo lı́mpido e
simples, ele explicava os principais pontos do dogma, mas quando
falava dos meios pelos quais se podia viver uma vida digna do nome de
cristã o, suas palavras adquiriam uma doçura extraordiná ria. Ele parecia
mais suplicar do que advertir.
Suas palavras tiveram grande e icá cia. Martin sabia o que ele estava
dizendo, pois sua vida era conformada com a fé . Por isso os servos e os
pobres o ouviam com atençã o e, o que é mais importante, procuravam
pô r em prá tica os seus ensinamentos.
O amor à s almas é comprovado por boas obras, mas nã o para por
aı́. Boas obras sã o necessariamente limitadas e o amor nã o tolera
limites. Quando a açã o se esgotatodos os seus recursos, ainda há um
campo in inito aberto ao desejo. Amar as almas com e icá cia signi ica
assumir "o trabalho corporal, com muito desejo ansioso, como o Filho
de Deus, que suportou tormentos corporais e a dor do desejo".15
També m Martin sofreu a “dor do desejo”, desejando realizar ao
má ximo o ideal dominicano de um apostolado entre os ié is e os
in ié is. O Peru foi uma conquista recente da Igreja. Os missioná rios que
evangelizaram a naçã o pertenciam à geraçã o dos avó s de Martin. Ainda
poderia ser considerado territó rio missioná rio, pois havia vastas á reas
ainda inexploradas. Mas a pregaçã o do Evangelho no Peru nã o podia
mais ser considerada uma empreitada perigosa, pois os conquistadores
a apoiaram e protegeram.
Longe do Peru, havia regiõ es nas quais os missioná rios se
aventuravam por sua pró pria conta e risco, sustentados apenas pela
con iança em Deus e pela pró pria desenvoltura, com nove chances em
dez de coroar o trabalho apostó lico com o martı́rio. A China e o Japã o,
impenetrá veis até meados do sé culo XVI, começaram a se abrir aos
esforços missioná rios entre as ú ltimas dé cadas de 1500 e as primeiras
dé cadas de 1600.
Em vida de Martin, o beato Afonso Navarrete e mais de cem
missioná rios dominicanos, entre os quais o italiano Angelo Orsucci,
derramaram heroicamente seu sangue pela fé no Japã o. Nove anos apó s
a morte de Martinho, alé m de dar à China seu primeiro missioná rio e
primeiro bispo, a Ordem Dominicana també m daria a esse paı́s seu
primeiro má rtir na pessoa do Bem-aventurado Francisco de Capillas.
Os olhos de Martin se voltaram para a China e o Japã o. Ele desejava
trabalhar pela difusã o da fé e dar a prova suprema de seu amor à fé pelo
martı́rio.16 Mas Deus exigiu de Martin, pois Ele fez de Sã o Domingos, o
sacrifı́cio de seus pró prios desejos.
Ao mesmo tempo, poré m, Ele mostrou a Martin como esse desejo
era agradá vel para Ele, cumprindo-o parcialmente por meio de um
milagre por meio de Seu poder onipotente. Testemunhas a irmaram
que Martin foi visto vá rias vezes na China e no Japã o. A novidade do
ambiente nã o perturbava sua calma habitual, e com a mesma
naturalidade e simplicidade com que ensinava o catecismo em sua
enfermaria, reunia os ilhos nativos ao seu redor e lhes ensinava a
doutrina cristã .
Pode-se facilmente imaginar a cena: a igura alta e esguia de
Martin elevando-se sobre a pequena multidã o de meninos de rua, cujas
marias-chiquinhas pretas caı́am nas costas retas como um io de
prumo, seus olhos inteligentes amendoados tornando-se pensativos e
sé rios enquanto o ouviam falar de Deus e do amor que O impeliu a
viver entre nó s e a morrer por nó s. Entã o aqueles olhos amendoados
brilhavam de repente de alegria infantil no inal da aula, quando o
catequista soltou as mã os, escondidas sob seu escapulá rio, e tirou das
profundezas incomensurá veis de suas mangas todas aquelas ninharias
tã o agradá veis a uma criança: doces, pequenos quadros sagrados, fruta
exó tica de um sabor novo e estranho.17
Seriam apenas sonhos, enraizados em seus desejos ardentes?
As vezes, o desejo levou Martin a confortar os cristã os que eram
prisioneiros dos turcos e corriam o sé rio risco de perder a fé . Os turcos
os maltrataram deliberadamente como forma de fazê -los renunciar à fé .
Um dia, um espanhol veio ao mosteiro do Santo Rosá rio. Chegara a
Lima pouco tempo antes, vindo da Argé lia, onde fora prisioneiro dos
turcos. Vendo Martin passar, ele o cumprimentou com entusiasmo
como seu pai e seu libertador.
“Bem-vindo”, respondeu Martin, “mas agora estou ocupado. Nos
veremos mais tarde. ” E ele desapareceu.
O viajante nã o icou desconcertado com a sua recepçã o bastante
fria e contou a sua histó ria aos frades. Ele havia sido escravo dos turcos
por muitos anos quando Martin começou a visitá -lo e a seus
companheiros na escravidã o e a dar-lhes toda a ajuda que
pudesse. Martin trouxe pã o, dinheiro e outras necessidades, cuidou dos
enfermos e os curou, e exortou todos os prisioneiros a permanecerem
irmes na fé . As visitas de Martin foram o ú nico apoio moral que ele
teve durante os longos anos de prisã o, e ele só pô de pagar o resgate
porque Martin trouxe o dinheiro aos poucos.18
Caridade de verdade, també m neste caso. E a caridade nã o conhece
limites.

Capítulo 9
“Ela buscou lã e linho, e operou pelo conselho de suas mã os.” ( Prov . 31:13).

B
ROTHER Martin e o irmã o Christopher caminhavam certa manhã pelas
estradas que dividiam os trechos de terra da propriedade de
Limatambo. John Vá zquez, o iel ajudante de Martin, estava com eles.
Era a é poca da semeadura. Nos campos, os lavradores iam e
vinham, espalhando a semente ao longo dos sulcos paralelos abertos
pelo arado na terra marrom.
Os dois irmã os e o rapaz pararam na estrada. Observavam o ir e vir
constante e medido dos operá rios e a repetiçã o incessante do ciclo de
movimentos. A mã o de cada homem mergulhou no saco que segurava,
retirando um punhado de sementes su iciente para a á rea que cobriria
na pró xima etapa; entã o, com um movimento de seu braço, ele
espalhacolocou-o à sua frente, depois à sua esquerda.
Eles assistiram, fascinados com o ritmo do movimento e a ina
chuva de grã os desaparecendo entre os torrõ es de terra. Talvez
pensassem no misté rio da vida e da morte que se renovaria na
germinaçã o da semente: “A menos que o grã o de trigo caia na terra e
morra. . . . ”1
De repente, o irmã o Christopher disse: “Você vê aquele pedaço de
terra nã o cultivado, lá em cima, alé m dos campos arados? Seria ideal
para um olival. Pensei muito nisso e deve ser plantado ainda este
ano. Mas teremos que esperar até que a semeadura termine, pois todos
os homens estã o muito ocupados agora. ”
Os olhos de Martin seguiram o aceno da mã o do irmã o
Christopher. Alé m dos campos arados, a terra aumentava
acentuadamente, quase como se exibindo sua inadequaçã o para o
cultivo.
“E este o momento certo para plantar?” perguntou Martin. “Sim,
mas é impossı́vel agora. Nã o temos trabalhadores. ”
“Você tem as oliveiras jovens?”
"Sim, mas para que servem nas circunstâ ncias?"
Martin foi em busca de uma pequena enxada. Com John Vá zquez
carregando as mudas, dirigiu-se ao local escolhido pelo irmã o
Christopher para o olival e começou a cavar buracos na terra dura. Ele
passou o dia inteiro lá , cavando, colocando as á rvores novas nos
buracos, enchendo os buracos com terra e socando a terra irmemente
ao redor de cada pequeno tronco. A noite, o trabalho foi concluı́do.
Martin ergueu a enxada até o ombro e levou-a para o galpã o de
ferramentas. “Obrigado”, disse o irmã o Christopher. "Você vai voltar
amanhã para continuar com o trabalho?"
“Nã o”, respondeu Martin, “porque plantamos todas as á rvores”.
"Tudo?"
Se nã o estivesse escuro, o irmã o Christopher teria ido
imediatamente ver esta maravilha com seus pró prios olhos. Mas a noite
havia caı́do e ele teve que esperar.
Quando foi ver o novo olival no dia seguinte, quã o espantado icou
quando, antes mesmo de chegar ao local, viu folhas cinza prateadas
tremendo nas á rvores novas! E no topo de cada rebento, delineado
contra o fundo do terreno acidentado, a brisa agitava as folhas novas
sob os raios brilhantes do sol.2
Sempre foi assim. Martin se entregou sem medida toda vez que
havia algo a ser feito para ajudar os outros. E Deus deu a Martin sem
medida. Ele concedeu uma bê nçã o que tornou seus esforços e icazes
alé m das possibilidades humanas. Non recuso laborem , Martin poderia
ter dito com seu grande homô nimo e patrono, o bispo de Tours. Ele
poderia ter acrescentado ainda mais, porque alé m de nã o se privar do
trabalho, ia continuamente em busca dele; nã o pelo simples prazer de
estar ocupado, mas por amor sincero à sua comunidade e a cada um de
seus membros.
“Expresse o seu amor pelas suas boas obras”, disse Nosso Senhor à
Irmã Maria da Trindade. E acrescentou: “Quando você amar mais, fará
as coisas com mais rapidez; o trabalho luirá de suas mã os. ”3
O trabalho luiu das mã os de Martin. Fluı́a tã o naturalmente que ele
nunca parecia estar ocupado. Nã o importa quantos deveres se
acumulassem sobre ele, ele nã o se perturbava. Ele agiu com calma e
precisã o ordeira, sem confusã o. Como um rio correndo rá pida, mas
suavemente entre suas margens, o trabalho luı́a de suas mã os.
Sua capacidade de realizar tantas funçõ es diferentes, cada um dos
quais normalmente teria exigido o tempo integral de uma pessoa, era
uma prova para seus irmã os da presença de Deus em Martin e um
motivo para louvar a liberalidade de Deus. “Ele se entregou totalmente
ao serviço e ao consolo do pró ximo, sem reservar uma hora nem de
noite nem de dia”, disse o irmã o Christopher. E o ú ltimo disse que tinha
“visto com seus pró prios olhos e tocado com suas pró prias mã os o
poder da graça de Deus que pode transformar um homem feito de
carne e sangue em um sera im in lamado com o fogo da caridade”.4
Entre as muitas ocupaçõ es de Martin, cuidar dos doentes era a
melhor demonstraçã o do grau em que amava seus irmã os em
Cristo. Ele os serviu com um afeto paternal e uma solicitude
incansá vel. Quando Martin se aproximou de um leito de doente, sua
serenidade e seu rosto sorridente confortaram o paciente
instantaneamente. Parecia que Martin nã o tinha mais nada no mundo a
fazer a nã o ser dar toda a sua atençã o à quele paciente. Ele nunca disse:
"Espere um momento" ou "Estarei aı́ imediatamente". Ele estava lá
quando era necessá rio, silencioso e aparentemente o mestre completo
de seu tempo.5
Um ano houve uma epidemia de sarampo em Lima. Naturalmente,
penetrou no mosteiro do Santo Rosá rio. Mais de sessenta religiosos
foram atingidos pela doença, alguns gravemente, e vá rios deles
morreram. A doença era caracterizada por uma febre extremamente
alta que nenhum remé dio conseguia baixar e produzia um delı́rio
semelhante à loucura.
Martin cuidou dos doentes sem repouso. Ele os vigiava como um
guardiã o protegeria um tesouro contra a cupidez dos ladrõ es. Ele opô s
suas pró prias forças contra o ataque da doença, sustentando as forças
dos atingidos, tentando tornar o tormento da febre e a sede de queimar
mais suportá veis com bebidas refrescantes. Ele procurou por
rememorre que pode aliviar o sofrimento dos pacientes - unçõ es,
extratos medicinais, ervas.6
Ele estava com os enfermos dia e noite. Ele ia e vinha de um para o
outro, sem demora e sem agitaçã o. Passou da enfermaria da
comunidade à do noviciado, soberanamente indiferente à s portas
trancadas e aferrolhadas.
Entre os enfermos estava um noviço, Irmã o Matthias de
Barrasa. Sua juventude e constituiçã o delicada lhe davam poucas
chances de sobreviver. Certa noite, sentindo-se piorando, ele começou
a perguntar pelo irmã o Martin. Naquela hora da noite, a porta do
noviciado foi trancada e o mestre dos noviços estava com a chave. O
porteiro do noviciado, Irmã o Francis Guerrero, correu até o mestre dos
noviços e pediu e obteve permissã o para trazer Martin. Com as chaves
nas mã os, o Irmã o Francis estava a caminho para destrancar a porta. Ao
passar pela cela do irmã o Matthias, decidiu contar-lhe as boas novas
imediatamente, mas quando olhou para dentro da cela viu Martin já ao
lado da cama, conversando calmamente com o noviço enfermo. As
palavras de Martin devem ter sido consoladoras e belas, pois um
sorriso radiante iluminou o rosto do noviço moribundo.7
Todas as manhã s, o irmã o Ferdinand de Aragoné s, o enfermeiro-
chefe, fazia a ronda dos enfermos e constatava que durante a noite
Martin os visitara a todos, trazendo a cada um exatamente o que
precisava: uma bebida refrescante para os que queimam de febre,
lençó is limpos e um tú nica limpa para os banhados de suor e, para
todos eles, palavras encorajadoras e sorriso amá vel.8
Sessenta pacientes é um grande nú mero em uma casa religiosa
que, a inal, nã o é um hospital. Com tantos cuidados, os enfermeiros
poderiam se considerar justi icados em fazer as coisas
super icialmente. Mas Martin nã o sabia o signi icado de fazer as coisas
pela metade quando se tratava de uma questã o de
segurançaprotegendo o bem da comunidade. E o que era mais
importante para a comunidade do que a vida de seus membros? No
auge da epidemia, sobrecarregado de trabalho pelo aumento do
nú mero de enfermos, ele continuou a tratar cada um como se fosse o
ú nico paciente da casa. Ele adivinhou seus desejos antes mesmo de
serem expressos. Sem parecer que o fazia, muitas vezes remediou o mal
causado pela ignorâ ncia ou pelos diagnó sticos incorretos dos mé dicos.
Um dos religiosos a litos sentia uma repugnâ ncia inconquistá vel
por qualquer tipo de comida. A ú nica coisa pela qual ele tinha apetite
era um certo tipo de fruta. Martin apareceu com a tã o desejada fruta
nas mã os. O doente comeu com gosto e só depois de se recuperar é que
percebeu que pedira uma fruta fora da estaçã o e que nã o se encontrava
no mercado de Lima naquela é poca do ano.9
Os doentes normalmente aceitam bebidas refrescantes, mas
durante a epidemia houve um paciente que nunca quis beber
nada. Martin sabia que precisava ingerir uma grande quantidade de
lı́quidos para se recuperar. Todas as noites ele carregava uma mistura
de açú car e á gua para a cabeceira da cama e nã o saı́a até que o doente
bebesse tudo.10
Aos olhos de Martin, um homem acometido de doença era muito
mais do que um “caso clı́nico”, interessante apenas do ponto de vista
puramente cientı́ ico. Ele era um homem engajado em uma luta que
poderia absorver todas as suas forças fı́sicas e espirituais, um homem
passando por uma prova que pode ser decisiva e inal. E sua condiçã o,
humilhante sob muitos pontos de vista, exigia o maior respeito por sua
pessoa.
Um padre idoso, paralisado, havia perdido o uso de todos os seus
membros. Ele nã o conseguia andar; seus braços estavam inertes. Sua
maior a liçã o era a incapacidade de se fazer entender. Apesar desua boa
vontade, os enfermeiras nã o conseguiam entender o que ele queria
dizer com os sons desconectados que saı́am de sua boca. A mente do
padre permaneceu lú cida e ele sofreu muito porque nã o conseguia se
comunicar com os outros. Era tã o angustiante para ele que muitas
vezes icava impaciente e, por im, a situaçã o se tornava tã o dolorosa
que ningué m queria servir o pobre velho. Todas as simpatias de Martin
foram despertadas. “Peça a Deus que lhe devolva o uso da lı́ngua e das
mã os”, disse ele ao irmã o Ferdinand, “mesmo que ele nã o possa usar as
pernas!”
Deus ouviu a oraçã o - a oraçã o do irmã o Ferdinand, de acordo com
o irmã o Martin; a oraçã o do irmã o Martin, segundo o irmã o Ferdinand -
e o doente era capaz de falar e usar as mã os para muitas coisas
pequenas, inclusive para se alimentar. A partir de entã o, sua
impaciê ncia foi transformada em paciê ncia, “ele era gentil como um
cordeiro”, e a tal ponto que se tornou um exemplo admirá vel para os
outros durante os longos anos de enfermidades e enfermidades que
ainda lhe restavam.11
Durante a epidemia, dois noviços enfermos estavam na mesma
sala. Um havia piorado muito e, em seu delı́rio, ele divagava sem parar
em frases sem sentido. O outro, cuja febre nã o era alta e que mantinha o
controle total de suas faculdades, divertia-se ouvindo as incoerê ncias
de seu companheiro e rindo enquanto as contava a quem por acaso
passasse.
Martin nã o riu quando o irmã o Francis Martı́nez tentou repetir
algumas dessas gentilezas para ele. Ele nã o suportava que ningué m
zombasse de um homem doente que pairava entre a vida e a morte. Ele
disse: “Irmã o Francis, você deveria agradecer a Deus porque este
religioso agora está fora de perigo e pensar em você , pois nã o sei se
você sairá disso tã o bem quanto ele”.Vá rios dias depois, no inal da
segunda semana de doença, o Irmã o Francis morreu.12
Martin tinha o dom de saber como terminaria uma doença,
independentemente das indicaçõ es de seu curso. No inı́cio, os mé dicos
se apegavam a suas pró prias opiniõ es, mas depois que conheceram
Martin melhor, aceitaram sem questionar tudo o que ele disse.
Este dom permitiu-lhe dispensar suas atençõ es de acordo com a
necessidade. Para Martin, havia duas categorias privilegiadas de
enfermos: aqueles cuja doença era mais repulsiva para a natureza e os
que morriam mais pró ximos. “Nã o se preocupem”, disse ele aos
pacientes que se queixaram de que ele os havia negligenciado, “quando
raramente estou ao lado da cama, isso signi ica que a doença nã o é
perigosa”. Havia até um ditado entre os frades do Santo Rosá rio: “Esse
irmã o logo morrerá , porque Martinho vai vê -lo com frequê ncia”. Nem
mesmo aqueles mais queridos para ele eram qualquer exceçã o a esta
lei.13
O padre Cipriano de Medina adoeceu. Ele estava tã o gravemente
doente que cinco mé dicos se retiraram do caso, dizendo que só faltava
administrar os ú ltimos sacramentos. Já que a morte era tudo o que ele
podia esperar, o padre Cipriano a aguardou com resignaçã o. Apenas um
pensamento nã o o deixou em paz: Martin o abandonou e nã o foi vê -lo
por vá rios dias.
A noite havia caı́do e vá rios religiosos olhavam ao redor de sua
cama, pensando que ele nã o viveria até de manhã . O padre Cipriano foi
dominado pelo desejo de ver Martin, ligado a um sentimento de revolta
contra sua ausê ncia no momento de maior necessidade. A seu pedido,
aqueles que estavam com ele foram procurar Martin por todo o
mosteiro. Ele nã o foi encontrado.
Era entre trê s e quatro da manhã . A noite já havia durado tanto que
parecia que nunca iria acabar. Um primeiro raio de luz começou a
brilharatravé s da janela. Naquele momento, quando todos já haviam
perdido a esperança de encontrá -lo, Martin entrou na sala.
Um arrepio de alegria percorreu o coraçã o do Padre
Cipriano. Imediatamente ele começou a detalhar suas a liçõ es e a
reclamar que Martin o havia abandonado. Ele nã o se lembrava de como
ele - Cipriano - quando entrou na ordem ainda menino, implorou a
Martin que o adotasse como ilho e sempre o venerou como pai? E o
cuidado paternal que Martin sempre teve por ele durante todos os anos
de sua vida religiosa? Por que, no exato momento em que os mé dicos se
desesperaram de salvar sua vida, ele teria que se resignar a morrer sem
ver “seu” Martin novamente?
Martin deixou as palavras jorrarem. Uma pequena explosã o talvez
fosse boa para o doente. Ele ouviu em silê ncio, o sorriso nos olhos
velado pelas pá lpebras semicerradas, a cabeça inclinada.
Quando julgou ter chegado o momento de levantar a cabeça, olhou
diretamente nos olhos do padre Cipriano, falando com ele em seu tom
de voz humilde e calmante que, desta vez, tinha um toque de
reprovaçã o.
“Pai, você deveria ter percebido que nã o estava em perigo. Todos
sabem que, quando faço visitas frequentes à s celas dos enfermos, é um
mau sinal. Nã o ique chateado se você piorou. Esta crise servirá apenas
para acabar com sua doença mais rapidamente. Mas você nã o vai
morrer agora. Deus deseja que você viva e dê a Ele gló ria continuando a
servi-lo na religiã o. ”
Os acontecimentos poucos dias depois con irmaram as palavras de
Martin. O padre Cipriano melhorou visivelmente. Em breve ele pô de
retomar seu ensino e pregaçã o e continuou seu trabalho para a gló ria
de Deus por muitos anos.14
Quando a morte estava realmente à s portas, Martin voltava com
frequê ncia cada vez maior para o leito do frade que estava para
embarcar naquele misterioso jornada. Sem descuidar das atençõ es
fı́sicas, ele buscou fortalecer a alma. Ele falou da in inita bondade de
Deus com a segurança de quem a experimentou. Ele falou da
misericó rdia de Deus, vista nos braços abertos de Cristo cruci icado,
pronto para abraçar qualquer um que se voltasse para ele. Ele falou da
Sabedoria Divina se oferecendo como remé dio para nossa fraqueza e
ignorâ ncia, do sangue do Cordeiro e de Seu corpo imaculado nos
transmitindo uma fonte de vida capaz de superar até as barreiras da
morte.
Quando temeu nã o poder dizer o su iciente, chamou ao lado do
moribundo o religioso que considerava mais quali icado para proferir
palavras de conforto e con iança, enquanto se retirava para orar e
disciplinar-se para que as palavras fossem e icazes e a graça inundar a
alma do moribundo. Ele sabia que Deus nunca recusaria suas petiçõ es.
Quando a batalha acabou, Martin nã o permitiu que ningué m mais
realizasse o ú ltimo e mais doloroso serviço. Ele lavou o cadá ver, vestiu-
o novamente e, com a ajuda de outros religiosos, levou-o ao local do
sepultamento. E ele os incentivou a orar. Mas à s vezes ele nã o dizia
nada e uma alegria celestial brilhava em seu rosto. Entã o todos
entenderam que a alma do irmã o falecido já estava nos braços do pai.15
O posto de enfermeiro levava consigo mais do que cuidar dos
enfermos. Quando Martin começou a trabalhar na enfermaria,
descobriu que faltavam até os equipamentos mais indispensá veis, como
camas, cobertores, lençó is. També m faltavam fundos para comprá -
los. O mosteiro era pobre. Qualquer outra pessoa teria dito a si mesma:
“Se eu nã o receber o dinheiro necessá rio, como vou comprar
suprimentos?” A reaçã o de Martin foi: “Os doentes devem ter tudo o
que precisam e até um pouco mais, entã o o dinheiro deve ser
encontrado”.
E ele iniciou uma campanha para encontrá -lo.
Ele foi ajudado pela fama de sua santidade, que começou a se
espalhar. Quando começou a bater à s portas dos ricos e poderosos,
Martin nã o era desconhecido. Sua vida de humildade e oraçõ es, as
coisas extraordiná rias que dele falavam - seus ê xtases, curas milagrosas
- já se falava em Lima.
Na verdade, Martin nunca foi desconhecido em Lima. Seu pai
ocupou um dos cargos mais altos do governo. Quando Martin viveu na
pobreza quando criança com sua mã e e irmã mais nova; quando se
tornou aprendiz de Rivero apó s o interlú dio de Guayaquil; e quando
renunciou à s vantagens de uma posiçã o conquistada pelo pró prio
trabalho e adquiriu o há bito religioso, Martin nunca se perdeu entre os
rostos desconhecidos das multidõ es anô nimas de Lima.
Mas sua vida se tornou ainda mais luminosa depois que ele a
escondeu atrá s das paredes do mosteiro, porque o poder irresistı́vel da
santidade brilhava dele. O mosteiro nã o era uma torre de mar im,
retirada do mundo. Todas as classes de pessoas iam e vinham.
Lá estava Francis de la Torre. Quando nã o estava de serviço ia ao
Santo Rosá rio e icava livre para percorrer todo o mosteiro e dormir à
noite no almoxarifado da enfermaria perto de Martin. Quando estava de
plantã o, voltava à cidade para comandar a guarda e contar as coisas que
tinha visto, para edi icaçã o de quem o ouvia.
Havia Marcel de Rivero, o professor de Martin, que muitas vezes ia
ao mosteiro para visitar os doentes e via Martin em ê xtase, erguido do
chã o à altura do cruci ixo da sala do capı́tulo.
Houve John Vá zqez, assim como muitos outros que, depois de
terem testemunhado algo extraordiná rionary, nã o podiam negar a si
mesmos o prazer de contar a seus conhecidos sobre isso.
O pró prio Martin costumava ter a oportunidade de se misturar à s
multidõ es da cidade, e seu há bito gasto e seus modos despretensiosos
revelavam mais do que todas as histó rias de seus admiradores.
Martin certamente nã o pensou em tudo isso quando foi em busca
de ajuda para seus enfermos. Ele pensava apenas nas necessidades dos
religiosos. Por amor a eles, ele estava pronto para arriscar palavras
á speras ou recusas. Ele icava agradavelmente surpreso cada vez que as
pessoas o ouviam e respondiam com generosidade, e ele louvava a Deus
que colocara em seus coraçõ es tais sentimentos de compaixã o e
generosidade.
Lima havia imensa riqueza. Foi quase um alı́vio para os
conquistadores fazerem algum bem com ele, uma vez que o haviam
apropriado, muitas vezes por meios ilı́citos. As Escrituras nã o dizem
que dar esmolas cobre uma multidã o de pecados?
Por mais indiferentes que fossem à misé ria que os rodeava, os
conquistadores foram movidos pelos apelos deste homem que era a
caridade encarnada, e deram generosamente da abundante riqueza que
encontraram no Novo Mundo, riqueza tã o abundante que teria parecia
uma fá bula ou um sonho no Velho Mundo.
Aos poucos, Martin foi formando um grupo de benfeitores aos
quais sempre poderia recorrer. O vice-rei estava no topo da lista. E
entã o, descendo a linha, as riquezas luı́am para ele de todos os lados,
de todas as ileiras do governo, da aristocracia, do comé rcio. Foi uma
inundaçã o de proporçõ es imponentes.
Martin nã o se deixou levar por isso. Ele havia descoberto uma
maneira de tocar na veia oculta e sabia como empregar o que recebia,
direcionando-o com sabedoria para onde era mais necessá rio. Para
fazer isso, ele colocou em jogo os dons de seu personagem que estã o
entreo mais atraente do ponto de vista humano; em outras palavras,
seu gê nio para a organizaçã o.
Primeiro, ele atendeu à s necessidades mais urgentes. Entã o, à
medida que o luxo de esmolas se tornava maior e mais constante, ele
planejou e executou uma divisã o das ofertas que lhe permitiu alargar o
campo de sua caridade muito alé m das paredes de seu mosteiro.
Como era natural, partiu das necessidades que o levaram a pedir
esmolas: os suprimentos necessá rios para a enfermaria e as
vestimentas necessá rias para a enfermaria e a comunidade.
Ao reorganizar tudo isso, a fonte do zelo de Martin era, sem dú vida,
sua compaixã o pelos enfermos que careciam de todo o equipamento
mais indispensá vel. Deve ter sido como uma faca em seu coraçã o nã o
encontrar um par de lençó is ou uma tú nica para dar a um paciente que
precisava deles com urgê ncia.
Mas, ao mesmo tempo, ele foi estimulado por um motivo de ordem
superior. O costume legitimou uma ampla interpretaçã o da observâ ncia
do voto de pobreza, mas foi longe demais e fatalmente levou ao
desrespeito de certas prescriçõ es da regra. Sendo obrigados a
encontrar uma maneira de fornecer suas pró prias roupas, era inevitá vel
que os frades usassem quase tudo que pudessem obter e usassem
artigos que haviam recebido como presente, mas nã o estavam
totalmente em conformidade com a regra. Como resultado, muitos
deles usavam há bitos de algodã o ou linho em vez de lã .
Essas infraçõ es da regra angustiaram Martin. Mesmo sendo de
importâ ncia secundá ria, tais detalhes desempenham um papel em um
estado de vida que deve ser um testemunho de fé e de amor. Para trazer
seus irmã os de volta a uma observâ ncia mais perfeita da pobreza,
Martin assumiu a tarefa de tornar isso possı́vel para eles.
Conseqü entemente, ele foi em busca de lã para fazer os há bitos
necessá rios. Ele juntou um pouco de dinheiro e encontrou os
comerciantes dispostos avenda-lhe o tecido necessá rio a preços
bastante reduzidos. Como resultado, ele foi capaz de fornecer mais de
oitenta novos há bitos de lã . Depois, havia o problema de fazer a
substituiçã o de forma que ningué m icasse irritado com isso. Martin
elaborou um plano que incluı́a a organizaçã o do guarda-roupa da
comunidade e os suprimentos da enfermaria, bem como o cuidado
regular e a distribuiçã o de todas as roupas. Ele nã o apenas planejou,
mas colocou em prá tica, assumindo, como sempre, o fardo da obra.
Isso é o que ele fez. Cada vez que um há bito de linho chegava à
lavanderia, ele o substituı́a por outro de lã do mesmo tamanho. O
há bito original, lavado e passado, ia para os suprimentos de reserva da
enfermaria para ser usado no maior conforto dos enfermos. Cada nova
peça de roupa que ele distribuı́a era marcada com um nú mero, e cada
membro da comunidade tinha seu pró prio nú mero. No guarda-roupa,
ele numerou uma sé rie de prateleiras divididas em seçõ es, e a roupa
limpa de cada uma foi organizada em sua pró pria seçã o.
Todos os sá bados, Martin ia de cela em cela com sua grande cesta
cheia de roupas limpas e distribuı́a aos religiosos. Na segunda-feira, ele
fez a ronda novamente para recolher as roupas para serem
lavadas.16Desta forma, Martin fornecia nã o apenas há bitos, mas todas
as outras peças de vestuá rio aos religiosos que nã o tinham como
protegê -los, seja porque suas famı́lias eram pobres ou porque estavam
muito ocupados com seus deveres no mosteiro para poderem ganhar
dinheiro. atravé s de outras atividades. Os menos afortunados que
poderiam ter se envergonhado de sua indigê ncia descobriram que
eram realmente os mais afortunados porque, graças à solicitude de
Martinho, tudo foi provido de acordo com a mais estrita observâ ncia da
pobreza religiosa.
Martin ainda nã o estava satisfeito. Foi bom teras roupas e a roupa
de cama da comunidade estavam em ordem, mas nã o bastava. Alé m de
implorar por dinheiro para suprir essas necessidades, Martin pediu
estipê ndios para a missa. Mais uma vez, a resposta foi generosa e
regular. O pró prio governador tornou-se o esmoler de Martin, e todas
as segundas-feiras ele trazia a Martin os estipê ndios de missa que
arrecadava. Martin preparou uma lista completa de todos os padres do
mosteiro, desde o provincial até o ú ltimo sacerdote recé m-
ordenado. Cada um recebeu as intençõ es da missa por sua vez,
percorrendo toda a lista até que todas as ofertas tivessem sido
usadas.17
Foi uma satisfaçã o saber que a enfermaria passou a receber um
bom nú mero de tú nicas de algodã o ou linho, ainda que mais ou menos
usadas, pelas quais haviam sido substituı́das por tú nicas de lã . Mas
ainda havia muitas outras coisas necessá rias! As camas eram poucas e
em estado deplorá vel; cobertores e lençó is eram quase inexistentes. E
de vez em quando um lençol tinha que ser rasgado para fazer as
bandagens, mesmo antes de estar completamente gasto, pois nã o havia
bandagem nenhuma.
Gradualmente, Martin conseguiu garantir tudo o que era
necessá rio. O padre Alphonsus de Arenas estimou o valor dos vá rios
artigos obtidos por Martin em "mais de seis mil moedas de ouro" e se
alegrou com o contraste entre a pobreza pessoal do zelador do
depó sito e a riqueza que sua indú stria trouxera para a comunidade
. “Sendo, como era, tã o perfeitamente pobre, ele tinha controle sobre
todas as doaçõ es dos leigos.”18
Martin era naturalmente um guardiã o ciumento de tudo o que
havia adquirido com sua indú stria e esforços. Um dia, um homem veio a
sangrar e, durante a operaçã o, desmaiou. Nesse exato momento Martin
foi chamado para fora da sala por alguns instantes e deixou seu
paciente sentado em uma cadeira que ele mantinha lá para aquele
propó sito. Ele sabia que nã o era nada sé rio, uma reaçã o ao ver sangue,
como acontece com muitos.
Em alguns momentos, seu paciente recuperou a
consciê ncia. Encontrando-se sozinho, decidiu aproveitar a
situaçã o. Pegou dois lençó is sujos de uma cesta de linho e en iou-os nas
calças. Naquela é poca as calças largas estavam na moda, com muito
espaço para objetos volumosos. Muito seguro de sua capacidade de
manter um ar inocente, cumprimentou Martin com indiferença quando
ele voltou e se preparou para partir. Mas ele se ouviu ser chamado de
volta. “Volte, irmã o. Volte para a sala e coloque na cesta os lençó is que
você está carregando nas calças. ”
O tom de voz de Martin era muito irme, mas sem o menor traço de
aspereza. Ele poderia tê -lo chamado de "ladrã o", mas, em vez disso, ele
o chamou de "irmã o". Acrescentou, quase como se desculpando por
nã o permitir que seu visitante carregasse os lençó is: "Os doentes tê m
tã o pouca roupa que nã o conseguem viver sem este par de lençó is." E o
pretenso ladrã o, tomado de vergonha, voltou e recolocou os lençó is.19
Uma vez que um colchã o desapareceu. Martin o colocou no ar e
depois o esqueceu. Até os santos podem esquecer algo de vez em
quando! Tarde da noite, Martin lembrou-se de que o colchã o ainda
estava esperando para ser trazido e foi buscá -lo. Mas ele descobriu que
o colchã o nã o o esperava. Sem perder tempo fazendo perguntas a uma
ou outra pessoa, Martin chamou o irmã o Ferdinand e foi com ele a um
depó sito escuro no porã o onde o colchã o tinha icado escondido
temporariamente.
Outra vez sumiu uma cama inteira, a cama de um negro que
trabalhava na enfermaria. “Nã o consigo encontrar minha cama”, disse o
negro a Martin. Martin respondeu: “Espere por mim aqui”. Ele foi direto
para o local onde a cama estava escondida, e para os religiosos
cujoservo o tinha levado, dizendo-lhe francamente: “Padre, se aquele
servo nã o tem cama, por favor, faça com que ele tenha, mas nã o deve
levar a cama do negro que trabalha na enfermaria”.
Quando se tratava de outras pessoas, Martin sabia muito bem que
qualquer pessoa que tivesse trabalhado o dia todo tinha direito a uma
boa noite de sono em uma boa cama. E o negro conseguiu sua cama de
volta.20
Outro inimigo, mais temı́vel do que qualquer ladrã ozinho
ocasional, ameaçava tudo o que havia sido conquistado com tanto
esforço. Um inimigo inexorá vel, um inimigo invencı́vel: ratos.
Quando os ratos encontraram o caminho para o guarda-roupa, foi
uma grande preocupaçã o para Martin. Dia apó s dia as camisas e lençó is
limpos colocados nas prateleiras com tanto cuidado saı́am com buracos
mostrando marcas de dentes mordiscando, e em vez do cheiro
agradá vel de roupa limpa, emanava dos lençó is um odor desagradá vel.
Vá rios dias se passaram. Os ratos pareciam ter prazer em roer as
coisas melhores e mais novas, deixando intactas as quase gastas.
O enfermeiro-chefe estava cansado dessa guerra subterrâ nea. Ele
conhecia um remé dio e sentia que qualquer defesa seria legı́tima contra
essa praga. "Vamos espalhar um pouco de veneno por aı́?" ele
propô s. Martin nã o quis ouvir falar nisso.
“Pobres criaturinhas”, disse ele; “Eles tê m que fazer algo para
viver. Eles nã o encontram suas refeiçõ es prontas para eles no refeitó rio
como fazemos todos os dias. ”
Martin inalmente pegou um dos vâ ndalos. Ele in ligiria a sentença
da justiça sobre ele, a im de dar um exemplo aos outros
malfeitores? De jeito nenhum.
Martin segurou o mouse nas mã os. O coraçã o do pequeno animal
batia rapidamente contra seus dedos, os olhos brilhantes olhavam
desesperadamente em todas as direçõ es.
Martin sorriu. Entã o ele falou com o mouse. Eleproferiu um
discurso semelhante ao do ladrã o que tinha levado os lençó is, mas
desta vez foi um pouco mais difı́cil porque se tratava nã o só de
persuadir o rato de que devia respeitar os bens do doente, mas de
ganhá -lo acabou como um aliado para persuadir os outros. Martin disse
a ele: “Irmã ozinho, por que você e seus companheiros estã o fazendo
tanto mal à s coisas que pertencem aos enfermos? Olhar; Nã o vou matá -
lo, mas você deve reunir todos os seus amigos e conduzi-los até o outro
lado do jardim. Todos os dias vou trazer comida para você se você
deixar o guarda-roupa sozinho. "
O rato acalmou-se enquanto Martin falava e, ao inal do discurso,
seus olhinhos itaram o Irmã o, como se ele dissesse: “Concordo; Eu
aceito a oferta. ”
Martin abriu as mã os e o rato saltou para o chã o e desapareceu.
Imediatamente, um grande farfalhar começou, e outros pares de
olhos brilhantes brilharam por toda parte. De debaixo dos guarda-
roupas, em cima dos guarda-roupas, das vigas do teto e das rachaduras
no chã o, os ratos saltaram. Quem teria pensado que um quarto poderia
esconder tantos deles? Agora que o exé rcito estava em plena formaçã o,
havia motivo para regozijo que esses bravos soldados tivessem se
contentado com tã o pouco. Se eles tivessem feito isso a sé rio, nem um
io teria sobrado!
Quando todo o grupo estava reunido, a procissã o partiu em direçã o
ao jardim. Desajeitadamente, eles seguiram seu caminho, os mais
rá pidos e á geis saltando sobre os mais lentos e pesados. As passadas
largas de Martin acompanharam os passos minú sculos e apressados
das pequenas criaturas. Eles foram para o canto mais distante do
jardim, onde havia uma boa cerca viva e arbustos e terreno aberto
su iciente para uma cidade inteira de ratos cavar buracos, e os ratos
alegremente tomaram posse de tudo.
Todos os dias, depois de servir o jantar aos enfermos, aos servos e
aos pobres, Martin saı́a para trazer a comida aos ratos. Era um serviço
que prestava diretamente aos bichinhos, mas també m era um serviço
prestado indiretamente à comunidade. Ele sabia que se mantivesse sua
palavra, os ratos respeitariam o pacto. Desde entã o, nenhum rato
meteu o pé no guarda-roupa nem, o que é mais importante, um dente
na roupa de cama do mosteiro.21
Martin guardava os bens da comunidade com ciú me, mas os usava
livremente para os enfermos. Uma vez ele trouxe para a enfermaria um
homem encontrado na rua depois de uma briga, sangrando e coberto de
lama. Vá rios dias de enfermagem o restauraram o su iciente para que
ele pudesse andar e voltar para sua casa. Mas quando ele saiu da cama,
a cor dos lençó is estava alé m de qualquer descriçã o. Um irmã o leigo os
mostrou a Martin e, em um momento de mau humor, murmurou: "E
agora, para tentar deixá -los brancos de novo!"
Até os santos tê m pelo menos um ponto fraco e, se forem atacados
por esse ponto fraco, reagem como todos nó s. Só temos dezenas de
pontos fracos, e nem sempre sã o os mais louvá veis.
Martin lançou-lhe um olhar penetrante como uma lâ mina e
interrompeu seu resmungo. “Irmã o, com a aplicaçã o de um pouco de
graxa de cotovelo, á gua e sabã o, os lençó is voltam a icar brancos, mas
a alma precisa de outras coisas! Somente lá grimas e penitê ncia podem
limpá -lo da falta de caridade. ”22
Esse era o ponto fraco de Martin: caridade. Ele nã o toleraria
brincadeiras sobre esse ponto. A falta de caridade fraterna era uma
espinha em seu coraçã o, e sua fala adquiriu uma impetuosidade e uma
autoridade insuspeitada. Enquanto ele estava pronto para aceitar todo
e qualquer insulto dirigido a si mesmo, ele nã o podia suportar a ideia
de que deveria ser acusado de falta decaridade fraterna. Se ele
multiplicava sua atençã o por aqueles que o insultavam, era “para que
soubessem que nã o perderam o lugar em seu coraçã o porque o
ofenderam”.23
Era tanto seu ponto fraco quanto forte.
A caridade era a fonte de sua atividade prodigiosa, era a força que o
tirava do cansaço, que o mantinha sempre pronto para o trabalho.
Foi també m a fonte de sua paciê ncia para suportar as pessoas
difı́ceis e as exigê ncias dos enfermos. Era a fonte de seu há bito de
sempre dar e nunca pedir, de estar constante e incansavelmente à
disposiçã o de todos.
“A caridade, da qual se diz que nã o busca os seus pró prios, deve ser
entendida como signi icando”, admoesta a Regra de Santo Agostinho,
“que as coisas comuns devem sempre ser colocadas antes das nossas, e
nã o as nossas antes aqueles mantidos em comum. ”
Foi exatamente assim que Martin o entendeu. Por amor aos irmã os,
ele mendigava, assumia para si todo tipo de trabalho, sacri icava seu
pró prio descanso, dia apó s dia, com um heroı́smo incansá vel. E por
amor ao verdadeiro bem dos irmã os, porque se apaixonou pela beleza
espiritual, estava constantemente na presença de nosso Pai celestial,
pedindo o maná diá rio da graça.
“Uma caridade fraterna em Cristo Jesus”, como dizia Santa Catarina
de Sena, “é tirada do abismo de sua caridade”. 24Tirar amor do abismo
da caridade de Cristo signi ica encontrar no amor do Verbo feito carne
o motivo e o exemplo do nosso amor pelos irmã os em
Cristo. Contemplando este amor na obra da nossa redençã o, que é a sua
manifestaçã o mais marcante, Santa Catarina exclamou: “O loucura de
amor! Você nã o se contentou em encarnar; Você també m desejou
morrer por nó s. ”25 Quem procura penetrar nas profundezas deste
abismo na contemplaçã o a paixã o de Nosso Senhor, vai inalmente
compartilhar na “loucura” da Sabedoria Eterna, em um grau ou outro.
Martin nã o foi exceçã o. A prova incontestá vel foi que ele propô s ao
prior vendê -lo como escravo, em vez de desistir de algum objeto
valioso, quando o mosteiro nã o tinha meios para atender à s demandas
de seus credores. Isso aconteceu, sem dú vida, durante os primeiros
anos, quando Martin era simplesmente um coadjutor leigo. Há muito
pouca probabilidade de que uma sugestã o semelhante tivesse sido
aceita depois de sua pro issã o e, portanto, seria inú til fazê -la.
Mas a mesma “loucura” governou todas as açõ es de Martin ao
longo de sua vida: os dias cheios de trabalho apó s noites sem dormir, a
alternâ ncia incessante de oraçã o e penitê ncia e trabalho, o serviço aos
outros sem pensar em si mesmo.
Até o momento em que morreu, Martin obedeceu à "lei do amor"
do Mestre: "Cristo nã o agradou a si mesmo." ( Rom . 15: 3).

Capítulo 10
“As palavras da boca de um homem sã o como á guas profundas; e a fonte da sabedoria como um
riacho transbordante. ” ( Prov . 18: 4).

N
OTHING mostra mais claramente o quanto Martinho amava sua Ordem
do que suas relaçõ es com os noviços.
Em qualquer forma de sociedade, os jovens representam a
esperança do futuro e atraem o amor e a atençã o de quem vive
plenamente a vida dessa sociedade. Em uma famı́lia, o problema da
formaçã o dos jovens é relativamente simples, devido ao nú mero
restrito de envolvidos e à estreita a inidade entre os membros da
famı́lia. Mas o problema é muito complexo em uma comunidade
religiosa, onde sujeitos quedevem ser elevados a um plano superior de
vida sã o aceitos com amplas diferenças de origem, há bitos e
caracteres. Talvez porque o problema do treinamento seja tã o difı́cil, e
porque muito em nossa vida depende do treinamento que recebemos,
amamos os jovens de uma maneira particular. Mais prontamente
concedemos as afeiçõ es de nosso coraçã o à queles que mais nos
custaram tempo e pensamento.
Martin nã o podia ignorar a presença dos noviços no mosteiro do
Santo Rosá rio. Amava a Ordem e nã o podia deixar de amar os noviços
da Ordem. E visto que amar signi ica desejar o bem da pessoa amada,
Martinho nã o podia fazer menos do que tentar promover o melhor
interesse dos noviços.
Martin sempre esteve tã o atento à s necessidades de todos como se
ocupasse o lugar de pai para cada um. Cada vez que um irmã o precisava
de alguma coisa - fosse uma camisa, um caderno ou um livro - ele "ia
imediatamente ajudar quem estava em necessidade e era um grande
consolo para os necessitados que eram encorajados e alegrados
simplesmente por ouvirem seu nome . ” Ele se superou pelos alunos e
noviços, “para que nã o iquem abatidos pela falta de nada na vida
religiosa”.1
Nem é preciso dizer que Martin nunca sonhou em usurpar a
autoridade do mestre dos noviços. Para os noviços, ele era
simplesmente um anjo da guarda adicional. Se um deles estava doente,
Martinho nã o tinha escrú pulos em romper a reclusã o estrita do
noviciado, como aconteceu quando o Irmã o Matias de Barrasa desejou
ardentemente vê -lo antes de morrer.
Martin costumava passar por portas trancadas, carregando objetos
volumosos consigo, como lençó is e outras roupas de cama, ou seu
famoso braseiro cheio de carvã o em brasa. Ele aparecia repentinamente
para um membro doente da comunidade no meio da noite.Colocando o
braseiro no chã o, jogava um galho de alecrim sobre as brasas e, de
imediato, o crepitar alegre e o perfume delicioso do alecrim dissipava o
peso do ar viciado da cela. O paciente abriria os olhos. Lá , ao lado de
sua cama, estava Martin, oferecendo-lhe o restaurador com que ele
sonhou durante seu sono inquieto: uma tú nica limpa em troca daquela
saturada de suor, um gole de á gua fria, um pedaço de fruta suculenta
para seus lá bios queimando com febre.
Mesmo em casos graves, as visitas de Martin sempre eram seguidas
por uma melhora acentuada e, à s vezes, por uma cura completa. Um
deles foi o caso do Irmã o Francis Velasco Carabantes, que foi atacado
por uma forma grave de hidropisia durante o noviciado. Deve-se
acrescentar que a cooperaçã o de Martin na cura do Irmã o Francisco
nã o foi seu primeiro encontro. Martin esteve envolvido nas
circunstâ ncias que envolveram o inı́cio de sua doença.
Foi assim que aconteceu. Quando Francisco estava no noviciado do
Santo Rosá rio há cerca de um mê s, seu pai, que era o secretá rio da
tesouraria, veio visitá -lo. Ele veio com um objetivo de inido: levar
Francisco para casa. Como secretá rio do Tesouro, ele havia recebido a
notı́cia de que o rei havia lhe concedido a autorizaçã o para deixar seu
cobiçado cargo no governo para seu ilho como herança. Esta foi uma
honra notá vel e extraordiná ria concedida ao tesoureiro em troca dos
muitos serviços que prestou à coroa. Seria o consolo de seus anos de
declı́nio, e seu coraçã o encheu-se de orgulho justi icá vel ao pensar que
o rei estava tã o satisfeito com seus serviços que Sua Majestade desejava
assegurar sua continuaçã o, alé m dos limites da vida do pai, em a pessoa
de um ilho julgado capaz de continuar a obra que havia começado.
Esta recompensa despertou o sen mais delicadotempos de coraçã o
paternal e pareciam ao velho tesoureiro uma lor que desabrocha
inesperadamente na aridez de uma vida passada entre registros e
iguras. Enquanto caminhava para o mosteiro do Santo Rosá rio, uma
nova alegria encheu seu coraçã o e iluminou a memó ria dos longos anos
passados em tedioso trabalho.
Talvez o Irmã o Francis tenha oferecido alguma resistê ncia à
proposta de seu pai, mas acabou cedendo. Nã o estando certo de que
poderia manter sua resoluçã o se tivesse que informá -la ao mestre de
noviços, concordou em fugir naquela noite por um intervalo. a parede
perto da igreja do mosteiro. E o pai e o ilho concordaram com a meia-
noite para a fuga.
A noite caiu e a campainha chamou os religiosos ao
refeitó rio. Como o mais jovem dos noviços, o Irmã o Francis dirigia uma
das longas ilas duplas que iam processionalmente ao refeitó rio. De
repente, uma igura correu até ele, saindo da sala do capı́tulo, e puxou-o
de lado. “Você vai tirar o há bito da religiã o sagrada e deixar a casa de
Deus para o cargo de secretá rio da tesouraria? Isso nunca vai dar
certo! Você nã o vai fazer isso. E melhor servir a Deus e garantir sua
salvaçã o do que morar na casa de seu pai. Acredite em mim, o que você
nã o estava disposto a fazer por amor a Deus, você fará por temor a
Deus. ”
Nã o sabemos o que o Irmã o Francis disse ao Irmã o Negro que, sem
preâ mbulos, mostrou que sabia o que Francisco tentava esconder sob
seu comportamento despreocupado. Talvez ele tenha ingido nã o
entender as palavras de Martin e rapidamente escapou da conversa
embaraçosa.
O que sabemos com certeza é que quando voltou a reunir-se com o
religioso no refeitó rio e se sentou à mesa, começou a tremer e a ter uma
febre tã o alta que foi forçado a levantar-se antes do inal da refeiçã o e
pedir ao mestre dos noviços. permissã o para ir para a cama.
E ali, enrolado sob as cobertas com os dentes batendo, ele
certamente se lembrou das palavras de Martin, palavras à s quais ele
havia fechado os ouvidos alguns momentos antes: “O que você nã o
estava disposto a fazer por amor a Deus, você fará por medo de Deus." O
projeto desapareceu no ar, pelo menos por aquela noite.
O Irmã o Francis nã o admitiu a derrota. Um mê s depois, curado da
febre, voltou a fazer planos para a fuga. Mas, no momento de colocar o
plano em execuçã o, a febre o atingiu novamente e pela segunda vez ele
icou indefeso na cama. O obstinado jovem noviço mal estava de pé
novamente quando renovou seus planos de fuga pela terceira vez. E
pela terceira vez, a febre o parou.
O terceiro aviso cumpriu o que o primeiro e o segundo avisos
falharam. Francisco se rendeu. Ele inalmente entendeu que Deus
desejava a todo custo salvar a vocaçã o que ele estava pronto para
trocar por um guisado. Uma profunda gratidã o a Deus surgiu em seu
coraçã o, associada a uma profunda admiraçã o por Martin, a quem ele
venerava como um homem santo.2
O terceiro ataque de febre de Francisco foi tã o forte que ele estava
à beira da morte. O mé dico declarou que nã o havia esperança e os
superiores da casa prepararam-no para a morte e administraram os
ú ltimos sacramentos. Mas a crise passou e eles o mandaram para o paı́s
para se recuperar. Mas a mudança de ares pouco lhe adiantou e voltou
ao noviciado com uma febre persistente e todos os sintomas de
hidropisia. Todos os cuidados possı́veis foram dados a ele, e até o
mé dico particular do vice-rei foi chamado. Mas o Dr. Cisneto balançou a
cabeça. Ele nã o poderia fazer nada por este caso.
Dia apó s dia, o Irmã o Francis piorava. Sua respiraçã o tornou-se
difı́cil, pois ele quase sufocoudo luido em suas cavidades pleurais. Seus
superiores nã o perderiam a esperança de vê -lo curado, mas, temendo
que algum companheiro excessivamente simpá tico lhe desse á gua ou
outros lı́quidos prejudiciais, colocaram-no na cela do noviciado e
trancaram a porta.
Nesse ponto, Martin interveio. Era cerca de uma hora da manhã ou
um pouco mais tarde. Francisco deitou-se na cama, oprimido pelo
sofrimento e pela solidã o e o té dio da insô nia. A porta estava
trancada. De repente, ele percebeu a presença de algué m na
sala. Martin estava sorrindo para ele nas sombras. Em suas mã os estava
um velho braseiro de latã o cheio de brasas, debaixo do braço uma
tú nica limpa e um ramo de alecrim aparecendo em uma de suas
mangas.
Foi uma alucinaçã o induzida pela febre?
Martin colocou o braseiro de latã o no chã o, aproximou-se da cama,
pediu ao noviço doente que se levantasse, ajudou-o a sentar-se em um
banquinho perto do braseiro e envolveu-o em um cobertor. Em seguida,
tirou o alecrim da manga e jogou-o sobre as brasas acesas. Um io ino
de fumaça azul-acinzentada subiu e se espalhou em uma nuvem leve e
perfumada.
Nenhuma palavra foi dita durante tudo isso.
Francisco inalmente superou seu espanto e quebrou o silê ncio
para perguntar a Martin como ele havia entrado na sala à quela hora em
que as portas do noviciado e de sua cela estavam fechadas.
A resposta nã o foi um incentivo para manter uma longa
conversa. "Meu garoto, quem lhe disse para se intrometer nessas
coisas?"
Em seguida, dando-lhe um golpe leve de brincadeira, como se para
suavizar a dureza das palavras, Martin acrescentou em um tom mais
gentil: “Você nã o é um grande bacharel ou doutor em artes; você tem
sorte de estar vivo! ”
Ele virou o colchã o e refez a cama com folhas novas; passou uma
esponja no corpo de Francisco e vestiu-lhe uma tú nica limpa, aquecida
e perfumada com o alecrim; ajudou-o a voltar para a cama; e entã o o
cobriu bem.
Francis arriscou mais uma pergunta. Ele morreria desta doença?
Martin respondeu com outra pergunta. "Você realmente quer
morrer?"
“Nã o”, Francis disse.
“Entã o você nã o morrerá ”, concluiu Martin, e desapareceu como
apareceu.
Uma grande paz e uma sensaçã o de bem-estar encheram a alma de
Francisco, como há muito nã o experimentava. Ele adormeceu e, pela
primeira vez em dois meses, dormiu profundamente até de manhã .
Quando ele acordou, todos os sinais de sua doença haviam
desaparecido. A di iculdade em respirar, o desconforto, a febre, o
inchaço - tudo tinha sumido. Trê s ou quatro dias depois, ele estava de
pé novamente, tã o bem e com os olhos brilhantes quanto qualquer
garoto de sua idade, e o Dr. Cisneto olhou surpreso e proclamou que era
um milagre.3
Este foi o mesmo Francis Velasco que outrora foi extremamente
rude com Martin e entã o, vendo que o Irmã o Negro parecia se deleitar
em ser insultado, adquiriu o há bito de dar a Martin medidas generosas
desse tipo de tratamento. Ele deve ter sido, como dirı́amos, um
“personagem difı́cil”. E é prová vel que a constâ ncia de Martin em
suportar suas explosõ es de mau humor e sua irme convicçã o de que
Francisco poderia se tornar um bom religioso ajudaram Francisco a
superar esse obstá culo.
Mesmo o melhor de nó s pode experimentar momentos de
desâ nimo quando percebemos a extensã o do caminho que temos pela
frente, ou momentos de incerteza quando o caminho parece difı́cil. Uma
mã o amiga estendida nesses momentos pode mudar o curso de uma
vida inteira.
Uma noite, o mestre dos noviços procurou Martin e con idenciou-
lhe uma grande tristeza. Dois noviços haviam desaparecido e nã o
podiam ser encontrados em lugar nenhum. Eles devem ter fugido.
Martin prometeu ao mestre dos noviços que faria o possı́vel para
ajudar a encontrá -los e começou a orar. Quando acabou, foi pedir
permissã o ao prior para sair. Sabendo do ocorrido, o prior concedeu a
permissã o, embora já fosse noite.
Martin caminhou vá rios quilô metros e parou diante da porta de
uma casa. A porta estava fechada, mas isso nã o fez diferença para
ele. Ele entrou e encontrou os dois fugitivos dormindo tranquilamente
em duas camas.
Martin os acordou sem uma palavra de reprovaçã o. Em vez disso,
ele começou a falar em seu tom paci icador e convincente da beleza do
estado religioso, da dignidade de uma vida intimamente unida à vida de
Deus, do campo ilimitado aberto ao amor quando o homem fecha seu
coraçã o à s atraçõ es de sua natureza inferior e se dispõ e a receber a luz
do alto.
Todo o seu discurso pareceu tã o ló gico aos jovens que eles acharam
difı́cil acreditar que eram realmente culpados de terem fugido do
mosteiro no dia anterior. Eles desejaram sinceramente nunca ter feito
uma coisa tã o tola. Tudo em que conseguiam pensar agora era como
voltar para o mosteiro. Esse problema era simples para
Martin. Enquanto os dois culpados estivessem sinceramente
arrependidos, todo o resto se resolveria por si mesmo.
Assim que entrou na casa sozinho pelas portas trancadas, ele
voltou a entrar no mosteiro pelas portas gradeadas com os dois
noviços. Assim, ningué m sabia de sua fuga, exceto o prior e o mestre
dos noviços, e nenhuma sombra foi lançada sobre sua honra como
religiosos. Eles se tornaram bons religiosos e permaneceram membros
da Ordem até a morte.4
Até mesmo a visã o de Martin à s vezes era su iciente para decidir
uma vocaçã o.
“Eu já disse e repeti milhõ es de vezes”, costumava dizer o padre
Iná cio de Sã o Domingos, “que decidi me tornar um dominicano porque
vi o irmã o Martin de Porres em oraçã o, erguido bem acima da terra ,
quase abraçando o Cristo cruci icado na sala do capı́tulo. ”
Nã o importa quantos milhõ es de vezes o padre Iná cio o tenha
repetido durante sua vida, uma vez que seus olhos estivessem fechados
na morte, ele nã o poderia mais reiterar sua a irmaçã o. E foi justamente
esse ponto que entristeceu o padre Christopher de St. John, que nunca
teve a alegria de ver Martin em ê xtase, quando foi sua vez de dar
testemunho durante o processo de beati icaçã o de Martin. “Ah, se o
padre Ignatius estivesse aqui”, disse o padre Christopher certo dia a
Marcel de Rivero, o cirurgiã o.
“E meu testemunho nã o é su iciente?” respondeu de Rivero um
pouco irritado. “Eu també m o vi, assim como o padre Iná cio, bem
acima do solo, na sala do capı́tulo, e minha palavra é tã o boa quanto a
dele!”5
Cipriano de Medina foi outro noviço a quem Martinho ajudou a
superar suas di iculdades iniciais. Cipriano entrou no mosteiro do
Santo Rosá rio quando tinha apenas quatorze anos. Apesar da sua
juventude, percebeu imediatamente que Martinho era santo e, alé m de
se con iar aos cuidados paternos de Martinho, observou-o
constantemente e esforçou-se por imitá -lo.
Cipriano era desajeitado, baixo e gordo, e també m feio. Por causa
de seus defeitos fı́sicos, seus companheiros muitas vezes faziam dele o
alvo de suas zombarias e comentá rios mordazes. Um dia, os alunos
aguardavam sua vez na sala onde Martin cortava o cabelo e raspava a
barba. Como de costume, Cipriano e sua estatura ridı́cula serviram
como tema de diversã opara passar o tempo, e ele se sentia infeliz com
isso. Um religioso deveria estar acima de tais aborrecimentos
mesquinhos, mas aos quatorze anos um menino tem a ambiçã o legı́tima
de crescer alto, pelo menos tã o alto quanto seu pró prio pai, e se for
menor que o normal, ele se sente humilhado.
Um dos alunos disse a Martin: “Irmã o, faça a barba, irmã o Cipriano,
o 'homem selvagem' de nosso mosteiro”.
O irmã o Cipriano tinha tanto cabelo no rosto que parecia um urso.
O irmã o Martin respondeu calmamente: “Você o chama de 'homem
selvagem' e ri dele porque ele é muito pequeno. Mas espere um
pouco. Ele crescerá tanto que se elevará sobre todos você s; e ele será
um religioso notá vel que trará honra para a Ordem ”.
Ningué m respondeu e ningué m se atreveu a continuar provocando
o irmã o Cipriano. Por trá s das palavras simples de Martin deve haver
algo misterioso, talvez uma profecia real. Os acontecimentos logo
mostraram quã o verdadeiramente Martin havia falado. O irmã o
Cipriano teve uma febre que o deixou con inado ao leito por quatro ou
cinco meses. Quando ele se recuperou, ele havia crescido tanto que
suas roupas nã o lhe serviam mais. Todo um novo conjunto de roupas
teve que ser feito para ele. Mas ele se distanciou ainda mais de seus
companheiros em seu desenvolvimento intelectual e moral. Os outros
nã o se distinguiram de maneira especial, mas Cipriano foi nomeado
para cargos importantes e foi consagrado bispo ainda jovem.6
As vezes, o mestre mandava seus noviços a Martin durante o
recreio. Uma tarde, vá rios alunos apareceram na sala que servia de
quartel-general de Martin, pedindo um almoço vespertino. Fizeram isso
todos os dias, apó s a aula de teologia.
“Espere por mim”, disse Martin, “já volto”.
Os alunos entraram e começaram a vasculhar. Havia uma pequena
fruta em uma gaveta, entã o, sem cerimô nia, eles começaram o
almoço. També m tinhauma pequena moeda de prata, e como os alunos
costumam icar muito animados e precisam relaxar depois das aulas,
um deles pegou a moeda e en iou no sapato.
Martin voltou com alguns peixes fritos, pã o, maçã s e outros
pedaços de comida, e enquanto servia a comida com sua habitual
graciosidade e convidava os jovens a desfrutar das boas coisas providas
por Deus, ele observou que eles estavam totalmente certos em terem
tomado a fruta fora da gaveta, pois estava lá para eles.
De repente, ele icou sé rio. O almoço acabou e os alunos já iam
embora. O irmã o que pegou a moeda de prata ingiu inocê ncia. Será que
ele gostaria de ver se Martin realmente conhecia coisas ocultas, como
todos diziam?
Ele ouviu seu nome ser chamado. “Irmã o, coloque o dinheiro de
volta onde o encontrou; nã o é nosso; pertence a outra pessoa. ”
O irmã o mais novo tentou continuar com um ar de inocê ncia. "Que
dinheiro? Quem pegou algum dinheiro? ”
Martin sorriu com con iança. “Tire do seu sapato. E mau tirar o que
pertence aos pobres de Jesus Cristo. ”
Pode-se facilmente imaginar o rosto surpreso do culpado e de
todos os outros.7
Outra vez, trinta noviços foram passear no campo com Martin. Ao
con iá -los a Martin, o mestre dos noviços os instruiu a voltar para casa
antes do anoitecer, e Martin prometeu ser pontual.
Partiram a bom ritmo, felizes por terem as longas horas de estudo
interrompidas por uma tarde de liberdade e um agradá vel passeio.
Eles chegaram ao morro chamado de los Amanches e admiraram a
vista. Entã o Martin trouxe omantimentos para piquenique e os jovens
noviços, sentados na grama, nã o precisavam de um convite urgente
para consumir tudo. Quando o almoço acabou, Martin talvez tenha
começado a falar de coisas espirituais, como ele sabia fazer muito bem,
e os rapazes e ele, completamente absortos na conversa, esqueceram
todo o resto.
Nesse ı́nterim, o dia estava chegando ao im e ningué m pensava em
seu retorno ao mosteiro. Quando de repente perceberam que era tarde,
os noviços icaram com medo. Seu mestre de noviços nã o tolerava
tolices! Quando Martin percebeu que horas eram, até ele icou
perturbado com a penitê ncia que seria imposta aos jovens noviços (ele
certamente nã o pensava em seu pró prio castigo) e, acima de tudo, com
o fato de que o atraso deles constituiria uma infraçã o. das regras e das
ordens que recebeu.
Mas ele nã o icou agitado. Ele se recompô s para um momento de
oraçã o, depois mandou recolher as mochilas, dizendo aos noviços que
con iassem em Deus. Por im, ele disse: “No nosso caminho agora,
vamos formar ileiras e partir para casa”.
Desceram da colina e em grupos bem unidos partiram para Lima
em silê ncio, concentrando todas as suas energias na
caminhada. Estavam a meia lé gua do mosteiro quando o sino da Ave
Maria tocou. Entã o, sem saber como, eles se encontraram na porta do
mosteiro mais ou menos no tempo necessá rio para recitar
o Credo quatro vezes.8
O sino tocava para as completas e as religiosas iam a caminho do
coro. Os noviços se juntaram a eles. Eles estavam em seus lugares
quando o sino parou de tocar.
Tudo acontecera tã o rá pido, tã o naturalmente, que eles mal
tiveram tempo de perceber a velocidade prodigiosa de seu
retorno. Quando eles se ajoelharam no coro, Martin'sO convite à
con iança em Deus voltou à s suas mentes, trazendo consigo uma
compreensã o nova e mais profunda das muitas expressõ es de con iança
na bondade de Deus com que abundam esta hora do Ofı́cio Divino. “Tu,
ó Senhor, está s entre nó s. . . nã o nos desampares, ó Senhor, nosso
Deus. . . . Guarda-nos, Senhor, como a menina dos Teus olhos. Proteja-
nos sob a sombra de Tuas asas. . . . Em Tuas mã os, ó Senhor, eu entrego
meu espı́rito. ”
Saı́ram das baias do coro e formaram-se em duplas ilas para
saudar Maria com o canto da procissã o Salve Regina . Tendo-a invocado
como “nossa vida, nossa doçura e nossa esperança”, eles se ajoelharam,
implorando-lhe que “voltasse seus olhos misericordiosos para
nó s”. Talvez entã o se lembrassem das palavras da Santı́ssima Virgem a
S. Domingos, depois de lhe ter dado um sinal da sua protecçã o maternal
para com a Ordem: “Eu sou aquela a quem invocais todas as noites, e
quando cantais eja ergo , també m eu me prostro diante de meu Filho
para orar pela preservaçã o desta Ordem. ”
Se se lembraram de suas palavras, viram por trá s dos
acontecimentos da tarde a mã o de Maria, que protegera
admiravelmente seus ilhos prediletos, e compreenderam o que
signi icava estar sob a proteçã o de seu manto.
Talvez fosse precisamente o que Martin esperava realizar: fazê -los
compreender esta verdade e vê -la claramente na cerimô nia simples
mas solene do Salve Regina , que é uma das cerimô nias mais queridas
ao coraçã o de cada ilho de Sã o Domingos.
Martin conhecia e apreciava o poder da Salve Regina . Ele o usou
uma vez para trazer ao “rebanho sagrado” um cordeiro que persistia em
vagar fora do aprisco. Esse cordeiro recalcitrante chamava-se Anthony
de Mancilla. Martin o conhecia bem, pois morava perto do mosteiro e
frequentou a escola dos Dominicanos do Santo Rosá rio até os dezoito
anos.Anthony entã o passou a estudar retó rica no Colé gio Jesuı́ta de Sã o
Paulo em Lima.
Cada vez que o encontrava, Martin dizia: “Ouça-me; Deus deseja
que você seja um dominicano. ” Martin tinha um olhar perspicaz e se
dizia que um menino tinha vocaçã o, podia-se ter certeza de que era
verdade.
Mas, apesar de ter uma vocaçã o religiosa, Antô nio nã o tinha a
menor vontade de segui-la, e sempre respondia clara e francamente
que o ú nico aspecto de um mosteiro que o agradava era o exterior, e
isso antes de se tornar religioso. . . .
"Muito bem", disse Martin um dia, "mas lembre-se de que, antes de
eu morrer, você entrará na minha sagrada Ordem."
Estas foram as ú ltimas palavras de Martin a Anthony de Mancilla
quando o jovem veio despedir-se dele antes de partir para as provı́ncias
superiores do Peru. Ele saiu em busca de qualquer tipo de trabalho que
pudesse encontrar, desde que fosse diferente do que os frades faziam.
Quase quatro anos se passaram. Anthony foi estabelecido, ou quase
isso, perto da cidade de Cuzco. Numa tarde de sá bado sentiu uma
vontade irresistı́vel de ouvir a Salve Regina entoada. Quando os
religiosos estavam terminando as completas, Antô nio chegou ao
mosteiro de Sã o Domingos em Cuzco. Ele entrou na igreja, dividido
entre sua longa resistê ncia ao chamado divino e este desejo imperioso
que o conduziu quase contra sua vontade.
Mas lá , na igreja de Sã o Domingos, Maria esperava por ele. Nas
primeiras notas da Salve Regina , uma emoçã o intensa e doce invadiu a
alma de Anthony, e ele sabia que daquele momento em diante, nã o
havia nada a fazer a nã o ser admitir que fora conquistado. Quando as
ú ltimas notas do canto morreram, Antô nio havia chegado à decisã o que
havia tentado evitar por tantos anos: confessar-se e pedir a admissã o
imediata na Ordem.
Enquanto os frades voltavam em procissã o para a platé ia do coro,
cantavam a costumeira oraçã o noturna a Sã o Domingos: “O luz da
Igreja, doutor da verdade, rosa da paciê ncia, precioso mar im da
castidade. . . . O pregador da graça, une-nos aos bem-aventurados. ”
Naquele momento a companhia dos bem-aventurados, para
Antô nio, era aquela dupla ila de homens vestidos de branco, seguindo
seu pai com segurança pelo caminho luminoso e reto da verdade,
mesmo que a estrada corresse entre as rosas e os espinhos da
paciê ncia.
Antô nio se aproximou de um dos frades que saı́am do coro -
segundo a lenda, era o padre Anthony de Valverde, professor de
teologia - e pediu que se confessasse. Ele entã o implorou ao Padre que
pedisse ao prior que o aceitasse como postulante sem demora, porque
ele havia decidido nã o deixar a igreja antes de receber o há bito de Sã o
Domingos.
Quanta pressa, depois de tanto contemporizar!
Felizmente, alguns dos frades do mosteiro dominicano de Cuzco
conheceram Antô nio quando ele costumava ir ao mosteiro de Lima
quando menino, e o prior rapidamente reuniu as informaçõ es
necessá rias sobre ele. Anthony de Mancilla recebeu o há bito dos Frades
Pregadores em 23 de agosto de 1639; bem a tempo de cumprir a
previsã o feita por Martin quatro anos antes.
“Antes de morrer”, disse Martin. E em 23 de agosto de 1639, Martin
tinha menos de trê s meses de vida.9 A Virgem iel colaborou com
Martinho para que suas palavras nã o fossem em vã o.
Estes incidentes mostram como Martin cuidou dos jovens
membros da Ordem, nã o só para afastar o perigo do mal espiritual ou
fı́sico, mas també m para aumentar em seus coraçõ es aquela alegria
que é companheira do amor aos bons: “Amor de verdade bom, cheio de
alegria. ”10

Capítulo 11
“Eu chamei você s de amigos, porque todas as coisas que eu ouvi de Meu Pai, eu tenho revelado a
você s.” ( João 15:15).

C
ALKS com os noviços nã o era uma ocorrê ncia diá ria para Martin, nã o só
porque ele nã o tinha tempo su iciente para sair todos os dias, mas
també m porque nã o dedicava todo o seu tempo livre aos noviços.
Apesar da acumulaçã o de funçõ es que lhe eram impostas pela
obediê ncia e apesar das ocupaçõ es suplementares que assumia
voluntariamente por caridade, de vez em quando tinha algumas horas
de lazer. Ele poderia dispor desses perı́odos como quisesse e os
consagrou à amizade.
Seria impossı́vel para Martin nã o sentir a necessidade ocasional da
companhia de uma alma que vivesse em seu pró prio nı́vel. Ele sentia
essa necessidade como todos os que, dia a dia, consomem as suas
energias espirituais na vigilâ ncia constante exigida pelo contacto com
pessoas que constantemente pedem ajuda. Em suas relaçõ es cotidianas
com os enfermos e pobres, com os noviços e estudantes, e até com os
padres de seu mosteiro, Martinho estava sempre dando.
E estranho, quando se percebe que, no que diz respeito à
dignidade, ele ocupava o degrau mais baixo da escada e ali desejava
permanecer por humildade, mas por sua caridade, que o tornava “o pai
de todos”, como seu pró prios irmã os disseram, deu-lhe uma posiçã o
muito mais elevada. Ele era obrigado a olhar um pouco para baixo
sempre que se relacionava com os companheiros, como o pai de uma
famı́lia no cı́rculo dos pequeninos.
Martin estava sempre rodeado de rostos olhando para ele. E ele foi
forçado a olhar para baixo. Ele o fez com extrema simplicidade e
humildade, percebendoque nã o havia perigo em dominar os grupos que
o cercavam, desde que ele mantivesse os pé s no chã o. Mas era muito
natural que sentisse necessidade, pelo menos de vez em quando, de
olhar nos olhos do seu pró prio nı́vel.
A bondade divina, que reveste os lı́rios do campo e alimenta os
pá ssaros do ar, fornecia o companheiro espiritual de que Martin
precisava, um amigo capaz de retribuir a amizade de Martin no plano
da mais alta perfeiçã o espiritual. A Providê ncia escolheu aquele amigo
com cuidado, desconsiderando uma distâ ncia de milhares de
quilô metros e conduzindo-o em uma estranha concatenaçã o de
acontecimentos de um pequeno vilarejo da velha Espanha a Lima.
Quando Joã o Massias chegou a Lima, ainda era muito jovem, mas já
tinha uma rica variedade de experiê ncias.1Ele era ilho de uma famı́lia
nobre, mas conheceu apenas pobreza e tristeza desde a infâ ncia. Sua
famı́lia havia perdido toda a fortuna e John cresceu ó rfã o, cuidado de
seu tio. Ele ganhava a vida cuidando de ovelhas.
Sua humilde posiçã o social parecia uma zombaria de seu sangue
antigo e nobre, mas John havia adquirido amigos
ilustres. Freqü entemente, enquanto observava seu rebanho, Sã o Joã o
vinha para lhe fazer companhia. Sã o Joã o Evangelista era seu patrono, e
era bastante apropriado que ele se interessasse pelo jovem John.
Foi maravilhoso sentar-se com um companheiro como aquele,
conversando familiarmente. Acima de tudo, foi maravilhoso ouvir o
visitante celestial falar do Cordeiro de Deus, do Bom Pastor.
Em tal companhia, as horas passavam rapidamente. Quando o sol
icou enorme e vermelho enquanto se punha em direçã o ao horizonte,
John teve a impressã o de que o dia havia acabado quase antes de
começar. Ele reuniu suas ovelhas, contou-as uma a uma e conduziu-as
ao redil. Nunca faltou um; ningué m jamais foi ferido ou aleijado.
O Amado Discı́pulo iniciou o menino nos segredos do amor divino,
instilando em sua alma simples o amor pelo Cordeiro imaculado e pela
Mã e do Cordeiro de Deus. Maria desceu do cé u levando ao ó rfã o a
ternura maternal de que desde cedo foi privado. O vale em que passou
os seus dias com o seu rebanho e tudo o que nele havia parecia belo e
trans igurado pela presença de Maria.
O amor de Joã o por Maria datava do momento em que ele alcançou
o uso da razã o, que foi muito cedo. Quando ele tinha apenas cinco anos
de idade, ele podia ser con iá vel para cumprir perfeitamente qualquer
dever que lhe fosse con iado. Por volta dessa idade, ele começou a
recitar o rosá rio inteiro todos os dias e decidiu fazê -lo durante toda a
sua vida. Cinco dé cadas foram para ele; cinco dé cadas foram para
pecadores; e cinco dé cadas foram para as almas do purgató rio. Até ao
im da vida manteve a resoluçã o que assumira quando era criança, e
Maria recompensou-o com o dom da pureza e o consolo das suas
visitas.
As visitas de Maria deram frutos. Como um sedento, Joã o bebeu das
palavras e dos ensinamentos de Maria, e seu amor por ela cresceu tanto
que por ela ele teria ido até os con ins da terra.
Um dia, depois de lhe ter mostrado em uma visã o algo da terra
celestial, a Virgem Maria disse-lhe que gostaria que ele deixasse sua
pá tria, cruzasse o oceano e começasse uma nova vida no Novo Mundo,
por amor a ela.
Joã o con iou as ovelhas ao seu tio e embarcou.
Do outro lado do Atlâ ntico fez vá rios trabalhos, deslocando-se
vá rias vezes de um lugar para outro, até que inalmente, depois de
cruzar todo o continente, chegou à costa do Pacı́ ico e chegou a Lima.
Sua longa jornada havia terminado, mas ele ainda nã o tinha atingiu
seu verdadeiro objetivo. Ele foi contratado por um rico proprietá rio de
terras como pastor, seu antigo ofı́cio. Os coló quios com Sã o Joã o
recomeçaram entre as ovelhas. John estava con iante de que St. John
revelaria a vontade de Deus a ele, e dois anos e meio depois ele sabia
com certeza o que era.
Ele pediu ao seu empregador o salá rio que lhe era devido e deu o
dinheiro aos pobres. Em seguida, foi ao mosteiro de Santa Maria
Madalena em Lima, onde, com lá grimas, implorou para ser admitido
como irmã o leigo. Recebeu o há bito dominicano e começou a levar
uma vida que, em seu amor à oraçã o e morti icaçã o, sua caridade
inesgotá vel, seus dons sobrenaturais de milagres, ê xtases e profecia,
era a duplicata da vida de Martinho de Porres no mosteiro de o Santo
Rosá rio.2
Martin icou encantado por passar suas horas livres com John
Massias. Quer fosse a Santa Maria Madalena, quer o Irmã o Joã o fosse ao
Santo Rosá rio, quer fossem juntos a Limatambo, o programa dos
perı́odos de recreio era sempre o mesmo. Eles falaram de Deus,
compartilhando as experiê ncias, dons e graças que a bondade divina
lhes concedeu em abundâ ncia, e se encorajaram a correr pelo caminho
de Deus como atletas que buscam a todo custo ganhar o prê mio.
Falavam sobretudo de seu grande Amigo mú tuo, em cujo nome
estavam unidos pelo vı́nculo de uma santa amizade; Dele que, no
momento de dar a prova suprema do Seu amor aos Seus, os chamou de
“amigos”, porque a Sua morte os libertou da escravidã o do
pecado. Juntos, eles meditaram sobre o amor in inito que O impeliu a
submeter-se a Sua amarga paixã o para que os homens pudessem ser
Seus amigos e ilhos em vez de servos. Para eles se veri icaram as
palavras de Santa Catarina ao prior dos Beneditinos de Cervaia:
“Quando o olho do intelecto se iluminaamado e vê a in inita bondade e
amor de Deus, o sofrimento parece doce e delicioso, e parece
impossı́vel ter prazer em qualquer outra coisa; e a alma busca o
sofrimento por ó dio por sua pró pria vileza. ” Santa Catarina també m
escreveu à Beata Clara Gambacorti: “Quando o seu coraçã o e a sua
mente forem um com o Cristo cruci icado, você amará o sofrimento
como forma de se conformar com o Cristo cruci icado”.3
“Por amor ao ó dio”, isto é , ó dio que brota da consciê ncia da alma de
sua pró pria misé ria e da vı́vida memó ria de suas ofensas contra Deus,
que exigem reparaçã o; mas, acima de tudo, por causa da necessidade de
retribuir o amor com amor: “por amor de amor”. Por esses dois motivos
enraizados no amor, John e Martin encerraram suas sagradas conversas
disciplinando-se a ponto de sangrar.
Nos dias de festa, sua penitê ncia assumia um cará ter totalmente
diferente. Nos dias normais, a ideia predominante de expiaçã o e
reparaçã o dava um tom austero e doloroso à s penitê ncias, mas a
penitê ncia dos dias de festa tinha um tom alegre e exultante para
Martinho e seu santo amigo. Foi o combustı́vel jogado no fogo do amor
para que pudesse queimar com mais intensidade. Em dias de festa
solene, Martin colocava uma camisa de cabelo que chegava aos joelhos
e puxava as correntes de ferro com tanta força ao redor do corpo que
mal conseguia andar ereto. Com alegria transbordante, ele ofereceu
este presente de um amigo ao seu Amigo.4
Alé m de John Massias, Martin tinha outro amigo ı́ntimo, um
religioso franciscano de nome desconhecido. Martin compartilhou
horas de sagrada conversaçã o e penitê ncia com ele també m, sob um
cruci ixo preso ao tronco de uma á rvore no claustro dos franciscanos.5
A caridade consiste em receber e també m em dar. Isso é
especialmente verdadeiro no sentido espiritual. Santa Catarina
a irmou isso com grande clareza em umcarta ao Abade de Sant'Antimo:
“Para manifestar a magni icê ncia de Deus, e por respeito à justa ordem
no exercı́cio da caridade, é necessá rio que os servos de Deus usem e
compartilhem entre si as luzes, graças e dons. recebem de Deus, para
que a luz e a magni icê ncia da doce Verdade se mostrem in initas. . . e
nos humilhamos reconhecendo a luz e a graça de Deus nos servos de
Deus. Ele os colocou na terra como fontes; um tipo de á gua vem de um,
outro tipo de outro. Eles estã o na terra para adquirir vida para si
pró prios e para consolar e refrescar os outros servos de Deus que tê m
sede dessa á gua, que sã o os inú meros dons e graças que Deus concede
a Seus servos ”.6
Foi o que ocorreu durante os perı́odos de recreio de Martin e seus
amigos. Em uma partilha mú tua dos dons de Deus, eles adoraram e
louvaram o Doador e aprofundaram sua pró pria humildade.
Segundo Santa Catarina, este é um dos objetos mais importantes da
caridade fraterna: “que nos humilhemos, reconhecendo a luz e a graça
de Deus nos servos de Deus”. Quanto mais alto sobe uma alma, mais a
caridade deve cumprir seu dever imperativo. E admirá vel escalar as
alturas da perfeiçã o, mas sentir que se está isolado, quase separado do
resto dos homens, pode induzir à tontura e à tentaçã o de olhar para
baixo para a grande massa da humanidade que é incapaz de avançar
pela encosta e difı́cil caminho de santidade.
Este perigo de isolamento é muito diminuı́do em uma comunidade
religiosa. Todos existem para um propó sito - atingir a perfeiçã o - e nã o
há como saber quem atingiu o mais alto grau de perfeiçã o e quem ainda
está no nı́vel mais baixo porque, na maior parte, o progresso espiritual
está oculto aos olhos humanos. Mas uma comunidade religiosa é um
pouco como umfamı́lia com numerosos ilhos, cada um dos quais com
capacidades variadas. Por sua diversidade, os indivı́duos se
complementam e formam um todo harmonioso. Os membros mais
fortes icam felizes em ajudar os mais fracos, e os membros mais fracos
icam felizes por algué m estar lá para ajudá -los, sem que ningué m se
considere um “super-homem”. E quando ningué m se considera um
super-homem, resguarda-se a humildade e, com ela, a caridade.
Martin subiu muito no caminho da perfeiçã o, a Divina Providê ncia
deu-lhe a companhia de vá rias almas como ele para protegê -lo da
vertigem das alturas.
Martin ainda nã o tinha trinta anos quando o arcebispo Turibius
morreu, e o arcebispo devia ser contado entre os santos.
Martin tinha pouco mais de trinta anos quando outro santo fechou
os olhos em Lima: Francisco Solano, ilho de Sã o Francisco de Assis e
maravilhoso apó stolo do Novo Mundo.
Martin ainda nã o tinha quarenta anos quando a dominicana Rosa
de Santa Maria encerrou sua breve e angelical existê ncia. Sem dú vida,
ele conheceu a sagrada terciá ria, pois ela freqü entava com frequê ncia a
igreja dominicana do Santo Rosá rio e seu diretor espiritual era o padre
John de Lorenzana, que, como provincial, havia recebido Martin na
Ordem. Alé m disso, Martin certamente testemunhou a homenagem
triunfante prestada à Santa no momento de sua morte. Diz-se que toda
a populaçã o de Lima correu para a casa em que a alma da virgem pura
respondeu ao chamado de seu esposo, e uma multidã o enorme
acompanhou seu corpo à igreja dos Frades Pregadores. Martin
provavelmente esteve presente dois anos depois na exumaçã o e
translaçã o do corpo de Rosa, e cheirou o perfume daquele corpo
incorrupto, daquele vaso frá gil que havia servido aovirgem de Lima em
sua prá tica viril de morti icaçã o e caridade para com o pró ximo sob o
impulso de seu ardente amor a Deus.
Martin era entã o um homem maduro, no auge de seus poderes. E
prová vel que se sentisse um fraco ao considerar a coragem indomá vel
da pequena Rose. Da mesma forma, o pensamento das jovens virgens
má rtires durante os primeiros sé culos do cristianismo inspirou Sã o
Gregó rio os seguintes sentimentos de humildade: “O que diremos os
barbudos e fracos, vendo as jovens passarem pelo ferro ao reino dos
cé us ? ”7
Martin estava em boa companhia, rodeado de tantas almas
privilegiadas que aspiravam à s alturas da perfeiçã o.
Havia outra alma intimamente unida à sua, embora sem suas
pró prias aspiraçõ es à s alturas da santidade. Sua irmã Joan estava
sempre pronta para conceder até mesmo seus desejos expressos pela
metade e para ajudá -lo a realizar seus planos. Joan de Porres era casada
e morava nos subú rbios de Lima, quase no interior. Quando a prontidã o
com que Martin deu sua pró pria cama aos enfermos ou feridos que
encontrou nas estradas foi inalmente considerada excessiva por seus
superiores, eles o proibiram de trazer estranhos para o mosteiro. Nesse
momento, Martin pediu à irmã que abrigasse seus protegidos.
Era uma coisa estranha pedir a uma jovem esposa que izesse. Ela
arriscou ver sua casa transformada em um hospital para casos graves e
urgentes. Talvez a prudê ncia devesse tê -la aconselhado a recusar. Mas
Joan concordou. Ela provou ser digna de ser irmã de Martin. Em certo
sentido, ela era ainda mais heró ica do que Martin, porque corria o risco
de irritar o marido trazendo germes para uma casa onde havia
crianças. Instada por seu santo irmã o, ela fechou os olhos para o perigo
e con iou na providê ncia de Deus.
Os acontecimentos provaram que sua con iança era bem
fundada. Apesar de ter transformado sua casa em uma ilial da clı́nica
de primeiros socorros de Martin, nenhum mal jamais aconteceu a ela
ou a sua famı́lia.8
Naturalmente, Martin estava vigilante. Mesmo sem parecer fazer
isso, ele sempre cuidou de si mesmo.
Um dia, a serenidade da pequena famı́lia foi ameaçada por uma
discussã o infeliz entre a esposa e o marido, que parecia estar levando a
um sé rio mal-entendido. A discussã o começou durante uma reuniã o de
famı́lia na casa de Joan e seu marido. Vendo que a discussã o estava se
acirrando, os demais membros da famı́lia decidiram que o melhor a
fazer era deixar seus an itriõ es em paz e começaram a selar suas mulas
para a volta a Lima.
Martin, ao contrá rio, achou melhor conversar com Joan e seu
marido e convencê -los da futilidade de sua dissensã o. Entã o ele
apareceu de repente, uma bengala na mã o e no braço uma grande cesta
transbordando de coisas boas - um bom bolo, frutas e vinho.
“Que a paz de Deus esteja convosco!” ele chorou alegremente como
se nem mesmo tivesse notado a tensã o lançando uma mortalha sobre
os espı́ritos do grupo. “E uma longa caminhada aqui! Mas trouxe
algumas coisinhas para comer. Vamos almoçar juntos? ”
As mulas foram tiradas da sela e enviadas de volta aos campos para
pastar. Jovens e velhos formaram um cı́rculo ao redor do irmã o e sua
cesta. Mas a nuvem de discó rdia ainda nã o se dissipou. Seus rostos
ainda estavam escuros.
“Eu sei por que você tem rostos tã o preocupados”, disse Martin, e
ele detalhou os pontos do argumento de forma concisa e exata.
Seus parentes olharam para ele estupefatos. Martin conhecia todos
os detalhes da situaçã o, mas como ele poderia ter seguido a discussã o
deles enquanto caminhava pela estrada empoeirada que levava à casa
deles?
Apó s re lexã o, no entanto, eles perceberam que nã o era a coisa
mais estranha. O que eles realmente nã o conseguiam entender era por
que o assunto de sua discordâ ncia parecia perder toda a sua
importâ ncia quando era apresentado a eles de forma tã o clara e
exata. Foi esvaziado pelo simples fato de ser enunciado, como uma vela
no mastro ica pendurada quando o vento diminui.
A paz foi restaurada, o grupinho caiu sobre as provisõ es que Martin
tirou de sua famosa cesta, e uma longa e alegre conversa se seguiu em
uma atmosfera de serena intimidade.
Quando a noite caiu, Martin garantiu à irmã que ela nã o precisava
se preocupar com ele, pois ele tinha um lugar para dormir. Na manhã
seguinte, antes de partir novamente para Lima, veio despedir-se dela e
assegurar-se de que a paz tinha durado.9
Pouco depois, Joan teve a oportunidade de ir para Lima. Ela
conheceu um dos irmã os que trabalhavam com Martin na enfermaria e
sentiu-se impelida a contar a ele o que seu irmã o havia feito para
restaurar a paz em sua casa.
“Mas eu nã o entendo,” o irmã o a interrompeu. “Martin nã o saiu da
enfermaria na tarde e noite de que você está falando. Tı́nhamos vá rios
pacientes que precisavam de atençã o constante e cuidamos deles um ao
outro, irmã o Martin e eu, como sempre fazemos! ”
Mais uma vez, o poder divino proporcionou a presença de Martin
para que ele pudesse levar o auxı́lio de sua caridade onde houvesse
necessidade.10
Martin encontrou maneiras de ajudar seu vizinho materialmente
com uma generosidade verdadeiramente prodigiosa. Nã o menos
surpreendente foi a efusã o da sua caridade na amizade, naquela forma
de amizade que consiste em ajudar os outros a avançar na santidade e é
uma antecipaçã o da alegre comunhã o dos bem-aventurados nos
mé ritos uns dos outros.
“Pois por tantos mais há quem diz 'nosso', tanto mais do bem cada
um possui, e mais do amor queima naquele claustro.”11
Capítulo 12
“Assim como eu te amei, que você s també m se amem.” ( João 13:34).

UMA
Na hora do jantar, Martin geralmente icava inquieto. Sua proverbial
calma parecia abandoná -lo. Uma estranha agitaçã o, quase uma
impaciê ncia, tornou-se evidente nele.
Naquela hora do dia, os pobres começaram a se reunir na porta do
mosteiro, e Martin pareceu ouvi-los chegando. Ele nã o teve paz até
estar no meio deles.
Munido de uma xı́cara e uma chaleira, Martin percorreu o
refeitó rio para recolher tudo o que pudesse encontrar. Sua pró pria
porçã o foi para a chaleira primeiro. Pã o e á gua bastavam para ele. Mas
outros devem ser servidos.
Quando a panela foi enchida, ou quando pelo menos ele havia
recolhido tudo o que havia para comer da refeiçã o da comunidade,
Martin foi para a cozinha da enfermaria, onde seus clientes o
esperavam. Era uma clientela variada e multicolorida: espanhó is e
negros, ı́ndios e mulatos, doentes e sã os - até cachorros e gatos! E,
como se nã o bastasse, havia uma longa ila de tigelas pertencentes aos
pobres da vizinhança que nã o podiam andar. Algumas almas bondosas
trouxeram suas tigelas para o mosteiro.1
Um caminhã o de comida teria sido necessá rio para alimentar a
multidã o; nã o uma mera chaleira e uma xı́cara! Mas Martin nã o icou
desanimado.
Numa quarta-feira, um dia de abstinê ncia para o mosteiro, Martin
foi buscar alimentos para seus pobres no pequeno refeitó rio reservado
aos indispostos, mas nã o acamados. Eles foram, é claro, dispensados da
abstinê ncia. Mas, naquele dia especı́ ico, os jantares religiosos neste
refeitó rio foram muito mais numerosos do que o irmã o Sebastian, o
enfermeiro assistente, previra ao providenciar o jantar. Martin chegou
no pior momento possı́vel, enquanto o irmã o Sebastian estava absorto
no difı́cil problema de dividir uma pequena quantidade de comida em
muitas porçõ es, mas porçõ es que nã o pareceriam muito reduzidas nos
pratos.
“Realmente, você nã o pode levar nada pelos pobres”, protestou o
irmã o Sebastian, “pois nã o tenho nem o su iciente para o refeitó rio!” E
ele continuou dividindo e subdividindo as porçõ es como se fosse
confrontado com uma tarefa desesperada.
“Nã o se preocupe, irmã o”, respondeu Martin, movido pela pena e
um pouco divertido també m pela di iculdade do irmã o
Sebastian. “Você nã o deve icar desanimado ou abatido por um
problema tã o pequeno. Deus certamente pode prover, visto que Ele
sustenta o mundo. ” Martin tirou a concha da mã o de Sebastian e
continuou preparando os pratos ele mesmo. Havia o su iciente para
todos, e as porçõ es eram generosas. També m sobrou muita coisa para
os pobres.2
Martin nunca icou desanimado com o grande nú mero de pobres
quando veio diante deles com sua iel xı́cara e chaleira. O simples fato
de estar com seus irmã os pobres enchia seu coraçã o de alegria. Todas
as sombras de inquietaçã o desapareceram. Martin voltou a ser ele
mesmo. Ele olhou para a pequena multidã o e sorriu. Ele os saudou com
sua saudaçã o habitual: “A salvaçã o, acima de tudo. Vamos salvar nossas
almas pelos mé ritos do sangue de Jesus Cristo! ”
Antes de distribuir o alimento, ele o abençoou, dizendo
simplesmente: “Que Deus o aumente por Sua in inita misericó rdia!” e
entã o começou a encher os copos, otigelas, as pequenas
panelas. Francis de Santa Fe, que o ajudava muitas vezes, observava
atentamente a quantidade de sopa na caldeira de Martin. Nã o dava para
mais de quatro pessoas, ou seis no má ximo. Mas os pobres
continuaram a chegar e Martin continuou a servir a sopa até encher a
ú ltima tigela do ú ltimo de seus pobres. No inal, todos tiveram o
su iciente “e todos icaram satisfeitos, até os cã es e os gatos”, observou
o irmã o Ferdinand de Aragoné s.3E como poderia ser diferente? Martin
desistiu de sua pró pria refeiçã o e, em seguida, chamou as riquezas
in initas da misericó rdia divina em seu auxı́lio.
Seria difı́cil determinar quantos pobres eram habitualmente
alimentados por Martin no mosteiro do Santo Rosá rio. O bem-
aventurado Joã o Massias alimentava cerca de duzentas pessoas todos
os dias no mosteiro de Santa Maria Madalena.
Quando a fome dos pobres foi satisfeita, Martin recuperou a
calma. Mas sua caridade nã o parou por aı́. Ele continuou revolvendo
grandes planos em sua mente. Da porta do mosteiro, Martin olhou para
longe. As necessidades de seus irmã os o chamaram e ele foi.
Em Callao, porto de Lima, havia um destacamento de soldados que
ningué m atendia e que estavam quase morrendo de fome. Martin
achou injusto deixá -los morrer de fome. Todos os dias ele fazia a
viagem de Lima a Callao - cinco milhas na ida e oito na volta -
sobrecarregado de provisõ es, no calor do sol e na poeira da estrada. Ele
o fez pelo tempo que foi necessá rio, o que durou vá rios meses.4
Hoje parece estranho que um punhado de soldados pudesse correr
o risco de morrer de fome se nã o fosse pela caridade de um irmã o
leigo. Mas no Peru nos sé culos dezesseis e dezessete nã o era
estranho. Ainda havia muito a ser feito naquele perı́odo. A estrutura
social do Novo Mundo era como uma corrente de lavaainda descendo as
encostas de uma montanha, uma massa informe ainda exigindo a
passagem do tempo antes de adquirir uma forma está vel. Os arranjos
provisó rios apó s a conquista deixaram muito a desejar. A vida nas
possessõ es ultramarinas era cheia de fatores desconhecidos, e aqueles
que deixavam a pá tria para correr seus riscos eram, em sua maioria,
homens sem escrú pulos. Nã o houve movimento organizado de
imigraçã o. Os mais fortes ou mais tirâ nicos apoderaram-se das fontes
de riqueza, enquanto os mais fracos e tı́midos, embora tivessem
sobrevivido aos perigos da viagem do Velho Mundo, viviam na misé ria
porque nã o conseguiram encontrar um meio de subsistê ncia no novo
terra.
Martin ajudou muitos desses imigrantes que nã o haviam
encontrado uma maneira de resolver suas pró prias di iculdades. Ele os
alojou temporariamente na enfermaria, foi procurar trabalho para eles
e permitiu que saı́ssem do mosteiro somente quando ele tivesse feito
os arranjos satisfató rios para eles.5
O caso de John Vá zquez foi tı́pico. Ilustra a caridade inteligente
exercida por Martin. Nã o se contentou em dar apenas a ajuda
indispensá vel no momento de necessidade urgente, mas procurou uma
forma de assegurar o futuro da pessoa necessitada com o seu pró prio
trabalho.
Um dia, em 1635, Martin descobriu Joã o Vá zquez no pá tio da igreja
do mosteiro do Santo Rosá rio. Ele o notou especialmente entre os
outros imigrantes porque ele era muito jovem e muito pobre. John tinha
quatorze anos e nã o tinha nem uma camisa nas costas.
"Onde você nasceu?" perguntou Martin.
“Na cidade de Jerez de los Caballeros, na provı́ncia da Estremadura,
o reino da Espanha”, respondeu John apaticamente. Ele se perguntou
quantas vezes ele havia repetido aquela histó ria tediosa desde o dia em
quedeixou a Espanha. Mas o que tinha acontecido?
"Você tem uma troca?"
"Nã o."
"Entã o venha comigo."
Os olhos de John se arregalaram. Seria possı́vel que esse irmã o
realmente pretendesse ajudá -lo?
Martin o levou para sua pró pria cela, deu-lhe uma camisa limpa
para vestir e alimentou-o, “sofrendo muito”, disse John, ao ver algué m
tã o jovem em tal sofrimento. Quando John se sentiu um pouco melhor,
Martin disse que ele poderia voltar todos os dias para comer e dormir,
mas que precisava pensar em escolher um ofı́cio para poder ganhar a
vida na cidade.
Joã o aceitou com gratidã o a oferta de comida e hospedagem, pois
nã o tinha para onde ir em Lima. Mas a questã o de um comé rcio o
deixou perplexo. Um era tã o bom quanto o outro porque ele nã o sabia a
quem recorrer para aprender um.
“Entendo”, disse Martin. "Vou ter que cuidar disso para você ."
Martin era um "mestre barbeiro". Visto que ele tinha que lançar
John em algum tipo de comé rcio, era natural que ele lhe ensinasse o seu
pró prio. Deu-lhe vá rias aulas teó ricas e depois, para lhe dar prá tica,
permitiu que John izesse a barba e cortasse o cabelo.6
John nã o deixou Martin depois de dominar seu ofı́cio. Ele foi
conquistado pela bondade do irmã o negro e implorou para icar com
ele como assistente.
Martin icou maravilhado. A essa altura, suas obras de caridade
haviam se multiplicado e se ampliado, e a ajuda de um rapaz inteligente
e sé rio como John seria muito ú til. John justi icou a con iança de Martin,
e Martin con iou a ele um dos setores mais delicados de sua obra de
caridade, o de ajudar famı́lias que haviam conhecido dias melhores.
Martin tinha uma longa lista desses pobres. Eles tinhamantes eram
tã o conhecidos que agora nã o tinham coragem de pedir esmolas. E a
lembrança de uma vida tranquila tornava sua misé ria ainda mais
dolorosa.
Em sua maioria, eram viú vas ou ó rfã os de nobres espanhó is que
ocuparam cargos importantes no exé rcito ou no governo. O orgulho dos
conquistadores e governantes era forte demais em seus coraçõ es para
permitir que passassem a mendigar em pú blico. Em vez de chamar a
atençã o para sua condiçã o atual, preferiram conviver o melhor que
puderam na obscuridade, apesar do fato de que a ajuda poderia ter
chegado a eles se suas necessidades fossem conhecidas. A esses pobres,
que nada pediam, era preciso dar em segredo, em silê ncio.
Se Martin fosse menos santo e, portanto, menos humilde, ele
poderia ter encontrado prazer em fazer aqueles que ajudou ver que as
posiçõ es normais foram invertidas: que ele, um membro da desprezada
raça negra, estava fornecendo o sustento dos orgulhosos brancos.
Se Martin fosse menos santo, ele poderia ter demonstrado o pior
gosto possı́vel em um espı́rito de luta de classes.
Mas Martin nã o tinha nada pelo que lutar. Ele viu na diversidade da
fortuna uma manifestaçã o da providê ncia de Deus, e amou todas as
almas sem restriçã o, por amor de Deus. Assim, com delicadeza
inspirada na caridade, escondeu-se atrá s de Joã o Vá zquez, e sua ajuda
à s famı́lias outrora poderosas e ricas passou pelas mã os brancas do
jovem espanhol.
A ajuda foi concedida em dinheiro, comida, roupas e velas. Todas
as quintas-feiras, durante dois anos e meio, John Vá zquez percorreu as
famı́lias apoiadas por Martin.7
Outra categoria de necessitados que despertou a compaixã o do
irmã o negro foram os que estavam na prisã o. Nesse perı́odo da histó ria,
quem caiu nas mã osda lei, nã o importa qual tenha sido seu crime, era
verdadeiramente digno de pena.
Martin visitava as prisõ es periodicamente. Trouxe comida e roupa,
mas acima de tudo se esforçou por ajudar aquelas almas enredadas
pelo mal e suas consequê ncias a encontrar o caminho da verdadeira
liberdade, da libertaçã o do pecado.
Uma vez, quase no inal de uma de suas visitas, ele percebeu que
havia icado sem provisõ es e que dois prisioneiros nã o haviam recebido
nada.
“Já volto”, disse aos prisioneiros.
Saiu da prisã o e penhorou seu velho chapé u, desbotado pelo sol e
deformado pela chuva, ao primeiro tra icante de roupas velhas que
encontrou na rua. O que o negociante poderia ter pago por tal
antiguidade? Alguns centavos, quase o su iciente para comprar um
pouco de pã o. Mas isso era tudo que Martin precisava no momento. Ele
comprou o pã o e voltou para a prisã o para consolar seus amigos.8
Um deles, um espanhol chamado John Gonzá lez, pediu a Martin um
dia que orasse por ele porque havia sido condenado à morte e a ideia
de enfrentar o julgamento de Deus o assustava. Quando chegou ao
mosteiro, Martin começou a rezar e, um pouco depois, mandou dizer a
John que nã o se preocupasse; ele nã o seria executado. Mas no dia
seguinte os guardas levaram John da prisã o para o local da
execuçã o. Enquanto ia para a forca em meio aos insultos da turba, o
pobre John se perguntou como Martin poderia ter enganado os dois
daquela maneira. No momento em que o carrasco se preparava para
colocar o laço no pescoço, uma igura agitando um lenço branco
apareceu na varanda do palá cio do vice-rei. Era a condessa de
Chinchó n, esposa do vice-rei. Ela se valeu de seu privilé gio e concedeu
seu perdã o.
John Gonzá lez foi libertado, mas seu futuro parecia muito
incerto. Ele nã o tinha dinheiro e seuregistro de prisã o nã o poderia ser
oferecido como recomendaçã o na busca de trabalho. Martin cuidou de
tudo. Ele encontrou uma maneira de John ganhar a vida e deu-lhe o que
precisava para começar, mais trinta reais para suas despesas iniciais.9
Ser salvo da execuçã o quando toda esperança parece perdida é
certamente motivo de alegria, mas é melhor ainda nã o cair nas mã os da
justiça. Foi o que dois homens pensaram quando buscaram asilo na cela
de Martin. O o icial da corte e os guardas que os perseguiam
apareceram na porta da cela de Martin para fazer uma busca. Os dois
patifes, culpados ou inocentes, tremiam em um canto da cela. Se a
polı́cia entrasse, nã o haveria escapató ria. Se ao menos Martin nã o
abrisse a porta!
Martin começou a orar e os dois fugitivos oraram. Entã o ele abriu a
porta e permitiu que os guardas entrassem. “Você gostaria de ver o que
há nesta sala? Por favor, olhe ao seu redor. Nã o há nada aqui a nã o ser
esses cestos de roupa suja. ” Os guardas nã o esperaram por um
segundo convite. Eles tinham visto os malfeitores correndo em alta
velocidade em direçã o ao mosteiro, e quem senã o Martin poderia ter
lhes dado asilo? Entã o eles viraram tudo de cabeça para baixo. Eles
foram até os cestos e levantaram a roupa para ver se havia algué m
escondido embaixo. Os fugitivos escondidos nas cestas, realmente
sentiram as mã os dos guardas tocando-os e pensaram que tudo estava
perdido, mas os guardas nã o podiam ver e sentir nada alé m da
roupa. Eles entã o partiram, implorando o perdã o de Martin por tê -lo
perturbado.10
Alé m dos criminosos procurados pela polı́cia, Martin
freqü entemente levava para sua cela os pobres doentes abandonados
ou, ainda mais freqü entemente, os homens que ele havia encontrado
feridos na rua apó s uma briga, briga ou agressã o. Dois ou trê s desses
doentes ou feridos quase sempre podiam ser encontrados em seu
quarto, que era o depó sito da enfermaria. Para ter certeza, eles nã o
eramdeitado em sua cama de pranchas, mas em camas confortá veis
completas com colchõ es, travesseiros e lençó is. Ele os alimentava com
comida boa e substancial para ajudá -los a recuperar as forças e até
tentava levar em consideraçã o seus gostos, desejos ou caprichos.11
Algué m na comunidade, entretanto, nã o via com bons olhos esse
tipo de tratamento de primeiros socorros dentro das paredes do
mosteiro. Talvez tenha sido o irmã o que reclamou porque dava muito
trabalho para lavar os lençó is. Certo, era um pouco irregular trazer
todos os tipos de pessoas para um mosteiro, mas por um tempo os
superiores deixaram Martin fazer isso. Entã o, uma pequena tempestade
começou a se formar e, um dia, o raio caiu: os enfermos devem ser
retirados do almoxarifado.
Foi entã o que Martin pensou em pedir a ajuda da irmã . Joan
concordou e Martin transferiu seu pequeno hospital para a casa dela. A
casa icava a cerca de um quilô metro e meio do mosteiro. Martin nã o
considerou isso um inconveniente grave, já que o incô modo de ir e vir
seria dele. Em casa de Joana, os enfermos tinham a vantagem da
quietude e do ar puro do campo, que apressavam a
convalescença. Martin ia lá todos os dias para visitá -los e cuidar
deles. Se surgisse uma ocasiã o em que ele nã o pudesse fazê -lo, ele
mandava seu antigo professor, Marcel de Rivero, que o ocupava de bom
grado.
Uma noite, a poucos passos da porta do mosteiro, Martin
encontrou um ı́ndio que havia sido esfaqueado e quase sangrou até a
morte. Era tarde demais para levá -lo à casa de Joan; o paciente teria
morrido antes de alcançá -lo, pois sua vida estava por um io. Marcel de
Rivero nã o foi encontrado.
Levando tudo em consideraçã o, Martin sentiu que a gravidade do
perigo justi icava pelo menos uma exceçã o à regra geral e carregou o
ı́ndio para seu quarto, como havia feito antes da proibiçã o ser emitida,
com a intençã o de transferi-loligue para ele na casa de Joan no dia
seguinte.
Mas uma das almas zelosas de sempre foi direto ao prior para
dizer-lhe que Martin estava desobedecendo à s ordens que recebera e
estava mais uma vez levando o doente para sua cela. Em alguns
momentos, uma ordem categó rica veio do prior, exigindo que Martin
transferisse o ferido para outro lugar imediatamente.
Felizmente, Martin teve tempo de limpar, medicar e curar a
ferida. Ciente da sentença de expulsã o que pesava sobre seu paciente,
implorou a Deus que o curasse imediatamente, pois deveria expulsá -lo
do mosteiro.
No dia seguinte, Marcel de Rivero foi visitar o ı́ndio e o encontrou
tã o bem e forte como se nunca tivesse perdido uma gota de sangue. Ele
removeu as bandagens e descobriu que apenas uma cicatriz ina e rosa
permanecia. Martin, entretanto, recebeu uma penitê ncia e a executou
em completa paz.
Poucos dias depois, o prior teve a oportunidade de ligar para
Martin para vê -lo. Martin aproveitou a oportunidade para pedir perdã o
ao seu superior por tê -lo desagradado. Mas como era possı́vel,
perguntou o prior, que Martin pudesse ter desobedecido a uma ordem
tã o de inida?
Martin explicou o ocorrido, dizendo que a urgê ncia e a gravidade
do caso o levaram a presumir a permissã o do prior. Em outras palavras,
ele havia julgado que o preceito da caridade tinha precedê ncia sobre o
preceito da obediê ncia. Ele implorou ao prior que lhe dissesse se estava
ou nã o errado em seu julgamento, para que ele soubesse como agir em
outra ocasiã o.
O prior icou em silê ncio. O caso nã o havia sido apresentado a ele
sob essa luz pelo irmã o que tinha vindo reclamar dele. Ele lamentou ter
ouvido a histó ria; ele lamentou ter agido sob a impressã o causada pelas
palavras do irmã o; ele lamentou ter forçado Martin a remover o homem
ferido e ter dado a Martin uma penitê ncia imerecida.
“Você julgou corretamente, irmã o,” ele inalmente disse. “Faça a
mesma coisa da pró xima vez.”12
Os sofrimentos de seus irmã os e irmã s em Cristo tiraram Martin do
mosteiro e pouco a pouco o arrastaram para a corrente da vida na
cidade. Como preparaçã o para um campo de batalha mais amplo, ele
forjou seus primeiros braços atrá s das paredes do claustro, ajudando
seus irmã os. Depois que Deus concedeu a Martin o presente de Sua
presença no segredo de sua cela, Ele veio até a porta e o convidou para
sair. Ele agora se apresentou a Martin na pessoa dos pobres.
Até mesmo a apariçã o de quem batia à porta do mosteiro
proclamava a in indá vel misé ria da nova e rica cidade. Depois, havia os
doentes que nã o eram cuidados e abandonados em suas cabanas; as
vı́timas de violê ncia caı́das à beira da estrada; a nobreza sem um tostã o,
vivendo em privaçã o oculta fora do alcance de ajuda por causa de seu
orgulho; os prisioneiros nas prisõ es imundas.
Mas um determinado grupo estimulou a caridade de Martin de
uma maneira especial: as crianças abandonadas e os ó rfã os. Em seus
primeiros anos, Martin sabia o que signi icava ser uma criança sem
famı́lia, ser forçado a depender da ajuda de estranhos, ser tratado sem
afeto, sentir-se di icilmente tolerado.
Havia muitas crianças sem famı́lia nas ruas de Lima e elas se davam
o melhor que podiam. As autoridades deveriam ter cuidado deles, pelo
menos pelo fato de que essas crianças negligenciadas seriam uma fonte
de problemas quando crescessem; mas eles nã o izeram nada.
Naquela é poca, os problemas sociais nã o eram discutidos como
hoje. Martin nunca estudou questõ es sociais. Mas Martin viu, tã o
claramente quanto sabia que dois mais dois sã o quatro, que se essas
crianças abandonadas fossem deixadas à sua pró pria sorte, nunca
conheceriam a felicidade de amar a Deus, de vivering em sua
amizade. Mais cedo ou mais tarde, eles se tornariam delinquentes. Do
ponto de vista da sociedade, pelo menos da sociedade de seu tempo,
um delinquente era apenas um indivı́duo que incomodava os outros e,
portanto, acabaria sendo justamente privado de sua liberdade. Do
ponto de vista cristã o, o delinquente é o homem que perdeu todo o
sentido da sua vida porque nã o atingiu aquela perfeiçã o do seu ser que
o torna digno aos olhos de Deus de receber dá divas superiores à s das
outras criaturas. na Terra. Isso é tã o triste quanto uma promessa
violada, como uma lecha nã o atingiu o alvo.
Esta tragé dia pesou insuportavelmente na alma de Martin. Ele nã o
podia suportar a ideia de que homens como ele, capazes de viver, como
ele, em um mundo tornado luminoso e alegre pela graça de Deus,
deveriam permanecer longe de Deus, tã o distantes que nem mesmo
suspeitavam da existê ncia de Deus. Ele nã o podia suportar o
pensamento das almas que permaneceram fora da festa de casamento
nas trevas exteriores e na noite fria do pecado.
Ele sabia muito bem que, se a providê ncia divina nã o o tivesse
conduzido pela mã o desde os primeiros anos, ele també m poderia ter
sido um deles. Ele també m sabia que a providê ncia usava homens para
realizar seus planos ocultos. Ele percebeu que foi um instrumento
escolhido pela providê ncia para mostrar aos pequeninos abandonados
de Lima o caminho para a casa de seu Pai celestial.
Assim que percebeu tudo isso, a ú nica coisa que pô de fazer foi
trabalhar. Foi um empreendimento completamente diferente de tudo
que Martin havia feito até aquele momento. Nã o seria um
empreendimento pequeno; nã o como ajudar os pobres que iam e
vinham, ou visitá -los em suas casas, ou trazer dois ou trê s doentes para
sua cela por um curto perı́odo de tempo. Era uma questã o de reunir um
grande nú mero debebê s e crianças da rua e educando-os. Eles
precisariam de ajuda constante por um longo perı́odo de tempo para
que seu futuro pudesse ser assegurado. Resumindo, signi icava
estabelecer um orfanato.
Hoje isso nos parece a coisa mais natural do mundo. Mas entã o nã o
deve ter parecido tã o simples, uma vez que nem as autoridades civis
nem eclesiá sticas se dispuseram a assumir a tarefa. Martin apelou para
ambos e nã o recebeu nenhum incentivo. Em sua opiniã o, a ideia era
pura loucura. Quanto à s autoridades de sua pró pria Ordem, nã o havia
esperança de que inanciassem o orfanato por causa dos meios restritos
de que dispunham. Tudo o que puderam fazer foi dar permissã o a
Martin para buscar os fundos necessá rios, mas com as dı́vidas que
pesavam sobre a comunidade, ele nã o podia esperar obter qualquer
ajuda inanceira deles. Em suma, as perspectivas estavam longe de ser
animadoras.
Se fosse apenas uma fantasia passageira ou alguma vaga ideia
ilantró pica que inspirou Martin, ele teria sido superado pelos
primeiros obstá culos. Mas seu amor pelas almas brotou de seu amor
por Deus. Seu respeito pelas almas baseava-se em sua veneraçã o pelo
sangue de Cristo, derramado para nossa redençã o. Sua saudaçã o:
“Salvemos nossas almas pelos mé ritos do sangue de Jesus Cristo”, nã o
foram meras palavras. Expressava seu desejo vivo e infalı́vel de que o
preço de nossa redençã o nã o fosse desperdiçado por uma só
alma. Quem se olha no espelho da fonte da qual brotam todas as coisas,
encontra em Deus a fonte da dignidade de suas criaturas, e nas
criaturas a bondade de Deus, e “sente que deve amar o pró ximo como a
si mesmo, porque veja que Deus os ama com um amor in inito. ”13
Nosso amor pró prio é o mais profundamente enraizado de todos os
nossos afetos. Nunca renunciamos, nunca podemos renunciar, ao desejo
do nosso pró prio bem. Superamos obstá culoso que, no caminho de
nosso vizinho, pareceria dez ou vinte vezes alé m de nossas forças. E por
isso que o Evangelho exige que amemos o nosso pró ximo como
amamos a nó s mesmos.
Pode-se realmente dizer que Martin amava seu pró ximo como
amava a si mesmo, porque nunca passou por maiores sofrimentos por
si mesmo do que pelo vizinho. E pelo menos para seu pró prio bem-
estar fı́sico, Martin nã o consumia nem mesmo uma pequena fraçã o da
energia que usava para servir ao vizinho. Tudo o que ele fez por seu
vizinho foi feito sob o impulso da mais genuı́na caridade.
Uma prova autê ntica desse fato foi o sucesso de seus esforços pelas
crianças ó rfã s. Ele começou a trabalhar sozinho, sem apoio inanceiro e
em uma atmosfera de hesitaçã o su iciente para enfraquecer o espı́rito
mais forte. No entanto, o orfanato da Santa Cruz surgiu do nada e
prosperou. Foi construı́do sobre bases tã o só lidas que o Colégio de
Santa Cruz ainda existe e hoje abriga as crianças de Lima.
Alé m da caridade, nessa empreitada Martin exerceu ao má ximo sua
clarividê ncia e seu gê nio organizador, que transformou a escola em
uma pequena obra-prima. Nã o teria valido a pena superar tantas
di iculdades apenas para dar um refú gio à s crianças. Eles tiveram que
ser educados. Obviamente, Martin nã o poderia ser responsá vel pelo
trabalho educativo, nem sozinho nem com a ajuda de outros, já que a
obediê ncia o colocava em outro lugar. Ele també m nã o queria
administrar a escola. Ele pediu a seu amigo, Matthew Pastor, o maior
benfeitor do projeto, para fazer isso. Tudo o que Martin fez pelo
orfanato foi conceber a ideia, buscar e encontrar os meios de realizar
sua ideia com uma con iança que superasse todos os obstá culos e, por
ú ltimo, organizar a escola.
Para educar os pequenos hó spedes de Santa Cruz e transformá -los
em homens e mulheres que levariam uma vida cristã só lida, era
necessá rio ter uma equipe totalmente dedicada a esta obra. Martin
escolheu seus professores e assistentes com cuidado e, para garantir o
melhor, nã o barganhou sobre salá rios. Ele queria o melhor, a todo custo.
Martin nã o tinha o há bito de fazer as coisas pela metade. Depois de
assumir a causa das crianças abandonadas, ele levou o trabalho até o
im. Ele percebeu que uma boa educaçã o permitiria a um menino
enfrentar a vida com uma chance justa de resolver seus problemas, mas
isso nã o era su iciente para uma menina. Uma garota precisava de um
dote. E Martin providenciou para que as meninas recebessem um dote
adequado quando deixassem o orfanato da Santa Cruz.14
Como ele conseguiu os meios inanceiros para levar a cabo um
plano tã o grandioso? Seu sistema era a pró pria simplicidade. Ele deu
tudo o que tinha para dar e esperou que a providê ncia desse o resto.
Dar tudo o que tinha para dar signi icava dar a sua comida aos
pobres que esperavam à porta, privar-se do descanso para dar o seu
tempo aos outros, sair por aı́ implorando por ajuda, e antes de sair a
mendigar, viver uma vida que inspirava con iança e con iança. Ricos,
nobres e até mesmo o vice-rei deram a ele de boa vontade e com
grande generosidade, porque sabiam “quã o bem e ielmente” ele
distribuı́a o que recebia. Tudo o que passou pelas mã os de Martin
chegou aos pobres, até o ú ltimo centavo. As vezes, até dinheiro nã o
destinado aos pobres ia para eles, como quando Martin “investiu” em
roupas para seus amados protegidos esfarrapados uma grande soma
de dinheiro que sua sobrinha Catherine depositou com um
comerciante. Quando Catarina soube que o dinheiro destinado ao
enxoval tinha sido usado dessa forma, ela chorou. Seu tio, sorrindo,
assegurou-lhe que ela nã o havia perdido nada. Na verdade, no dia
seguinte umUm dos amigos ricos de Martin icou sabendo do caso e
deu a Catherine a quantia de dinheiro que havia sido gasta.15
Dar tudo o que tinha quase signi icou que Martin planejou a
distribuiçã o das riquezas que luı́am em seu caminho para fazer bom
uso de tudo. As esmolas que choveram sobre ele de todas as direçõ es
eram variadas em tipo e fonte. O conde de Chinchó n, vice-rei do rei,
enviava-lhe cem mil pesos por mê s. Todos os anos Frances Vé lez
fornecia a refeiçã o das noviças e estudantes na Quinta-feira Santa, e na
Sexta-Feira Santa ela “enviava pã o su iciente para toda a comunidade
para o jejum de pã o e á gua feito naquele dia, da mesma forma enviava
canela para ser levada com á gua para que nã o fosse prejudicial.
” Elizabeth Mexı́as deu a Martin a receita de uma de suas casas para as
necessidades dos alunos. O governador, Joã o de Figueroa, trazia-lhe
generosas ofertas de missas todas as segundas-feiras e, de vez em
quando, esmolas especiais para os irmã os leigos, “pedindo que se
lembrem dele em suas oraçõ es e rosá rios”.16
E depois havia as ofertas que chegavam aos poucos, todos os dias,
de todos os tipos de colaboradores voluntá rios. Martin sentiu que
deveria dividir tudo isso, atribuindo-o à s vá rias categorias de seus
pobres, de acordo com os diferentes dias da semana. As esmolas
recebidas na segunda e no sá bado transformaram-se em sufrá gios
pelas almas do purgató rio, cujos mé ritos no momento da morte nã o
foram su icientes para saldar as suas dı́vidas espirituais. As esmolas
recebidas na quinta e na sexta-feira foram para aqueles que abraçaram
a pobreza voluntá ria: noviços, estudantes ou padres. As ofertas dos
outros trê s dias da semana estavam à disposiçã o do luxo interminá vel
de seus amados pobres, com exceçã o das ofertas dominicais, que eram
reservadas para negros e ı́ndios, que eram os mais pobres dos
pobres.17
No inal de uma semana, essas vá rias ofertas somam a um total
incrı́vel. Mas Martin sempre deu mais do que recebeu. Os dominicanos
do Santo Rosá rio perceberam isso e consideraram como um milagre
contı́nuo a fonte inesgotá vel de ajuda do irmã o leigo que andava
vestido com o há bito mais gasto, remendado e desbotado que algué m
já viu. “Foi algo que nos maravilhou e foi considerado um milagre
constante pelos religiosos”, disse o padre Gutié rrez, “ver que um
religioso leigo pobre, vestido com roupas rudes, humilde e esfarrapado,
tivesse meios de ajudar tantos pobres quanto veio a ele, de modo que
parecia que choveram esmolas sobre ele. Embora as pessoas ricas da
capital e fora dela, que o conheciam, o ajudassem e ajudassem com
suas esmolas para esse im, nã o parecia que só essas esmolas
bastassem, mas que Deus em Sua misericó rdia trabalhava com ele
aumentando o somas que ele recebeu para que os desejos e afeiçõ es
ardentes de Seu servo pudessem ser satisfeitos. ”18
A contribuiçã o adicional da providê ncia divina era necessá ria, uma
vez que Martin nã o se contentava em dar apenas uma pequena ajuda,
mas tinha a todo custo para dar tudo o que fosse necessá rio. Ele sentiu
que era uma coisa pequena ajudar noventa e nove pobres, se o
centé simo tivesse que ser mandado embora de mã os vazias. Ser incapaz
de ajudar um homem pobre teria sido uma grande tristeza para ele,
uma tristeza que ele nã o poderia suportar. “Ele icou tã o triste”, disse o
irmã o Lauren de los Santos, “quando um pobre veio pedir esmola e ele
nã o tinha nada para dar, que implorou a Nosso Senhor que lhe desse
algo para ajudar o pobre em sua necessidade”.
Martin fez o seu pedido, nã o como algué m que deseja apenas poder
dizer à sua pró pria consciê ncia: “Fiz tudo o que pude”, mas como
algué m que deseja obter o que pede a todo custo. Ele fez seu pedido
com sua oraçã o irresistı́vel, composta de desejo lamejante e con iança
ilimitada e reforçada por seu exercı́cio heró ico de penitê ncia. Quando
Martin nã o tinha nada para dar,ele orou e se lagelou até que a
misericó rdia divina abriu para ele o tesouro de suas in initas
riquezas. Esta foi mais uma forma de pagar, pessoalmente, o preço do
exercı́cio da caridade para com o pró ximo. Foi mais um dos aspectos
caracterı́sticos e originais da sua caridade.
Outra originalidade de Martin era que ele nã o se contentava em
usar apenas a riqueza de outros para ajudar os pobres, mas també m
trabalhava para produzir riqueza. Assim como um dia, para ajudar seus
irmã os de Limatambo, ele plantou um olival inteiro com a ajuda de John
Vá zquez, entã o sempre que Martin percorria as estradas que se
rami icavam de Lima para o campo, ele plantava ileiras de uma
variedade de á rvores frutı́feras ao longo do caminho. A medida que as
á rvores cresciam e davam frutos, os pobres encontravam alimentos nas
estradas, alimentos que pertenciam a todos porque cresciam em terras
pú blicas, e eram salvos da tentaçã o de pular as sebes e roubar dos
pomares. També m neste caso, a caridade de Martin visava o bem das
almas, mesmo enquanto ele provia suas necessidades fı́sicas.
Alé m das á rvores plantadas ao longo das estradas, ele estabeleceu
uma plantaçã o em Limatambo para fornecer medicamentos aos pobres
doentes. Era uma plantaçã o de todas as ervas empregadas pela ciê ncia
mé dica de sua é poca por suas propriedades terapê uticas. Isso permitiu
que sua clı́nica funcionasse sem aumentar as despesas do mosteiro.20
Martin nã o estabeleceu nenhum monopó lio em seu exercı́cio de
caridade. Pelo contrá rio. Nã o fazia diferença para ele se a ajuda que
dava nem sempre vinha de suas mã os. Ficou feliz em desenvolver
naqueles que ofereciam sua esmola o há bito de ajudar diretamente os
necessitados. “Muitas autoridades ilustres e ricas da repú blica. . . deu
generosamente aos pobres, tanto pela mã o do Servo de Deus como por
seu conselho ”.21
Entre essas esmolas dadas diretamente estavam os dotes para
vinte e sete moças, uma apó s a outra. Martin, que experimentou a
verdade das palavras do Senhor, “é mais bem-aventurado dar do que
receber”, encorajou seus alunos na escola da caridade, obtendo um
aumento de sua riqueza para aqueles que eram tã o generosos em dar
para os pobres. Quando eles abriram suas bolsas para os pobres, Deus
aumentou seu capital.
Os contemporâ neos de Martin o chamavam de pai dos pobres, pai
da caridade, pai de todos, e ele era verdadeiramente paternal em sua
bene icê ncia.
Era paternal na forma como recebia a todos, sem distinçã o e sem
preferê ncia, a menos que se pudesse dizer que sua preferê ncia era
pelos mais fracos e necessitados. Ele era paternal em sua compaixã o
pelo sofrimento dos outros, em seu desejo de aliviá -los a todo
custo. Mas, acima de tudo, Martin foi paternal no espı́rito que inspirou
sua caridade, em seu desejo de gerar a vida de Cristo nas almas.
Em seu comentá rio sobre as palavras de Jesus: “Quem faz a
vontade de Meu Pai que está nos cé us, é meu irmã o, irmã e mã e”
( Mt 12,50), Sã o Gregó rio diz: “Quem crê pode ser considerado irmã o e
irmã de Cristo, mas ele se torna sua mã e se ele é um meio de gerar o
amor de Deus no coraçã o de seu pró ximo. ”22
Todo o apostolado da caridade de Martin tinha apenas um
propó sito: despertar o amor de Deus nas almas; em todas as almas, sem
exceçã o, nas almas dos ricos e també m nas dos pobres. Algumas
pessoas nã o sabem amar os pobres sem odiar os ricos. Eles realmente
amam apenas a si mesmos e sã o os hipó critas que fazem soar as
trombetas quando dã o esmolas para serem honrados pelos homens.
Martinho amou a todos, ricos e pobres, porque desde “o amor
ardente com que amou o Divino Majestade. . . nasceu o amor que tinha
pelo pró ximo, amando-o em Deus e para Deus ”.23
Aos olhos de Martin, o rico e o pobre nã o eram dois opostos
irreconciliá veis, dois extremos de oposiçã o. Eles eram simplesmente
dois modos de vida diferentes na variedade in inita do universo, dois
estados desejados pela Bondade nã o criada para que os homens
pudessem exercer a obra divina da caridade entre si. “As coisas
necessá rias para a vida do homem”, disse o Pai Eterno a Santa Catarina
de Sena, “eu dei de muitas maneiras, e nã o dei todas de uma forma para
que você tenha necessariamente os meios de exercitar caridade uns
para com os outros. Eu poderia facilmente ter criado homens dotados
de tudo de que precisam para a alma e o corpo; mas é Minha vontade
que eles precisem uns dos outros, e que sejam Meus ministros para
administrar as graças e dons que receberam de Mim. Quer o homem
queira ou nã o, ele nã o pode deixar de agir como a caridade exige. ”24
E exatamente assim que Martin o entendia, e seu desejo de
transmitir a todas as almas a vida divina da caridade foi a fonte de sua
profunda compaixã o e amor pelos pobres, de seu esforço por despertar
a compaixã o e o amor pelos pobres nos coraçõ es dos os ricos, e de seu
esforço para libertar as almas dos pobres do ó dio e da revolta contra a
misé ria e a injustiça humana, mostrando-lhes como a providê ncia de
Deus velava por eles.
E se um copo d'á gua dado por amor nã o icará sem recompensa no
reino de Deus, podemos acreditar que o reino da caridade sobrenatural
foi estabelecido no coraçã o daqueles que responderam tã o
generosamente aos apelos de Martin. Portanto, seus contemporâ neos o
chamavam nã o apenas de “pai dos pobres”, mas també m de “pai da
caridade”. E eles estavam certos.

Capítulo 13
“Até os cachorros debaixo da mesa comem as migalhas das crianças.” ( Marcos 7:28).

M
ARTIN estava rasgando um lençol velho em tiras, preparando curativos,
quando o Irmã o Francis Guerrero entrou na sala. Era uma daquelas
horas tranquilas da tarde em que o trabalho da manhã havia terminado
e o da tarde ainda nã o havia começado.
"Algué m na casa está ferido?" perguntou o irmã o leigo.
Martin ergueu os olhos de seu trabalho, um sorriso divertido
brilhando em seus olhos. “No momento, nã o, mas em breve algué m vai
precisar desses curativos.”
Antes que o irmã o Francis tivesse tempo para conjecturas, um
paciente paté tico entrou na sala. Era um cachorro muito grande. Ele
tinha um grande ferimento na barriga, de onde saı́am os intestinos.
O cachorro aproximou-se de Martin, cumprimentou-o como um
velho amigo e parecia implorar por sua ajuda.
“Agora você vê como os curativos serã o usados para este pobre
animal, que també m é uma criatura de Deus”, disse Martin, enquanto
recolocava as entranhas do corpo do cachorro e costurava a ferida. Ele
entã o preparou uma cama de peles de ovelha sobre a qual esticou um
pedaço de pano grosso e ordenou que o cã o ferido se deitasse sobre ela.
O cã o obedecia docilmente a todos os comandos, como se os
entendesse.
Martin o manteve por vá rios dias, alimentando-o e fazendo
curativos na ferida. Quando ele foi curado, Martin disse a ele: "Agora vá
e trabalhe para o seu mestre!" Da mesma forma que obedeceu ao
mé dico durante o perı́odo de tratamento, o animal obedeceu ao
benfeitor que o despedia e voltou ao seu dono.1
Todas as testemunhas que testemunharam sobre a vida de Martin
sã o unâ nimes em considerar seu amor por animais como uma
manifestaçã o de sua caridade. Marcel de Rivero conhecera Martin antes
de entrar no mosteiro e, como um todo, teve a sorte de estar associado
a ele por cerca de meio sé culo. Ao falar sobre a caridade de seu ex-
aluno, Marcel disse que nã o tinha “palavras su icientes para explicá -
la”. Para dar pelo menos uma noçã o da amplitude da caridade de
Martin, Marcel a irmou que “a exerceu até com os animais”, a tal ponto
que enquanto seus irmã os se divertiam nas visitas à comunidade de
Limatambo, o irmã o Martin ia para cuidar do gado e outros animais da
fazenda.2
Martin se dedicou com paixã o a cuidar dos outros. Pouco
importava para ele se seus pacientes eram ou nã o dotados de razã o. Se
os homens vinham a ele, ele cuidava dos homens; se os animais vinham
até ele, nã o lhes dava menos atençã o. Como ele poderia ter tido uma
opiniã o tã o elevada sobre sua habilidade mé dica para empregá -la com
animais, quando o Evangelho fala da solicitude de nosso Pai celestial
pelas aves do cé u e pelos lı́rios do campo?
Martin sentiu que era totalmente natural cuidar de animais. Ele os
amou espontaneamente, com aquele puro amor da caridade que nos
faz amar a Deus em todas as suas criaturas, e em todas as criaturas por
amor de Deus. “Para a alma que ama a Deus, todos os tempos e todos
os lugares sã o Seus.”3Martin teria acrescentado: e todas as criaturas
sã o Suas criaturas. Tudo no mundo está cheio de Deus. Para quem tem
ouvidos para ouvir, tudo no mundo fala tã o claramente do poder que dá
e conserva a vida, da sabedoria que ordena a cada ser o seu im e cria
harmonia entre a variedade de seres, da bondade que amorosamente
proporciona para as necessidades de todas as criaturas! Como pode
um homem se recusar a amar as coisas criadas que falam tã o
eloquentemente do Primeiro Amor?
Do coraçã o de Martinho nasceu o Câ ntico do Irmã o Sol: “Louvado
seja, meu Senhor, em todas as tuas criaturas”, porque o louvor sobe de
todas as criaturas sem exceçã o, e da alma que ama a Deus e vê na
perfeiçã o das criaturas o re lexo do perfeiçõ es in initas de Deus, está
cheio de louvor.
Mas o louvor é mais perfeito quando o amor está livre de egoı́smo e
perdoa livremente as ofensas: "Louvado seja, meu Senhor, por aqueles
que perdoam por amor a Ti." Martin deu a prova deste heroı́smo de
amor que perdoa quando nã o condena os ratos pela destruiçã o dos
lençó is. Cada vez que surgia uma ocasiã o, ele dava provas de amor
heró ico, sempre pronto para servir aos outros, e as ocasiõ es surgiam
com frequê ncia.
Martin nã o foi em busca dos animais, pelo menos nã o na maioria
dos casos. Os animais vieram até ele, atraı́dos pela atraçã o infalı́vel do
instinto. Os animais sempre parecem saber quem vai acariciá -los e
quem vai chutá -los. Mas mesmo os animais mais crué is procuravam
Martin com con iança. Existem grandes diversidades, mesmo entre os
animais, e só quem os ama pode entendê -los.
O cachorro que entrou no almoxarifado enquanto Martin rasgava o
lençol deve ter sido um bom cachorro, um daqueles cã es que se deixava
matar em defesa de seu dono e de seus pertences, mas um dia apareceu
um paciente de outro tipo para a sala de primeiros socorros de
Martin. Este cachorro era um daqueles animais maldosos que adoram
provocar uma briga em qualquer ocasiã o. Ele foi esfaqueado duas
vezes. A arma havia penetrado de um lado a outro de seu corpo, e o
sangue escorria de quatro feridas abertas. Este grande valentã o nã o
esperou para ver se Martin teria compaixã o dele, olhando para ele com
olhos suplicantes e abanando o rabo. Abriu caminho entre os enfermos
que esperavam na ila e chamou a atençã o de Martin com dois gritos
insolentes.
Suas travessuras divertiam a todos e até despertavam a
curiosidade do padre Cipriano de Medina. Apesar de sua dignidade de
mestre em teologia sacra, o padre parou para admirar a cena da galeria
superior do claustro e depois desceu para ver como terminaria.
Martin se virou para o cachorro e falou com ele de maneira
paternal. “Irmã o cachorro, onde você aprendeu a ser tã o valentã o? Veja
o que sua insolê ncia trouxe para você ! ”
Essa pequena advertê ncia foi su iciente para subjugar o
cachorro. Em vez de gritar, ele começou a esfregar o há bito de Martin
com o focinho. Martin pegou-o pela orelha e conduziu-o para o seu
quarto, onde lavou as feridas com vinho aquecido ao alecrim - um dos
seus infalı́veis remé dios - e começou a costurá -las.
Naturalmente, o cachorro rosnou e virou a cabeça para as mã os do
cirurgiã o, puxando os lá bios e mostrando os dentes. Nem um pouco
perturbado, Martin continuou costurando e, para acalmar o cachorro,
disse: “E melhor você icar quieto e aprender a ser bom, porque
valentõ es acabam mal”.
Quando terminou, colocou duas ou trê s peles de ovelha no chã o e
disse ao cachorro: "Deite-se aqui!" O cachorro se esticou sobre as peles,
mas depois começou a rolar, com os pé s no ar, esfregando as feridas nas
peles de carneiro porque a pele costurada esticava e coçava.
"Deite-se e ique quieto!" ordenou Martin. Com um suspiro
profundo, o cã o esticou-se em uma posiçã o mais digna e, com o focinho
nas patas dianteiras, observou o irmã o com olhos pensativos.
Martin o alimentou, mas nã o lhe deu outro tratamento e, ao im de
alguns dias, o cã o melhorou. Ele expressou sua gratidã o seguindo
Martin por toda parte e nã o querendo deixá -lo fora de sua vista.
Apesar dos bons conselhos de Martin, o cará ter do cã o nã o
mudou. Mesmo em suas manifestaçõ es de afeto, ele ainda era o bandido
que sempre foi, sem preocupaçã o com o bom comportamento. Um bom
cachorro ica perto de um benfeitor e o defende em caso de perigo, mas
como esse valentã o poderia reivindicar o direito de proibir qualquer
pessoa de se aproximar de Martin ou de ter qualquer coisa a ver com
ele?
E ainda assim foi o caso. Ele rosnou e mostrou os dentes para
qualquer um que se aproximasse de Martin. Um dia, quando um irmã o
leigo estava pedindo informaçõ es a Martin, o cachorro quase o
mordeu. Martin o segurou e com sua paciê ncia habitual fez outra
tentativa de treiná -lo. “Irmã o”, disse ele, “quando você vai aprender a
ser bom? Cuidado, ou da pró xima vez você será expulso de casa com um
pedaço de pau! ”
O cã o foi avisado, mas se recusou a consertar seus há bitos. Poucos
dias depois, ele atacou outro religioso, de modo que trê s ou quatro dos
frades se armaram com paus e espancaram o cachorro com força, entã o
o empurraram para fora da porta e a fecharam, deixando o cachorro
atordoado no meio da estrada. Mas antes de fazerem o que izeram,
eles devem ter se certi icado de que Martin estava fora do caminho,
pois ele nunca teria permitido que eles izessem isso, embora ele
previsse que era prová vel que acontecesse.4
Esses dois nã o foram os ú nicos cã es que Martin curou. O padre
Velasco Carabantes disse que muitas vezes vira Martin tratar “uns de
feridas, outros de sarna”. Um cachorro ferido gravemente demais para
lamber as pró prias feridas veio buscar a ajuda do “pai da
caridade”; outro, ferido na barriga, foi convidado por Martin a ir ao
mosteiro quando o encontrou na estrada. Ele ordenou que todos os
seus pacientes caninos icassem quietos e nã o saı́ssem de seu quarto, e
assim que foram curados, ele os mandou embora.5
Os cã es nã o foram os ú nicos animais que se bene iciaram de seus
cuidados. Gatos també m vieram à clı́nica dele. Um dia, enquanto
passava por um pá tio com o irmã o Ferdinand, Martin percebeu um gato
miando desesperadamente na porta de um porã o. Algué m atirou uma
pedra nela e quase esmagou sua cabeça. “Venha comigo e eu cuidarei de
você ”, disse Martin ao gato. “Você sabe que está em pé ssimo estado?”
O gato deve ter percebido, porque ela pareceu entender suas
palavras e seguiu atrá s dos dois irmã os. Quando chegaram à
enfermaria, ela estava tã o bem quanto podia enquanto Martin tratava
de seu ferimento e o costurava. Quando terminou o tratamento, fez para
ela um boné com um pedaço de pano, encaixando-o na cabeça e
costurando-o. Entã o ele disse: “Agora vá embora, mas volte amanhã de
manhã e eu cuidarei de você novamente”.
Na manhã seguinte, o irmã o Ferdinand estava curioso para ver se o
gato voltaria. Ele foi ao quarto de Martin muito cedo e encontrou o gato
sentado na frente da porta. Era um gato de boa educaçã o, pois preferia
esperar a chegar atrasado para um compromisso!6
Com igual pontualidade, e enquanto precisasse de cuidados, um
peru ferido ia a Martin para ser tratado todos os dias.7
Com uma clientela tã o mista, podem ter ocorrido incidentes
desagradá veis. Até um cachorro bem educado rosnaria se encontrasse
um gato perto dele na hora das refeiçõ es. Mas Martin nã o permitiu
isso. Se eles foram lá para se bene iciar de sua caridade, eles nã o
deveriam se tratar como inimigos. “Agora, irmã os mais novos”, disse
ele aos cã es e gatos, “nã o briguem e comam juntos como bons irmã os,
caso contrá rio, devo mandá -los embora!”8
Quem assistia sempre icava maravilhado ao ver Martin persuadir
os cã es e gatos a comerem em paz, lado a lado.
Certa vez, um gato e um cachorro escolheram o porã o sob a
enfermaria para dar à luz seus ilhotes. Martin temia que os dois
bichinhos passassem fome, pois nã o deixavam a ninhada nem para
comer. Todos os dias ele levava uma boa tigela de sopa para a adega,
uma tigela para os dois. Colocando-o no chã o, ele disse: “Venha e coma,
mas ique quieto e nã o lute”. Entã o, ele observou com prazer as duas
cabeças mergulhando na sopa, que desapareceu em um piscar de olhos,
Um dia apareceu um rato, atraı́do pelo cheiro da comida. Ele saiu
de seu esconderijo e icou olhando à distâ ncia. Ele icaria feliz em
participar do banquete, mas o que os outros dois convidados
pensariam, inimigos jurados de sua espé cie?
Como nã o se atreveu a se aproximar da tigela de sopa, talvez o
camundongo tenha pensado em se banquetear com um dos pequeninos
enquanto as duas mã es faziam o jantar.
Martin viu os olhos brilhando na escuridã o do porã o e entendeu a
tentaçã o do “irmã o Mouse”. Ele o chamou com sua voz calma e
persuasiva: “Irmã o, nã o perturbe os pequeninos! Se você está com
fome, venha comer sem icar tã o animado e depois siga o seu caminho
em paz. ”
O camundongo aproximou-se da tigela e colocou o focinho nela,
enquanto os outros dois continuaram a engolir a sopa sem nem mesmo
parecer notar a presença do recé m-chegado. Eles comeram em paz por
tanto tempo que Martin teve tempo de chamar o irmã o Ferdinand, e os
dois voltaram para desfrutar do espetá culo.
Valeu muito a pena ver! Os animais podem ser domesticados com
muito tempo e paciê ncia, mas nem todos podem fazer os animais
obedecerem instantaneamente, falando com eles como algué m faria
com um cristã o. O irmã o Ferdinand icou tã o impressionado com a
visã o que vinte anos apó s a morte de Martin pô de relatá -la em todos os
seus detalhes, como se a tivesse visto no dia anterior.
O mais impressionante, disse o irmã o Ferdinand, é que, sempre
que Martin aparecia, os animais iam ao seu encontro e o recebiam
calorosamente. “Quando ele foi ao galinheiro da enfermaria, as galinhas
o acolheram, deixaram que ele cuidasse, deram voltas em torno dele,
pareciam cumprimentá -lo com alegria, como que gratas por sua
caridade. Era a mesma coisa se ele entrasse nas baias das mulas e dos
outros animais. Eles demonstraram uma alegria e um carinho
singulares. A mesma coisa acontecia com os cã es, gatos e outros
animais domé sticos, que pareciam ansiosos para serem acariciados
sempre que o viam, demonstrando o melhor que podiam seu prazer em
vê -lo, tocando-o, lambendo suas roupas ”.9
E nã o apenas os animais domé sticos.
Uma vez, trê s touros jovens e um touro adulto foram trazidos para
o mosteiro durante uma celebraçã o de feriado. Eles foram deixados ali
para diversã o dos jovens professos, que deveriam cuidar deles. Mas,
como costuma acontecer quando uma tarefa é atribuı́da coletivamente,
ao im de quatro dias os touros ainda nã o foram alimentados. Martin
soube disso e ao anoitecer foi visto carregando vasilhas de á gua e
fardos de forragem para o recinto do noviciado. Era por volta da meia-
noite quando ele terminou de trazer tudo o que precisava para os
animais. Naquela hora, a porta foi trancada, mas portas trancadas
nunca foram um impedimento para a caridade de Martin. As portas se
abriram ou o deixaram passar enquanto permaneceram fechadas. Desta
vez, a porta se abriu e Martin trouxe suas provisõ es de á gua e raçã o
para os animais.
Os quatro animais, encerrados em um pequeno recinto,
enlouqueceram de fome e sede. Assim que Martin apareceu no meio
deles, eles se tornaram gentis e mansos como cordeiros e lamberam seu
há bito, quase o beijando. De uma janela acima, o padre James de la
Fuente ouviu Martin falando com o grande touro:“Irmã o, nã o seja tã o
dominador só porque você é o maior. Deixe os mais pequenos
comerem! ”
Martin foi como tinha vindo, mas deixou para trá s os jarros vazios
para que os animais tivessem algo com que se divertir. Na manhã
seguinte, os pedaços dos recipientes quebrados testemunharam a
visita noturna de Martin.10
Em outra ocasiã o, os noviços receberam dois bezerros para se
divertirem durante o recreio. Mas os noviços nã o gostavam dos
bezerros. Eles eram tã o gentis que pareciam feitos de madeira. Se eles
pudessem pegar um jovem touro!
Martin encontrou para eles um jovem touro. Por dois dias tudo
correu bem, mas os noviços provocaram tanto o touro que “no terceiro
dia ele icou bravo ”, isto é , enfurecido, e os noviços apavorados
correram e se trancaram em suas celas. Quando o sino tocou, chamando
os frades ao coro, os noviços ainda estavam com tanto medo do touro
furioso que nã o ousaram sair de suas celas. Martin estava perto da
porta do coro e viu todos os religiosos mais velhos entrando, mas
nenhum noviço apareceu. O que pode ter acontecido? Ele entã o soube
que os noviços estavam trancados em suas celas por medo do touro que
se enfurecia em seu claustro.
Martin armou-se com uma cana fresca com um cacho de folhas
espinhosas no inal e foi para o noviciado. O touro estava em um canto,
cabeça baixa e pronto para atacar, Martin cutucou-o com as folhas do
junco dizendo: “Eu nã o te trouxe aqui para assustar os religiosos e
impedi-los de cumprir seus deveres. Agora vá embora!" E o touro,
manso como um cordeirinho, trotou pelos pá tios do mosteiro e voltou
para a fazenda de onde viera.11
Martin lidou com todos os tipos de animais com base na
familiaridade e os fez compreender e obedecer sem
di iculdade. “Martin amou a Deus com toda a suacoraçã o ”, escreve E.
Doherty. “Ele amou cada ser humano e cada animal que Deus colocou
nesta terra; e cada animal, cada homem, mulher e criança, e o pró prio
Deus, amava Martin. ”12
Mas entre as galinhas que esvoaçavam ao seu redor, e o gado e
cavalos e mulas que o saudavam de suas manjedouras, entre os cã es e
gatos e ratos, Martin reservou um lugar de honra para os cã es. Os
outros animais podiam ir e vir, mas os cã es tiveram o privilé gio de
permanecer no depó sito até que estivessem completamente curados. A
casa de Joana abrigou os cã es evacuados da enfermaria do Santo
Rosá rio, assim como os enfermos. Quando um cachorrinho deitou-se
no tú mulo de seu dono, que havia sido enterrado na igreja do Santo
Rosá rio, e por duas semanas nã o foi encontrado nenhum meio de fazê -
lo partir, Martin trouxe-lhe algo para comer todos os dias, cheio de
compaixã o pela dor do animalzinho.13
E, inalmente, a caridade de Martin obteve um milagre da
onipotê ncia de Deus, apenas para um cachorro. O cã o em questã o tinha
dezoito anos e pertencia ao Irmã o Joã o de Vicuñ a, o “prior da cozinha”,
procurador ou administrador do mosteiro. Dezoito anos é uma idade
avançada para um cã o, e pode-se facilmente imaginar a condiçã o do
animal de estimaçã o do irmã o John quando se sabe que a sarna foi
acrescentada à s enfermidades da idade. Aqueles que conheciam bem a
situaçã o, a irmaram que o cachorro tinha um cheiro nojento.
Levando tudo em consideraçã o, o procurador achou que nã o podia
mais pedir à comunidade que agü entasse a presença do pobre animal, e
ordenou a um negro que o matasse. O negro saiu em busca do cachorro
e o encontrou no jardim, desavisadamente estendido, dormindo ao
sol. Parecia uma boa oportunidade, entã o o negro pegou uma grande
pedra e atirou na cabeça do cachorro. A pedra devia ser muito grande,
pois o cachorro foi morto quase instantaneamente.
O negro estava feliz por ter resolvido o problema com tanta
habilidade e ia jogar o corpo do cachorro no rio quando Martin o
impediu. Repreendeu-o severamente, tirou-lhe o cã o, por mais
revoltado que fosse, levou-o nos braços para a cela e deitou-o no
chã o. Assim que o cã o tocou o pavimento, sentou-se, ergueu o focinho
na direçã o de Martin e começou a mover sua pobre cabeça ferida
lentamente para a direita e para a esquerda. Martin pegou a cabeça do
cachorro entre as mã os e limpou a mistura de terra e sangue que a
cobria. “Vou buscar um pouco de vinho!” disse o irmã o Lauren, que
testemunhou toda a cena.
No tempo que o irmã o demorou para ir ao refeitó rio e voltar,
Martin havia costurado todas as feridas na cabeça do cachorro. Quando
o vinho chegou, ele serviu como um bom desinfetante externo para as
peças unidas. Peça por peça, Martin removeu toda a sujeira que
encontrou na ferida,
O cachorro estava esticado em um catre em um canto. Entre a
tontura provocada pelo vinho e a pancada que recebera, adormeceu
imediatamente sem comer.
"Como está o cachorro?" perguntou o irmã o Lauren assim que viu
Martin na manhã seguinte.
"Eu nã o sei; Eu nã o o vi ainda. ”
Juntos, eles foram para a cela de Martin, levando um grande pedaço
de carne. O cachorro estava dormindo profundamente, mas quando
Martin deu um tapinha nele, ele suspirou.
"Levante-se, você nã o vai morrer por causa de uma coisa tã o
pequena!" disse Martin,
O cachorro se mexeu um pouco e bocejou. Por im, sentindo o
cheiro da carne, ele abriu os olhos, pô s-se de pé e abanou o rabo. E
quando Martin lhe deu o bife, ele o devorou.
O cachorro icou trê s dias lá . O irmã o Lauren estava interessado no
caso porque tinha vistoo cachorro volta à vida. No quarto dia, ele
conheceu Martin e perguntou-lhe: "Como está o cachorro?"
“Ora, esta manhã ”, respondeu Martin, “quando saı́ para tocar a
campainha da manhã , o cachorro escorregou entre meus pé s. Isso
signi ica que ele está curado. ”
O cã o estava completamente curado, nã o só do ferimento na
cabeça, mas també m da sarna, e podia aparecer em pú blico sem correr
o risco de novas aventuras desagradá veis. Como ele havia passado
dezoito anos com o irmã o John de Vicuñ a, ele voltou para ele, e o irmã o
John estava feliz por ter seu velho cachorro de volta, curado e
rejuvenescido. A inal, foi apenas por consideraçã o aos irmã os do
mosteiro que ele decidiu, com relutâ ncia, que o negro matasse o
cachorro. Mas sua tristeza pela decisã o foi aumentada pelas
reprovaçõ es de Martin. Assim que Martin costurou a cabeça do
cachorro, ele procurou o irmã o John e disse-lhe, embora ele usasse
"palavras suaves, humildes, cheias de moderaçã o", que "ele nã o tinha
feito bem em pedir um companheiro de tantos anos ser morto."
Alé m do irmã o Lauren, o padre Joseph de Villarsbia e o padre
Ferdinand de Aragoné s foram testemunhas do episó dio do cachorro, e
os trê s atestaram que o cachorro foi morto pelo negro e ressuscitado
por St. Martin.14
Nessas pequenas histó rias dos animais, fornecidas pelas
testemunhas durante o Processo, a abundâ ncia de detalhes é
notá vel. Indica a grande importâ ncia que atribuı́am a estes episó dios,
pois os consideravam necessá rios para completar o retrato do santo
Irmã o e apontar até onde chegou a sua desinteressada caridade. E sua
caridade para com os animais certamente era desinteressada.
Mas de todos os animais que Martin amava e cuidava, os ratos -
aqueles pequenos animais tã o pouco amados pelos humanos - parecem
ter tido o privilé gio de mostrar sua gratidã o ao “pai da caridade”. Ele
salvouda morte por veneno que suas açõ es mereceram, e entã o, dia
apó s dia, pacientemente os alimentou, carregando amorosamente
comida para eles para o jardim. Mesmo depois de sua morte, eles
continuaram a obedecê -lo.
Ainda hoje, dizem, quando os ratos ameaçam se tornar uma praga,
basta invocar Sã o Martinho para se livrar deles.
E Martin, o mais humilde dos humildes, desejou ou permitiu que o
mais ı́n imo e modesto daqueles que ele ajudou a ser associado a ele na
iconogra ia. Raramente é encontrada uma imagem de Sã o Martinho que
nã o mostre pelo menos um ratinho a seus pé s.
Mas talvez mesmo nisso o Santo da caridade obedeceu ao impulso
dominante de toda a sua vida. Ao dar-lhes um lugar em suas pró prias
imagens, ele garantiu um olhar de amizade e gratidã o de seus devotos
para os animais desprezados. O amor deve necessariamente inspirar
amor.
Capítulo 14
“Eu sou o caminho, a verdade e a vida.” ( João 14: 6).

S
T. CATHERINE representa os trê s grandes está gios da ascensã o da alma
à santidade como trê s degraus de uma ponte. Em sua visã o do mundo
redimido, Cristo, o Pontı́ ice da Nova Aliança, é a ponte que une a terra
ao Cé u, e os passos signi icam tanto a Paixã o consumada em Seu corpo
adorá vel, como os atos da alma que reú nem todas as suas faculdades
seguir os passos do Redentor.
“Os pé s sã o o primeiro passo, e eles signi icam o afeto, pois o afeto
carrega a alma como os pé s carregam o corpo. Esses pé s trespassados
sã o degraus pelos quais você pode chegar ao Seu lado, onde os segredos
do Seu coraçã o se manifestam a você , pois a alma, subindo nos degraus
do seu afeto, começa a saborear o amor do Seu.coraçã o, olhando com os
olhos do intelecto para o coraçã o aberto de Meu Filho, e lá encontra um
amor consumado e inefá vel. . . . Entã o a alma se enche de amor, vendo-
se tã o amada. Tendo subido o segundo degrau, a alma chega ao terceiro,
que é a boca, onde encontra a paz. . . .
“No primeiro degrau, erguendo os pé s das afeiçõ es da terra, a alma
se despojou do vı́cio; no segundo degrau, ela se revestiu de amor e
virtude; e no terceiro degrau, ela provou a paz. ”1
Tendo alcançado a terceira etapa, a alma prova Deus, uno e triú no,
e é atraı́da a uma participaçã o mais ı́ntima na vida da Santı́ssima
Trindade.
Se o Pai é o “leito” no qual repousa a alma com a certeza de que
nada pode separá -la Dele, també m é a “mesa” que oferece o alimento, o
alimento dos fortes: a Palavra e sua doutrina, o Cristo Eucarı́stico. e o
Cristo cruci icado com sede de honrar o Pai pela salvaçã o das
almas; enquanto o Espı́rito Santo se coloca, por assim dizer, a serviço da
alma "para ministrar a ela Seus dons e Suas graças".
A excelê ncia da vida mista, isto é , uma vida de açã o que brota da
contemplaçã o, se expressa aqui com a clareza pitoresca de uma
alegoria. E visto que o ideal da espiritualidade dominicana se realiza na
vida mista, nã o é estranho que a vida de Sã o Martinho apresente um
itinerá rio de santidade segundo o esboço de Santa Catarina.
Os seus olhos e os afetos do seu coraçã o infantil e adolescente
foram atraı́dos aos pé s de Cristo cruci icado, e rapidamente o
pensamento da Paixã o, contemplado nas suas vigı́lias noturnas e no
misté rio eucarı́stico, despertou-lhe o desejo de subir mais alto.
A subida de Martin para o segundo degrau pode ser identi icada
com o dom de si mesmo aperfeiçoado por meio de seu pro issã o
religiosa. No segundo degrau o olhar da alma busca penetrar nos
segredos do coraçã o de Deus, e em seu desejo de sondar cada vez mais
profundamente as profundezas desse abismo da caridade, a alma é
puri icada e fortalecida pelo exercı́cio de todos os virtudes.
E impossı́vel determinar o momento em que Martin alcançou a
terceira etapa. Nã o há uma linha clara de separaçã o entre a segunda e a
terceira etapas. A alma que persevera na contemplaçã o do amor à
Palavra encontra-se, quase sem se dar conta, na paz da uniã o com ele. E
prová vel que Martin tenha chegado ao cume muito cedo, armado sua
tenda e lá permanecido por muitos anos de sua vida.
Esta é a impressã o que recebemos quando, ao buscarmos algum
indı́cio de que ele tenha chegado ao “terceiro degrau”, vemos que
aqueles que conviveram com ele nã o consideraram as manifestaçõ es
pró prias deste grau mais elevado como transitó rias ou extraordiná rias
na vida de Martin. , mas algo habitual.
O primeiro sinal de uniã o é a paz. Os contemporâ neos de Martin
atestaram que ele estava imerso em paz, ele irradiava paz, uma paz nã o
perturbada por insultos ou elogios. Ele rebateu os insultos que lhe
foram lançados no inı́cio, aceitando-os de bom grado, convencido de
que recebia apenas o que merecia. E quando as pessoas começaram a
honrá -lo e a chamá -lo de santo, ele nã o se impressionou e repetiu com
o Mestre: “Por que me chamas de bom? Ningué m é bom, apenas Deus.
” ( Mat . 19:17).
Sua paz baseava-se em sua con iança na bondade de Deus, em sua
certeza da benevolê ncia daquela vontade à qual havia entregado sua
pró pria vontade e todo o seu ser - “Eu sei em quem cri” - e a certeza de
que o o amor de seu pró prio coraçã o sempre seria correspondido por
um amor. Foi a paz de um repouso nos braços do pai.
Martin nã o deu ares a si mesmo, ele nunca posou. Mas a alegria
com que tanta con iança e certeza enchiam seu coraçã o era evidente
para todos. Aqueles que o conheciam tinham certeza de que ele "estava
completamente em Deus e Deus nele".2
Sua oraçã o foi completamente permeada por esta paz. Ternos
coló quios preencheram as horas que passou ao pé do taberná culo e
perante a Rainha do Santo Rosá rio, “a mais doce contemplaçã o de Deus
e de Sua Santı́ssima Mã e”; os coló quios prosseguiram com
simplicidade de coraçã o, em total compreensã o; coló quios sem pressa,
nunca obscurecidos pelo medo de interrupçã o, pois sabia que podiam
continuar a qualquer momento, no meio de todas as ocupaçõ es, no
segredo do seu coraçã o. “Nã o importava o que estivesse fazendo, ele
encontrava em tudo o que fazia os mais elevados temas da
contemplaçã o celestial e divina, que o capacitavam a se elevar acima de
si mesmo. Todo o tempo que tinha, fora o que passava na enfermaria,
estava totalmente dedicado a este dever e ocupaçã o, a só s com Deus,
gozando do privilé gio especial de nã o ser visto pelos
homens. . . mantendo todos os seus pensamentos em Deus. ”3
No coraçã o de Marta, Marta e Maria nunca disputavam, porque
Maria acompanhava Marta sempre e em toda parte. Mas quando Marta
terminou seu trabalho, Maria pegou Martin pela mã o e o levou a algum
lugar escondido onde ele pudesse desfrutar da presença de seu Senhor,
a só s com ele. A solidã o atraiu Martin como um ı́mã . Era seu refú gio da
curiosidade das pessoas ao seu redor, o que, embora piedoso e bem-
intencionado, era um pouco constrangedor. Eles o seguiram, o
espionaram e ele teve que se defender o melhor que pô de.
Por exemplo, visto que o irmã o Ferdinand era o enfermeiro-chefe e
tinha uma segunda chave para o almoxarifado da enfermaria, Martin
achou inú til se trancar ali. Colocou uma campainha na porta para que o
tilintar o avisasse a tempo da chegada do irmã o Ferdinand. Mas quando
o ê xtase tomoulugar de oraçã o, Martin estava indefeso.
Quem via Martin com mais frequê ncia em ê xtase talvez fosse o
jovem Vá zquez. Na primeira vez, na noite do terremoto, o irmã o
Michael disse a Vá zquez quando fugiu para o claustro, fora de si de
medo, que se icasse com Martin nã o mais se maravilharia com
prodı́gios. Depois daquela primeira vez, Joã o o viu em muitas outras
ocasiõ es erguido acima da terra à altura de um homem, de joelhos, o
olhar ixo no cruci ixo ou em alguma imagem de um santo.
John era um rapaz discreto e sensato e sabia perfeitamente que
Martin nã o devia ser incomodado nesses momentos. Uma manhã ,
Martinho caiu em ê xtase diante da imagem de um santo que costumava
invocar para suas necessidades com o nome de San Socorro (nome que
talvez ele mesmo tivesse dado ao santo). John o deixou sozinho na cela,
trancando a porta atrá s dele.
Pouco depois, ele conheceu um religioso que procurava Martin.
“O irmã o Martin está na cela?” perguntou o padre Osorio.
"Oh nã o!" respondeu Joã o, sem se importar com a mentira, o padre
Osorio nã o acreditou. Ele viu que John estava com a chave na mã o,
pegou-a sem fazer barulho e abriu a porta.
Joã o seguiu o padre Osorio e viu Martin tal como o havia deixado,
erguido acima do solo em oraçã o diante da imagem do seu santo. John
icou abatido ao pensar que mentiu inutilmente sem salvar o amigo do
aborrecimento.
Padre Osorio olhou para dentro, à direita e à esquerda, mas nã o viu
ningué m e també m icou um pouco perturbado por nã o ter con iado na
palavra de Joã o Vá zquez. “Eu me pergunto onde ele pode estar!” ele
murmurou ao devolver a chave a John.4
Francis de la Torre, o outro amigo privilegiado que podia entrar e
sair livremente na cela de Martin, també m tive a sorte de vê -lo em
ê xtase vá rias vezes. Mas outras vezes era devido a circunstâ ncias
extraordiná rias e imprevistas que algué m se deparava com Martin
nesses momentos.
Um dia, um menino entrou correndo no mosteiro do Santo Rosá rio,
completamente sem fô lego. Seu nome era Nicholas de Peñ asola. Mais
tarde, ele seria um padre na Ordem de Santo Agostinho, mas no
momento ele era apenas um menino tentando escapar da puniçã o. Ele
havia fugido de sua pró pria casa por medo de ser punido por seus pais
apó s alguma travessura infantil, e ele veio buscar asilo no Santo
Rosá rio.
Nicolau ia ao mosteiro quase todos os dias, fosse para ver alguns de
seus parentes que ali eram religiosos, ou para visitar Martin, que
sempre lhe dava pã o com igos ou passas. Nicholas era tã o conhecido
que ningué m prestou atençã o nele. Pensando apenas em se esconder
daqueles que o perseguiam para castigá -lo, ele passou pelo portã o do
porteiro a toda velocidade, entrou na sala do capı́tulo e se escondeu nas
baias do coro.
Ele icou lá um pouco, ofegante e agachado sob as baias. Quando
icou um pouco mais calmo, olhou cautelosamente acima do nı́vel das
baias. Ele tinha quase certeza de que seus pais haviam perdido o
rastro. Seria melhor icar aı́ e esperar um pouco. Quando sua raiva
momentâ nea esfriasse, ele poderia voltar para casa.
Enquanto isso, Martin estava na mesma sala do capı́tulo, em
levitaçã o extá tica, erguido a mais de quatro metros do chã o até a altura
do cruci ixo, no alto da parede posterior.
O rapaz começou a procurar uma maneira de passar as horas sem
té dio indevido. De repente, ele viu Martin e icou tã o apavorado ao vê -
lo suspenso no ar que esqueceu tudo o mais e fugiu.5
A santidade certamente nã o consiste em ê xtase, mas o ê xtase
verdadeiramente mı́stico é um dos sinais da uniã o da alma com
Deus. “Muitas vezes o corpo é levantado do chã o”, diz Santa Catarina,
citando as palavras de Cristo a ela, “porque a uniã o da alma Comigo é
mais perfeita do que a uniã o entre a alma e o corpo”.6E uma espé cie de
milagre que um homem possa continuar a viver quando Deus permite
que a alma sinta o poder irresistı́vel de Suas atraçõ es. Nenhuma
criatura poderia sobreviver à experiê ncia se Deus nã o "a envolvesse
com força".
Paciê ncia, força e perseverança sã o os frutos colhidos na terceira
etapa da paz, os frutos da mesa que trazem o alimento das
almas. Martin os reuniu aos punhados.
A voz do Senhor disse continuamente a Martin, como fez ao profeta
cansado sob a sombra do zimbro: “Pegue e coma; ainda há uma longa
jornada pela frente. ” E com o entusiasmo de um atleta em uma corrida,
Martin partiu no caminho da doutrina do Verbo Encarnado, para uma
vida que era uma imitaçã o Dele.
Nã o importava o que izesse, Martin manteve o exemplo divino
diante de seus olhos. Se ele visitou ou cuidou de enfermos, ele re letiu
que quando o Senhor veio à Terra para visitar e curar a humanidade
fraca, Sua compaixã o pelos enfermos era tã o grande que Ele colocou
Sua onipotê ncia a serviço deles para curá -los. A noite, quando começou
a orar, lembrou-se das noites em que Jesus passou em oraçã o com seu
Pai e prolongou seu coló quio com Deus até o amanhecer. Ele justi icou
seus longos jejuns citando o exemplo do Salvador, e todas as suas
morti icaçõ es foram uma tentativa de participar em algum grau da
paixã o de Cristo.
Quando algué m o insultou, Martin icou em silê ncio, pensando que
o aluno deveria imitar o exemplo do Mestre, “que subiu na cruz
para ensinar uma doutrina fundada na verdade. ” E ele icou ao pé da
cruz “para aprender. . . na humildade da verdadeira humildade, porque
o orgulhoso nã o pode aprender. ”7
Ele estudou toda a vida de Nosso Senhor, nã o por abstraçõ es
puramente especulativas, mas com o desejo de chegar a conclusõ es
prá ticas para uma regra de vida. Olhando a vida de Nosso Senhor sob
este prisma, todos os seus ensinamentos e exemplos foram
coordenados em uma sı́ntese simples: a caridade. Até mesmo a
sabedoria da Palavra nã o encontrou maneira melhor de expressar Seu
amor ao Pai do que amar os homens e se entregar para sua
salvaçã o. Portanto, nã o poderia haver outro caminho para Martin.
Esclarecido este ponto, todo o resto se seguiu: paciê ncia com os
enfermos, trabalho incansá vel a serviço dos irmã os e dos pobres,
constâ ncia heró ica em esquecer-se de si mesmo no serviço dos outros e
aquela generosidade total que colocava a serviço dos outros nã o apenas
seus recursos fı́sicos, mas també m as reservas mais zelosamente
guardadas do espı́rito.
Essa é a verdadeira prova de constâ ncia e força, daquela “força
alé m da força” que a alma recebe quando atinge as alturas. “Estes nã o
escondem suas virtudes timidamente. . . e se houver necessidade deles
para o serviço ao pró ximo, eles nã o escondem suas virtudes por medo,
mas as usam valentemente. ”8
Martin teve de fazer um grande esforço sempre que algué m
procurava seu conselho. Seus pró prios gostos naturais o impeliam para
a vida oculta e obscura que parecia ser a vida normal de um humilde
irmã o leigo. Sua reaçã o espontâ nea foi responder: "Por que você quer
zombar de um pobre mulato?" e entã o ele fugiria para se refugiar perto
da cruz. Mas foi ali, ao pé da cruz, que ele foi forçado a voltar para o
pró ximo para cumprir as exigê ncias da caridade espiritual. “Os dons
que te dei”, o Senhor parecia dizer-lhe, “nã o foram dados para que
pudesses guardá -los para ti, como um avarentofaz, mas para que possas
partilhá -los fraternalmente com o teu vizinho. "
E Martin teve que se resignar a aceitar o papel de conselheiro
geral. Naturalmente, os primeiros que recorreram a ele foram seus
pró prios irmã os e, entre eles, os jovens em primeiro lugar. Quase tudo o
que se pode dizer sobre a estima que seus irmã os tinham por ele,
quando notamos que o mestre de noviços aprovava de todo o coraçã o
as visitas de Martinho ao noviciado e lhe permitia falar livremente com
os noviços, em grupos ou individualmente. E se um noviço pedisse a
Martin que o adotasse como ilho, prometendo considerá -lo um pai, o
mestre dos noviços nã o tinha objeçõ es. Os mestres dos noviços
costumam ser sá bios, e os fatos provam que o mestre do mosteiro do
Santo Rosá rio tinha razã o, porque os jovens que escolheram Martinho
como modelo e guia sempre estiveram entre os melhores
religiosos. Muitos religiosos bons e talentosos, mestres de teologia e até
bispos, foram contados entre os “ ilhos” de Martin.
E també m digno de nota que o conselho de Martinho foi seguido
na é poca das eleiçõ es no mosteiro, quando os interesses e preferê ncias
pessoais tornam os homens menos dispostos a serem guiados por
outros. Se as coisas nã o estivessem indo bem, e se houvesse discó rdia
que impedisse chegar a um acordo, ou se uma coalizã o fosse formada
em alguma base diferente da virtude, Martin entrava no meio da briga
como um anjo da paz e transformava a discó rdia e alianças indignas em
concó rdia serena. Com a liberdade de quem fala sem paixã o e sem
interesse pessoal, dirigiu-se aos candidatos que constituı́am um
obstá culo à compreensã o perfeita e aconselhou-os a se retirarem. Com
santa franqueza, ele dizia a um: "Você nã o é adequado para esse cargo",
e a outro: "Você ainda nã o está maduro o su iciente." E todos aceitaram
seu julgamento, e o que é mais admirá vel, ningué m sentiuferido ou
amargurado. Segundo o padre Velasco Carabantes, todos foram “felizes
e pacı́ icos, amando-se no Senhor, cada um se consolando com os
conselhos de tã o grande homem e regozijando-se por que neles se faça
a vontade de Deus”.9
No campo da caridade espiritual, como no da ajuda material, a
atividade de Martinho nã o se limitou ao mosteiro. As pessoas eram
atraı́das a ele pela fama de sua santidade, tanto quanto pela fome
fı́sica. Havia vá rios que vinham regularmente, como o capitã o John de
Ronda, "pelo consolo que recebeu para seu coraçã o e seu pró prio
lucro", e voltaram para sua casa cheios de um desejo fervoroso de amar
e servir a Deus e evitar tudo o que pudesse ofendê -lo.
Martin nã o distribuı́a guloseimas para aqueles que vinham pedir-
lhe orientaçã o na vida espiritual, mas o pã o só lido e substancial das
grandes verdades da fé e, em particular, as verdades fundamentais da
morte, do juı́zo, do Cé u e do Inferno. Ele encontrou homens capazes de
assimilar seus ensinamentos, pois o grupo de seus seguidores era
grande. No entanto, aqueles que pediram conselho a Martin nã o
estavam preocupados apenas com assuntos espirituais. O Padre John
de Barbazá n a irmou que “os superiores procuraram o seu conselho
por causa da sua prudê ncia; homens eruditos, por causa de sua
doutrina; homens espirituais, por causa de sua oraçã o; o a lito, por
causa do consolo que ele lhes deu, pois ele tinha um remé dio para
todos os males. ”10
E por "superiores" entende-se todas as autoridades, as "pessoas
mais importantes de todas as classes nesta Repú blica". A lista começou
com o conde de Chinchó n, vice-rei do rei, que vinha ao mosteiro sem
formalidades em momentos inesperados, ou se realmente nã o podia
deixar sua residê ncia, enviou uma mensagem pedindo a Martin para vir
ao seu palá cio. Desceu por todas as categorias de autoridades civis e
subiu por todas as categorias de autoridades eclesiá sticas.laços,
terminando com o Rev.mo Felician de Vega, Vigá rio Geral da Diocese de
Lima, depois Bispo de La Paz, e inalmente Arcebispo da Cidade do
Mé xico. Felı́cio era um homem culto e jurista, mas costumava consultar
o irmã o mulato “para se tranquilizar no exercı́cio de seus poderes
eclesiá sticos e judiciais”.11
Com tantos seguidores, aqueles que pediram o conselho de Martin
devem ter proposto casos difı́ceis e delicados. Mas todos os que
compareceram sabiam por experiê ncia que nunca se arrependeram de
ter seguido seu conselho.
Ser um “remé dio para todos os males” nã o signi icava que as
palavras de Martin fossem sem e icá cia particular para um tipo
especı́ ico de doença. Suas palavras foram especialmente e icazes para
o mal da discó rdia. Nenhuma discó rdia ou inimizade poderia resistir
aos esforços de paz de Martin. Por essa razã o, ele foi especialmente
procurado para restaurar a paz. Ele parecia ter o dom de criar paz ao
seu redor.
Foi realmente um dom mais do que uma virtude: o dom do
conselho, que aperfeiçoou a virtude da prudê ncia e abriu os olhos para
o presente e també m para o futuro para o bem do pró ximo. Na graça de
Deus, um dom nã o custa mais que outro, e o Espı́rito Santo, que “dá os
seus dons e graças” na “mesa” da uniã o com o Pai, teve o prazer de dá -
los sem limites ao irmã o Martin.
Um dia o governador, Joã o de Figueroa, veio ver Martin. Ele foi um
dos visitantes mais ié is de sua cela. Ele invariavelmente vinha todas as
segundas-feiras para trazer os estipê ndios da missa para Martin, mas
ele veio muitas outras vezes també m, porque em tudo o que diz
respeito à sua alma ele seguiu as orientaçõ es que Martin lhe deu.
Joã o de Figueroa entrou com o seu ar alegre de sempre. Ele sempre
foi um convidado bem-vindo. Ele nã o tinha preocupaçõ es pessoais. As
somas que deu aos pobres nã o diminuı́ram seu patrimô nio, mas foram
uma bê nçã o que aumentou sua riqueza a tal ponto que naqueleNesse
momento tinha à sua disposiçã o uma renda de vinte e trê s mil pesos,
sem contar os mais de duzentos mil pesos que havia economizado
como reserva. A saudaçã o que Martin deu a ele foi estranha e muito
diferente da habitual. Sem preâ mbulos, Martin disse-lhe gravemente:
"Você deve se preparar para as di iculdades!"
Tomado de surpresa e choque, o governador icou tã o surpreso que
nem teve coragem de pedir explicaçõ es e saiu, profundamente
perturbado. Quando ele estava fora do mosteiro, ele re letiu sobre as
palavras estranhas de Martin e sua maneira peculiar de agir, e um
pouco de esperança brotou em seu coraçã o. Talvez ele nã o tenha
entendido Martin corretamente. Mas ele tinha vergonha de voltar e
questioná -lo. Foi entã o visitar Luı́sa de Soto Melgarejo, uma santa
mulher dotada, segundo a crença popular, do espı́rito de profecia.
Pobre Joã o de Figueroa! Louise o cumprimentou na porta com as
pró prias palavras de Martin.
A con irmaçã o da sentença o entristeceu ainda mais, e antes que
muitos dias tivessem se passado, a prova inegá vel da profecia
chegou. Desastre seguido de desastre. Sua reputaçã o foi atacada por
calú nias; sua saú de, que até entã o era excelente, começou a piorar; e
mesmo o patrimô nio que parecia tã o seguro começou a diminuir
consideravelmente. Foram provas que Deus envia à queles a quem ama,
a im de puri icá -los e torná -los mais dignos de si mesmo.
Martin cuidou de seu ilho espiritual para sustentá -lo durante esse
perı́odo difı́cil. Um dia ele o chamou, porque temia que o fardo fosse
pesado demais para seus ombros, e disse-lhe: “Fica em paz, nem
sempre as coisas serã o assim e você nã o será reduzido à
mendicâ ncia. Você vai icar com o mesmo patrimô nio que tinha quando
chegou a Lima, e até um pouco mais! ”
Tudo isso aconteceu em 1638, um ano antes da morte de
Martin. Em 1660, Joã o de Figueroa atestou que as coisas aconteceram
exatamente como Martin previra.12
A virtude da prudê ncia, o dom de conselho e o espı́rito de profecia
combinados para fazer de Martin um conselheiro ideal. A virtude e os
dons contribuı́ram para o que Santa Catarina chamou de “luz da
discriçã o”, que é o poder de discernir o que é melhor para cada alma,
em conformidade com o desı́gnio de Deus para cada alma. Essa luz é
indispensá vel para aqueles que precisam aconselhar. Qualquer um que
nã o o possua tentará modelar cada um em seu pró prio padrã o; “Com o
mesmo peso que pesa, tentará pesar a todos”, e reduzirá a variedade
quase in inita do mundo espiritual à monotonia de seu pró prio padrã o
pessoal.13
Nã o havia nada disso em Martin. Ele nã o procurou que todos
seguissem seu caminho. Se o caminho era bom para ele, nã o signi icava
que fosse igualmente bom para os outros. Se ele tivesse escolhido a
posiçã o mais humilde, nã o era uma razã o vá lida para que todos se
apressassem em fazer o mesmo. O irmã o Ferdinand havia entrado na
Ordem como irmã o leigo e permaneceu como irmã o leigo por vá rios
anos. Mas agora ele aspirava a se juntar à s ileiras dos clé rigos e
inalmente receber ordens sagradas. Por que dissuadi-lo? O irmã o
Ferdinand era uma pessoa bastante inquieta e talvez nã o perfeitamente
equilibrada; o equilı́brio invariá vel de Martin parecia ter sido fornecido
para ajudá -lo. Ferdinand viveu treze ou quatorze anos a mais do que
Martin e morreu em 1662. Em 1619, durante a vida de Martin,
Ferdinand estava no limiar da outra vida, e Martin o salvou. E bem o fez,
por causa de todos os testemunhos prestados durante o Processo, o de
Ferdinand de Aragoné s, seu companheiro na enfermaria durante tantos
anos, foi um dos mais ricos em detalhes.
Em 1619, os mé dicos haviam perdido todas as esperanças
de Irmã o Ferdinand. Ele havia recebido os ú ltimos sacramentos,
incluindo a Extrema Unçã o, e a comunidade esperava para ser chamada
a qualquer momento ao lado do moribundo. Por volta da meia-noite,
Martin chegou, tomou seu pulso e perguntou-lhe se as dores nas
laterais do corpo eram muito fortes.
“E tã o grave que mal consigo respirar”, respondeu o irmã o
Ferdinand com voz fraca.
“Ocorreu-me que poderı́amos tentar um certo remé dio”, disse
Martin. Tirando uma longa bandagem, enrolou-a no peito do doente,
passando de vez em quando algumas folhas de trevo entre as dobras da
bandagem. O que quer que o enfermeiro-chefe pensasse sobre esse
remé dio, pelo menos a comunidade conseguia dormir em paz a noite
toda sem ser chamada para sua cabeceira. De manhã , o sacristã o tirou
as badulaques que havia preparado perto da porta da cela do irmã o
Ferdinand para convocar a comunidade. Eles nã o eram mais
necessá rios porque Ferdinand adormecera apó s o tratamento de
Martin e acordou de manhã sem dores. Ele se levantou e continuou sua
rotina normal.
Quase brincando, Martin sussurrou para ele enquanto o amarrava:
“Nã o preste atençã o ao que os mé dicos disseram. Você provavelmente
vai morrer uma hora ou outra, mas nã o desta doença. ”
Alguns anos depois, o irmã o Ferdinand teve outro ataque da
mesma doença, tã o doloroso que quase se arrependeu de nã o ter
partido para o outro mundo, depois de ter sofrido da mesma doença no
mosteiro com seus irmã os e cercado de todos os cuidados. Agora ele
estava viajando sozinho por um vale deserto na estrada entre Arequipa
e Lima, sem mé dico, sem padre, sem casa onde pudesse pedir abrigo. E
a dor em seu lado aumentou a tal ponto que ele icou desamparado.
Já que nenhuma ajuda seria obtida da terra, ele implorou ajuda do
cé u, rezando com todo o fervor de seu coraçã o a Sã o Domingos e Sã o
Francisco para ajudá -lo em sua situaçã o desesperadora. Ainda rezava
quando um jovem franciscano, passando montado em sua mula, parou
e deu ao irmã o Ferdinand o consolo dos sacramentos. Entã o, enquanto
continuava a rezar de olhos fechados, pedindo para poder viver e servir
a Deus, pareceu-lhe que viu Sã o Domingos, que lhe disse: “Meu ilho,
você nã o vai morrer, mas tome preste atençã o em consertar seus
caminhos e servir melhor a Deus. ”
Quando ele abriu os olhos, ele descobriu que podia andar e
felizmente retomou sua jornada para Lima. Ao chegar ao mosteiro,
dirigiu-se à cela do prior para pedir sua bê nçã o. No caminho para lá , ele
viu a porta do depó sito da enfermaria se abrir e en iou a cabeça para
contar a Martin sobre suas aventuras. Sem lhe dar tempo para falar,
Martin disse: “Você teve dois bons protetores e deve ser grato ao nosso
Patriarca. Mas certi ique-se de fazer o que você prometeu a ele. ”
Depois de tal experiê ncia, é inconcebı́vel que o irmã o Ferdinand
nã o tenha tentado consertar seus caminhos e servir melhor a
Deus. Mais tarde, poré m, isso nã o o impediu de entrar em di iculdades
com seu superior e sucumbir à melancolia por causa disso. Muitas
outras vezes pensara que a vida de padre seria a soluçã o para suas
di iculdades, mas nã o era tarde demais?
“Venha, venha, coragem. Daqui a quatorze anos você nã o terá que
pensar mais sobre essas coisas! ” disse Martin, que nã o suportava ver
gente triste.
“E verdade, porque daqui a quatorze anos estarei morto”,
respondeu o irmã o Ferdinand, mais lú gubre do que nunca.
Em vez disso, quatorze anos depois, o padre Ferdinand subiu ao
altar, tomado de alegria e emoçã o ”.
Um dia Martin estava discutindo assuntos espirituais com um pai
bastante idoso, um daqueles naturalmente homens rı́gidos e
intransigentes, mas dotados de grande bondade de coraçã o e
virtude. Estavam conversando sobre a observâ ncia regular da regra e a
perfeiçã o cristã quando um jovem religioso passou, usando um par de
sapatos novos e brilhantes, que lhe caı́am perfeitamente e eram um
pouco elegantes. Nã o eram o tipo de calçado normalmente usado em
um mosteiro.
O velho padre icou chocado ao ver aquele par de sapatos justo no
momento em que conversavam com tanto fervor de perfeiçã o e
observâ ncia religiosa.
“O que você acha da leviandade daquele jovem religioso?” ele
perguntou ao seu companheiro.
Martin nã o gostava de julgar os outros. Se ele tinha que opinar,
procurava o lado bom.
“Nã o, nã o”, ele respondeu imediatamente, “nã o é uma questã o de
leviandade. A grande providê ncia de Deus permite esse desvio para que
os pecadores possam ser trazidos de volta para ele. Sabe, padre, há
pessoas tã o acostumadas a uma vida fá cil e a prazeres que se assustam
quando se fala em austeridade. Imaginemos agora que um homem
assim, cuja vida é bastante desordenada, venha aqui para confessar os
seus pecados. . . . Você acha que sua aparê ncia austera e aqueles
sapatos do tamanho de barcos que você usa inspirariam con iança em
seu coraçã o? De jeito nenhum! Mas se ele visse aquele jovem sacerdote
com seus lindos sapatinhos, ele poderia pensar: 'Agora há um que vai
me entender!' E ele iria se confessar, e entã o a graça de Deus faria o
resto. ”15
O bom padre aceitou a liçã o e riu muito com Martin.

Capítulo 15
“Quem crê em Mim, as obras que Eu faço també m as fará .” ( João 14:12).
UMA
A IDADE de dezessete anos o Irmã o Louis Gutié rrez se preparava para a
pro issã o religiosa no mosteiro dominicano de Santa Maria
Madalena. Durante o recreio em um dos dias de carnaval, ele notou
outro noviço, distraidamente, segurando um pedaço de fruta na mã o.
O irmã o Louis queria pregar uma peça. Ele silenciosamente se
aproximou do outro noviço e tentou arrebatar a fruta. Ele pretendia
apenas brincar, pegar a fruta e depois devolvê -la. Mas na empolgaçã o da
briga, ele fechou a mã o sobre a fruta e a faca que o outro noviço estava
segurando e cortou seu quarto e quinto dedo profundamente,
Assustado mais com a perspectiva de uma eventual repreensã o do
mestre dos noviços do que com o corte, e convencido de que, como a
ferida era tã o recente, a ú nica coisa necessá ria era estancar o luxo de
sangue, o Irmã o Louis amarrou irmemente os dedos com o primeiro
um pedaço de pano que ele encontrou e esperou que os dois cortes
cicatrizassem.
Ele deixou o curativo por trê s dias. No terceiro dia, uma febre, uma
dor latejante nos dedos e uma dor que lhe paralisou os braços, obrigou-
o a tirar o curativo para ver como estavam os dedos. Ele viu uma mã o
inchada, in lamada e azul pavã o, da qual o quarto dedo pendia inerte,
pois os nervos haviam sido cortados.
A essa altura, o irmã o Luı́s já nã o tinha ilusõ es e percebeu que nã o
era brincadeira. Ele lembrou que durante os dias de fé rias Martin
costumava vir ao mosteiro de Madalena para fazer penitê ncia e passou
a procurá -lo. Ele o encontrou em uma cela e bateu na porta,
"O que é ?" chamou uma voz de dentro, sem o menor traço de
aborrecimento, e imediatamente a porta se abriu. Martin viu um noviço
chorando que lhe mostrou o dedo que pendia de sua mã o e que talvez já
tivesse gangrena. Bastou um olhar para Martin fazer um diagnó stico
exato. Nã o havia tempo a perder. Sem nenhum exagero piedoso, Martin
começou encorajando o paciente. “Nã o tenha medo, pequena! Seu corte
é desagradá vel e perigoso també m, mas Deus irá curá -lo. ” Ele levou
Louis para o jardim, perto da lavanderia. Procurou uma erva, a erva de
Santa Maria, cortou duas folhas, amassou-as entre duas pedras, aplicou
a polpa nas feridas e espalhou na mã o para cobrir toda a parte
in lamada, fazendo o sinal da cruz isto.
O irmã o Louis lamentou ter agido rá pido demais da primeira vez e
agora estava inclinado a exagerar no outro sentido. Ele teria preferido
ver Martin usar algum instrumento cirú rgico para ter certeza de que o
tratamento era e icaz. Quando Martin terminou de espalhar a erva
triturada em sua mã o, Louis nã o resistiu e perguntou: "Isso é tudo?"
"Sim, isso é tudo", respondeu Martin serenamente. “Volte para o
seu noviciado em paz.”
Ainda descon iado, o jovem noviço olhou para sua mã o. O inchaço
já estava começando a diminuir e seu braço nã o doı́a mais a cada
movimento.
Na manhã seguinte, o irmã o Louis icou surpreso ao ver que nã o
apenas a in lamaçã o havia desaparecido, mas os nervos cortados
obviamente voltaram a se juntar de uma forma ou de outra, porque ele
havia recuperado o uso completo do dedo.
Por vá rios minutos, Louis lexionou seu quarto dedo e se alegrou
com o uso recuperado dele. Foi uma alegria poder mover os dedos, a
mã o e o braço sem sentir dor. Ele teria sido tentado aAcredito que toda
a experiê ncia dos ú ltimos dias tenha sido um pesadelo se as cicatrizes
dos dois cortes nã o fossem visı́veis nos ú ltimos dois dedos de sua mã o.
E as cicatrizes permaneceram, pois em 1660 Luı́s, entã o sacerdote,
as mostrou ao relatar os fatos durante o Processo. A maravilha
aconteceu por volta de 1630.1
Ao curar o irmã o Louis, Martin trabalhou como sempre fazia. Como
o descreveu o Padre Gonsalvo Garcı́a de Guzmá n: “O irmã o Martin
aplicou na ferida um remé dio ordiná rio e fez sobre ela o sinal da cruz,
sem nenhum outro remé dio, depois de alguns dias a ferida sarou”.2
Martin nã o negligenciou os "remé dios comuns". Ele nunca se
esqueceu que era mé dico e que havia passado muitas horas durante a
juventude estudando remé dios e as propriedades das ervas
medicinais. Quando ele estava tratando de um paciente, ele era antes de
tudo um mé dico. Nã o teria parecido certo para ele dispensar suas
habilidades e pedir um milagre onde nenhum fosse necessá rio.
Uma vez, por exemplo, algué m que sofria de má digestã o e insô nia
aparentemente desejava obter uma cura surpreendente. Ele prendeu
Martin para forçá -lo a icar com ele até que fosse curado. Martin
certamente riu de si mesmo com essa açã o dramá tica e sugeriu o
remé dio aconselhado pelo bom senso comum, um remé dio que
qualquer pessoa poderia ter sugerido se o clima opressivo de verã o do
Peru fosse levado em consideraçã o. "Coloque sua cama entre a porta e
a janela, onde você vai conseguir mais ar." O irmã o John de Vargas, que
esperava algo espantoso e quase milagroso, teve o bom senso, poré m,
de seguir o conselho simples e ló gico. E o sono reparador que
desfrutou naquela noite melhorou sua digestã o e o convenceu a seguir
a receita també m nas noites seguintes.3
O caso do irmã o André Martı́nez foi totalmente diferente, sendo um
dos raros casos em que Martin recorreu a um remé dio que era bizarro,
para dizer o mı́nimo. Andrew tinha acabado de fazer seus votos quando
adoeceu de febre terciana. Depois que a febre se arrastou por um
perı́odo considerá vel de tempo, ele percebeu que seus pulmõ es
estavam afetados. Ele desistiu de toda esperança de recuperaçã o e caiu
em um estado de melancolia.
Um dia Martin o viu nesse estado de â nimo desanimado e teve
compaixã o dele. Disse ao Irmã o André que tomasse coragem e
aconselhou-o a tomar um bom banho naquela mesma noite na piscina
do centro do claustro do noviciado.
O irmã o Andrew riu da ideia. Martin devia estar brincando para
sugerir tal coisa a algué m tã o fraco que mal conseguia icar de pé .
Mas Martin nã o estava brincando e repetiu seu conselho: um bom
banho frio ao cair da noite era o que ele precisava para recuperar a
saú de.
Desta vez, o irmã o Andrew parou de rir e levou o conselho a
sé rio. Talvez ele tenha pensado: “Vou morrer de qualquer maneira,
entã o é melhor tentar”. Algué m que soube do plano tentou dissuadi-lo,
dizendo: “Você está louco? Com a doença que você tem! ”
Mas Andrew havia se decidido. Ele comeu com os outros naquela
noite e quando toda a comunidade foi para suas celas, ele foi para a sua
també m. Por volta das dez horas daquela noite, ele desceu ao claustro,
tirou o há bito e mergulhou na piscina. A á gua estava tã o fria que ele
perdeu o fô lego e, apressada e furiosamente, saltou da piscina. Mas
entã o ele decidiu que a imersã o tinha sido rá pida demais para ser
chamada de banho e resolutamente mergulhou novamente. Ficou tanto
tempo na á gua que icou paralisado de frio e nã o conseguiu sair
sozinho. Felizmente passou um irmã o leigo que o pescou e,
encontrando-o completamente entorpecido, enxugou-o, enrolou-o em
lã e colocou-o na cama, tentando aquecê -lo o melhor que podia com
cobertores e cinzas quentes num braseiro.
Mal o bom irmã o leigo terminou de enrolá -lo nas cobertas, o irmã o
Andrew adormeceu e dormiu profundamente até de manhã . Quando
acordou, descobriu que estava curado.4
Martin nã o abusou desse tipo de remé dio estranho. Ele preferia os
remé dios comuns, ou aqueles que, mesmo que à primeira vista nã o
parecessem capazes de melhorar a situaçã o, pelo menos nã o a
tornariam pior. Martin usou seus remé dios e pediu a Deus que os
tornasse e icazes ao fazer o sinal da cruz sobre a parte afetada, mas
mesmo nesta oraçã o e neste sinal da cruz nã o havia nada de
dramá tico. Martin invocou a ajuda de Deus com total simplicidade,
assim como qualquer pessoa com tanta fé quanto um grã o de mostarda
invocaria Sua ajuda para qualquer ato. Mas o Evangelho diz que esse
mı́nimo de fé é su iciente para tornar as forças da natureza obedientes
a um grau que excede até mesmo nossas expectativas.
No caso de Martin, Deus estava sempre pronto para ouvir suas
oraçõ es, para dar sem medida, para atender seus pedidos simples com
generosidade divina. Na verdade, o Espı́rito de Amor estava quase sob
as ordens deste humilde irmã o “para ministrar diferentes graças e
dons”. E Martin nã o conseguiu evitar que Deus fosse generoso. Mesmo
que pudesse fazê -lo, nã o o teria desejado, porque a generosidade da
bondade divina ajudou seus irmã os sofredores em Cristo. E assim
Martin, com total simplicidade, utilizou a fonte de riqueza in inita.
“Eu vi isso ser feito assim na França, nos hospitais de Bayonne”,
disse Martin certa vez, para dissipar as dú vidas de seus colegas de
enfermaria sobre a e icá cia de algum tratamento ainda novo em Lima.5
Martin fez o comentá rio com a mesma simplicidade com que teria
falado de tê -lo aprendido na escola de Marcel de Rivero, sem se dar
conta dessa a irmaçã o, para quem o conhecia há muito tempo e sabia
que ele nunca fora. longe de Lima, equivalia a uma prova de sua
capacidade de viajar de um lugar a outro e exercer seu poder em
muitos lugares ao mesmo tempo. Este poder, també m, ele recebeu
praticamente sem medida.
Martin recebera dons extraordiná rios, mas nã o os usava por
capricho ou fantasia. Cada deslocamento para um lugar perto ou longe -
seja uma questã o de ir ensinar a doutrina cristã à s crianças do Extremo
Oriente, para restaurar a paz em uma famı́lia nas portas de Lima, para
levar ajuda a um cristã o caı́do nas mã os dos muçulmanos no Marrocos,
ou para aprender as ú ltimas descobertas da medicina em um hospital
na França - todo deslocamento milagroso pelo dom da agilidade ou seu
poder projetado surgiu, assim como todas as suas açõ es de caridade.
Uma noite, Martin deixou o mosteiro, cujas portas estavam todas
fechadas, e foi para Lima. Ele entrou no hospital de St. Ann e foi para a
cama de um ı́ndio moribundo. Ningué m lhe disse que o ı́ndio estava
morrendo sem ser batizado. Ele começou a conversa com algumas
perguntas gerais, mas rapidamente chegou ao ponto que mais o
interessava. “Você é batizado?”
O ı́ndio estava tã o gravemente doente que respondeu com
di iculdade, mas nenhuma longa discussã o foi necessá ria para que ele e
Martin se entendessem. Em poucos minutos, Martin chamou o capelã o
do hospital, que batizou o ı́ndio. O ı́ndio morreu, e sua alma, perfumada
com a graça recé m-recebida, deixou o corpo desgastado por tantas
privaçõ es e sofrimentos, e foi para sua recompensa eterna.
Martin voltou ao mosteiro, entrando como havia saı́do, pelas
portas gradeadas e trancadas.6
Visto que cuidar dos enfermos era a principal ocupaçã o de Martin,
era natural que o Espı́rito Santo concedesse Seus dons de maneira
especial para ajudá -lo nessa obra. “Para ajudar os enfermos em suas
necessidades e a liçõ es, ele penetrou nas paredes mais grossas, eas
portas trancadas das celas, e entraram nas salas mais secretas do
noviciado em horas proibidas, tendo aprendido por revelaçã o divina o
que os enfermos precisavam e sofriam ”, disse o padre Christopher de
Toro, que reforçou seu testemunho com uma experiê ncia pessoal.
O padre Christopher, como o irmã o Andrew, acabava de terminar o
noviciado quando precisava de Martin, mas por causa de uma doença
diferente daquela que era curada com um banho frio. Christopher
acabara de fazer a con issã o quando teve uma forte dor de dente. Ele o
suportou por vá rios dias, entã o decidiu extrair o dente. Ele foi a um
irmã o leigo na enfermaria, que era especialista em extraçõ es, embora
fosse um tanto rude, tã o rude que ao arrancar o dente rasgou a gengiva
e a cavidade dentá ria e causou uma hemorragia que nã o pô de ser
estancada. .
Depois de uma semana de hemorragias, sem comida e as noites
passadas com tanta dor que ele nã o conseguia dormir, o irmã o
Christopher estava no im de suas forças e desmaiava com frequê ncia. O
que foi pior, ele começou a perder todas as esperanças de ser curado e
sucumbiu ao desâ nimo.
Um pouco de esperança renasceu, poré m, ao lembrar que alé m do
pobre irmã o que extraı́a os dentes, Martin també m estava na
enfermaria. Ele pensou que se ainda tivesse alguma chance de ser
curado, isso estaria nas mã os do santo enfermeiro, e ele obteve
permissã o do mestre dos alunos para que Martin fosse vê -lo.
Martin entrou na cela do irmã o Christopher. Ele o encontrou em
lá grimas, sofrendo intensamente. Martin começou dando-lhe dois
pequenos tapinhas, ou carı́cias, na bochecha dolorida e um
encorajador: “Calma, meu garoto, nã o se preocupe. Com a ajuda de
Deus, isso nã o vai signi icar nada. ”
Martin pegou um io seco e colocou na cavidade do dente. O sangue
parou de luir e a dor intensa desapareceu.
O irmã o Christopher sentiu-se como se tivesse renascido. Ele
apreciou sua refeiçã o naquela noite, e no momento em que colocou a
cabeça no travesseiro, ele adormeceu paci icamente,
Mas à uma hora da manhã ele acordou sobressaltado. A dor voltou,
mais forte do que nunca. O retorno do sofrimento apó s vá rias horas de
alı́vio renovou todas as sensaçõ es dolorosas dos dias anteriores,
incluindo uma sensaçã o quase invencı́vel de desâ nimo.
O irmã o Christopher levantou a cabeça do travesseiro, o que
parecia causar uma agonia intolerá vel, e sentou-se em sua cama
chorando. No momento, era tudo o que ele podia fazer. Mesmo que
tivesse pedido ajuda, ningué m teria atendido naquela hora da manhã
porque era a hora das matinas e toda a comunidade estava em coro. Até
os religiosos que compartilhavam sua cela tinham ido para as matinas.
Enquanto chorava, ele pensou em Martin, que lhe dera tanto alı́vio
pouco tempo antes. Se ao menos Martin pudesse estar com ele!
E lá estava Martin, ao lado da cama, sorrindo por causa do
desâ nimo, batendo de novo afetuosamente na bochecha dolorida dele e
repetindo o que havia dito na primeira vez: “Venha, rapaz, nã o se a lija,
isso nã o é nada! ”
Martin removeu o curativo e os ios intactos da cavidade do
dente. Os ios estavam tã o intactos e secos que o jovem religioso foi
forçado a concluir que “ele os havia colocado ali para esconder o fato de
que a cura era o resultado do contato de sua mã o”. E desta vez a dor foi
acalmada para sempre.
Ao cuidar de seus enfermos, Martin tinha à sua disposiçã o, por um
lado, seus conhecimentos mé dicos, sua experiê ncia, uma vontade que o
conduzia por uma atividade incessante, incansá vel e inteligente; e por
outro lado, ele tinha os dons que havia recebido por causa de seu alto
grau de santidade. Ele se valeu de todos estesrecursos de acordo com
as necessidades que surgiram, sem nunca negligenciar os meios
naturais, e sem perder o senso de equilı́brio por causa da abundâ ncia e
riqueza dos dons sobre os quais lhe foi dado o controle. “Sua mã o
esquerda pesava tanto quanto a direita”8Poderia se dizer de sua
maneira simples de empregar o natural e o sobrenatural sem nunca
parecer um curandeiro milagroso, sem assumir falsos ares, sem sequer
deixar ver qualquer diferença entre o trabalho feito pela mã o esquerda
e o feito pela direita. Na verdade, como testemunhou Christopher de
Toro, Martin preferia que se visse o trabalho da mã o esquerda, pois lhe
parecia menos perigoso ser considerado mé dico do que ser
considerado santo.
Mas ele nem sempre teve sucesso. As vezes a impaciê ncia de um
paciente, à s vezes as circunstâ ncias providenciais tornavam inú teis
suas precauçõ es. O que aconteceu a Martin no ú ltimo ano de sua vida
durante a doença do arcebispo Felician de la Vega já havia acontecido,
no ano anterior, no caso do padre Louis de Guadalupe. Os fatos foram
relatados durante o Processo pelo Padre John de Barbazá n, que
desempenhou um papel importante no caso.
Cerca de trê s horas da manhã , o padre John foi acordado por uma
batida forte na porta de sua cela. Foi um negro que lhe implorou que
fosse imediatamente administrar os ú ltimos sacramentos ao padre
Louis, que estava morrendo. Sem perder um minuto, o padre John
correu para o lado do doente. Ele o encontrou sem palavras e mal
respirando, entã o ele teve que dar-lhe a absolviçã o sem poder ouvir sua
con issã o.
Martin chegou carregando um braseiro cheio de brasas
quentes. Como de costume, ele saudou o enfermo com um convite para
louvar a Deus. Em seguida, borrifou vinho no braseiro e, aproximando-
se da cama e puxando as cobertas, pediu ao padre Louis que lhe
mostrasse onde estava a dor para que ele pudesse aquecê -la.
A ú nica resposta que o padre Louis conseguiu dar foi pegar na mã o
de Martin e pressioná -la com irmeza no local dolorido. O alı́vio
imediato proporcionado pelo toque da mã o de Martin permitiu-lhe
falar, e ele exclamou: “Bendito seja Deus e este bom servo de Deus! A
dor passou e nã o há necessidade de brasas quentes! ”
Martin icou confuso por causa do que sua pró pria mã o tinha feito
precipitadamente e, apó s um momento de silê ncio, com os olhos no
chã o, explodiu em protestar contra as palavras do padre Louis: “E assim
que você zomba de um pobre mulato?"
Sem outra palavra, ele saiu abruptamente e saiu para tocar a
campainha da manhã .9
As vezes, o Doador de presentes e graças agia sem avisar
Martin. Francis Ortiz estava entre os discı́pulos que visitaram a cela de
Martin. Ele era “um homem de uma vida tã o boa”, segundo o padre de
Saldañ a, “que foi considerado e venerado como um santo”. Francis
sofria de fortes dores de cabeça. Certa manhã , enquanto ele estava na
igreja do Santo Rosá rio para assistir à missa e receber a sagrada
comunhã o, uma dor de cabeça tã o forte começou que, assim que a
missa terminou, ele fugiu para a cela de Martin em busca de ajuda. Ele
encontrou Martin no almoxarifado.
"Estou perdendo o juı́zo", disse ele ao entrar. “Eu me sinto como se
minha cabeça estivesse em um torno de ferro.”
“Venha, venha, nã o ique chateado”, respondeu Martin com sua voz
gentil e encorajadora, sente-se aqui. Talvez você precise de algo para
comer. E apenas uma questã o de fraqueza. Espere por mim aqui; Volto
já com um pouco de algo para você ! ” E ele saiu.
Francis Ortiz, deixado sozinho com uma cabeça que parecia estar
cheia de chumbo, sentiu que devia fazer algo melhor do que sentar em
uma cadeira. Percebendo a cama de Martin, ele se deitou de lado,
colocando um lado de sua cabeça na almofada dura que servia a
Marlata como travesseiro. O mero contato foi su iciente para libertar
aquele lado de sua cabeça da dor.
Enquanto isso, Martin voltou com uma tigela de sopa e o convidou
para comer. "Um momento", disse Francis Ortiz, "este é o seu
travesseiro?"
"E nosso, irmã o", respondeu Martin,
“Entã o eu entendo”, exclamou Francis, e seguindo sua linha de
raciocı́nio disse a si mesmo, “se esse travesseiro pode me livrar das
dores de um lado da minha cabeça, por que nã o faria o mesmo com o
outro? Vamos tentar."
Imediatamente ele rolou para o outro lado, colocando a cabeça
dolorida no travesseiro, e a dor desapareceu ali també m, tã o
completamente que, ao se levantar da cama, Francis teve di iculdade
em acreditar que havia se sentido tã o mal alguns momentos antes. E,
homem santo que ele era, ele agradeceu a Deus antes de tudo por tê -lo
curado, mas especialmente por ter dado tal abundâ ncia de graça a Seu
servo Martin que mesmo os objetos que Martin usava podiam fazer
milagres. Entã o Francisco foi ver o prior e relatou todos os detalhes do
ocorrido, contando-os també m a muitas outras pessoas.10
O padre John de Barbazá n estava certo quando a irmou que Martin
era “um instrumento vivo das maravilhas de Deus para a saú de dos
enfermos”. A saú de natural e sobrenatural eram os objetivos do
ministé rio de Martinho, com a ajuda de todos os dons com que a
caridade divina o havia enriquecido, mas especialmente com a ajuda do
dom de conhecer o estado real de um doente apesar das aparê ncias
exteriores.
“Abandone este trabalho, nã o é nada urgente”, disse Martin um dia,
tirando das mã os do irmã o Ferdinand tudo o que ele estava fazendo no
momento, “e chame algué m imediatamente para dar os sacramentos ao
irmã o Lawrence. Nã o há um momento a perder! ”
Os mé dicos haviam perdido a esperança para o irmã o Lawrence de
Pareja, mas como o bom e velho irmã o continuava se arrastando,
embora reclamasse de suas enfermidades, o irmã o Ferdinand nã o
acreditava que o im estivesse pró ximo. Mas o padre que carregava o
viá tico ainda nã o havia chegado à porta da enfermaria quando o irmã o
Lawrence morreu.
Por outro lado, quando o Irmã o Ferdinand de Valdé s já havia
recebido os ú ltimos sacramentos e os aplausos foram colocados na
porta de sua cela para chamar a comunidade para as ú ltimas oraçõ es,
Martin a irmou que nã o morreria dessa vez. E alguns dias depois, ele
estava bem novamente.11
Um dia, uma famı́lia de Callao, composta por pai, mã e e seis ilhos,
bateu à porta do mosteiro do Santo Rosá rio. Vieram venerar o corpo de
Santa Rosa de Lima e pedir à quela Serva de Deus que obtivesse a cura
de um de seus meninos. A criança foi carregada para a igreja em uma
maca. Um sé timo ilho, o Irmã o Vicente, estava no mosteiro do Santo
Rosá rio, e o prior concedeu-lhe o privilé gio de mostrar o corpo do
Santo aos seus pais. Mas a mã e nã o icou satisfeita.
“Chame o irmã o Martin por mim”, disse ela ao ilho.
Martin veio, e a mã e implorou a ele: "Peça a Deus para restaurar a
saú de do meu ilho que está doente!"
“Farei isso de bom grado”, disse Martin com sua maneira usual e
cortê s, cheio de compaixã o pela dor da mã e. “Mas devo avisá -lo que
este ilho e quatro outros morrerã o em breve, e apenas o mais novo
icará para você . E a vontade de Deus. ”
Foi exatamente isso o que aconteceu, e o ilho sobrevivente, Peter
Quijano Ceballos, testemunhou.12
Martin foi chamado um dia para visitar e confortar uma jovem
esposa que estava para dar à luz e estava apreensiva. Martin foi vê -la,
acompanhado do padre Francis de la Cruz, e disse à jovem mã e que nã o
tivesse medo, que o bebê nasceria sem di iculdade, mas que mais tarde
a criança lhe causaria muito sofrimento. Marcel de Rivero, que
sobreviveu a Martin, viu o ilho desta mulher contrair um casamento
que desagradou a seus pais e, aos poucos, arruinou sua famı́lia.13
Do caso citado acima, bem como de muitos outros, sabemos que
Martinho à s vezes visitava os enfermos fora do mosteiro e os ajudava
com seus dons naturais e sobrenaturais. A terciá ria dominicana Louise
de Santa Marı́a, depois de uma cura milagrosa predita por Martin,
ingressou no convento dominicano da Segunda Ordem dedicado a
Santa Catarina de Siena. Frances Vé lez Michel, a quem Martin visitou
por causa de sua amizade de longa data (eles eram da mesma idade e
nasceram no mesmo bairro da cidade), garantiu um pedaço de seu
há bito que ela aplicou em seu corpo até que ela se livrasse das dores.14
Mas é ló gico que a maior parte dos eventos extraordiná rios
provocados pelo poder de Deus ocorreram dentro das paredes do
mosteiro do Santo Rosá rio. Nenhum outro lugar jamais testemunhou a
vida devolvida a um homem morto por intermé dio de Martin. Devemos
a histó ria deste acontecimento ao Irmã o Ferdinand de Aragoné s. Ele
havia participado de todos os detalhes do evento e, muitos anos depois,
lembrou-se dele e da empolgaçã o resultante.
O irmã o Thomas estava doente em uma das celas da
enfermaria. Ele era um velho irmã o leigo que trabalhou humilde e
arduamente durante muitos anos no mosteiro do Santo
Rosá rio. Durante toda a sua vida ele foi um exemplo notá vel de todas as
virtudes, e agora estava desaparecendo suavemente, quase
imperceptivelmente. Ele já havia sido ungido.
Martin visitava frequentemente o irmã o Thomas. Alé m de gostar
dele porque trabalharamjuntos há tanto tempo, ele sentiu como um
dever sagrado aliviar os ú ltimos sofrimentos de um homem cuja vida de
dedicaçã o à Ordem foi tã o exemplar.
Visto que Martin nã o podia cuidar dele constantemente, como
agora era necessá rio, ele designou um jovem assistente espanhol para a
cela do irmã o Thomas para que pudesse cuidar do doente dia e noite.
Certa manhã , o jovem espanhol esquentou a sopa e o ovo, que eram
invariavelmente o desjejum do irmã o Thomas. Ele ajudou Thomas a
comer, colocar tudo no quarto em ordem e depois deixou a cela por um
tempo. Quando ele voltou, o irmã o Thomas estava morto.
Apavorado, o rapaz correu em busca do irmã o Martin e o
encontrou no depó sito com o irmã o Ferdinand. Eles foram
imediatamente para a cela do irmã o Thomas. O irmã o mais velho já
estava com frio.
Martin disse que o sinal deve ser dado com os aplausos para
chamar a comunidade para a recitaçã o das oraçõ es que sã o feitas
quando a alma deixa o corpo. Enquanto a comunidade se reunia, ele e o
irmã o Ferdinand fecharam a porta e se prepararam para colocar o
corpo. Ferdinand foi buscar um há bito limpo e preparar uma mesa para
colocar o morto, e Martin começou a rezar diante do cruci ixo.
Certamente, algum segredo foi revelado a Martin durante sua
oraçã o, porque quando ele se levantou, em vez de preparar o corpo do
irmã o Thomas para o enterro, ele colocou a boca perto do ouvido e o
chamou pelo nome: “Irmã o Thomas!”
Thomas respondeu com um leve suspiro.
"Olha, irmã o Ferdinand, ele está vivo!" gritou Martin para
Ferdinand.
“Nã o me parece”, respondeu Ferdinand. E novamente Martin
chamou: "Irmã o Thomas!"
Desta vez, Thomas mexeu um pouco os lá bios e a lı́ngua, suspirou
de novo e pareceu bocejar.
"Irmã o Thomas!" Martin chamou em voz alta para oterceira e
ú ltima vez, e o rosto do cadá ver assumiu uma cor viva.
"Você nã o vê que ele está vivo?" perguntou Martin, encobrindo o
irmã o Thomas novamente. E Ferdinand exclamou: "Quã o poderoso é
Deus que dá vida aos mortos!"
Martin abriu a porta da cela e disse à comunidade que esperava do
lado de fora que eles poderiam ir embora em paz porque o irmã o
Thomas havia recuperado os sentidos.
"Uma coisa boa!" comentou o irmã o Ferdinand chegando à
porta. “O irmã o Martin diz que recuperou os sentidos, quando na
verdade ele voltou do outro mundo a este mundo!”
Mas o irmã o Thomas nã o parecia ter decidido permanecer na
Terra. Ele icou imó vel em sua cama, seus olhos olhando
ixamente. Martin mandou trazer gemas de trê s ovos frescos para
ele. Quando o irmã o Ferdinand subiu para a cama com as trê s gemas,
ele viu um lampejo de compreensã o nos olhos sem vida.
Com a destreza adquirida ao longo dos anos em que cuidaram dos
enfermos, Ferdinand e Martin alimentaram o irmã o mais velho e
conseguiram fazê -lo engolir as gemas. Pouco a pouco, o irmã o Thomas
recuperou a consciê ncia. Martin saiu da cela somente quando o retorno
de suas faculdades foi completo e certo.15
Foi surpreendente ver o poder de Deus empregando Martin como
um instrumento dó cil e adaptá vel para operar um prodı́gio tã o incrı́vel
quanto o de trazer de volta à vida um morto. Mas talvez a
condescendê ncia da sabedoria divina seja ainda mais maravilhosa e
comovente quando sugeriu a Martin um meio simples de abrir uma
alma amargurada pelo sofrimento à in luê ncia da graça, revelando-lhe o
desejo secreto de um coraçã o, embora esse desejo fosse apenas para
. . . uma salada de alcaparras!
A histó ria das cambalhotas aconteceu dessa forma. O padre Pedro
de Montesdoca estava com uma perna infeccionada. O infecçã o estava
tã o avançada que a amputaçã o foi discutida. Pode-se entender
facilmente que a perspectiva nã o agradou ao padre Peter. Como a
cirurgia era praticada no sé culo XVII, a amputaçã o de uma perna
envolvia uma dor atroz durante a operaçã o, e a morte geralmente
acontecia logo depois.
Na vé spera do dia marcado para a operaçã o, o padre Peter estava
em sua cela, atormentado por pensamentos sombrios. Nã o é de se
estranhar que, quando viu um irmã o enfermeiro entrar com seu jantar,
o saudou com palavras que teriam sido rudes em qualquer
circunstâ ncia, mas o foram menos com esse irmã o enfermeiro em
particular, que se alegrou com as humilhaçõ es. O fato de o enfermeiro
que trouxe o jantar ao padre Peter se chamar Martin de Porres quase
apagou a grosseria da saudaçã o que recebeu ao entrar na cela. Era de
conhecimento geral que os doentes podiam aliviar suas tensõ es
insultando-o a qualquer momento que parecessem sentir necessidade
disso.
Sem se importar com as boas-vindas que o padre Peter lhe deu,
Martin descobriu o prato que trouxera e ofereceu ao doente a salada de
alcaparras mais apetitosa já vista em Lima.
Os olhos do padre Peter se arregalaram. “Mas, pequeno pai,” ele
disse, mudando radicalmente seu tom de voz e maneiras, “este é o meu
jantar? Quem te deu a ideia dessa salada de alcaparras? ”
O anseio por uma salada de alcaparras exatamente como a que
agora via à sua frente atormentou o doente nas ú ltimas vinte e quatro
horas. A comida era revoltante para ele, e o ú nico sabor que ele podia
pensar como suportá vel ou agradá vel era o gosto fresco e á cido das
alcaparras. Mas como Martin sabia disso? O padre Peter nã o dissera
uma palavra sobre o assunto a ningué m.
Sentado em sua cama, o padre Peter re letiu e olhou para sua
salada de alcaparras em vez de comê -la. Se Martin tivesse sido capaz de
adivinhar seu desejo secreto, quesigni icava que a bondade de Deus
estava cuidando tã o bem dele que até mesmo esse pequeno consolo foi
providenciado para ele. E enquanto a Suprema Majestade
condescendeu em conceder seu menor desejo, ele, absorto em seus
pró prios problemas, cumprimentou Martin rude e rudemente no exato
momento em que Martin estava trazendo-lhe um presente tã o precioso!
A emoçã o e o arrependimento abrandaram o coraçã o do padre
Peter, que até entã o tinha estado congelado pela ideia da sua desgraça
iminente. Ele implorou perdã o a Martin e agradeceu pelo presente. De
repente, a esperança brilhou em sua mente. “Irmã o Martin, você se
importaria de olhar minha perna? Você sabe que será amputado
amanhã . ”
Martin se inclinou e gentilmente começou a desenrolar a
bandagem, tomando muito cuidado para nã o sacudir a perna. Ele sabia
qual seria o im do caso, mas depois dos eventos anteriores ele nã o
poderia recusar o pedido do padre Peter.
Ele soltou a perna da bandagem e gentilmente colocou a mã o sobre
ela. Nada mais.
A perna foi curada.16
Em 1634, chuvas torrenciais causaram um aumento terrı́vel nas
á guas do rio Rimac. Em vá rias localidades ao redor de Lima o rio
transbordou, causando sé rios danos. Quando a crista da enchente
atingiu Lima, um dos edifı́cios em maior perigo era uma igreja dedicada
a Nossa Senhora. Visto que havia mó veis de grande valor na igreja, os
cidadã os da cidade se esforçaram para salvar o tesouro.
Quando eles estavam prestes a iniciar o trabalho de resgate, Martin
chegou. Pegou trê s grandes seixos e, depois de invocar a Santı́ssima
Trindade, colocou um seixo à beira da á gua. Ele jogou o segundo na
á gua lamacenta, a uma curta distâ ncia da beira da á gua. Ele jogou o
terceiro bem no centro da corrente. Entã o ele caiu de
joelhosrezar. Aqueles que tinham vindo para esvaziar a igreja de seus
tesouros seguiram seu exemplo e em pouco tempo viram que o dilú vio
estava diminuindo. Um pouco depois, o rio voltou ao seu leito normal.
Cheios de entusiasmo e ainda um pouco in luenciados pelo espanto
inicial, o povo decidiu expressar sua gratidã o construindo uma nova
igreja em um local mais seguro. Mas Martin os dissuadiu, garantindo-
lhes que as á guas do Rimac jamais destruiriam a igreja de Nossa
Senhora de las Cabezas .
E o tempo provou que Martin estava certo.17

Capítulo 16
"O caminho dos justos, como uma luz brilhante, vai adiante e aumenta até o dia perfeito." ( Prov .
4:18).

T
HE primeiro de janeiro de 1639, encontrou Martin em seu sexagé simo
ano. No dia primeiro de janeiro de 1640, ele nã o estaria mais na Terra.
Os primeiros meses de 1639 nã o marcaram nenhuma mudança na
vida de Martin. Mas com o inı́cio do verã o, Felician de Vega, bispo de La
Paz, Bolı́via, foi nomeado arcebispo da Cidade do Mé xico. Ele
interrompeu sua viagem para sua nova sede com uma visita a Lima,
uma parada que poderia ter sido a ú ltima de sua vida se os poderes
curativos das mã os de Martin nã o tivessem sido empregados a tempo
de curá -lo da pneumonia que o acometeu durante a jornada dele.
Esse evento quase trouxe uma mudança notá vel na vida de
Martin. O arcebispo, feliz pela cura e feliz por ter reencontrado seu
antigo conselheiro, pediu ao Padre Provincial que o deixasse levar
Martin com ele para o Mé xico. Como seria difı́cil dizer nã o a um
arcebispo, o Padre Provincial disse sim, mas o fez com o coraçã o
pesado, nã o só porque pessoalmente se arrependeria da partida de
Martin.ing, mas també m porque ele sabia que todos os frades icariam
tristes por isso.
Martin, por outro lado, icou feliz ao saber da decisã o de seu
superior. A vida em Lima estava se tornando muito pesada para ele. Ele
era muito conhecido. Muitas pessoas o tratavam como se fosse um
orá culo. E muito bom dar um conselho - foi um ato de caridade e ele o
fez de boa vontade - mas nã o deve ir longe demais. E o povo de Lima
estava indo longe demais. Eles nã o estavam adquirindo o pé ssimo
há bito de chamá -lo de "santo irmã o Martin?"1
No Mé xico, ele seria desconhecido e poderia esperar viver lá em
sua amada obscuridade, escondendo seu eu insigni icante atrá s do
esplendor do arcebispo e de sua corte. Quando voltou ao mosteiro
depois de curar o arcebispo Felı́cio, um irmã o perguntou-lhe se nã o
teria sido melhor icar no palá cio de Sua Excelê ncia o arcebispo. A
resposta que deu entã o foi uma prova de sua idelidade à escolha da
parte mais humilde. Essa resposta ainda era vá lida, mesmo depois que
a vontade de seu superior o designou para o palá cio do arcebispo. Lá ,
mais do que nunca, Martin teria preservado a humildade caracterı́stica
de toda a sua vida.
Mas a viagem ao Mé xico, segundo o irmã o Francis de Santa Fe,
agradou a Martin, porque ele esperava que fosse um primeiro passo
para o Japã o, uma terra santi icada pelo sangue de tantos má rtires
dominicanos, uma terra de esperança para Martin.2
Por enquanto, poré m, a partida nã o deveria ser considerada, pois
Sua Excelê ncia o arcebispo pretendia icar mais alguns meses em Lima
antes de retomar sua viagem.
Martin continuou sua vida normal sem pensar no dia seguinte. Um
dia, os outros religiosos icaram surpresos ao vê -lo usando um novo
há bito. Nos quarenta e cinco anos desde que Martin entrou nomosteiro
do Santo Rosá rio, nunca ningué m o tinha visto com um novo há bito.
"O que aconteceu?" O padre John de Barbazá n perguntou a
ele. Esse novo há bito em Martin deu-lhe uma estranha sensaçã o de mal-
estar, parecia uma nota falsa. Mas, a inal, Martin tinha que se preparar
para a partida para o Mé xico e certamente nã o poderia acompanhar o
arcebispo vestido com seu traje esfarrapado de costume.
Martin adivinhou o pensamento do padre John e riu. “Este é o
há bito em que devo ser enterrado”, respondeu ele de forma muito
simples.
Padre John nã o riu. Ele també m foi o discı́pulo iel de Martin e se
esforçou para andar à luz dessa vida humilde, simples e
luminosa. Agora teve a impressã o de que em um instante tudo
mergulhou na escuridã o. Ele pró prio partiria dentro de alguns dias,
mas esperava encontrar Martinho no Santo Rosá rio quando voltasse,
pois talvez nã o tivesse de icar permanentemente com o arcebispo do
Mé xico. E agora ele deve renunciar até mesmo a essa vaga esperança.
Mas quando o padre Barbazá n foi despedir-se dele, Martin disse-
lhe: “Logo nos veremos, porque você nã o estará ausente de Lima por
muito tempo”.
Padre Barbazá n respondeu: “Nã o posso voltar antes do inal do
ano, porque os superiores estã o me enviando a Cuzco para ensinar
teologia”. E ele partiu em sua jornada.
Pouco depois, um imprevisto o obrigou a voltar, e sua segunda
partida deve ter sido adiada por vá rios meses ou cancelada totalmente,
porque quando Martin morreu, o padre Barbazá n ainda estava em Lima
e no mosteiro do Santo Rosá rio.3
Martin també m disse algo sobre sua morte iminente a John de
Figueroa. Este ú ltimo pediu-lhe que orasse por sua alma quando
chegasse o momento de sua morte, e Martin respondeu baixinho: "Eu
morrerei primeiro."4
Poucos dias depois de Martin adquirir o novo há bito, ele o removeu
e foi para a cama. Ele adoeceu com uma febre violenta e fortes dores em
todo o corpo, especialmente na cabeça. O outono havia chegado, e todos
os anos naquela estaçã o Martin tinha que lutar contra uma recorrê ncia
da febre quartã , mas este nã o era um ataque comum. Ele sabia e disse
isso desde o inı́cio, porque o Espı́rito Santo, que durante toda a longa
carreira mé dica de Martin freqü entemente lhe revelara o resultado das
enfermidades de seus pacientes, revelou-lhe o im de sua pró pria
doença.
No mesmo dia em que a febre o atingiu, Martin disse claramente a
seus irmã os que esta seria sua ú ltima doença, e os frades, alarmados
com a idé ia de perder seu querido Martin, imediatamente chamado de
Doutor Navarro, um dos mé dicos do mosteiro .
Nã o temos registro do diagnó stico do doutor Navarro, mas
sabemos que ele ordenou a aplicaçã o de um cataplasma feito com
sangue de galos jovens recé m-mortos para aliviar as dores de cabeça
de Martin. Com um gesto calmo, Martin conteve os que se apressavam
em cumprir a receita, dizendo que era uma pena matar os pobres
animais para inventar um remé dio inú til. E até o doutor Navarro
admitiu que nã o havia nada a ser feito.5
Esse foi o ú ltimo ato de amor de Martin pelos animais. E como em
seu amor por todas as coisas criadas, també m em tudo o mais, Martin
na morte foi o que ele foi em vida. Toda a sua vida foi uma preparaçã o
para a morte. Agora que a morte estava pró xima, nã o havia nada a
mudar. Ele nã o mudou nada, mas concentrou todas as suas energias em
ser iel até o im, enquanto suas forças fı́sicas começaram a abandoná -
lo.
Quando a febre o atacou, ele se deitou em sua cama de tá buas de
costume, em sua tú nica de saco surrada. A autoridade do prior o
obrigou a mudar para uma cama de verdade e a trocar o manto de saco
por uma tú nica de tecido comum. Martin obedeceu, dó cil como uma
criança.Mas a tú nica, que deveria ser um alı́vio, tornou-se um tormento
tal que ele implorou ao superior que o deixasse vestir o saco
novamente.6
Quando essa permissã o foi concedida, Martin nã o pediu mais
nada. A febre o consumiu, as variaçõ es repentinas em sua temperatura
desgastaram sua resistê ncia corporal. Todos os seus membros doı́am e
sua cabeça parecia a ponto de explodir. Abandonou o seu corpo aos
tormentos da doença sem reclamar, para que pudesse continuar a unir
passivamente os seus sofrimentos aos da paixã o de Jesus, agora que a
sua fraqueza o impedia de o fazer de forma mais activa.
Sua expressã o nã o mudou. Ele estava tã o sereno e calmo como
sempre. Mas seus olhos e seu sorriso adquiriram uma luz mais suave e
profunda. Os espectadores sentiam a presença de algo grande e sagrado
naquele pobre corpo desgastado pelo trabalho e pelo sofrimento, algo
que fazia da cama do religioso moribundo um centro de forte atraçã o.
Agora que a morte se aproximava signi icava o im de todos os
desejos, que coisa pequena lhe parecia toda a sua vida! Quã o breves
pareceram seus sessenta anos, vistos no inal! E os trabalhos que
haviam preenchido aqueles anos pareciam muito inconseqü entes,
agora que era hora de traçar os limites e resumi-los. Entã o, ele usou a
presença de seus irmã os ao seu redor para reparar o que lhe parecia
estar faltando. Ele se acusou de ter perdido a vida, de ter sido
descuidado no serviço de Deus. Ele implorou a todos que o perdoassem
pelo mau exemplo que havia dado e orassem por ele. Eles nã o
conseguiram conter as lá grimas. Ficaram divididos entre a admiraçã o
por tamanha humildade e o pró prio conhecimento de suas virtudes
heró icas, entre a lembrança de todo o bem que receberam dele e a
tristeza pela perda que enfrentaram. Eles estavam cheioscom
compaixã o pelos sofrimentos do irmã o que sempre teve um coraçã o de
pai para com todos.
Dois ou trê s dias antes de morrer, Martin perguntou ao irmã o
Anthony Gutié rrez, que havia sido designado a ele como enfermeiro:
“Por que você está chorando, anjinho?” O fato de já estar quase alé m de
todas as formalidades deste mundo dava a Martin o direito de falar com
essa familiaridade simples.
O irmã o Anthony lutou por palavras em meio à s lá grimas que
encheram e encheram seus olhos. “Choro porque Vossa Reverê ncia (e a
fó rmula do respeito saiu espontaneamente de seu coraçã o) me disse
que você iria morrer e que é a vontade de Deus que você morra desta
doença. Já que você deve morrer, eu choro, pois você é meu pai e todo o
meu bem! ”
Martin olhou para ele com um olhar cheio de afeto. Entã o ele disse
a ele em um tom de voz muito só brio e gentil: "Nã o chore, irmã o,
porque talvez eu seja mais ú til lá do que aqui."7
A con iança absoluta de Martin na misericó rdia divina e nos
mé ritos da Paixã o o izeram falar dessa maneira. Mesmo que sua vida
parecesse vazia para ele, sua con iança era ilimitada na bondade do
Salvador que o levaria para o cé u com ele.
A notı́cia da sua doença espalhou-se pela cidade e os seus amigos
fora do mosteiro, nã o menos tristes do que os religiosos, vieram ao
Santo Rosá rio para o ver de novo, para pedir mais uma vez o seu
conselho. Ele estava à beira da morte, mas quem nã o o conhecesse
antes teria acreditado que estava bem, vendo-o calmamente sentado
na cama, sem reclamar, sem qualquer outro pensamento senã o o de
exortar seus ouvintes a fazerem o bem.8 Mas, para quem o conhecia,
ver Martin con inado à cama era um sinal certo de que sua vida estava
no im.
Um dos visitantes mais ié is foi Francis Ortiz. Cada vez que ele
entrava na sala, Martin imploravapara orar por ele, e Francisco
concordou de bom grado em fazê -lo. Certa noite, ele nã o teve coragem
de ir embora, e quando os padres que estavam com o irmã o doente
insistiram que ele deveria ir embora e descansar um pouco, Francisco
pensou: “Esta pode ser a ú ltima noite de sua vida, entã o eu quero
despedir-se dele. ” Voltando-se para a cama onde Martin estava deitado
de lado, com o rosto voltado para a parede, Francis se inclinou e beijou
Martin no pescoço. A resposta de Martin foi levantar o braço e
pressionar a cabeça de Francis contra a sua com tanta força e por tanto
tempo que Francis pingava de suor, enquanto tomava consciê ncia de
um perfume que nunca havia sentido antes, mais perfumado do que as
lores mais doces ! '
A notı́cia també m chegou aos ouvidos do inimigo de todos os bons,
que fez um ú ltimo esforço para conquistar aquele que durante sessenta
anos o havia derrotado. Invisı́vel, ele se aproximou da cama també m e
estudou a con iguraçã o do terreno para ver qual seria o melhor ponto
de onde lançar seu ataque. Teria que ser um ataque forte com armas
comprovadas e seguras contra uma força tã o bem guardada. O diabo
nã o conseguiu encontrar nada melhor do que seu velho cavalo de
batalha e começou a agitar fantasmas de orgulho diante da mente do
moribundo.
“Agora você venceu”, disse ele a Martin. “Você rejeitou todos os
obstá culos sob seus pé s; você é um santo! Você pode parar de bater no
peito; agora é o momento de triunfo! ”
Martin imediatamente reconheceu a falsa voz do pai de todas as
mentiras e o repeliu redobrando seus atos de humildade. Mas o prê mio
era muito importante para ser renunciado tã o facilmente. O inimigo
persistiu, concentrando todas as suas forças como um arı́ete em um
ponto. Se ele pudesse forçar uma culatra ali, todo o resto cairia. Ele
persistia na monotonia de uma gota d'á gua caindo sobre uma pedra, de
um martelo batendo em uma bigorna. Ele esperava que Martin
inalmente dessedentro, por puro cansaço.
A angú stia da luta era visı́vel no rosto de Martin. Em suspense, os
irmã os assistiram e oraram. De repente, um deles disse: “Irmã o Martin,
nã o discuta com o demô nio, que pode fazer o branco parecer preto e o
preto parecer branco, com seus so ismas e so ismas”.
Martin abriu os olhos e com um sorriso levemente malicioso
respondeu ao Pai que lhe havia falado: “Nã o tema que o demô nio
desperdice seus so ismas com quem nã o é teó logo. Ele é muito
orgulhoso para usá -los contra um pobre mulato! ”10
Desequilibrado pela ironia, o diabo teve que desistir por um
momento e deixar o terreno para Outro muito mais poderoso do que
ele.
O vice-rei foi ao mosteiro para ver seu amigo e conselheiro. Os
religiosos o acompanharam até a cela e foram até a porta anunciar o
visitante, mas nã o houve resposta. Martin estava em ê xtase. O vice-rei,
um verdadeiro cavalheiro, implorou aos padres que nã o perturbassem
Martin, e ele esperou fora da sala por mais de um quarto de hora,
conversando com os superiores e outros religiosos sobre as virtudes de
seu querido irmã o Martin.
Quando o ê xtase acabou, o conde de Chinchó n entrou e se ajoelhou
perto da cama. Tomando a mã o de Martin e beijando-a, ele pediu-lhe
que implorasse a bê nçã o de Deus sobre a terra da qual ele
governava. Sempre um bom professor, Martin respondeu que oraria de
bom grado por ele e pelo Estado quando chegasse na presença do Rei
Eterno, mas o vice-rei deve oferecer oraçõ es e boas obras para obter a
bê nçã o divina.
O ilustre visitante deixou o mosteiro e, quando os religiosos o
acompanharam até a porta com toda a honra, o prior voltou a falar com
Martin e o repreendeu duramente por ter feito o vice-rei esperou tanto
tempo fora de sua porta. Foi uma reprovaçã o estranha, já que o ê xtase
impediu Martin de perceber o que estava acontecendo ao seu
redor. Mas o padre Saldañ a sabia com quem estava falando e o que
queria aprender. Como de costume, Martin ouviu a repreensã o sem
responder. O prior entã o ordenou-lhe em virtude da obediê ncia que
declarasse por que izera o vice-rei esperar.
De um lado da sala havia um pequeno altar no qual o Santı́ssimo
foi reservado para que todos estivessem prontos quando chegasse o
momento de dar Viá tico ao moribundo. Martin acenou com a mã o em
direçã o ao altar e disse: “Perto desse altar estava a Santı́ssima Virgem
Maria, minha padroeira e advogada, e meu pai, Sã o Domingos com Sã o
Vicente Ferrer e muitos outros santos e anjos, e eu estava tã o ocupado
com aqueles visitantes sagrados que eu nã o poderia receber nenhum
outro naquele momento. ”11
A morte estava muito pró xima e Martin sabia disso. Ele pediu para
receber os ú ltimos sacramentos. Mais uma vez renovou a Con issã o
geral e pediu perdã o a todos por seu mau exemplo, como já havia feito
tantas vezes desde que adoeceu. Em seguida, ele recebeu viá tico e
extrema unçã o.
A luta continuou. Cada novo acesso de febre era precedido de
calafrios que sacudiam todo o seu corpo com uma agonia que o
banhava de suor frio. Todos os seus membros pareciam perfurados por
facas de dor. Mas mesmo agora, nenhuma palavra de reclamaçã o
escapou dele.12
O inimigo voltou novamente. Ele apareceu sob formas estranhas e
horrı́veis. Como o apelo ao orgulho nã o teve sucesso, ele tentaria
dominar a alma de Martin com terror e desespero. E Martin continuou
a segurar o cruci ixo e a manter os olhos ixos nas sagradas chagas,
fonte de misericó rdia e de esperança.13
Padre Francis de Paredes estava perto da cama de Martin naquele
momento. Ele sentiu a luta acontecendoAlma de Martin e sugeriu que
ele invocasse Sã o Domingos. Martin respondeu: “Seria inú til pedir-lhe
que viesse. Ele já está aqui com St. Vincent Ferrer. ”
S. Domingos nã o podia descuidar de um ilho que durante trê s
quartos da sua vida trabalhou com tanto amor e tanta humildade na
sua Ordem. A conquista do inimigo foi de initiva desta vez.
A partir de entã o, Martin permaneceu imerso em profunda paz,
apesar dos ataques de febre. Padre Francis o vigiava com atençã o,
porque cada ataque poderia ser o ú ltimo, e a comunidade deveria ser
chamada a tempo. Duas vezes ele começou a dar o sinal, e duas vezes
Martin o segurou. Quando, pela terceira vez, perguntou se nã o havia
chegado o momento de chamar a comunidade, Martin deu seu
consentimento com um aceno de cabeça.14
Ao som das palmas, de cada canto do grande mosteiro todos iam à
cela do irmã o moribundo: velhos padres, jovens estudantes, noviços,
irmã os leigos, ajudantes leigos - toda a grande famı́lia do Santo Rosá rio
correu para a cela onde Martin havia entrado em sua ú ltima agonia. Os
primeiros a chegar se aglomeraram ao redor da cama, mas muitos
estavam fora da cela, com os olhos ixos na porta e o coraçã o batendo
de suspense. Muitos choraram, ajoelhados ao redor da cama ou de pé ,
amontoados contra as paredes da cela. Nã o havia ningué m ali que nã o
tivesse um motivo particular para lamentar a morte do humilde
irmã o; ningué m que nã o tivesse recebido algum serviço dele, alguma
palavra de encorajamento ou algum bom exemplo, para nã o falar
daqueles que foram curados, ou cuja vocaçã o Martin salvou em um
momento de dú vida; aqueles que receberam favores em troca de
insultos; aqueles que foram testemunhas de suas penitê ncias ou
ê xtases ou milagres; aqueles que se con iaram a ele como guia no
caminho da perfeiçã o espiritual.
Martin olhou ixamente para um velho padre, que chorava como
um bebê aos pé s de sua cama. Joã o de Barbazá n, preso atrá s da barreira
dos outros frades, sentiu-se dominado pelo desejo de ver o rosto do
“juiz de seu coraçã o”. Ele deslizou lentamente ao longo da parede e
conseguiu alcançar a cabeceira da cama. Só de ver Martin o fez
chorar. Martin já estava quase rı́gido, mas o desejo intenso de padre
John de que Martin olhasse para ele uma ú ltima vez o fez perguntar
uma coisa quase impossı́vel. Martin ouviu sua oraçã o e, recuperando
por um momento a força de mover o pescoço, voltou o rosto para ele e
sorriu. Padre John tirou um lenço limpo da manga e enxugou o suor da
agonia da morte do rosto do moribundo. Daı́ em diante ele preservou
aquele lenço como um tesouro.15
As oraçõ es pelos moribundos terminaram. Martin continuou a
beijar carinhosamente o cruci ixo que ainda segurava nas mã os,
enquanto seus irmã os cantavam o Salve Regina , como é o costume dos
dominicanos ao lado da cama dos moribundos. Entã o o padre prior
entoou o credo . Toda a comunidade respondeu em unı́ssono, e o canto
encheu a cela e se espalhou para fora dela. Os que estavam ao redor da
cama cantavam com vozes mais suaves para diminuir a vibraçã o no
espaço restrito; aqueles no corredor cantavam com vozes completas. A
melodia invadiu o claustro e, na noite recé m-caı́da, elevou-se em
direçã o à s estrelas que brilham no cé u.
Martin ouviu o coro de seus irmã os, e o canto o encheu de
felicidade. O timbre inconfundı́vel daquelas vozes viris, fundidas numa
harmonia forte sem aspereza, doce sem afetaçã o, reviveu a memó ria
dos momentos mais bonitos da sua vida. Durante anos, aquele mesmo
som do canto moná stico havia chegado a seus ouvidos. Durante suas
vigı́lias noturnas, tinha vindo a ele do corono fundo da igreja, quando
eram entoados os salmos das matinas, um pouco abafados pela
distâ ncia. Ele o tinha ouvido, pleno e triunfante, durante as missas
cantadas das festas solenes, como um eco da alegria do pró prio coraçã o
na expectativa da uniã o eucarı́stica. Sua pró pria voz se juntava à quele
canto todas as noites depois das Completas, quando a Rainha da
Misericó rdia era homenageada com o canto do Salve Regina .
Mas aquele canto do Credo! Nã o foi o seu canto triunfal, o poema do
seu ideal, de toda a sua vida?
Sim, Martin acreditava no Pai celestial, ele acreditava que Sua
paternidade divina aceitaria a criancinha rejeitada por seu pai natural,
e se jogou em Seus braços onipotentes e amorosos.
Ele acreditava na bondade e na beleza de todas as coisas feitas por
Deus: o cé u e a terra e todas as coisas contidas na esfera do universo,
até o menor entre as criaturas vivas.
Ele acreditava na realidade do mundo invisı́vel do espı́rito. Ele
havia entendido que aquele mundo ultrapassa o mundo visı́vel em
variedade, beleza e perfeiçã o. E ele tinha preferido aquele mundo
invisı́vel a todas as satisfaçõ es naturais que as criaturas aqui embaixo
podem oferecer.
Ele tinha acreditado no Filho, luz e revelaçã o da luz impenetrá vel
do Pai; na Palavra, que sendo vida e verdade, se fez caminho para nó s. E
ele O seguiu ao longo de Seu caminho. Seguindo-O, ele absorveu a
doutrina do amor que resume e conté m todas as leis. Ele havia
compreendido a obra do Espı́rito de Amor na restauraçã o do homem da
servidã o à liberdade.
E ele acreditou e se entregou ao coraçã o daquela nova Mã e, que lhe
foi revelado pelo misté rio da Encarnaçã o; aquele santı́ssimo e sagrado
templo da uniã o do unigê nito Filho de Deus com a natureza humana,
com toda a humanidade, semexceçã o de raça, cor, é poca ou lugar, da
qual, como noiva, recebeu, junto com seu nome, o tı́tulo de sua nova
nobreza: “para que sejamos chamados e sejamos ilhos de Deus”. ( 1
João 3: 1).
O coro cantava agora com vozes mais suaves, e os frades estavam
todos de joelhos, adorando no coraçã o o misté rio proclamado pelas
palavras: et homo factus est .
Martin deixou o cruci ixo cair sobre o peito e fechou os olhos como
se tivesse adormecido.16

Capítulo 17
“Quando derramares tua alma ao faminto e saciares a alma a lita, entã o tua luz se levantará nas
trevas, e as tuas trevas serã o como o meio-dia.” ( Is . 58:10).

eu
Era cerca de nove horas da noite, 3 de novembro de 1639, quando, sem
um tremor, sem um som, a alma de Martin deixou o corpo que tinha
sido um instrumento de virtude tã o dó cil e heró ico e entrou no reino
da felicidade eterna.1
O canto morreu nos lá bios dos frades. Seus olhos estavam ixos
naquele rosto em que as contraçõ es involuntá rias de dor haviam cedido
em um instante a uma expressã o de paz, uma paz que doce se
espalhava por todos os coraçõ es e acalmava suas lá grimas.
Houve um momento de silê ncio, enquanto o arcebispo Felician de
Vega traçava o sinal da cruz sobre o amigo. Entã o o Padre Saldañ a
começou as oraçõ es que sã o recitadas quando a alma acaba de deixar o
corpo. Ele convidou todos os Santos do Cé u e todos os anjos do Senhor
para encontrar a alma de Martin, para acompanhá -la e apresentá -la
perante o trono do Altı́ssimo.
Os frades responderam à s oraçõ es, seguindo o pensamento do
irmã o em sua jornada incrı́vel. Quando recitaram o Salmo In exitu Israel
de Aegypto , sentiram que deveriam se alegrar em vez de chorar. Martin
foi libertado do exı́lio, cruzou o mar com calçados secos e alcançou a
costa da verdadeira pá tria.
Quando o ú ltimo “Amé m” foi dito, o arcebispo tentou dizer uma
palavra de consolo à comunidade, mas a emoçã o o sufocou. Tudo o que
ele pô de dizer foi: “Irmã os, vamos aprender com o irmã o Martin como
morrer. Esta é a liçã o mais difı́cil e mais importante. ”2
Entã o ele saiu para voltar ao seu palá cio. O prior e os outros frades
deixaram a cela. Trê s ou quatro religiosos permaneceram para lavar e
vestir o cadá ver.
O mé dico do vice-rei, Balthazar Carrasco de Orozco, cuidou de
Martin nos ú ltimos dias de sua doença, mais como amigo do que como
mé dico, porque logo percebeu que nã o havia nada a fazer. Ele estava
presente no momento em que Martin morreu e certi icou que ele
estava morto. Este nobre vivia em frente à torre do sino da igreja do
Santo Rosá rio. Muitas vezes ele acordou antes do amanhecer e ouviu o
som dos golpes que Martin estava in ligindo a si mesmo ou recebendo
das mã os de outra pessoa na sala sob a torre do sino.3
Os religiosos que se preparavam para vestir o corpo de Martinho
sabiam de suas penitê ncias. Mas quando eles removeram o manto de
saco, a camisa de cabelo puı́da e a enorme corrente de ferro enrolada
em sua cintura - tudo que Martin continuou a usar mesmo durante sua
ú ltima doença - eles icaram surpresos e emocionados ao ver o nú mero
de cicatrizes e feridas abertas no corpo. Era incrı́vel que um ser
humano pudesse viver e trabalhar naquela condiçã o de manhã à noite.
Procurando nos poucos pertences do irmã o morto os artigos
necessá rios para vesti-lo, o enfermeiro encontrou o novo há bito que
tinha sido uma grande surpresa para todos eles vá rias semanas
antes. O padre Barbazá n lembrou-se e repetiu as palavras de Martin:
“Este é o há bito em que devo ser enterrado”.4
Eles o vestiram com o novo há bito de tecido pesado e estavam
prontos para carregar seu corpo para a igreja, quando foram atraı́dos
para a enfermaria por meio de gritos agudos.
Era o padre Joã o de Vargas, que sofria tanto que nã o conseguia
reprimir o choro. Por vá rios dias, ataques perió dicos de forte dor o
mantiveram na cama e, no momento, ele estava tendo outra convulsã o.
Os frades, que acabavam de deixar a cela de Martin, disseram ao
padre John: “Invoque Martin de Porres, cuja perda todos nó s sentimos
tã o intensamente!”
Mal o padre John invocou o nome de Martin, as dores
desapareceram e, apó s uma boa noite de sono, ele se viu
completamente curado.5
Martin nã o abandonou o seu!
Consolado por esse pensamento, o religioso levou o corpo para a
igreja. Eles o colocaram com carinho no catafalco que Martin tantas
vezes se deitara para seu breve cochilo e acenderam as velas de cada
lado. As pilastras e arcos das naves se perderam na escuridã o. No
minú sculo cı́rculo de luz criado pelas velas, os frades mantiveram
vigı́lia e rezaram o salté rio. Talvez alguns simplesmente meditaram.
A luz das velas fú nebres, tantos acontecimentos na vida do humilde
irmã o ganharam um novo signi icado. E se Joã o de Barbazá n,
lembrando tudo que Martin tinha feito no mosteiro e fora dele,
continuasse repetindo com profunda melancolia: “Este vazio nunca
pode ser preenchido”, outros pensaram que a morte nunca poderia
escrever inis para o im de uma vida como seu. Deus revelaria as
virtudes de Seu humilde e bom servo ao mundo.
Absorvido por esses pensamentos, o padre Cipriano de Medina foi
até o catafalco e tocou o corpo. Ele icou surpreso e irritado ao
descobrir que já estava duro e rı́gido. Mas ele nã o desanimou com este
acontecimento desagradá vel, e na presença dos mais augustos Padres
do mosteiro que formavam a guarda de honra, ele protestou em voz
alta, quase gritando ao seu santo amigo: “Mas o que é isso? Tã o rı́gido e
rı́gido? Irmã o, você nã o sabia que assim que o dia amanhecer toda a
cidade virá ver você e louvar a Deus em você ? Peça a Deus para tornar o
seu corpo lexı́vel, pois você sabe que Lhe renderı́amos in initos
agradecimentos por isso! ”
Do alto de sua bem-aventurança, Martin sem dú vida sorriu diante
da impetuosidade de seu amigo e pediu a Deus que lhe desse o consolo
pelo qual ele orou com tanto fervor. Alguns momentos depois, o corpo
tornou-se lexı́vel; o rosto perdeu toda a sua rigidez e retomou sua
expressã o natural.
O padre Cipriano icou radiante com a resposta à sua oraçã o, que
considerou uma con irmaçã o de sua opiniã o de Martinho como santo e
de sua esperança de vê -lo publicamente glori icado. Ele ergueu o corpo
para uma posiçã o sentada no catafalco e arrumou-o de forma que
parecesse vivo.6
Apesar de ser noite, a notı́cia da morte de Martin espalhou-se fora
do mosteiro. Ainda nã o eram quatro da manhã quando as pessoas
começaram a se reunir em frente à igreja e pressionar as
portas. Quando o sacristã o abriu as portas, um verdadeiro rio de
humanidade precipitou-se, invadiu a nave e amontoou-se atrá s dos
frades formando uma praça em torno do catafalco. Os primeiros que
chegaram icaram olhando, estupefatos ao descobrir que Martin na
morte era tã o parecido com Martin quanto o haviam conhecido em
vida. Ele parecia adormecido. O que mais os espantava, e os prendia
como que enfeitiçados, era a fragrâ ncia que emanava do corpo, um
perfume estranho e inde inı́vel, como uma mistura das lores mais
delicadamente perfumadas. A fragrâ ncia penetrou na alma com uma
sensaçã o de alegria e encheu toda a igreja.
As pessoas continuaram a chegar como um mar imenso, onda apó s
onda. Caminhavam com os olhos ixos no lugar para onde convergiam
todos, impelidos pela vontade de ver melhor, de tocar no que ningué m
hesitou em chamar o corpo de um santo atraı́do pelo seu perfume.
Durante o Ofı́cio e a Missa, as pessoas respeitaram o espaço livre ao
redor do qual as autoridades ocuparam seus lugares. Este viera
espontaneamente homenagear o irmã o que tanto trabalhara por todos
os cidadã os de Lima, grandes e pequenos.
Quando o ofı́cio e a missa terminaram, a multidã o correu para o
catafalco, todos tentando tocá -lo. Suas mã os estavam cheias de rosá rios
e outros objetos de devoçã o. Eles tentaram tocar o corpo, que ainda
parecia estar vivo. Eles nã o iam embora de mã os vazias, mas levavam
consigo algo que estivera em contato com o santo Irmã o, algo que
poderia ser considerado uma lembrança ou relı́quia.
Martin teve que ser vestido mais de uma vez porque o povo havia
feito seu há bito em pedaços apesar da proibiçã o dos guardas. Nã o
eram apenas os sem importâ ncia e ignorantes que eram á vidos por
relı́quias. Com o mesmo cuidado que o Padre Joã o de Barbazá n exerceu
em conservar zelosamente como grande tesouro o lenço que usara
para enxugar o suor da agonia da morte do rosto de Martinho, Pedro de
Ortega, bispo eleito de Cuzco e professor da Universidade Real de Lima,
preservou cuidadosamente um pequeno pedaço de pano com o qual
havia desempenhado o mesmo ofı́cio piedoso.7
Como uma maré , a multidã o diminuiu e luiu. Aos poucos, os
primeiros que chegaram, empurrados por aqueles que vinham depois,
foram se encaminhando para a saı́da. Uma vez do lado de fora, eles
incitaram outros a vir contando suas reaçõ es ao que tinham visto.
A multidã o que cruzava a nave central tornou-se mais intenso. Já
nã o consistia em indivı́duos, mas em pequenos grupos carregando
enfermos e invá lidos. Parece que muitos dos enfermos e invá lidos
puderam voltar para suas casas a pé depois de tocar no corpo do irmã o
Martin,
Isso durou até a noite. Quando a escuridã o caiu, os frades se
aconselharam e concordaram que tiveram a sorte de salvar o corpo de
seu santo irmã o dos ataques daquela multidã o, e decidiram enterrá -lo
sem demora.
O cortejo foi formado e um cordã o de religiosos e amigos do
mosteiro protegeu o corpo da multidã o. Quatro dos amigos mais
ı́ntimos de Martin carregaram o catafalco: o vice-rei, o arcebispo do
Mé xico, o bispo de Cuzco e John de Peñ a iel, juiz da Corte Real. O
capı́tulo da catedral, superiores de muitos mosteiros, dignitá rios leigos
e o iciais militares acompanharam o corpo. Padre Gaspar de Saldañ a, o
prior, o iciou e recitou as ú ltimas oraçõ es sobre o tú mulo de seus ilhos
mais queridos. Seu cargo lhe conferia esse privilé gio e ele nã o o teria
cedido a ningué m.
O cortejo en ileirou-se sob os arcos e desceu para a cripta sob a
sala do capı́tulo onde os religiosos foram enterrados. Nã o parecia
adequado colocar os restos mortais de um homem tã o acima do normal
na á rea reservada aos irmã os leigos. Martinho foi sepultado entre os
padres, em um novo nicho pró ximo a outro no qual foi sepultado outro
irmã o leigo, o irmã o Miguel de Santo Domingo, també m considerado
digno desta homenagem por sua vida santa.
Quando a tumba foi fechada e todos foram para suas casas, o
Arcebispo Felician de Vega expressou seus pensamentos sobre os
acontecimentos das ú ltimas vinte e quatro horas, dizendo: “Sim, é
assim que os santos devem ser homenageados”.8

Capítulo 18
“E o Senhor te dará descanso continuamente e encherá tua alma de resplendor e livrará teus
ossos; e será s como um jardim regado e como uma fonte cujas á guas nunca faltarã o ”. ( Is . 58:11).

M
ARTIN nã o icou muito tempo na nova tumba ao lado do irmã o
Michael. Seu corpo estava escondido dos olhos de seus irmã os, mas seu
espı́rito continuou a viver no meio deles. Como antes, Martin cuidava
dos seus, pronto para ajudá -los a qualquer momento e em qualquer
necessidade.
O primeiro a perceber foi o padre Joã o de Vargas, no momento em
que a alma de Martin deixou seu corpo e entrou na gló ria celestial.
Dois dias depois, o irmã o Anthony Gutié rrez, enfermeiro de Martin
durante sua ú ltima enfermidade, adoeceu com a mesma febre que o
levou para o tú mulo. A febre era tã o violenta que em pouco tempo
Anthony estava à s portas da morte. No sexto dia, o mé dico declarou: “A
ú nica coisa que resta a fazer é dar-lhe os ú ltimos sacramentos.” Mas era
impossı́vel administrar os sacramentos ao paciente enquanto ele
delirava como um louco no delı́rio causado pela febre, e isso entristecia
seus irmã os ainda mais do que a possibilidade de morrer com a idade
de vinte e trê s anos.
Um pequeno altar foi erguido perto de sua cama e o Santı́ssimo
Sacramento foi colocado sobre ele. A noite caiu. O doente icou um
pouco mais calmo e parecia estar dormindo. De repente, ele abriu os
olhos e disse: “Nã o se preocupe; desta vez nã o morrerei. ”
"Isso é maravilhoso, mas como você sabe disso?" perguntou à s
enfermeiras, apenas para ter algo a dizer, pois pensavam que o irmã o
Anthony ainda estava delirando.
“O irmã o Martin me contou. Ele estava aqui, ao lado da minha cama
”, respondeu o irmã o doente. “Ele veio para oquarto com a Santı́ssima
Virgem Maria e nosso pai Sã o Domingos e Santa Catarina, virgem e
má rtir. Os outros permaneceram perto do altar, mas o irmã o Martin
veio até minha cama e disse: 'Esta visita vai curá -lo'. ”
Entã o o irmã o Anthony fechou os olhos e dormiu paci icamente
durante toda a noite. De manhã , ele estava completamente bem de
novo e pediu seu café da manhã .1
Enquanto o irmã o Anthony cuidava do irmã o Martin durante sua
ú ltima doença, o mestre dos alunos disse-lhe: “Se Martin morrer, pegue
a cruz negra de madeira que ele usa ao lado do corpo e guarde-a com
grande reverê ncia”.
O irmã o Anthony obedeceu de bom grado e, sem esperar que a
morte viesse, aproveitou o momento em que Martin cochilava para
cortar a corda em que a cruz estava pendurada no pescoço de Martin e
tomar posse dela. O leve movimento fez Martin acordar. O irmã o
Anthony foi pego com seu “roubo piedoso” nas mã os. Ele enrubesceu de
vergonha e pediu perdã o a Martin, dizendo: “Vossa Reverê ncia me disse
que você ia morrer, e para ter uma lembrança sua, eu peguei esta
cruz”. Martin o deixou fazer isso e fechou os olhos novamente sem dizer
uma palavra. Por enquanto, Anthony colocou uma corda no anel da
cruzinha e colocou-a em volta do pescoço, como Martin izera.
Mas o irmã o Anthony teve di iculdade em defender seu tesouro
contra aqueles que queriam tomá -lo dele. A sua tenacidade e habilidade
em guardá -la foram extraordiná rias, quando pensamos que até o prior
do mosteiro, padre Gaspar de Saldañ a, estava entre os que desejavam a
pequena cruz.
Vá rios anos depois, apó s sua ordenaçã o, Anthony estava viajando e
descobriu que nã o tinha mais a pequena cruz do irmã o Martin. Ele
escreveu ao mosteiro, pedindo que sua cela fosse revistada, para ver se
por acaso oa cruz foi deixada lá . Nã o pô de ser encontrado. Quando
voltou a Lima, o irmã o Anthony procurou em vã o. Um dia passava pelo
prado em frente à igreja de Nossa Senhora de Guadalupe onde, seis
meses antes, notara pela primeira vez que faltava a cruz. De repente, ele
o viu na beira de uma trilha cavada na estrada pelas rodas das carroças
e pelos cascos das mulas que passavam constantemente por ali com
provisõ es para a cidade vizinha.
Entre o inal de 1642 e o inı́cio de 1643, o Padre Cipriano de
Medina voltou da Espanha, onde vinha cuidando dos assuntos de sua
Provı́ncia como delegado a um Capı́tulo Geral da Ordem
Dominicana. Quase imediatamente apó s sua chegada, ele desenvolveu
uma doença que causou dores agudas em seus braços e pernas, "de
modo que parecia que estavam sendo perfurados com agulhas". Dormir
era impossı́vel naquele tormento, e ele nã o conseguia comer nem um
pouco. Como resultado, ao inal de trê s ou quatro dias, a condiçã o do
padre Cipriano era extremamente grave.
Foi realizada uma consulta. Os mais renomados mé dicos de Lima
compareceram e, embora nã o concordassem com o tratamento a ser
feito, foram pelo menos unâ nimes em declarar que a doença era
mortal. E, tendo pronunciado a sentença contra o padre Cipriano, eles
partiram.
Mas os irmã os do padre Cipriano recusaram-se a perder as
esperanças. Ele sempre foi um religioso tã o bom e exemplar que eles
nã o podiam se conformar com a perspectiva de perdê -lo tã o
repentinamente. Eles se lembraram de como Martin gostava dele e
sugeriram que ele invocasse a ajuda de Martin. O padre Gaspar de
Saldañ a fez ainda mais. Mandou-lhe o rosá rio que Martin usava ao
pescoço.
O padre Cipriano seguiu o conselho deles e, com profunda
reverê ncia e alegria, pegou o rosá rio de seu amigo e colocou-o em seu
pescoço. Aproximadamente à s nove horasnaquela noite, um ataque tã o
forte o dominou que tudo o que pô de fazer foi gritar enquanto se
contorcia em espasmos de dor. Vá rios religiosos estavam com ele e
tentaram em vã o aliviá -lo. De repente, o padre Cipriano viu um irmã o
leigo parado calmamente aos pé s de sua cama em meio a toda a
agitaçã o. Suas mã os estavam presas nas mangas de seu há bito e sua
cabeça estava um pouco curvada. Era a atitude habitual modesta e o
sorriso que o padre Cipriano conhecia tã o bem.
O padre Cipriano reconheceu Martin e falou com ele sem hesitar,
com a mesma brusca franqueza com que o havia repreendido anos
atrá s por nã o cuidar dele quando estava gravemente doente e, mais
recentemente, por deixar seu corpo enrijecer à noite de sua morte.
“Irmã o Martin, o que aconteceu com seu amor por mim? Você me
esqueceu? Agora que você está desfrutando da visã o de Deus na gló ria
eterna, pense apenas na sua pró pria felicidade e me deixe sofrer sem
me ajudar! Você sabe muito bem que dizem que nã o viverei até de
manhã . ”
Sem ser perturbado pela explosã o, Martin olhou ixamente nos
olhos do padre Cipriano. Entã o ele sorriu fracamente, balançando a
cabeça.
"Você nã o vai morrer desta doença."
Os enfermeiros viram o padre Cipriano falando consigo mesmo e
pensaram que a dor o havia levado ao delı́rio. Mas imediatamente ele se
acalmou, fechou os olhos e adormeceu.
As seis horas da manhã seguinte os mé dicos chegaram e icaram
surpresos ao encontrar seu paciente, nã o morto como eles esperavam,
mas melhorou tanto que ele estava quase bem. Eles tiraram um pouco
de sangue, apenas para a irmar que també m haviam feito algo. Mas,
sem nenhum tratamento adicional, o padre Medina conseguiu sair da
cama “sem dores e bem. . . para a admiraçã o de todo o mosteiro. ”
O “mosteiro inteiro” desconsiderou o tratamento de ú ltima hora
dos mé dicos e reconheceu a obra de seu santo irmã o Martin na
restauraçã o e agradeceu a Deus e a Martin. O padre Cipriano,
naturalmente, contou como Martin lhe apareceu no auge da crise e
como em um instante o livrou da dor implacá vel que havia sofrido por
tantos dias.2
Outra cura em condiçõ es semelhantes foi a do irmã o Nicholas de
Guadalupe. Durante quatro meses, Nicholas foi atormentado por
lumbago. Por causa da dor constante, “ele nã o conseguia descansar, nã o
conseguia dormir nem de dia nem de noite e passava noites inteiras
sem conseguir fechar os olhos”. Sem saber o que fazer para ser curado,
uma noite, quando ele estava sofrendo mais do que o normal, ele
começou a invocar Martin e pediu-lhe que orasse por ele, lembrando-o
de sua antiga amizade. A prece mal foi proferida quando o sono o
dominou e pela manhã , ao acordar, descobriu que estava tã o livre das
dores e tã o repousado como se nunca tivesse sofrido os tormentos da
lumbago. Isso aconteceu por volta de 1653, quatorze anos apó s a morte
de Martin.3
Naturalmente, a notı́cia desses acontecimentos se espalhou para
alé m dos muros do mosteiro e confortou o povo de Lima, que viu neles
a con irmaçã o da fama do grande e humilde ilho de Lima.
No entanto, assim como fez durante sua vida, Martin nã o se
limitou a curar apenas os enfermos de seu pró prio mosteiro. Uma
criança de seis anos, Francis de Ribera, adoeceu em
Lima. Aparentemente, ele estava à beira da morte. Ele icou deitado na
cama, imó vel, o pulso tã o fraco que nã o podia mais ser sentido, os
olhos fechados como se nunca mais fossem abrir. A simples invocaçã o
do nome de Martin, seus pais viram o pequeno cadá ver voltar à vida, e
em pouco tempo a casa se encheu de novo com os gritos e brincadeiras
do pequeno Francisco.4
De maneira semelhante, Elizabeth Ortiz de Torres foi curada
instantaneamente da nevralgia que a atormentou por muitos dias,
"Você me ajudou enquanto estava na terra", disse ela a Martin enquanto
olhava afetuosamente para uma imagem rude que ingenuamente
tentava reproduzir os lineamentos de Martin de Porres. “Por meio de
suas oraçõ es, Deus prometeu me curar quando minha vida estivesse
desesperada. Agora que você está no Cé u, nã o me abandone, mas ouça
meu humilde pedido de alı́vio. ”5
Uma das velhas tú nicas de Martin foi entregue a Elizabeth de
Astorga, que estava com uma febre violenta. Quando a tú nica foi
estendida em sua cama, a febre a deixou instantaneamente.6
Esses e outros eventos notá veis ajudaram a manter viva a memó ria
da vida santa de Martin e a con iança em seu poder de intercessã o com
Deus. També m trouxeram muitos dos ié is à igreja do Santo Rosá rio,
que era o local mais pró ximo do tú mulo que aqueles fora do mosteiro
podiam alcançar. O tú mulo estava inacessı́vel, pois icava dentro do
claustro. Mas nem sempre seria assim. Martin havia previsto isso. Ele
estava conversando um dia com seu amigo Joã o de Figueroa, que lhe
havia revelado um plano. Joã o pretendia contribuir para o custeio de
uma capela na igreja dos Mercedá rios e assim adquirir o direito de
sepultamento para si e sua famı́lia naquela capela. Martin aprovou e
encorajou seu amigo a contribuir com essas esmolas generosas para o
embelezamento da igreja do Mercedá rio.
“Mas quanto ao seu enterro”, acrescentou, “nã o se preocupe com
isso, porque você nã o será enterrado lá . Você e eu devemos ser
enterrados aqui. " E apontou para o chã o da sala em que conversavam,
que era o almoxarifado da enfermaria.
Mais tarde, quando os dominicanos começaram a buscar alguma
forma de satisfazer o desejo dos devotos de visitar o tú mulo de seu
santo irmã o, o local mais bem adaptado pois a localizaçã o de seu corpo
parecia ser o almoxarifado onde Martin havia trabalhado por tanto
tempo, onde cuidou dos enfermos e aconselhou tantos quanto seu guia
espiritual.
A sala poderia ser facilmente transformada em capela e o custo da
obra seria relativamente modesto. Naturalmente, quando o padre
Saldañ a tentou encontrar um lugar para esta “modesta” igura no
orçamento do mosteiro, percebeu imediatamente que era impossı́vel e
pensou: “Precisamos de um benfeitor”. Ele revisou mentalmente a lista
dos amigos mais ı́ntimos de Martin e pareceu ver um rosto, o de John de
Figueroa, emergir claramente de uma multidã o sem forma e sem nome.
Sem perder tempo, o Padre Saldañ a pô s debaixo do braço este
maravilhoso projeto e foi visitar Joã o de Figueroa. Ofereceu-lhe a
possibilidade de contribuir para o custeio da nova capela como forma
de ali adquirir o direito de sepultamento para si e sua famı́lia na cripta
a ser construı́da sob o pavimento da futura capela. O padre Saldañ a
nada sabia sobre a previsã o de Martin, mas John de Figueroa lembrou-
se instantaneamente e concordou entusiasticamente com a proposta. A
obra foi iniciada e a capela logo icou pronta.7
A exumaçã o e o reconhecimento do corpo de Martin foram
realizados em março de 1664, vinte e quatro anos e quatro meses apó s
sua morte.
Tarde da noite, para evitar qualquer publicidade, o Padre John de
Barbazá n, entã o Vigá rio Geral da Provı́ncia Dominicana de Sã o Joã o
Batista do Peru, o Padre Francisco de Oviedo, Vigá rio Interino da
comunidade do Santo Rosá rio, e trê s irmã os leigos reunidos na sala do
capı́tulo. Os trê s irmã os leigos eram Bartolomeu del Rosario, Thomas
Marı́n e Lauren de los Santos.
O irmã o Thomas, que era o sacristã o assistente do mosteiro, pedira
ao provincial a honra de desenterrar os ossos. Ele começou a
cavar. Istofoi um trabalho á rduo, pois a sepultura era profunda. Mas
inalmente o corpo veio à luz, quase intacto, com os ossos ainda
recobertos pelo tecido muscular e unidos pelos ligamentos. Visto que
estava inteiro, o irmã o Thomas pensou que poderia levantar o corpo em
seus braços como algué m levantaria o corpo de uma pessoa viva. Ele o
segurou pela cintura, mas os ossos se separaram em suas mã os,
revelando o frescor do tecido muscular que os cobria.
Assim que o santo corpo veio à luz, um perfume muito doce como
o das pé talas de rosa invadiu a sala do capı́tulo, e uma alegria imensa
encheu os coraçõ es dos presentes. Foi uma repetiçã o da cena
representada quando a humilde sepultura na qual Sã o Domingos
desejava que seu corpo fosse depositado, "sob os pé s de seus irmã os",
foi aberta pelo Beato Jordã o da Saxô nia, e os presentes sentiram que
nã o abrindo um tú mulo, mas um baú de preciosas essê ncias
perfumadas. Mais uma vez Martin provou ser um verdadeiro ilho de
seu pai, Dominic.8
O irmã o Thomas percebeu que seu mé todo inicial era muito brusco
e extraiu o corpo da sepultura com muito cuidado. O padre Oviedo
arrumou-o no catafalco com profundo amor e reverê ncia. O contato
repetido com o corpo de Martin deixou suas mã os impregnadas com o
perfume delicioso de pé talas de rosa secas. Mesmo depois de ter lavado
as mã os vá rias vezes, o perfume era tã o forte que no dia seguinte à
exumaçã o os frades que nã o estavam presentes ainda podiam sentir o
perfume em suas mã os.
Depois de tirar o crâ nio da sepultura, o irmã o Thomas encontrou
em suas mã os um pequeno pedaço de terra que havia aderido a alguma
parte do corpo. Ele o quebrou com os dedos e sangue fresco saiu dele.
Na manhã seguinte, os frades izeram os preparativos para a
traduçã o privada do cadá ver e o exé quias. O padre Barbazá n tomou
todas as precauçõ es possı́veis para evitar chamar a atençã o para as
cerimô nias e deu ordens explı́citas para que tudo fosse feito com sigilo,
sem publicidade. Ningué m foi convidado e foi proibido dar qualquer
informaçã o sobre o evento a qualquer pessoa fora do mosteiro. Mas,
como havia acontecido no dia seguinte à morte de Martin, o dia havia
acabado de amanhecer quando as pessoas começaram a encher a igreja,
e nã o apenas os cidadã os comuns, mas todas as autoridades até e
incluindo o vice-rei.
Terminadas as exé quias, todos os “grandes” de Lima começaram a
disputar a honra de carregar a urna contendo as preciosas
relı́quias. Sua Excelê ncia o vice-rei de Lima, assumiu o posto de honra
entre os portadores, sem qualquer discussã o ou medo de
rivalidades. Mas os outros disputavam a honra de carregar o caixã o ou
pelo menos chegar o mais perto possı́vel da fonte daquele perfume
requintado, apresentando seus tı́tulos de nobreza, de alto cargo ou de
idade.
Quando o cortejo começou a se mover, os religiosos indicados pelo
padre Oviedo para formar um cordã o em torno dele nã o foram
su icientes para conter aqueles que desejavam a todo custo tocar no
catafalco com seus rosá rios ou outros objetos de devoçã o. Passo a
passo, a procissã o se espremeu no meio da multidã o e chegou à
capela. E mesmo quando o caixã o foi baixado para a cripta e uma pedra
cobriu a abertura, a fragrâ ncia de pé talas de rosa permaneceu no ar, e
todos os coraçõ es se encheram de uma sensaçã o de alegria silenciosa e
grande con iança na santidade de Martin.9
“Nenhum sinal externo de devoçã o pode ser prestado a Martin
porque a Igreja ainda nã o julgou sua vida”, alertaram os frades, mas o
povo continuou a se ajoelhar na pedra sobre a cripta e invocar Martin
como os santos sã o invocados .
Aos poucos, a multidã o foi diminuindo. Sua Excelê ncia o vice-rei, o
chefe do departamento de justice, os senhores da comissã o real, os
membros do capı́tulo da catedral, os nobres cavaleiros, os religiosos de
todas as ordens representadas em Lima - um apó s o outro, eles foram
embora. E os irmã os de Martin, os Dominicanos do Santo Rosá rio,
foram para suas celas, exaustos depois de um dia difı́cil. A pequena
capela estava vazia.
Mas Martin nã o estava sozinho. O companheiro insepará vel de toda
a sua vida estava na pequena capela com ele. Da parede sobre o altar
um enorme cruci ixo olhava para baixo sobre a pedra que fechava o
tú mulo, como se Cristo na cruz re letisse sobre o momento de erguer
aquela pedra e mostrar por meio do humilde frade que nEle havia
acreditado, o cumprimento de Suas palavras: “Quem crê em Mim, ainda
que morra, viverá .” ( João 11:25).

Capítulo 19
“O que o olho nã o viu, nem o ouvido ouviu, nem subiu ao coraçã o do homem, sã o as coisas que
Deus preparou para os que o amam.” ( 1 Coríntios 2: 9).

“T
SUA E a maneira como os santos devem ser homenageados ”, disse
Felician de la Vega, arcebispo da Cidade do Mé xico, na noite de 4 de
novembro de 1639, apó s o corpo de Martin de Porres, acompanhado
por todas as autoridades da cidade de Lima, ter foi solenemente
transferido da igreja do Santo Rosá rio para a cripta sob a sala do
capı́tulo.
Em março de 1664, quando os restos mortais de Martinho foram
retirados da primeira tumba e reenterrados no antigo almoxarifado da
enfermaria, que havia sido transformada na pequena capela do
Santı́ssimo Cruci ixo, os vinte e quatro anos intermediá rios serviram
apenas para con irmar a convicçã o do povo de Lima de que Martinho
era digno de ser chamado de santo e de receber veneraçã o pú blica.
A translaçã o de seu corpo foi como um sopro de vento em brasas
brilhantes. Isso reavivou a devoçã o e a con iança em Martin, e ainda
mais porque novos milagres loresceram da abertura da velha
tumba. Até mesmo a terra do tú mulo fez milagres.
Entre os muitos que aprenderam por experiê ncia pessoal o poder
daquela terra abençoada estava um negro chamado John Criollo. Ele
vinha sofrendo há algum tempo de uma febre persistente. Apesar de
inú meros remé dios, a febre nunca o deixou. Embora os mé dicos nã o
tivessem expressado francamente sua opiniã o, John Criollo tinha um
medo mortal de terminar como um tuberculoso. Um dia, em março de
1664, o irmã o Lauren de los Santos veio visitá -lo.
"Como você está ?" perguntou o irmã o Lauren.
“O que você pode esperar? Eu ainda estou com febre. Isso vai
acabar mal. ”
“Escute”, disse o irmã o Lauren, “trouxe-lhe um bom remé dio, um
pouco de terra do tú mulo do irmã o Martin de Porres. Ontem
carregamos seu corpo da velha tumba para a nova e ajudei a exumar
seu corpo. Um pouco de sua carne abençoada icou grudada em meus
dedos, com um perfume que nã o consigo descrever. Pegue este pedaço
de terra com um pouco de á gua e peça a Martin que obtenha saú de de
Deus para você , se for para o bem de sua alma. ”
John consentiu prontamente. Orando o mais que pô de para Martin,
ele bebeu a mistura e imediatamente sua temperatura voltou ao
normal. O mé dico o manteve em observaçã o por mais alguns dias,
depois disse que ele poderia sair da cama, con iante de que estava
curado.1
Se fosse possı́vel proclamar Martin santo pelo voto popular, nã o há
dú vida de que ele teria recebido o tı́tulo um dia apó s sua morte. Quando
o arcebispo de la Vega o chamou de santo, ele expressou a opiniã o de
todos. Mas a voz do povo nã o é a ú ltima palavra em questõ es de
santidade, mesmose vier de lá bios autorizados. A Igreja deve falar
o icialmente. Assim, os irmã os de Martin e os cidadã os de Lima
começaram a solicitar o julgamento da Igreja.
A Ordem Dominicana nã o demorou a reconhecer o icialmente as
virtudes de Martin. Um solene elogio sobre sua vida e obra foi
pronunciado no Capı́tulo provincial celebrado em Lima em 1641, dois
anos apó s sua morte. As informaçõ es sobre sua vida se espalharam
rapidamente pela Amé rica do Sul e rapidamente cruzaram o oceano
para o Velho Mundo. A primeira biogra ia do irmã o Martin apareceu em
Valê ncia em 1647 e outra em Roma em 1658.
Mas quando surgiu a questã o de pedir à Santa Sé que apresentasse
a causa de Martinho, foi o Rei da Espanha, Filipe IV, que pegou na pena
para pedir as honras do altar para o irmã ozinho mulato.
“Santı́ssimo Padre”, escreveu o Rei em 17 de dezembro de 1659,
“escrevo ao meu embaixador, Louis de Guzmá n Ponce de Leó n,
pedindo-lhe que apresente a Vossa Santidade as razõ es simultâ neas
pelas quais esperamos que Vossa Santidade envie o remissorial cartas
para a beati icaçã o do Irmã o Martin de Porres da Ordem de Sã o
Domingos. Disseram-me que em sua vida virtuosa e exemplar, junto
com milagres extraordiná rios e o espı́rito de profecia, outros eventos
muito notá veis ocorreram, e imploro a Vossa Santidade que dê total
cré dito ao que ele irá propor sobre este assunto, e ordene que seja o
que for E necessá rio deve ser feito no caso sem demora, de acordo com
a graça que ele receberá de Vossa Santidade. . . . ”2
Um ano e meio depois, em 20 de junho de 1661, a pedido do vice-
rei do Peru, o Rei da Espanha enviou uma segunda petiçã o ao Santo
Padre para obter o decreto para a introduçã o da causa de beati icaçã o
do Servo de Deus, o Irmã o Martin de Porres, da Provı́ncia do Peru,
exortando como um dos motivos para a açã o o grande conforto que a
exaltaçã o de suas virtudes traria aos ié is daquela Provı́ncia. Na mesma
data e com o mesmo propó sito, o rei escreveu també m a Louis Ponce
de Leó n, ordenando-lhe que tratasse ativamente do assunto.3
O Santo Padre havia recebido carta apó s carta em 1660. Cartas
vinham do arcebispo de Lima, do capı́tulo da catedral, das ordens
religiosas com mosteiros ou conventos em Lima, da Universidade de
Sã o Marcos. Cada carta, à sua maneira e com loreios de estilo e
variedades de escrita, elogiava as virtudes extraordiná rias de Martinho
e pedia que o Processo Apostó lico fosse aberto.4
Em 1660, Pedro de Villagó mez, arcebispo de Lima, abriu o
Processo Ordiná rio sobre a santidade da vida de Martinho de Porres,
sua prá tica da virtude e os milagres atribuı́dos à sua intercessã o. Vinte
anos depois de sua morte, ainda estavam vivos muitos que viveram com
Martin, colaboraram em suas obras ou se bene iciaram de sua caridade.
O primeiro a se apresentar como testemunha foi Joã o de Figueroa,
o generoso contribuidor para as obras de caridade de Martinho, que
certa vez ouviu Martinho predizer que sofreria pobreza e teria o
privilé gio de repousar em um tú mulo ao lado de seu santo amigo.
Ele foi seguido pelos dominicanos, Cipriano de Medina, agora
bispo, mas outrora o noviço feio e atro iado; Gaspar de Saldañ a, o prior
que obrigou Martinho a revelar suas penitê ncias noturnas e presenciou
sua morte enquanto os frades entoavam o Credo; Ferdinand de
Aragoné s, colega de Martin na enfermaria; e Francis Velasco
Carabantes, que deve a vida e a perseverança de sua vocaçã o a
Martinho.
Entã o veio Francis de la Torre, que havia compartilhado o quarto
de Martin e estivera presente durante os ataques do demô nio; o outro
capitã o da guarda, Joã o de Guarnido, que conhecia todos os cantos
domosteiro do Santo Rosá rio porque lá fora aluno; e John Vá zquez, a
quem Martin tantas vezes dissera para nã o transmitir para a direita e
para a esquerda o que via quando estava com Martin. John nã o podia
ser convencido do contrá rio, agora que Martin estava morto. Ele nã o
teve coragem de dar seu testemunho até que Martin lhe apareceu,
caminhou com ele por um tempo e o exortou a falar francamente.5
E muitos, muitos mais, religiosos e leigos, homens e mulheres,
vieram testemunhar, incluindo a sobrinha de Martin, Catherine de
Porres, esposa de Nicolau Beltrá n.
Depois de o tabeliã o, Francis Blanco, ter prestado o 64º
depoimento, que era da sobrinha de Martin, levantou-se da cadeira e
pediu a outro tabeliã o que o substituı́sse para que també m pudesse
servir de testemunha. Seu colega Ignatius Pujadas ocupou seu lugar e
Francis Blanco fez seu depoimento. A irmando que nã o tinha conhecido
Martin durante sua vida, ele contou algo que havia acontecido com ele
vá rios dias apó s a abertura do Processo.
O arcebispo dominicano de Santa Fé , Joã o de Arguinao, passava por
Lima. Por respeito à sua dignidade, o notá rio deveria chamá -lo para
tomar seu depoimento. Mas no dia 27 de junho, um dia antes da
consulta, Francis Blanco nã o conseguia andar. Algum tempo antes, um
espinho havia perfurado um de seus dedos do pé . Quando foi removido,
permanecia uma ferida purulenta, que cicatrizou apó s alguns dias. Até
aquele ponto, nã o havia nada de sé rio no incidente. Com a ajuda de uma
bengala, Francisco continuou a trabalhar, mancando com um par de
sapatos velhos. Mas a ferida tinha acabado de sarar quando um
segundo espinho perfurou o local exato onde o primeiro havia entrado,
resultando em uma infecçã o muito mais maligna e um enorme inchaço
no pé e na perna. Em vã o, Francis experimentou todos os sapatos
velhos que encontrou em seu só tã o. Ele tinha que se contentar em
mancar em casa, descalço,pulando o melhor que podia de um cô modo
para outro com o pé bom, porque era impossı́vel colocar o outro no
chã o.
Nessa condiçã o, como ele poderia cobrir a distâ ncia considerá vel
entre sua casa e o palá cio do arcebispo? Por outro lado, era impensá vel
pedir a uma personagem tã o importante que viesse a sua casa, nem ele
poderia pedir ao arcebispo que adiasse sua partida. O notá rio era muito
angustiado por ter sido privado do testemunho de uma testemunha tã o
importante que viveu no mosteiro do Santo Rosá rio quando Martinho
estava lá .
Francis Blanco voltou-se para Martin. Ele já tinha ouvido falar o
su iciente sobre ele para perceber que ele era precisamente a pessoa
que poderia ajudá -lo. “Veja como estou”, Francis disse a Martin na noite
de 27 de junho, quando ele foi para a cama, exausto de pular de uma
cadeira para outra. “Nã o consigo icar de pé e amanhã devo ir ao outro
lado de Lima para receber o testemunho do arcebispo. Você sabe a
importâ ncia desse testemunho para a causa da sua beati icaçã o. Peça a
Nosso Senhor, entre todos os outros favores e graças que Ele deu a
tantas pessoas por sua intercessã o, que lhe conceda esta graça també m
para mim, embora eu seja um grande pecador ”.
Francis se cobriu com as cobertas, tomando cuidado para nã o tocar
no pé latejante, e adormeceu imediatamente.
De manhã acordou curado e nã o precisava de sapatos velhos
quando foi ver o arcebispo de Santa Fé .6
Assim, aos sessenta e quatro depoimentos de Francis Blanco,
acrescentaram-se dois outros: o seu e o de Joan de Ortega, que lhe
arrancou o primeiro e o segundo espinhos do pé . Houve ao todo,
portanto, sessenta e seis depoimentos. Sessenta e seis depoimentos,
mas nã o sessenta e seis testemunhas, pois alguns voltaram um
segundosegunda vez para completar seus depoimentos com detalhes
que eles haviam esquecido da primeira vez.
O depoimento de Joan de Ortega encerrou a primeira investigaçã o
em 12 de julho de 1660. O processo havia sido iniciado em 16 de junho.
Em dezembro de 1664, apó s a traduçã o dos restos mortais de
Martin, Francis Blanco pegou novamente na caneta para registrar os
depoimentos de outras onze testemunhas. O testemunho desta vez se
referiu principalmente à traduçã o dos restos mortais de Martin e à s
graças recebidas por sua intercessã o.
O ano de 1664 viu por sua vez outras petiçõ es enviadas à Santa Sé
para a introduçã o da causa de beati icaçã o de Martinho: do rei Filipe IV
(30 de março); do vice-rei do Peru (17 de novembro), que ainda via em
sua mente a multidã o que se dirigia à igreja do Santo Rosá rio no dia da
translaçã o do corpo de Martinho; de Peter de Villagó mez, arcebispo de
Lima; do capı́tulo metropolitano; da Universidade de Sã o Marcos; das
comunidades religiosas como os Cavaleiros Hospitalá rios,
Agostinianos, Frades Menores, Mercedá rios, Dominicanos e Jesuı́tas,
todos eles ainda quase embriagados pela fragrâ ncia primorosa das
rosas exaladas pelas relı́quias de Martinho.7
Depois de uma investigaçã o minuciosa da Sagrada Congregaçã o
dos Ritos sobre os atos do Processo Ordiná rio, o favor foi inalmente
concedido quatro anos depois em uma relaçã o dada pelo Cardeal
Vidoni na Congregaçã o Ordiná ria de 21 de junho de 1668.8
Em 10 de dezembro de 1668, o Sumo Pontı́ ice, Papa Clemente IX,
assinou o decreto para a introduçã o da causa de beati icaçã o e
canonizaçã o de Martinho de Porres.9
No ano seguinte, foi nomeada a comissã o encarregada de realizar o
Processo Apostó lico e enviadas as famosas cartas remissó rias. Mas mal
tinham saı́do do porto de Gê nova quando foram para o fundo do mar
com o navio que os transportava.No entanto, a caixa na qual foram
encerrados foi recuperada intacta da á gua.
As coisas deveriam ter acontecido com rapidez, mas outros nove
anos se passaram antes que as cartas remissó rias chegassem a Lima e
o trabalho começasse.10Quando inalmente chegaram, em 26 de
outubro de 1678, os cidadã os de Lima, que haviam esperado tantos
anos, enlouqueceram de alegria. Um relató rio de testemunha ocular do
primeiro dia solene, quinta-feira, 27 de outubro, foi transcrito no
Processo de 1678 pelo notá rio Peter del Arco:

Por ordem do ilustre e reverendo Melchior Lignan y Cisnero, nosso Senhor


Arcebispo de Lima, do Conselho de Nosso Senhor Rei, o Vice-Rei, Governador e Capitã o
Geral do Reino e das Provı́ncias do Peru, Terra Firma e Chile. . . O doutor Joseph de
Lara Galá n deixou o palá cio do arcebispo, acompanhado por mim, atual tabeliã o
pú blico e apostó lico, e por todos os membros do tribunal eclesiá stico, padres e
leigos; pelo Reverendı́ssimo Pe. Gaspar de Saldañ a, Prior do mosteiro de Nossa
Senhora do Rosá rio desta cidade e Vigá rio Provincial desta Provı́ncia de Sã o Joã o
Batista do Peru da Ordem dos Pregadores; pelos Muito Reverendos Padres da mesma
Ordem; e assim acompanhados por muitos padres seculares, cavaleiros da referida
cidade, e pela maior parte do povo comumente chamado na Amé rica
de pardos (mulatos), todos vestidos com roupas festivas, todos manifestando a alegria
que sentiram ao ver chegar o dia em que a obra da causa de beati icaçã o e canonizaçã o
do Venerá vel Servo de Deus, Irmã o Martinho de Porres, deveria começar pela
autoridade apostó lica. . . . E do referido palá cio do arcebispo eles passaram diante do
palá cio real e de lá para a casa do governador e governante da referida cidade, e em
cada seçã o havia um pregoeiro; e de lá eles passaram por muitas das principais ruas
deda mesma cidade, e no cruzamento das referidas ruas havia um pregoeiro,
precedendo a referida passagem com tambores e cornetas, trombetas e outros
instrumentos musicais semelhantes para chamar a atençã o de toda a referida cidade
para as cartas apostó licas ordenando que as autoridades apostó licas deve ser
informado da vida, virtudes, morte e milagres do Venerá vel Servo de Deus, Irmã o
Martin de Porres. . . . E o nú mero de homens e mulheres de todas as posiçõ es e
qualidades reunidos nas ruas foi o maior que já vi em minha vida nesta cidade, e
muitas das ruas por onde a procissã o passou estavam cobertas de ervas aromá ticas e
lores, que mostravam o jú bilo e alegria das gentes da referida cidade pelo
acontecimento que celebravam. E . . . na noite desse dia, a grande praça da dita cidade
encheu-se de fogos de artifı́cio, assim como as torres das igrejas, o palá cio real, o
palá cio do arcebispo e as casas das autoridades eclesiá sticas e seculares; e da torre da
igreja de Nossa Senhora do Santo Rosá rio havia a mesma exibiçã o de fogos de artifı́cio
que na praça pú blica, com foguetes e foguetes, e outras exibiçõ es iluminadoras, tudo
acompanhado por um repique geral de sinos que começava à s onze horas do mesmo
dia e continuou até à s nove da noite, altura em que terminaram os fogos de artifı́cio e a
festa.11

Na manhã seguinte, sexta-feira, 28 de outubro, festa dos apó stolos


Simã o e Judas, foi celebrada uma missa solene na catedral. O arcebispo-
vice-rei esteve presente com todas as autoridades da cidade, o corpo
acadê mico da universidade, representantes das ordens religiosas e
militares e uma densa multidã o de homens e mulheres de todas as
classes sociais.
Padre Gaspar de Saldañ a pregou, e “no Ofertó rio da dita Missa
solene”, escreve Peter del Arco, “o referido arcebispo-vice-rei deu-me
dois envelopes, um maior do que o outro, que parece conter as ditas
cartas apostó licas, e depois de recebê -los e mantê -los acima da minha
cabeça, subi ao pú lpito, e adorei o Santı́ssimo Sacramento e me curvei
ao dito arcebispo-vice-rei, e aos senhores do conselho real, e à s
autoridades eclesiá sticas e seculares e ao resto da reuniã o, em uma voz
clara e alta li o endereço no envelope maior e, tendo terminado, li o
endereço no outro envelope da mesma maneira, deixando-os lacrados,
e no estado em que o referido arcebispo-vice-rei me havia dado, e logo
que subi do pú lpito, entreguei-os, de acordo com a ordem de Sua
Excelê ncia. . . ao Padre Francis del Arco, praesentatus, pregador
geral. . . postulador desta causa, de quem fui representante para a dita
cerimô nia; e eu a irmo ter feito tudo isso, e muitas pessoas assim
renderam graças a Deus por ter chegado este dia tã o ardentemente
desejado, em que se coloca a questã o da beati icaçã o e canonizaçã o do
dito Venerá vel Servo de Deus, Irmã o Martin de Porres. assumido pelas
autoridades apostó licas, algumas pessoas o conheceram durante sua
vida, e outras tendo ouvido falar de suas virtudes heró icas, vida
louvá vel e milagres surpreendentes. ”12
Era natural que o povo agradecesse a Deus pelo amanhecer do dia
tã o esperado. Mas foi apenas o primeiro vislumbre do amanhecer. O dia
inteiro em que o complexo mecanismo do Processo começaria a
funcionar a sé rio ainda estava longe. Quando Peter del Arco desceu do
pú lpito e entregou os dois envelopes à autoridade competente, as
di iculdades começaram a surgir. Um dos juı́zes designados havia sido
nomeado para o bispado de Tucamá n e teve que sair; outro era cego e
surdo. Quarenta dias foram gastos para decidir se esses dois juı́zes
deveriam recusar a nomeaçã omento, na procura de seus substitutos,
na veri icaçã o da titulaçã o de cada juiz. Só no dia 6 de dezembro é que o
conhecido “envelope maior”, que continha o decreto de introduçã o da
causa, foi aberto e lido pelo mesmo tabeliã o, Pedro del Arco, na
presença do arcebispo-vice-rei e de todas as autoridades, “palavra por
palavra, em voz alta, clara e inteligı́vel. ”13
Outro obstá culo surgiu. Por alguma estranha razã o, as cartas
remissó rias indicavam que o ano do nascimento de Martin era 1589, na
cidade de Guamanga. O erro deveria ser esclarecido na primeira
audiê ncia pela primeira testemunha, mas se passaram dois meses e
meio antes que os interrogató rios começassem.
A primeira audiê ncia aconteceu em 20 de fevereiro de 1679, na
capela da Adoraçã o dos Magos da catedral. A primeira testemunha foi o
Pe. Anthony de Morales, OP, bispo eleito de Concepció n, Chile. Embora o
padre Morales tivesse mais de sessenta anos, ele nã o poderia ter
baseado sua reti icaçã o da data de nascimento de Martin em memó rias
pessoais, porque 1679 foi o centená rio do nascimento de Martin. Mas o
padre Morales teve a sorte de se deparar com o pró prio documento que
encerrou toda a discussã o sobre a questã o: o registro de batismo da
igreja paroquial de Sã o Sebastiã o, em Lima. Tem havido discussõ es
sobre o assunto, e o Padre Antô nio, que as compartilhou desde o
momento em que entrou na Ordem, sempre icava perplexo com
isso. Martin estava entã o totalmente maduro e tã o estimado por seus
irmã os que muitos deles desejaram reivindicá -lo como um nativo de
sua pró pria cidade. E assim alguns diziam que ele era de Cuzco, outros
de Guamanga. Martin nã o se preocupou em reti icar o erro; em sua
opiniã o, essas perguntas inú teis nã o mereciam nem uma palavra de
discussã o.
Padre Anthony viveu dez anos com Martin no mosteiro do Santo
Rosá rio, de 1623 a 1633. Entã o seus superiores o enviaram a outro
lugar para pregar, ensinar e assumir vá rias responsabilidades. Mas em
1661 ele estava mais uma vez em Lima. O mestre geral da Ordem lhe
incumbiu a organizaçã o da celebraçã o da beati icaçã o de Rosa de
Lima. O padre Anthony queria ver o registro o icial do batismo de Rosa
na igreja de Sã o Sebastiã o e o encontrou sem di iculdade, folheando as
pá ginas do registro de batismo do ano de 1585. Entã o, enquanto
folheava sem rumo o registro para trá s, o seu olho pousou no nome de
Martin de Porres. Nem os de Cuzco nem os de Guamanga podiam se
orgulhar de ser da terra natal do irmã o Martin. Rosa de Lima havia
reivindicado o direito a essa honra para ela e sua cidade.14
Durante o primeiro Processo, Francis Blanco pô de registrar os
depoimentos ao ritmo acelerado de cinco ou seis testemunhas por
dia. O segundo Processo foi mais lento, e as testemunhas que
sucederam ao Padre Morales compareceram em intervalos de duas ou
trê s semanas, ou quantos dias foram necessá rios para responder à s
perguntas sobre os mais de oitenta pontos do interrogató rio.
Nã o é de admirar que o Processo, para o qual foram recolhidas as
declaraçõ es de cento e sessenta e quatro testemunhas, tenha durado
quase oito anos. Terminou em 1686, e quando os atos do Processo
foram encerrados em um rico recipiente e colocados no altar principal
da catedral, um solene Te Deum foi cantado e o arcebispo pregou um
elogio a Martin. Em seguida, a caixa dourada com os atos do Processo
foi levada em triunfo para a igreja do Santo Rosá rio, enquanto a
populaçã o mais uma vez com entusiasmo se derramava nas ruas e
enchia a igreja. O caso foi entã o colocado a bordo de um navio prestes a
zarpar para o Velho Mundo. Mas como o navio que zarpou de Gê nova
com as cartas remissó rias, este també m afundou, e o resultado do
pacientee o exigente trabalho de investigaçã o de oito anos estava no
fundo do mar.
Felizmente, uma segunda có pia autenticada foi conservada em
Lima. O Papa Inocê ncio XII emitiu autorizaçã o para fazer uma có pia e
enviá -lo à Sagrada Congregaçã o dos Ritos. A segunda có pia chegou a
Roma sem nenhum incidente desagradá vel, mas outros trê s quartos de
sé culo se passaram antes que o heroı́smo das virtudes de Martin fosse
aprovado. O Papa Clemente XIII assinou o decreto em 27 de fevereiro de
1763.15
Esse foi um passo decisivo em frente, mas ainda mais era
necessá rio. Entre os muitos milagres operados por Martin apó s sua
morte, dois tiveram que ser o icialmente reconhecidos pela autoridade
pontifı́cia. Os dois milagres escolhidos para aprovaçã o o icial foram
surpreendentes.
Elvira Moriano de Lima foi o primeiro caso, Elvira preparou um
remé dio caseiro e colocou no parapeito da janela para resfriar no ar
noturno. Quando ela se levantou na manhã seguinte, ela foi buscá -lo,
mas a jarra de barro escorregou de suas mã os, caiu no chã o e
quebrou. Um dos pedaços ricocheteou em seu olho com tanta força que
perfurou a có rnea. O cristalino saiu da ferida com todos os luidos
circundantes e o globo ocular icou lá cido e vazio.
Elvira pensou que ia morrer de dor e começou a gritar. Seus
vizinhos vieram e chamaram um cirurgiã o, Peter de Urdanibia, um dos
mais há beis da cidade. Este mé dico de bom coraçã o sentiu profunda
compaixã o pela pobre mulher. Como ele poderia contar a verdade a ela?
"Existe alguma esperança de que meu olho possa ser
curado?" perguntou Elvira Moriano.
O mé dico respondeu: “Deus é a sua ú nica esperança, porque o seu
olho está completamente vazio e só Deus pode recriar os ó rgã os do
nosso corpo. Farei tudo o que puder para que o dano nã o piore. Mas se
você tiverfé em qualquer santo, ore a ele de todo o coraçã o. ”
O cirurgiã o falava como o homem honesto que era e, como um
homem honesto, usava todos os remé dios que tinha à sua disposiçã o.
Enquanto isso, a notı́cia do acidente se espalhava pela cidade e
chegava ao mosteiro do Santo Rosá rio, onde o ilho de Elvira era
noviço. O Padre Mestre, Jerô nimo de Toledo, teve pena da mã e da
noviça e enviou-lhe uma relı́quia composta por um pequeno fragmento
dos ossos de Martinho de Porres, explicando o que era e exortando-a a
colocá -la no olho ferido com fé .
Com grande con iança, Elvira aplicou a relı́quia no globo ocular
vazio. A dor torturante diminuiu e uma sonolê ncia deliciosa a
dominou. Ela dormiu até a manhã seguinte e, assim que acordou, tocou
o olho ferido. A cavidade foi preenchida. Ela saltou da cama e correu
para o espelho. O olho estava bem e perfeito como se nunca tivesse sido
ferido.
Os vizinhos de Elvira ouviram seus gritos e correram para sua
casa, mas desta vez ela gritou porque estava quase louca de alegria. O
mé dico també m veio e, sendo um homem honesto, louvou a Deus e a
Seus santos.16
O outro milagre aconteceu da seguinte maneira. Uma limpeza
completa estava em andamento na casa de Agnes Vidal. Para polir o
chã o do salã o principal, os criados empilharam todas as cadeiras contra
o corrimã o de ferro da varanda. Entre os ocupados em polir o chã o
estava uma escrava negra que tinha com ela um ilho de pouco mais de
dois anos. O nome da escrava é desconhecido, mas o bebê se chamava
Melchior Varanda.
Melchior nã o tinha nada para mantê -lo ocupado enquanto sua mã e
estava trabalhando, e ele trotava de um lado para o outro sem ningué m
prestar atençã o nele. Ele saiu na varanda e descobriu a barreira de
cadeiras. No começo ele icou irritado. Como pô deele viu o que estava
acontecendo na rua com aquela parede de cadeiras em seu
caminho? Mas entã o ele decidiu que tudo o que precisava fazer era
subir neles para ver melhor. Entã o, usando um banquinho como escada,
ele se içou para cima de uma cadeira. Tudo estava indo bem.
Melchior estava contente e feliz porque se sentia tã o grande quanto
os adultos e podia se inclinar sobre a grade de ferro e acenar para todos
os transeuntes. Como era divertido para algué m que sempre tinha que
olhar para as pessoas, observá -las de um ponto tã o acima de suas
cabeças. Melchior continuou debruçado sobre o parapeito e
regozijando-se com sua conquista, até que se inclinou demais e caiu na
rua, uma queda de cinco metros. Sua cabeça atingiu o pavimento
primeiro. Sua mã e e os outros criados ouviram o barulho e correram
para a rua. O crâ nio de Melchior foi aberto, ele estava sangrando dos
olhos, orelhas, nariz e boca. Ele nã o parecia mais estar respirando. Nã o,
ele estava vivo, porque sua temperatura estava subindo
loucamente. Seu braço esquerdo moveu-se convulsivamente.
O mé dico, Peter de Utrilia, veio imediatamente e imediatamente
admitiu que estava impotente diante de uma situaçã o tã o
desesperadora. Ele só podia dar um conselho: rezar para Martin de
Porres. A pobre mã e nã o conseguia pronunciar uma palavra, mas seu
patrã o estava ao seu lado. Agnes Vidal foi em busca de uma fotogra ia
do Servo de Deus e colocou-a na cabeça ferida da criança dizendo: “Sã o
Porres! Santo da minha alma, meu amigo, cure este bebê para mim! ”
Martin sorriu do cé u. Como icou feliz ao ver esta nobre espanhola
tã o abalada pela dor do ilho de um pobre escravo negro.
Trê s horas depois, o pequeno Melchior saltou da cama onde estava
deitado, tã o saudá vel e com os olhos brilhantes como antes da queda. E
nem entã o, nem em nenhum momento depois, o Melchior Varanda deu
sinais ou consequê ncias da fractura.
Quando o Dr. Peter de Utrilia voltou a vê -lo, o encontrou brincando
e correndo com todas as mil formas de ganhar dos bebê s de sua
idade. Pedro saiu da casa de Agnes Vidal para relatar o milagroso caso,
e seu testemunho teve ainda mais peso por causa de sua indiscutı́vel
competê ncia como mé dico.17
Os dois milagres foram aprovados pelo Papa Gregó rio XVI em 19 de
março de 1836. Quatro meses e meio depois, em 31 de julho, foi
assinado o decreto em que foi considerado seguro proceder à
beati icaçã o.
E inalmente, em 29 de outubro de 1837, no esplendor da Bası́lica
do Vaticano, Martin de Porres foi solenemente elevado à s honras do
altar uma semana depois de Joã o Massias, seu irmã o na Ordem e seu
amigo mais ı́ntimo, ter recebido o mesma honra.
Depois de alcançar com sucesso esse ponto tã o desejado, a causa
de Martin parecia destinada a permanecer inativa por um perı́odo
inde inido. Dé cada se sucedeu dé cada sem a conclusã o das etapas
necessá rias para chegar ao ponto de sua canonizaçã o.
Somente em 1926, a pedido do Reverendı́ssimo Louis G. Fanfani,
OP, entã o postulador geral da Ordem Dominicana, e em resposta a
numerosas petiçõ es recebidas de autoridades eclesiá sticas e leigas, o
Papa Pio XI nomeou uma comissã o para retomar a causa.
Dez anos depois, o mestre geral dominicano, o rev.mo Martin
Stanislaus Gillet, dirigiu uma carta circular a toda a Ordem, exortando
os dominicanos a promoverem a devoçã o ao Beato Martinho e a
acelerarem pela oraçã o e pela recolha de testemunhos o momento em
que a sua canonizaçã o acrescente uma lor nova e esplê ndida à
guirlanda de Sã o Domingos.18
Uma resposta marcadamente entusiá stica ao pedido do mestre
geral veio da Provı́ncia de Sã o José , nos Estados Unidos, que se
encarregou da mudança.mento. Por mais de meio sé culo, Martin
conquistou o coraçã o dos norte-americanos. Um padre italiano, o padre
Felix Barotti, apresentou Martin aos Estados Unidos. Em 1866 foi
enviado para evangelizar os negros daquele paı́s e ergueu uma capela
em Washington para seu pequeno rebanho e a dedicou ao Beato
Martinho. Em poucos anos, a capela icou muito pequena e uma igreja
foi construı́da. Como uma igreja normalmente nã o pode ser dedicada a
um beato, a que foi construı́da para os negros de Washington foi
dedicada a Santo Agostinho. Mas a semente lançada pelo Padre Barotti
tinha criado raı́zes e loresceu no inal do sé culo XIX sob os cuidados de
Monsenhor John E. Burke, o grande apó stolo dos negros e um terciá rio
dominicano.
Monsenhor Burke viu em Martin um poderoso aliado e tornou-se
um fervoroso promotor da devoçã o ao santo Negro, auxiliado pelas
Irmã s Dominicanas de Sparkill, de Nova York, a quem havia con iado
uma de suas escolas para negros, a Casa de Sã o Benedito, em 1886 Os
primeiros artigos na Amé rica do Norte sobre a vida e as virtudes de
Martin de Porres foram publicados no perió dico da escola, o St.
Benedict's Home Journal .
Esse foi o ponto de partida de um movimento que hoje adquiriu
importâ ncia nacional. Monsenhor Burke o orientou em duas direçõ es:
propaganda e devoçã o. Assim, enquanto escrevia artigos para
o Journal , ele també m compô s uma oraçã o ao Beato Martinho pela qual
obteve uma indulgê ncia de 100 dias do Papa Leã o XIII.
Isso foi em 1894. Cinco anos antes, em 1889, foi publicada em Nova
York a primeira vida de Martin de Porres em inglê s. Era uma traduçã o
do italiano, com prefá cio do futuro Cardeal Vaughan.
Depois que a causa de Martin foi reaberta, o Padre McGlynn e o
Padre Georges, Dominicanos da Provı́ncia de Sã o José , contribuı́ram
para torná -lo mais conhecido com suas biogra ias e numerosos artigos
na revista dominicana The Torch . E quando a Guilda do Abençoado
Martin foi fundada pelo Padre Edward L. Hughes, OP, editor de The
Torch , a difusã o de folhetos de oraçã o e brochuras chegou a centenas
de milhares.
Em 1936, as Irmã s Dominicanas do Rosá rio Perpé tuo de Union
City, New Jersey, tornaram-se zelosas promotoras da devoçã o ao Beato
Martin por meio de novenas e triduums em sua Capela Azul, sob a
promoçã o do Padre Hughes. O resultado mais notá vel desses esforços
foi a permissã o concedida pela Santa Sé a vá rias dioceses dos Estados
Unidos para prestar veneraçã o pú blica ao Beato Martinho, mesmo fora
das igrejas e capelas da Ordem Dominicana.19
Em contraste com este progresso consolador no campo da devoçã o
ao Beato Martinho, foi um tanto desconcertante saber do fracasso dos
trê s Processos Apostó licos em casos de curas notá veis que, no entanto,
nã o foram reconhecidos como milagrosos. Estas ocorreram nas
dioceses de Cajamarca, Peru (1928); Detroit, Michigan (1941); e o
Transvaal na Africa (1948).
Entã o, de repente, como acontece com todas as coisas há muito
esperadas, entre março e abril de 1962, espalhou-se a notı́cia de que a
canonizaçã o de Martin de Porres estava pró xima e certa porque dois
dos muitos casos extraordiná rios de cura atribuı́dos à sua intercessã o
haviam sido declarados pelos mé dicos estava alé m de qualquer
explicaçã o natural e tinha sido reconhecido pelas autoridades
eclesiá sticas como autê nticos milagres.
Quatorze anos se passaram desde o primeiro milagre. Tinha
acontecido em Assunçã o, Paraguai, onde Dorothy Caballero Escalante,
uma viú va que suportava com facilidade o peso de seus oitenta e sete
anos e gozava de excelente saú de, adoeceu em 8 de setembro de
1948,com uma disfunçã o intestinal grave. O diagnó stico dos mé dicos de
uma obstruçã o intestinal foi con irmado por raios-X. O ú nico remé dio
possı́vel era uma operaçã o, mas a intervençã o cirú rgica foi excluı́da
pelo estado geral do paciente, que se complicou com um infarto e a
inevitá vel progressã o da obstruçã o intestinal. Uma semana depois, a
vida de Dorothy Calallero Escalante estava por um io.
Sua ilha morava em Buenos Aires e foi noti icada da doença da
mã e. Ela imediatamente se preparou para ir para o lado da mã e o mais
rá pido possı́vel. Mas na noite de 14 de setembro, antes de partir, ela
começou a orar a Martin de Porres, pedindo-lhe que salvasse a vida de
sua mã e. Ela orou enquanto preparava apressadamente sua valise; ela
orou no caminho de sua casa para o aeroporto; ela continuou a orar
durante o vô o.
E certamente ainda estava rezando na manhã seguinte quando,
com o coraçã o batendo forte, bateu à porta de uma casa em
Assunçã o. Mas sua oraçã o se transformou em jú bilo de açã o de graças
quando soube que Dorothy Caballero Escalante fora instantaneamente
e completamente curada na madrugada do mesmo dia.
Sua saú de foi tã o completamente restaurada que viveu vá rios anos
mais e celebrou seu nonagé simo aniversá rio com boa saú de. Ela,
poré m, nã o atingiu a marca centená ria e por isso nã o teve o consolo de
estar presente na suprema glori icaçã o da Santa que a ajudara.
A outra pessoa curada por um milagre teve essa alegria. Ele era
uma criança de quatro anos e meio. Na noite de 25 de agosto de 1956,
em Tenerife, nas Ilhas Caná rias, Anthony Cabrera Pé rez sonhava talvez
escalar as alturas mais inacessı́veis enquanto tentava escalar um muro
em construçã o. Mas quando um bloco de cimento pesa cerca de
setentalibras se soltaram e rolaram em seu pé esquerdo, ele foi
chamado de volta à dura realidade. Quando o bloco de cimento foi
levantado de seu pé , descobriu-se que estava terrivelmente mutilado. A
criança tinha sofrido, como disseram os mé dicos posteriormente,
lesõ es ó sseas e vasculares de tipo isquê mico. E como se isso nã o
bastasse, logo em seguida os dedos dos pé s desenvolveram gangrena
ú mida, seguida de um estado geral de tó xico.
Quatro mé dicos do Hospital Santa Eulá lia, em Tenerife, realizaram
uma consulta por causa do estado grave de Anthony e concordaram que
era necessá rio amputar o membro para salvar a vida da criança. Por um
perı́odo de sete dias, eles haviam tentado inutilmente todos os
remé dios possı́veis para combater a gangrena, e nã o havia tempo a
perder.
Mas no dia 1º de setembro um amigo da famı́lia chegou de Madrid
e tentou confortar os pais de Antô nio com o pensamento do poder que
ultrapassa os limites da ciê ncia mé dica e os recursos da natureza. Ele
deu à mã e uma foto do Abençoado Martinho, dizendo a ela: “Ore a ele,
peça-lhe que salve a criança para você ”.
De todo o coraçã o, a mulher se agarrou a esse io de esperança e,
enquanto repetidamente passava a foto sobre o pé machucado de seu
ilho, ela continuou a orar até tarde daquela noite ao lado da cama com
seu marido e o superior do hospital.
Durante a noite, algo maravilhoso aconteceu. A isquemia e a
gangrena desapareceram, o sangue voltou a circular no pé . A vida
voltou aos tecidos mortos!
Esses dois casos de curas milagrosas foram discutidos e aprovados
pelo colé gio mé dico da Sagrada Congregaçã o dos Ritos em 11 de janeiro
e 18 de outubro de 1961. Em 13 de fevereiro de 1962, foram
apresentados à reuniã o preparató ria dos consultores teoló gicos, e
foram de initivamente aprovado por a Congregaçã o Geral de 20 de
março, presidida pessoalmente pelo Papa Joã o XXIII.
Foi apenas nas duas primeiras semanas de abril que a data da
canonizaçã o, 6 de maio, foi divulgada. A atividade febril começou
imediatamente para organizar peregrinaçõ es e garantir bons lugares,
ou pelo menos algum lugar, para a cerimô nia em Sã o Pedro. Durante
anos, nã o houve tal demanda por ingressos para uma cerimô nia no
Vaticano.
Ficamos tentados a nos perguntar quantas peregrinaçõ es teriam
ocorrido se houvesse um aviso pré vio, visto que tantas foram
organizadas no breve espaço de tempo disponı́vel. Eles vieram de todas
as partes do mundo: da Europa, Asia e Africa; da Amé rica do Sul, terra
natal de Martin; e da Amé rica do Norte, a terra que o adotou como seu.
E assim, na manhã de 6 de maio, a Bası́lica do Vaticano acolheu
uma das mais variadas e exuberantes multidõ es que suas amplas naves
já abrigaram, uma multidã o de cerca de quarenta mil pessoas. Mais
uma vez, homens de todas as cores, de todos os cantos da terra, em
trajes de todas as naçõ es e todas as classes sociais, icaram lado a lado
sob os arcos majestosos da Bası́lica de Sã o Pedro. Lá , mesmo os
contrastes mais extremos nã o sã o chocantes, pois na casa de seu Pai
todos os homens sã o simplesmente irmã os.
Perante esta multidã o, no silê ncio palpitante que se seguiu à
polifonia do Criador Veni , a voz do Papa Joã o XXIII se ergueu para
proclamar a santidade de Martinho de Porres e as virtudes que o
tornaram digno da honra suprema da canonizaçã o. Sua Santidade
vinculou a glori icaçã o de Martinho ao quinto centená rio da
canonizaçã o de Catarina de Sena. A celebraçã o do seu aniversá rio de
canonizaçã o culminou poucos dias antes, com a inauguraçã o de um
monumento em homenagem ao grande dominicano, colocado ao lado
do Castelo de Santo Angelo e voltado para a Bası́lica de Sã o Pedro. O
Santo Padre nã o hesitou em de inir a igura dohumilde irmã o de Lima
ao lado do grande santo de Siena.
De seu nicho na Bası́lica de Sã o Pedro, onde sua está tua era
emoldurada por uma festiva cintilaçã o de luzes, Sã o Domingos parecia
ouvir e se alegrar com a associaçã o dos dois santos, apontando para
seus ilhos espalhados pela bası́lica e aglomerados em frente dele na
tribuna da postulaçã o, a chave idê ntica da espiritualidade dos dois
santos, tã o diferente em outros aspectos - sua espiritualidade, que se
tornou a alma de suas almas.
Indiferentes à atividade inquieta e vivaz de fotó grafos e jornalistas
por trá s e acima deles, os membros do corpo diplomá tico ouviram as
palavras do Santo Padre em sua tribuna ao pé da está tua do patriarca
dos Frades Pregadores. E ao redor do trono papal, apoiado por cortinas
cintilantes de ouro, trinta e oito cardeais vestidos de pú rpura
esplê ndido ouviram o papa. Eles se estendiam em uma linha dupla ao
longo do centro da abside, da “Gló ria” de Bernini ao altar da
Con issã o. Das tribunas erguidas contra os pilares principais, das á reas
da nave cruzada e da nave central, toda a atençã o da imensa multidã o
estava igualmente concentrada naquela voz, no latim tã o sereno e
luminoso como a cú pula de Michelangelo, que proclamava o mensagem
há muito esperada.
Seguiu-se a Missa, uma solene Missa Papal com todas as
cerimó nias caracterı́sticas de uma canonizaçã o: o canto da Epı́stola e do
Evangelho em latim e em grego para atestar a unidade da Igreja na
multiplicidade dos seus ritos; a procissã o das oferendas de velas e
lores, pã o e vinho, e gaiolas de pá ssaros cantantes, liderada pelas mais
altas autoridades da Ordem de Sã o Domingos e terminando com dois
jovens negros dominicanos, emocionados com o privilé gio de subir os
degraus do trono papal; o estrondo dotrombetas de prata; o cortejo
saindo da igreja, com o Papa sorrindo e abençoando a multidã o do alto
de sua sedia gestatoria , à vista de todos.
Entã o a multidã o se espalhou na Praça de Sã o Pedro entre os
braços da colunata, e todos os olhos se voltaram para uma janela bem
conhecida do Palá cio Apostó lico. O Santo Padre ainda teria forças para
recitar o Angelus com os ilhos, depois de uma cerimó nia que durou
quase quatro horas?
Sim; ao meio-dia a janela se abriu e contra um fundo escuro
apareceu uma igura branca, minú scula ao longe. Os olhos bondosos do
Papa voltaram a olhar para aquela magnı́ ica assembleia de diversos
povos unidos para a glori icaçã o do humilde irmã o de Lima, daquele
“cachorro mulato”, como diria Martinho. A alegria deve ter feito o
cansaço do papa desaparecer. Sua voz era cheia e vibrante, e ele falava
de alegria e festa. Que festa para o Peru, que testemunhou a glori icaçã o
de um de seus ilhos! Que festa para a Itá lia, que viu tantos peregrinos
reunidos em seu solo para homenagear o novo santo! Mas a inal, o que
signi icam os dias de festa na terra? Somente no cé u seremos capazes
de compreender o que signi ica santidade em seu sentido mais
completo. Pois no Cé u, "que alegria, meus ilhos, que alegria!"
Contra o azul claro do cé u romano, as está tuas dos santos na
colunata da Praça de Sã o Pedro pareciam quase ganhar vida, como se
simbolizassem a alegria dos bem-aventurados no cé u. As bandeiras e
estandartes pendurados nas janelas centrais da Bası́lica do Vaticano
balançavam com a brisa, e a brilhante luz do meio-dia os trazia à sua
beleza, transformando-os em uma coroa em torno da tapeçaria que
retratava a gló ria celestial de Sã o Martinho de Porres.

Capítulo 20
“Entã o romperá a tua luz como a alva,
e a tua saú de rapidamente se desenvolverá ,
e a tua justiça irá diante da tua face,
e a gló ria do Senhor te ajuntará .” ( Is . 58: 8).

S
A carreira pó stuma de T. MARTIN parece progredir em um ritmo
extraordinariamente lento em comparaçã o com a de muitos santos dos
ú ltimos anos. Em alguns casos, membros da famı́lia estiveram
presentes para dirigir seus louvores e oraçõ es a um santo no dia de sua
canonizaçã o. Num caso - o de Santa Maria Goretti - a pró pria mã e do
Santo teve esse privilé gio.
Mas, para Martin de Porres, longos intervalos de tempo separam as
vá rias etapas necessá rias para alcançar as honras do altar.
Passaram-se trinta anos entre sua morte e a assinatura do decreto
de introduçã o da causa; dez anos entre a assinatura do decreto, sua
chegada a Lima e o inı́cio efetivo do Processo Apostó lico; oitenta e cinco
anos desde o inı́cio do Processo até a proclamaçã o do heroı́smo de suas
virtudes; setenta e quatro anos decorridos entre aquela proclamaçã o e
sua beati icaçã o; ao todo, dois sé culos desde sua morte até sua
beati icaçã o.
Por noventa anos apó s a beati icaçã o, a Sagrada Congregaçã o dos
Ritos suspendeu toda a atividade pela causa de Martin de Porres, e
mesmo quando a causa foi reaberta em 1926, mais trinta e seis anos se
passaram até a data de sua canonizaçã o. Ao todo, o espaço de trezentos
e vinte e trê s anos dividiu sua morte e sua canonizaçã o.
Inclinamo-nos a perguntar por que todo esse atraso? No plano de
Deus, nada acontece por acaso. Se o divino Semeador joga a semente no
sulco e "dorme à noite enquanto a semente brota", a noite de Deus pode
ser mais ou menos longa, mas Seu surgimento é um sinal domadrugada
do dia em que o fruto amadurecido está pronto para ser colhido.
Certamente o corpo de Martin, colocado no sepulcro como a
semente é plantada na terra, nã o permaneceu inerte. Até mesmo a terra
que entrou em contato com seu corpo tornou-se um agente de cura e
revivi icaçã o. Mas acima de tudo, o espı́rito de Martin permaneceu,
vivendo e trabalhando entre os seus.
Mesmo hoje, Martin ainda vive em sua pró pria terra. Senti isso uma
noite, quando conheci uma velha senhora peruana em Roma. Com o
encanto que encontramos em quem está tentando falar uma lı́ngua que
nã o a sua, ela me falou de sua terra distante,
A certa altura, perguntei a ela: "Você já ouviu falar do beato Martin
de Porres?"
Seu rosto se iluminou. "Fray Martin!"
Foi como se eu tivesse mencionado o membro mais querido de sua
famı́lia. Mas seu tom de voz també m carregava uma nota de grande
espanto. Era uma pergunta que precisava ser feita?
Todo mundo no Peru conhecia “Fray Martin”. E ela continuou a falar
dele, nã o como algué m que pertence à histó ria e nada mais, mas como
uma pessoa com quem se tem contactos diá rios e afectuosos. Ela me
contou uma razã o, entre muitas outras, por que amava tanto
Martin. Nã o era nada espantoso, apenas uma daquelas pequenas
ninharias, uma daquelas delicadas atençõ es entre amigos.
Um de seus sobrinhos era estudante paraquedista. Ele estava um
pouco inquieto no dia em que deu o primeiro salto. Se ele pelo menos
tivesse consigo um pequeno quadro sagrado! Mas agora ele nã o
conseguia um, "Oh Fray Martin!"
Ele olhou para o chã o da cabine do aviã o, e uma pequena imagem
do Sagrado Coraçã o de Jesus encontrou seus olhos, caı́do sabe-se lá de
onde. Com a imagem do Sagrado Coraçã o de Jesus, elesaltou
tranqü ilamente e lutuou suavemente até a terra sob a leve cú pula de
seu pá ra-quedas, embalado pela brisa.
Qualquer pessoa que consultar os arquivos do St. Martin's Guild em
Nova York ou da Blessed Martin Society em Chicago encontrará
abundante material para um esboço do Martin mais moderno. Essas
associaçõ es foram fundadas pelo Padre EL Hughes, OP, a primeira em
1935 e a segunda em 1941. Elas se assemelham à Sociedad y
Hermandad del Beato Martin de Porres , fundada pelo Padre D. Iriarte,
OP, em Lima. De todas as partes dos Estados Unidos vê m testemunhos
de graças atribuı́das à intercessã o do irmã o Martin. Uma leitura atenta
das cartas nesses arquivos demonstra a estupenda capacidade de
Martin de Porres de se adaptar à vida de nosso tempo, e vê -se
exercendo nã o apenas sua antiga habilidade de curador de almas e
corpos, mas outras habilidades que nunca faria. imaginou que um dia
possuiria, como fazer funcionar equipamentos elé tricos e rá dios, ou
reabastecer em aviõ es em pleno voo cujo suprimento de combustı́vel se
esgotou. Saber que ele possui essas “habilidades” peculiares à nossa
vida moderna aumenta nossa con iança nele e nossa afeiçã o por ele.
Talvez precisamente pela sagrada facilidade com que se adapta à s
necessidades da vida hoje, Martin conquistou o coraçã o dos norte-
americanos e se tornou cidadã o dos Estados Unidos, sem renunciar a
um jota de seus direitos nativos na Amé rica do Sul.
No entanto, este é apenas um aspecto de St. Martin. E talvez o
aspecto mais popular, mas també m o menos profundo. O mestre geral
da Ordem viu a importâ ncia de sua causa sob outra luz, quando
escreveu ao provincial dominicano de Nova York, o Reverendı́ssimo
Terence S. McDermott, OP, para expressar sua satisfaçã o com os
inteligentesatividade desenvolvida e incentivada pelos dominicanos
dos Estados Unidos. O mestre geral expressou a esperança de que tã o
generosos esforços sejam coroados pelo consolo de ver o nome de um
tã o digno ilho de Sã o Domingos adicionado à lista dos santos. “Aquele
dia”, escreveu o Reverendı́ssimo Martin Stanislaus Gillet em 11 de
junho de 1936, “acrescentará um novo esplendor à nossa sagrada
Ordem pela exaltaçã o de um de seus maiores ilhos. Mas també m será
um dia de triunfo especial para toda a Igreja Cató lica, pois será mais
uma prova de que sua caridade abrangente transcende as barreiras de
raça e classe. ”1
Paci icador entre diversas raças; isso é o que St. Martin é ,
principalmente, para o povo da Amé rica do Norte.
Há um selo de propaganda que, entre as palavras “Bem-aventurado
Martinho - Paci icador”, mostra uma foto de Martinho de braços abertos
envolvendo dois jovens, um branco e um de cor, que apertam as mã os.
Se ele izesse apenas isso, St. Martin teria realizado um grande
negó cio. A presença de treze milhõ es de negros nos Estados Unidos
constitui um sé rio problema e um vasto campo para os trabalhadores
do Evangelho. Embora essa multidã o se esforce para garantir direitos
sociais iguais aos dos brancos, ainda nã o demonstrou muito interesse
na verdadeira fé . Nem mesmo um quinquagé simo dos negros nos
Estados Unidos pertence à Igreja Cató lica.
A imagem de Martin, elevada acima desta raça desorientada, tem
duas missõ es: quebrar o preconceito dos brancos, mostrando-lhes pelo
exemplo do alto estado de perfeiçã o que alcançou que Deus nã o faz
distinçã o entre raças ou povos, mas oferece a todos os homens de bem
será a graça da dignidade da adoçã o divina, e para mostrar aos negros
que a Igreja Cató lica, a depositá ria dos tesouros de a Redençã o, é a
ú nica instituiçã o capaz de assegurar para a sua raça, degradada e
humilhada ao longo dos sé culos, aquela verdadeira nobreza comum a
todos os homens que se podem chamar e sã o ilhos de Deus.
Embora os problemas raciais do Novo Mundo sejam no momento
tã o agudos e longe de uma soluçã o satisfató ria, eles diminuem antes
dos maiores do Velho Mundo, onde muitos povos de cor sã o
confrontados com problemas e responsabilidades inteiramente novos
como consequê ncia de seus independê ncia recentemente adquirida.
Pode-se compreender como Sua Eminê ncia o cardeal Rugambwa
poderia dizer no dia seguinte à canonizaçã o que “especialmente por
causa das necessidades particulares de nosso tempo, agradecemos a
Deus pela missã o providencial de Sã o Martinho ao longo de sua vida e
durante o sé culo XX. . ” Sua Eminê ncia sintetizou esta missã o ao
apontar aos homens a verdade fundamental do amor:

Mesmo na é poca de Martin, quando as raças do Ocidente estavam


penetrando nas Amé ricas, e depois nos sé culos seguintes, que viram
sua penetraçã o na Africa. . . era necessá rio lembrar aos cristã os a
grande verdade que Nosso Senhor tantas vezes exaltava: a fraternidade
dos homens sob a paternidade de Deus. “Um novo mandamento vos
dou, que vos ameis uns aos outros: que assim como vos amei, vó s
també m vos ameis uns aos outros”. ( João 13:34). Era necessá rio
lembrar aos cristã os que a lei fundamental do amor fraterno nã o pode
tolerar nenhuma diferença entre os homens, visto que Cristo nã o
reconhece tais diferenças e, portanto, nã o deve haver diferença baseada
na raça, na riqueza, na posiçã o social. . . .
Deus em Sua sabedoria e bondade levantou um homem cuja
pró pria vida deveria torná -lo um apó stolo desta verdade. . . .
Vamos admirar agora a obra de Deus em preparar Seu servo
escolhido para essa tarefa. Martin de Porres era mestiço, espanhol do
lado paterno e africano do lado materno. Assim, na sua pró pria pessoa,
era um elo de ligaçã o entre as diferentes raças. . . .
Em Lima, havia distinçõ es muito nı́tidas entre as diferentes raças,
mas. . . certamente aos olhos de Martin, todo mundo era irmã o.2
Para considerar cada homem como um irmã o. Essa nã o é a ú nica
soluçã o verdadeira para todos os problemas raciais e sociais? Assim, já
em 10 de janeiro de 1945, em resposta à petiçã o do episcopado
peruano, o Soberano Pontı́ ice, Papa Pio XII, proclamou Martinho de
Porres o patrono da justiça social na Repú blica do Peru.3
Esta, entã o, será a missã o de Sã o Martinho ao longo dos sé culos:
fazer a paz entre os homens brancos e os negros, fazer a paz entre os
homens das diferentes classes sociais, mostrando com seu exemplo
como a lei fundamental da caridade deve ser levada em conta. prá tica.
E uma missã o grande e necessá ria, pois nunca a justiça social foi
tã o discutida como em nosso tempo, mas em nenhuma outra é poca a
incapacidade da sociedade de encontrar uma soluçã o justa foi tã o
evidente. Muitas vezes o remé dio aplicado nã o cura o sofrimento
material e aumenta o sofrimento espiritual semeando o ó dio. Talvez
seja porque quem trata de questõ es sociais hoje nã o pode ignorar
aquele tom de ó dio com que as teorias marxistas tê m colorido tais
questõ es, mesmo que lutar contra ele seja o ú nico reconhecimento que
ele dá a esse tom de ó dio. E difı́cil evitar o contá gio dessas teorias.
E possı́vel se posicionar contra certas ideias e entã o, no processo
de combatê -las, adotar o mesmos mé todos que aqueles que professam
essas idé ias. O ó dio consegue assim encontrar um lugar até mesmo no
campo da caridade. E a velha histó ria da semente ruim semeada com a
boa.
Como a irmou um escritor moderno: “A juventude cató lica está
perdendo seu senso de caridade. E estranho que o amadurecimento da
consciê ncia social, na luta atormentada, desordenada, mas quase
sublime de nossos dias, tenha quase alcançado o ponto em que a
"caridade" passou a incluir o depreciado "paternalismo" da idé ia
marxista.
“Enquanto o Oriente oferece à s mentes de nossos jovens esta
contribuiçã o para a confusã o de idé ias, o Ocidente contribui em outro
sentido com seu 'ai dos vencidos' a ser aplicado à s derrotas da vida. . . .
“Do nı́vel da caridade, que é consequê ncia do nı́vel espiritual e por
ele se alimenta, surge natural e legitimamente a açã o por uma justiça
maior no plano social, como també m no plano polı́tico.”4
Como vimos, Martin foi um pioneiro no campo da açã o social e um
organizador excepcional. Mas nã o só a originalidade e a vastidã o da sua
obra fazem dele um exemplo para quem se dedica ao trabalho social; é
també m a sua forma de trabalhar que o torna um modelo.
“Sã o muito poucos na terra que sabem amar como Cristo amou”,
escreveu o padre Voillaume a seus Pequenos Irmã os de Jesus, depois de
meditar perto das relı́quias de Sã o Martinho, no altar dos santos
peruanos na igreja do Santo Rosá rio de Lima, junto com os de Santa
Rosa e do Bem-aventurado Joã o Massias. “Alguns ingem saber como
fazê -lo, mas seu amor é muitas vezes deformado por um inı́cio de ó dio,
por uma piedade altiva ou por uma falsa doçura que serve para evitar
as exigentes exigê ncias da justiça.” Quase interpretando um desejo de
Martin de Porres, ele pediu para quem quisessetornar-se apó stolos,
“nã o uma falsi icaçã o do amor, nem mesmo a piedade de um homem
forte, nem mesmo um amor perturbado pela revolta ou pelo ó dio pelos
opressores dos pobres. Nã o mas . . . a força e a doçura de um amor que
só pode vir do coraçã o de Cristo Jesus ”.5
Agora que a autoridade da Igreja o elevou a tal ponto que ele pode
servir como porta-estandarte para todas as forças de Cristo aqui na
terra, Martin tem uma mensagem reservada pela providê ncia para nó s
do sé culo vinte.
E o que o irmã ozinho mulato vai ensinar, senã o o que signi ica
amar com um “amor que só pode vir do coraçã o de Cristo Jesus?”
Martin nã o fará discursos impressionantes. Ele falará conosco por
meio do exemplo que deu durante sua vida. Ele nos pegará pela mã o e
nos conduzirá aos pé s de seu grande Amigo, Cristo cruci icado, para
que possamos entender o que é a caridade e quanto ela pode fazer.
Ele nã o dirá nada de novo para nó s. Ele se lembrará de coisas que
ouvimos muitas vezes, mas que sã o tã o simples que as esquecemos
imediatamente ou vivemos como se as tivé ssemos esquecido.
Martin vai nos lembrar, antes de tudo, que a caridade é
indispensá vel se queremos ser cristã os, porque é o ú nico sinal que Deus
nos deu pelo qual podemos ser conhecidos como Seus seguidores.
Ele també m dirá que é o ú nico meio e icaz de curar o mundo. Foi o
meio que Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo usou para poder dizer:
“Eu venci o mundo”.
Entã o Martin nos fará ver que caridade e ó dio sã o incompatı́veis, e
que estamos nos iludindo se pensamos que somos assinados com o
sinal dos seguidores de Cristo, enquanto permitimos que o ó dio, sob
qualquer disfarce, se insinue em nossa alma, o que é o santuá rio do
amor divino.
E ele insistirá que a autê ntica caridade nã o consiste pura e
simplesmente em dar. Podia-se falar a lı́ngua dos anjos e dos homens e
ser apenas como o latã o que soa e o cı́mbalo que retine, e até mesmo
distribuir todos os seus bens aos pobres, sem participar do banquete da
caridade.
Martinho nos fará ver tudo isso no livro em que ele mesmo o leu,
conduzindo os homens aos pé s de Cristo cruci icado, que lhe
comunicou os segredos do Seu coraçã o, elevando-o até o ê xtase.
Mas, por sua vez, o Mestre nos enviará ao discı́pulo iel que tã o
perfeitamente conseguiu cumprir o mandato do amor. Ele nos dirá para
fazer como ele fez, que fez o bem sem fazer qualquer distinçã o entre os
oprimidos e os opressores, que retribuiu os danos com benefı́cios e nã o
pô de suportar o pensamento - aquele que estava tã o disposto a ser
insultado - que o mais insolente entre seus vizinhos poderia pensar que
seu amor e benevolê ncia haviam diminuı́do como resultado de seus
insultos.
O Mestre nos fará entender que é possı́vel para nó s no sé culo XX,
assim como foi possı́vel para Martin de Porres no sé culo XVII, encontrar
a soluçã o para todos os problemas sociais ou individuais na caridade
perfeita, naquela caridade sobrenatural que se torna um princı́pio de
açã o apó s ter sido desenvolvido pela contemplaçã o.
Feliz, pois, o dia que testemunhou a suprema glori icaçã o da Santa
da caridade. O divino Semeador preservou zelosamente o fruto da
planta que brotou há trê s sé culos na terra do Peru, mas o Vigá rio do
Senhor da messe abriu a porta do celeiro, enquanto em todo um mundo
devastado pelo ó dio os sulcos se abrem , com fome da semente.
Se soubermos aceitar essa semente “com um coraçã o bom e
perfeito”, limpa de espinhos e pedras, uma nova primavera lorescerá
no vale de nossa exı́lio, e os campos do Senhor se encherã o de bons
grã os, o fruto da semente que germina depois de um longo sono e brota
para se multiplicar. “Primeiro o talo, depois a espiga, depois o grã o na
espiga cheia.”

Bibliogra ia

Documentos o iciais

Processus ordinaria auctoritate fabricatus super Sanctitate Vitae, Virtutibus heroicis et


Miraculis; Manuscrito dos Arquivos da Ordem dos Frades Pregadores, Santa Sabina, Roma,
segn. X. 2.404 de fol. 629 com duas sé ries de numeraçã o: cc. 1–
542: Processus 1660; cc 1087: Processus 1664.
Positio super Dubio an constet de fama sanctitatis in genere, ita ut deveniendum sit ad
lnquisitionem specialem (Romae: 1669); Arquivos da Postulaçã o OP, M. 15. I.
Beati icationis et Canonizationis Servi Dei Fratris Martini de Porres, Laici Ordinis S. Dominici,
Processus Limanus in specie, auctoritate Apostolica constructus (a. 1678–1712); 9 volumes
manuscritos dos Arquivos da Ordem dos Frades Pregadores, Santa Sabina, Roma, X. 2406–14.
Actus authentici, varia documenta foliaque adversaria de virtutibus, miraculis, et cultu; Mss. et
typ. ed .; Arquivos da Postulaçã o OP, X. 2405.
Responsio ad Novas Animadversiones RPD Fidei Promotoris super Dubio e constet de Virtutibus
ecc . (Romae: 1742); Arquivos da Postulaçã o OP, M. 15. III.
Novissimae Animadversiones cum Responsionibus super Dubio an constet de Virtutibus
ecc . (Romae: 1762); Arquivos da Postulaçã o OP, M. 15. IV.
Proceso de Beati icación de fray Martín de Porres (Palencia: 1960). Canonizationis Beati Martini
de Porres Positio super Miraculis (Roma: 1962). Acta Gregorii XVI , Vol. 2, pp. 217-19 (Romae:
1901).
Analecta SO FF. Praedicatorum , vol. 17, pp. 651–53.
Acta Capitulorum Generalium OP ., Vol. VII, VIII, IX.
QUETIF-ECHARD, Scriptores OP ., T. II, p. 989.

Biogra ias
DE MEDINA, Bernardo, Vida prodigiosa del venerable siervo de Dios Fr. Martín de
Porras ( Lima: 1673; Madrid: 1675). Esta vida, a primeira biogra ia de Sã o Martinho, foi
reproduzida pelos Bollandistas na Acta Sanctorum , 5 de novembro.
MARCHESE, Domenico Maria, Sacro Diario Domenicano , t. VI, pp. 6-24. (Napoli: 1681).
MELENDEZ, Juan, Tesoros verdaderos de las Yndias na História da gran Provincia de San Juan
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Notas
Capítulo 1

1.Cf. LD Baldwin, The Story of the Americas , p. 91 (Nova York: 1943).


2.Cf. ibid ., pp. 109-10.
3.Cf. ibid ., pp. 150 ss.
4.A Enciclopédia Universal Ilustrada Europeo-Americana , Espasa Calpe (vol. 51, p.
587, Rimac) explica a derivaçã o do nome de Lima do rio Rimac pelo há bito dos conquistadores
espanhó is de se transformarem em “l” o “r” suave da lı́ngua local, embora seja possı́vel que a
palavra “Lima” possa derivar da pronú ncia dos nativos das regiõ es costeiras, sendo menos pura
que a dos nativos das zonas montanhosas. Já que a palavra rimac na lı́ngua quı́chua signi ica “o
falante”, ela poderia ter sido dada ao rio como uma forma poé tica de expressar o murmú rio de suas
á guas.
Segundo WH Prescott (A História da Conquista do Peru , p. 258), o nome do rio deriva de um
templo situado no vale e frequentemente frequentado pelos ı́ndios por causa de seus orá culos.
D. Enrique Tusquets (Los grandes contrastes de un continente , p. 376) desconsidera a
etimologia geralmente aceita e escreve: “Lima foi fundada por Pizarro. . . e recebeu os nomes
de Lima e Cidade dos Reis . Deu-lhe o primeiro nome devido ao grande nú mero de tı́lias que
crescem na regiã o, e o segundo, porque pretendia que, com o passar do tempo, se tornasse a capital
do vasto impé rio das possessõ es espanholas na Amé rica. ” (Lima signi ica fruto da tı́lia; os
peruanos chamam tanto a fruta quanto a á rvore de lima .)
5. Responsio ad Novas Animadversiones RPD Fidei Promotoris super Dubio ecc ., Pp. 4-5
(Romae: 1742). Todas as referê ncias posteriores a esta fonte serã o simplesmente Responsio .
6.Cf. HG Gaffney, Blessed Martin, Wonder Worker , pp. 12-13 (Tralee: 1949).
7. Responsio , p. 5

Capítulo 2

1.Cf. Gaffney, op. cit ., p. 16


2.Cf. JC Kearns, A Vida do Bem-aventurado Martin de Porres , p. 15 (Nova York: 1937).
3.Cf. Vita del B. Martino de Porres , de um autor anô nimo, p. 9. (Roma: 1837).
4.Cf. ibid ., p. 10

Capítulo 3

1.G. Pascoli, La piccozza .


2.Carta 8.
3. Responsio , (XXIV), pá g. 103. (Ao longo das notas de rodapé , o algarismo romano entre
parê nteses é o nú mero do testemunho no Processo , ao qual a nota de rodapé se refere.)
Capítulo 4

1.Carta 242.
2.St. Catarina de Siena, Carta 201.
3. Responsio (XXII), pá g. 74
4. Responsio (VII), pp. 26–27.
5. Ibid. (IV) , pá g. 58
6. Ibid. (IV) , pá g. 104
7.A venia é uma prostraçã o completa feita pelos religiosos para pedir perdã o (como no
capı́tulo das faltas) ou como um ato de humildade e submissã o (como no recebimento de um
preceito formal).
8. Vita del B. Martino de Porres , anô nimo., P. 20
9. Responsio (VIII), pá g. 103; (XLIX), pá g. 60
10. Ibid . (VII), pá g. 26; (V e segs.), Pp. 91-92.
11. Ibid . (XXII), pá g. 56
12. Ibid . (VIII), pá g. 103

capítulo 5

1(…) O estado religioso é uma certa disciplina ou exercı́cio para se empenhar pela
perfeiçã o. Mas aqueles que sã o instruı́dos ou treinados para a realizaçã o de algum objetivo devem
seguir a direçã o de outro, e ser instruı́dos e treinados de acordo com o julgamento dessa pessoa
para que possam alcançaro objetivo supracitado, como discı́pulos sob um mestre ” (Summa theol .,
IIa IIae, q. 186, a. 5).
2. Responsio (CXV), pá g. 39
3. Diálogo , c. LXVI.
4. Responsio (LV) , pá g. 79
5. Ibid . (XXXV), pá g. 37 e (XXII), p. 79
6. Ibid. (V) , pá g. 40; (XXIV e XLVIII), p. 78
7. Ibid . (CXV), pá g. 79
8. Positio super Dubio an constet de fama sanctitatis in genere ecc . (Romae: 1669), p. 6
9.Cf. Responsio (XXXXII), p. 43
10. Ibid . (VI, VII, XXIII), p. 16; (LV, CXV), p. 17
11.Cf. ibid. (VI) , pá g. 15
12. Ibid . (VII), pá g. 15
13.Cf. ibid . (LI, LX, LXII, XXIII, CXV), pp. 14-16.
14.Cf. ibid . (XII), pá g. 56
15. Ibid . (CXVII), pá g. 17
16.Cf. Diálogo , c. LXVI.
17.Cf. Positio , pá g. 39
18. Responsio (XII, XIII, XV, XXIII), pp. 90-91.
19. Positio , pá g. 28
20. Responsio (XXX), pp. 36, 87; (XXII), pá g. 88
21.Ibid . (CVI), pá g. 40
22. Ibid . (XV, IX, VII, XXII), pp. 86-88; (LIII), pá g. 91
23.Cant. 3: 2, 4.
24. Responsio (XXIII), pá g. 39
25.Cf. ibid . (LIX), pá g. 87
26. Ibid . (XII), pá g. 89
27.Cf. ibid . (XLVIII), pá g. 98
28. Ibid. (I) , pá g. 88
29. Ibid . (XXX), pá g. 36

Capítulo 6

1. Processus ordinaria auctoritate fabricatus, super sanctitate Vitae, Virtutibus heroicis et


Miraculis (LXII), cc. 496–97 (1660).
2. Responsio (V e segs.), Pp. 91–96.
3. Ibid . (VII), pá g. 96
4.Cf. Marcos 5: 1-13.
5.Cf. ibid . (XLII), pp. 96-97; ver també m (VI e VII), p. 96
6. Ibid . (XXII), pá g. 100; (E), pá g. 99
7. Ibid. (VI) , pá g. 24
8. Ibid . (XLIX), pá g. 74
9.Carta 217.
10. Beati icationis et Canonizationis Servi Dei Fratris Martini de Porres, Laici Ordinis S.
Dominici, Processus Limanus em espécie (I), t. I., c. 221-b (1678).

Capítulo 7

1. Ps . 18: 6.
2.Positio , p. 7 .
3. Ibidem , p. 9
4. Responsio (XXXV), p. 101
5. Acta Tolosana , n. 15; cf. Lacordaire, Vida de São Domingos .
6. Processus 1660, c. 293; Responsio (XXXV), pá g. 101
7. Responsio (I), pá g. 102
8. Santa Catarina de Sena, Carta 67.
9. Ibid ., Carta 217.
10. Responsio (XXIII) e (XLIX), p. 100
11.Carta 217.
12.Phil. 2: 8; cf. Summa theol ., IIa IIae, q. 186, aa. I, 5.
13. Responsio (I), pá g. 81
14. Positio , n. 10, pá g. 16
15. Responsio (XXIV), pá g. 105
16.Letras 84 e 85.
17.Letras 201 e 203.
18. Responsio (VII), pá g. 82
19.Essas expressõ es, é claro, merecem todo o respeito porque foram concebidas e usadas por
grandes santos e mestres da vida espiritual. No entanto, considero um abuso colocar muita ê nfase
no aspecto negativo da obediê ncia - a renú ncia da pró pria vontade - em vez de enfatizar o aspecto
positivo, que é a busca da vontade de Deus em autoridade legı́tima. Se o aspecto positivo é
menosprezado, nã o há justi icativa para o aspecto negativo. Cf. Summa theol ., IIa IIae, q. 104, a. 1
20.Cf. Summa theol ., IIa IIae, q. 104, aa. 2, 3.
21. Responsio (VII), pá g. 83
22.Carta 217.
23. Responsio , p. 130 e (V), pá g. 85; Positio , pá g. 6
24. Positio , pá g. 25; Responsio (II) , pá g. 83 e (VII, VIII), p. 84
25. Responsio (IX) , pp. 104-5.

Capítulo 8

1.Cf. H. Gaffney, op. cit ., p. 18


2. Ps . 15: 6.
3.Dialogue , CLVIII.
4.Cf. Summa theol ., Ia. q. 3, a. 4
5.Responsio (II), pp. 10-11.
6.Cf. ibid . (VIII), pá g. 11
7.Ibid . (VII), pá g. II; cf. també m (I-CXV), pp. 10-12.
8.Cf. Ps . 118: 99–100; Matt . 5: 8.
9.Dante, Paradiso , Canto XII, 99.
10.Cf. Summa theol ., Ila IIae, q. 188, a. 6
11.Dante, Paradiso , Canto XXII, 42.
12. Responsio (VII), pá g. 10
13. Ibid . (VIII a LV), pp. 12–13.
14.Ibid. (XXIV), pá g. 13
15.St. Catarina de Siena, Carta 242.
16. Responsio (I e VII), pá g. 10
17. Ibid . (I), pá g. 9; Novissimae Animadversiones cum Responsionibus super Dubio ecc .,
Roma, 1762 (XXII, II, V, XLIX, LXXVII), pp. 11-14. Nas passagens citadas, responde-se à s objeçõ es
levantadas pelo Promotor da Fé contra o testemunho a respeito da presença de Sã o Martinho em
Lima e em outros lugares ao mesmo tempo.
18. Vita , pá g. 85; cf. també m Kearns, op. cit., pp. 121-22.
Capítulo 9

1. João 12:24.
2. Responsio (XXX, VIII, XXIV), pp. 19–20; Positio , pá g. 6
3.Sr. Maria della Trinitá , Colloquio Interiore , n. 359, pá g. 180, Custodia di TS (Gerusalemme:
1942).
4. Positio , pá g. 30
5. Responsio (LV), pá g. 58
6. Positio , pá g. 37
7. Responsio (LIII), pá g. 63
8. Positio , pá g. 37
9. Responsio (XXIII), pá g. 66
10. Ibid . (VI), pá g. 64
11. Positio , pá g. 40
12. Ibidem , p. 37
13. Responsio (V) , pá g. 61; (XLIX e LV), p. 62
14. Positio , pá g. 23
15. Responsio (LVII), p. 60
16. Ibid . (XXXVIII), p. 53; Processus 1660, c. 443.
17. Ibid . (VII), pá g. 53
18. Ibid . (XXXVIII), p. 53
19. Positio , pá g. 43
20. Ibidem , p. 44
21. Ibidem , p. 45
22.Cf. Gaffney, op. cit ., p. 31
23. Responsio (XXIII), pá g. 28
24.Carta 32.
25. Diálogo , c. XXX.

Capítulo 10

1. Responsio (V) , pp. 55–56 e (XXII), p. 54


2. Ibid . (VIII), pp. 46-47.
3.Cf. ibid . (VII), pp. 64-65.
4. Ibid . (LV), pp. 47-48; cf. Kearns, op. cit ., pp. 123-24.
5. Positio , pá g. 31
6.Responsio (II), p. 111; Positio , pá g. 23
7. Positio , pá g. 24
8. Responsio (VII), pá g. 114; ver també m Kearns, op. cit ., pp. 125–26.
9. Ibid . (LXI), pá g. 112
10.Dante, Paradiso , Canto XXX, 41.
Capítulo 11

1.A gra ia espanhola do nome de John é Macı́as, mas em inglê s e em latim o nome é escrito
Massias.
2.Cf. Anonymous, Vita del B. Giovanni Massias , pp. 1-13 (Roma: 1837); Kearns; op. cit .,
p. 105 f.
3.Letras 246 e 194.
4. Responsio (VII), pá g. 88; e Processus 1660 (XXXI), cc . 229-30.
5.Cf. Kearns, op. cit ., p. 109
6.Letter 250.
7.St. Gregory, Homil. XI em Ev .
8.Cf. Gaffney, op. cit ., p. 31
9. Responsio (XXXVI), pp. 75, 113.
10. Processus , 1660 (XXXVII), cc. 293–95.
11.Dante, Purgatorio , Canto XV, 56 f.

Capítulo 12

1. Responsio (XII), pá g. 48; (VI), pá g. 49.


2. Ibid . (XXIII), pá g. 50
3. Ibid . (XIX), pá g. 50; (LV), pá g. 51 e (XII), p. 48
4.Cf. Kearns, op. cit ., p. 41
5. Responsio (VII), pá g. 56
6. Processus 1660 (XXXI), cc. 221–22.
7. Responsio (XXX e segs.), Pp. 51, 52; Processus 1660 (XXXI), cc. 223–24.
8.Cf. Gaffney, op. cit ., p. 34
9.Cf. Kearns, op. cit ., pp. 50-51.
10. Vita , pá g. 89; cf. també m Kearns, op. cit ., p. 123
11. Responsio (V), pá g. 48; (II), pá g. 57
12.Gaffney, op. cit ., pp. 31-32; Responsio , pp. 130–31.
13.St. Catarina de Siena, Carta 226.
14. Responsio (VII), pá g. 55
15. Processus 1660 (XXXVII), c. 301.
16. Responsio (VII e XXIV), pp. 53–54.
17.Cf. Kearns, op. cit ., p. 47
18. Responsio (V), pá g. 52
19. Positio , p. 9
20. Processus 1660 (LXIII), c. 513.
21. Responsio (VII), pá g. 55
22. Homil. III em Evang .
23. Responsio (I), pá g. 44
24. Diálogo , cap. VII.
Capítulo 13

1.Responsio (VII e LIII), p. 70; (XXIV), pá g. 72


2. Positio , pp. 44-45.
3.St. Catarina de Siena, Diálogo , cap. LXXVIII.
4. Responsio (II), pá g. 68
5. Ibid . (XXIII), pá g. 72
6. Ibid . (XII), pp. 68-69.
7. Positio , pá g. 4
8. Responsio (VII), pp. 70-71.
9. Ibid . (XII), pp. 68-70.
10. Positio , pá g. 45
11. Processus 1678 (V), t. I, cc. 536–37.
12.E. Doherty, Martin , p. 98 (Nova York: 1948).
13. Processus 1660 (XXXVII), cc. 296–97; ibid . (LXII), cc. 500–501.
14. Positio , pá g. 10; Responsio (VIII), pá g. 71; (XII), pp. 68-69.

Capítulo 14

1. Diálogo , cap. XXVI.


2. Responsio (CXV), pá g. 32
3. Ibid . (CXV), pá g. 41
4. Ibid . (XXX), pp. 42-43.
5. Ibid . (LI), pp. 43 e 115.
6. Diálogo , cap. LXXVII.
7.St. Catherine, Carta 216.
8.St. Catarina de Siena, Diálogo , cap. LXXVII.
9. Responsio (VII), pá g. 75
10. Ibid . (VII), pá g. 76
11. Ibid. (VI) , pá g. 76 .
12. Ibid. (I) , pá g. 110
13.St. Cathesine, Carta 213.
14. Positio , pp. 41-42.
15. Processus 1678 (I), t. I, cc. 264–65.

Capítulo 15

1. Processus 1660 (VIII), cc. 81–85.


2. Positio , pá g. 14
3. Processus 1660 (X), cc. 95–96.
4. Positio , pá g. 15
5. Novissimae (XXII), p. 11
6. Responsio , p. 132
7. Ibid . (XXII), pp. 65-66.
8. Tanto gli pesa la mano manca quanto la ritta , ditado de Santa Catarina de Sena que se
tornou axioma na Itá lia. Cf. Diálogo , c. CXLI.
9. Positio , pá g. 33
10. Ibidem , p. 28
11. Ibidem , p. 43
12. Responsio (XVI), pá g. 112
13. Positio , pá g. 46
14. Ibid ., Pp. 11-12; Processus 1660 (V), c. 63-b.
15. Positio , pp. 42-43.
16. Processus 1660 (I), cc. 24-25.
17.Cf. Kearns, op. cit ., p. 136

Capítulo 16

1. Positio , pp. 18 e 26.


2. Processus 1660 (LXIII), c. 513.
3. Positio , pá g. 34
4. Processus 1660 (I), c. 27
5. Responsio (V), pá g. 110
6. Ibidem , p. 129
7. Ibid . (V), pp. 116-17.
8. Ibid . (LXII), pá g. 116
9. Ibid . (XI), pá g. 116
10.Cf. Kearns, op. cit ., p. 152
11. Responsio (VII), pá g. 117; (XXII), pá g. 118
12. Ibid . (XLIX), pá g. 119
13. Positio , pá g. 32
14. Ibid., Loc. cit .
15. Ibidem , p. 33
16. Responsio (VII e segs.), Pp. 117–19.

Capítulo 17

1. Responsio (VII e XXII), p. 118; (XLIX), pá g. 119


2. Vita , cit. p. 169
3. Responsio (XL) , pp. 30, 34.
4. Positio , pá g. 34
5. Ibid ., Pp. 34-35.
6. Ibidem , p. 26
7. Ibidem , p. 33
8. Ibid ., Pp. 32, 36.

Capítulo 18

1. Processus 1660 (VIII), cc. 85–86; (LX), cc. 470–72; Processus 1678 (V), t. I, cc. 544–46.
2. Positio , pp. 26–27; Processos 1660 (LXIII), c. 518.
3. Positio , pá g. 12
4. Vita , cit. p. 185
5.Cf. Kearns, op. cit ., p. 159.
6. Ibid., Loc. cit .
7. Processus 1660 (I), cc. 21–23; (LXIII), cc. 516–17.
8.Martin foi assim descrito pelo Cardeal Vidoni no relató rio do Processo Diocesano à
primeira Congregaçã o preparató ria de 21 de julho de 1668; cf. Positio , pá g. 7
9. Positio , pp. 19-22.

Capítulo 19

1. Processus 1664 (VII), c. 69; (XI), cc. 81–82.


2. Positio , pá g. 47
3. Ibid ., Pp. 47-49.
4. Ibid ., Pp. 53-69.
5.Cf. Kearns, op. cit ., pp. 177-80.
6. Processus 1660 (LXV), cc . 525–31.
7. Positio , pp. 50-71.
8. Ibid ., Pp. 3f.
9. Ibidem , p. 1
10.Cf. Kearns, op. cit ., p. 175
11. Processus 1678, t. I, cc. 9-11.
12. Ibid ., Cc. 11-12.
13. Ibid ., C. 84-b.
14. Ibid. (I) , c. 220
15.Cf. Kearn, op. cit ., pp. 180-82.
16. Vita , pp. 190–92.
17. Ibid ., Pp. 192-94.
18.Cf. Kearns, op. cit ., p. 209.
19. Ibidem , p. 191; cf. També m Gainor, Bendito Martin de Porres , pp. 109-12. Em Espanha,
dois trabalhadores destacados para oA causa de Martin foram o irmã o Benigno, irmã o leigo
dominicano de Palê ncia, e o padre Anthony Huguet, dominicano de Barcelona. Um
reconhecimento especial també m é devido aos dominicanos irlandeses.

Capítulo 20

1.Cf. Kearns, op. cit ., p. 190


2.Discurso de Sua Eminê ncia o Cardeal Rugambwa durante as celebraçõ es em homenagem a
Sã o Martinho de Porres realizadas na igreja dominicana de Santa Maria sopra Minerva, em Roma,
imediatamente apó s a canonizaçã o. Retirado de Missioni Domenicane , n. 4, 1962, pp. 2-3.
3. Acta Apostolicae Sedis , Ser. II, vol. XV (1948), pp. 444–45.
4.Cf. U. Sciascia, " Pier Giorgio Frassati a trent 'anni dalla morte ", em Il Quotidiano , 3 de
julho de 1955.
5.Cf. R. Voillaume, Come loro , p. 410 (Roma: 1953).

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