MEDITAÇÃO
SÔBRE O
MUNDO INTERIOR
1954
Págs.
Explicação…………………………………………………………..………………. 7
Cap. 1º -- Liberalismo …………………………………………..……………...... 11
Cap. 2º -- Moralismo ……………………………………………..…….……...…. 14
Cap. 3º -- Filosofismo …………………………………………………...…...……. 17
Cap. 4º -- Politicismo …………………………………………...…………………. 20
Cap. 5º -- Economismo ……..…………………………………...………...………. 23
Cap. 6º -- O Hóspede …………………………………………….………..………. 26
Cap. 7º -- Equilíbrio …………………...…………………………………..………. 30
Cap. 8º -- O Meio …………………..………………………..……………………. 34
Cap. 9º -- Silêncio -- I ………………………………………..…………...………. 38
Cap. 10º -- Silêncio -- II …………………………………...…...………..……..…. 42
Cap. 11º -- Solidão …………………….……………………………...………..…. 45
Cap. 12º -- Santidade ………………………………….…...………..…..…..…. 49
Cap. 13º -- Conseqüências ……………………………..……...……………..…. 53
Cap. 14º -- Ausência ……………………………………...………………..…. 57
Cap. 15º -- Presença -- I ……………………………..……...……………..…. 61
Cap. 16º -- Presença -- II …………………………………....………………. 64
Cap. 17º -- Sabedoria …………………………………….…...…………..…. 68
Cap. 18º -- Saudade …………………………………….………………….…. 72
Cap. 19º -- Futuro …………………………………….….…..…………....…….. 76
Cap. 20º -- Meditação …………………………………….…..………….……. 80
Cap. 21º -- A Oração implícita ………………………..……...…………….……. 84
Cap. 22º -- A Oração explícita …………………………….....………….……...… 87
EXPLICAÇÃO
Os capítulos que se seguem foram publicados na
Tribuna da Imprensa, durante o segundo semestre de
1953 e dela reproduzidos por sua generosa autorização.
Foram publicados sob o título de “ Bilhetes do Mundo
Interior” que a seção continua a ter, e em seguida aos do
Velho e do Novo Mundo.
Costumamos dividir o mundo moderno em Velho e
Novo Mundo; em mundo totalitário e mundo democrático;
países para lá e para cá da Cortina de Ferro; mundo
socialista e mundo capitalista; Oriente e Ocidente; ou
mais amplamente ainda, em mundo moderno e mundo
eterno.
Tôdas essas divisões são mais ou menos legítimas ea
última se aproxima muito da que tomamos por base dêste
ensaio, o mundo exterior e o mundo interior. Aqui, porém,
prescindimos da própria noção de tempo e colocamos o
homem perante os dois mundos que constituem a sua
própria natureza completa, pois o mundo interior não é
uma opção, mas uma síntese. E o homem completo, isto é,
o homem normal, é aquêle que vive interiormente a sua
vida exterior e não sepulta em si, egoísticamente, a sua
vida interior.
É certo, entretanto, que uma das marcas do nosso
tempo é a primazia da vida exterior sôbre a vida interior,
quando não o esmagamento desta por aquela. O maior
perigo que corremos, hoje em dia, -- em face do curso que
vai tomando o progresso da técnica, com a absorção do
homem pelo Estado, pelo Partido ou pela Fábrica, -- o
maior perigo é precisamente essa anulação da
personalidade pela extroversão sistemática do homem e
de sua vida profunda.
Um biologista materialista, Jean Rostand, resumindo
as conclusões do seu próximo livro, Ce que je crois, rasga
os seguintes horizontes para a ciência biológica de
amanhã, que vai tentar fazer aquilo com que Bernard
Shaw sonhava ao dizer que “what can be done with a wolf,
can be done with a man” ! Isto é, se foi possível fazer de
um animal feroz como o lôbo um animal manso como o
cachorro, também será possível fazer de um ser
imperfeito, como o homem de hoje, um ser perfeito, como
o homem de amanhã. Esquecido, o sofista do século XX,
de que foi o homem que fêz do lôbo um cachorro e não o
próprio lôbo… E, portanto, só Deus, dizemos nós os que
não julgamos que o homem seja um deus, poderia mudar
a natureza humana, como só a Sua graça pode
aperfeiçoá-la, ajudando a própria virtualidade dessa
natureza. É possível que venham a ser um fato êsses novos
horizontes que os biologistas abrem às intervenções do
homem sôbre a natureza, inclusive a própria natureza
humana. Jean Rostand chega a crer que “aparentemente
se poderá prolongar, no futuro, de modo sensível a
duração da vida humana…; outros muitos problemas
serão resolvidos: determinar-se-á à vontade o sexo das
crianças… talvez a ectogênese ou a gravidez de bocal
(como Aldous Huxley já previra, com humor, no seu This
brave New World). Pelo emprêgo dos hormônios ou de
medicamentos apropriados ou ainda por uma correção
cirúrgica dos centros nervosos, modificar-se-ão a
personalidade, o temperamento, o caráter. Suscitar-se-ão
artificialmente aptidões e virtudes” (sic).
Êsse biologista materialista, que acredita serem as
virtudes consequências dos hormônios, como Virchow, no
século passado, fazia do bem e do mal secreções como o
açúcar ou o vitríolo, não fecha, entretanto, os olhos aos
perigos dessa ditadura da técnica biológica.
“Será difícil”, diz êle, “impedir que a coletividade
não abuse do seu poder em relação àqueles que a
constituem. Haverá sempre um equilíbrio difícil de
alcançar entre a preocupação do interêsse coletivo e o
respeito da liberdade individual… Não valeria a pena que
a natureza fizesse de cada indivíduo um ser único, para
que a sociedade reduzisse a humanidade a não ser mais
do que uma coleção de iguais.”
Ou, como nós diríamos, não valeria a pena que Deus
criasse o homem à sua imagem e semelhança, para que o
homem se reduzisse apenas à semelhança e imagem dos
animais… E que tivesse colocado no coração humano o
amor da liberdade para que êle procurasse apenas novas
formas de escravidão.
A libertação do homem não está mais nas coisas.
Está em si próprio. Não está na vida exterior. Está no seu
mundo íntimo. Não está na técnica biológica ou física.
Está na virtude. O progresso da humanidade não depende
da perfeição daqueles que a souberem manejar. A técnica
não é um bem ou um mal em si. É uma arma de dois
gumes, que serve cegamente ao bem e ao mal, conforme a
luz dos olhos de quem a manejar.
Mas tanto maior é o poder que essas técnicas, já
agora de ordem biológica, colocam nas mãos do próprio
homem, quanto maior a ameaça às liberdades, aos
direitos, às variedades da pessoa humana. E tanto maior a
submissão do homem às fôrças por êle próprio
desencadeadas na matéria do seu próprio corpo ou da
natureza física, quanto mais precisamos desenvolver em
nós as potências do mundo interior.
Eis porque uma meditação sôbre o mundo interior
me parece, a esta altura da vida e dos acontecimentos,
muito mais urgente e necessária do que tôda meditação
sôbre o mundo passado, moderno ou futuro…
A. A. L.
Mosela, outubro, 1953.
Cap. 1.º
LIBERALISMO
SANTIDADE
CONSEQÜÊNCIAS
AUSÊNCIA
PRESENÇA -- I
PRESENÇA -- II
SABEDORIA
SAUDADE
FUTURO
Se a primeira dimensão da nossa vida interior é o
passado, a segunda é o futuro. Para que o passado seja em
nós uma fôrça viva, é mister não nos tolha os movimentos
para o futuro. Pois a direção normal de nossa vida é para a
frente. Não me canso de citar aquelas palavras de Cristo:
"Nemo mittens manum suam ad aratrum el respiciens retro
aptus est regno Dei" (Luc. IX, 62). Aquêle que puser a
mão no arado e olhar para trás, não está preparado para o
reino de Deus.
O futuro é o norte da nossa vida interior. E esta não é
uma água parada, nem uma onda revôlta. É uma corrente.
É um movimento que se dirige para alguma coisa que fica
à nossa frente. É alguma coisa que cresce. O mundo
interior, como o mundo das sementes, é o próprio domínio
da finalidade. Como cresce uma semente ? Não no sentido
de onde vem, mas no sentido para onde vai, isto é, no da
realização de sua própria natureaza. A semente de trigo
cresce no sentido da espiga. Esta é o seu futuro. Êste é o
seu destino. Para êle tendem tôdas as suas potencialidades.
Assim ocorre com a vida puramente animal. No germe
mais informe, sem a menor intervenção exterior, já está
preformada a sua condição. E, quando se dá qualquer
intervenção genética, não é para mudar de espécie. É para
aperfeiçoar a espécie. Êsse aperfeiçoamento pode dar-se
mesmo depois de nascido. Como pode ocorrer uma
degradação, uma parada, uma volta. E sempre que isto se
dá, é sinal de que o animal não realizou plenamente a sua
forma. Ou não se formou. Ou foi deformado. Na
realização de sua forma está a sua finalidade.
Com mais razão do que sucede na escala da vida
animal, ocorre outrotanto com o ser humano. De todos os
sêres vivos, o homem é o que começa mais informe e pode
chegar à maior plenitude de sua forma. A escala a ser
percorrida pelo homem, no caminho de sua finalidade, é a
maior de todo o reino animal. É o que parte de mais baixo,
pois o recém-nascido não pode sobreviver, fisicamente, se
não receber qualquer amparo exterior. E é o que chega
mais alto, pois o destino do homem é mover-se no sentido
de uma imortalidade, que só a êle toca entre todos os sêres
criados, exatamente porque ultrapassa, por natureza, o
mundo animal na mesma proporção em que êste ultrapassa
o mundo vegetal e êste o mundo mineral.
Mas aqui não é dessa dimensão (a elevação) que me
quero ocupar e sim da que leva o homem ao seu futuro, no
tempo. O futuro é uma dimensão temporal, como o
passado. É na linha do tempo que ambas atuam sôbre a
nossa vida interior. E o futuro atua em nós sob a forma de
vocação. O futuro é um chamado à responsabilidade.
Como a responsabilidade é a consciência do dever. Tudo
isso são apelos do futuro em nós. É porque ouvimos, em
nós, alguma coisa que nos chama à frente e nos obriga a
olhar para dentro de nós mesmos e considerar o sentido da
nossa marcha, que sentimos tão vivamente, se temos vida
interior, o problema da vocação. É na medida da
intensidade dessa vida que tomamos consciência do nosso
destino e da própria existência de um destino, de um
sentido para a nossa vida. É no mundo interior que essa
consciência se desenvolve e sentimos mais vivamente o
dever de olhar para a frente, e o problema da vocação. O
homem sem vida interior deixa-se viver, isto é, deixa-se
levar para a vida.
O futuro não o preocupa porque não o ocupa. É o
fatalismo ou o determinismo que o arrasta, como uma
fôlha morta deslizando com o rio. Há uma sadia
despreocupação com o futuro, como veremos ao nos
ocuparmos com a terceira dimensão do nosso mundo
interior. Mas não é a que provém de uma recusa do
destino, da surdez ao apêlo da vocação. Devemos, sempre,
ao contrário, estar atentos ao futuro. Porque todos temos
uma missão a realizar no tempo. Todos temos de descobrir
a adequação de nossas faculdades com a nossa finalidade.
É o problema, central em nossa vida, da vocação, do
chamado do destino, da terceira dimensão do nosso mundo
íntimo.
Há três modos de atender a êsse chamado, como há
só um de não atender: o de fechar os olhos ao futuro e
deixar-se absorver, completamente, ou pelo presente ou
pelo passado. É uma das mutilações da nossa vida interior
a que já nos referimos anteriormente.
O primeiro dos modos de atender ao chamado é o da
displicência. É atender mal. É a indiferença para com o
futuro. É a meia tinta, é a água morna, é a preguiça ou o
mêdo de corresponder ao chamado. Quantas vêzes
fechamos os olhos à evidência de um dever, pelo mêdo
das responsabilidades, pelo temor de não estar à altura,
pelo respeito humano. Há motivos, muitas vêzes, justos
nessas recusas. E há o problema das hesitações, da dúvida,
que é um dos males mais cruciantes de nossa vida interior.
O primeiro modo, pois, é a indiferença, sintoma de uma
fraca vida interior. O segundo é a absorção. Assim como o
passado pode apoderar-se, ilegitimamente, de nós, assim
pode o futuro. O desespêro da saudade, que pode levar ao
crime. O ambicioso é justamente o homem que se deixa
oprimir pelo futuro. Transforma essa segunda fôrça em
fôrça única e só pensa em vencer, em ser rico, poderoso,
forte. O amor da gloríola vence nêle tôda a vida da glória,
quarta e suprema fôrça de nossa vida interior. É a suprema
força de nossa vida interior. É a negação desta pela
escravização do orgulho e à idolatria do poder ou da
posse.
Quanto à maneira justa e fecunda de atender ao apêlo
do futuro, é procurar ser fiel à sua vocação. E a virtude
que atua para isso é, acima de tudo, a coragem, a fortaleza
moral. É a virtude da ação. É a virtude da obediência ao
dever. É o heroísmo que vence todos os obstáculos que
nos vêm do mêdo e, sobretudo, do amor. Pois assim como
a perfeição do ascetismo é renunciar aos prazeres lícitos, a
perfeição da fortaleza é vencer a doçura dos afetos mais
queridos e mais santos, sem cair na rudeza do coração nem
no jansenismo. Eis um dos momentos em que o equilíbrio
da vida interior mais e melhor ilumina os nossos passos,
no dever de fidelidade ao futuro sem traição ao passado.
Cap. 20.º
MEDITAÇÃO
A terceira dimensão da nossa vida interior é a direção
em profundidade. É a densidade dos nossos sentimentos,
dos nossos pensamentos, dos nossos atos.
Há, em primeiro lugar, uma densidade, por assim
dizer física, que obtemos sobretudo pelo apêlo ao tempo.
Não devemos jamais viver precipitadamente. A
impaciência é a inimiga nata da densidade. Precisamos
parar, antes de pensar ou depois de sofrer. Essa detenção
do tempo é uma condição tão essencial à densidade de
nossa vida interior, como uma barragem é indispensável à
retenção e ao aprofundamento das águas de um rio. Tudo,
em nós, tem a tendência a passar depressa. Se não
contrariarmos essa inclinação, passamos a viver em
superfície e renunciamos à vida interior. Se a queremos
ter, é preciso começar por obter essa densidade física, pois
os sentimentos se tornam mais sentidos se os contemos; os
pensamentos mais pensados se os retemos pela atenção; as
ações mais ativas se as acumulamos. Refrear os
movimentos desencontrados e precipitados do nosso afã
de viver é o primeiro meio de tornar mais espessas tôdas
as manifestações de nossa vida, servindo assim à terceira
dimensão do nosso mundo interior.
A essa densidade física, questão de demora e
retenção do movimento, vem somar-se uma densidade
mais profunda: a intelectual. Não basta viver mais
lentamente, para que se viva em profundidade. A lentidão
pode ser até um sinal de pobreza interior, de ausência de
reação profunda, ou mesmo de preguiça mental. A
sonolência tira o sono e só o sono é reparador. Assim
também uma densidade física que não seja acompanhada
de uma densidade psíquica, é inútil ou contraproducente.
Se devemos reduzir a velocidade natural dos nossos atos e
entreatos, não é para descansar e sim para viver mais, para
viver em profundidade. E para isso há uma elaboração
intelectual de cada momento de nossa vida, com a qual
enriquecemos a sensação do momento, a idéia, a decisão,
com tudo aquilo que as outras três dimensões nos
fornecem. Eis porque o nome próprio dessa terceira
dimensão interior é -- Meditação.
Meditar é aprofundar, pela análise e pela síntese, pela
observação e pela comparação, pela aplicação da
inteligência e também pela descida ao subconsciente, pelo
isolamento e pelo silêncio, pela marcha ou pela
imobilidade. Meditar é entrar em si. É deixar que o
trabalho misterioso da natureza e da graça, em nós, se faça
por si, como que independente de nossa vontade e de
nossa atenção. Eis porque a meditação exige certas
condições exteriores, de silêncio e imobilidade (por vêzes
de uma mobilidade regular, como andar de lá para cá, no
memso local e de preferência na penumbra, ou deixar que
a paisagem passe por nossa imobilidade, como num
veículo em velocidade), e certas condições interiores de
paz e de despreocupação.
A preocupação é a inimiga da meditação e a obsessão
é a preocupação doentia, transformada em idéia fixa. Tudo
isso pode ser vencido pela meditação, em estado
transcendental, como a que os iogues procuram realizar,
mas normalmente perturba e impede a meditação como
norma comum de vida. Pois o defeito do ioguismo é
transformar a meditação num estado extraordinário ou
num malabarismo, que pode chegar a grandes alturas, mas
não corresponde ao homem normal. A meditação, que a
vida interior supõe -- como centro de tôdas as suas
dimensões, pois dela deriva diretamente aquêle equilíbrio,
a que nos referimos preliminarmente -- essa meditação é a
que cada um de nós, simplesmente, cotidianamente,
normalmente, pode e deve aplicar a todos os seus atos e
pensamentos, até durante a agitação ou o trabalho, como
centro de gravidade de sua vida interior. Como essa vida
interior, já o vimos, é o centro de gravidade de tôda a vida
exteriorizada.
Há ainda uma terceira medida de densidade que a
completa: a densidade moral. Não basta parar. Não basta
meditar. É preciso avaliar. A densidade moral é a
aplicação de medidas de valor a cada expressão íntima de
nossa vida. Os filósofos chamam de sindérese a essa
sensibilidade aos valores morais. E Santo Tomás a
compara à sutileza e ao ardor de uma chama. É a centelha,
diz êle, que escapa à intuição dos anjos e com ela ilumina
a inteligência e a faz ver e sentir os valores supremos, de
ordem moral e metafísica, que a razão simples, não
iluminada, não percebe. Essa densidade moral é essa
sindérese, que dá à vida interior uma energia especial e
aprecia cada movimento de nossa vida à luz de uma
responsabilidade total (com o passado e com o futuro) e,
sobretudo, no sentido da quarta direção, que os completa.
Devemos, pois, procurar sempre viver em
profundidade. Reduzir a nossa pressa, para que cada coisa
adquira e revele o seu pêso próprio. Meditar intensamente,
a cada passo de maior responsabilidade, de modo a que
cada coisa aproveite da riqueza de tôdas as outras coisas,
cada ato e cada pensamento, da experiência e do calor de
todos os outros pensamentos e atos. E finalmente pesar
tudo isso, na balança dos valores morais, cujas cifras são
por vêzes um mistério e uma contradição para a prudência
da carne e para as medidas do mundo, de modo a viver em
profundidade não só física e intelectual, mas espiritual.
Só essa vida em profundidade, física, intelectual e
moral, pode dar-nos o clima interior indispensável para
sofrer sem desesperar e também suportar a boa fortuna
sem se corromper, pois é tão difícil ser infeliz como ser
feliz, sorrir como chorar.
Cap. 21.º
A ORAÇÃO IMPLÍCITA
A ORAÇÃO EXPLÍCITA
A oração implícita é a base da oração explícita. É
preciso viver, em espírito de oração, o máximo das
operações de nossa vida, para podermos fazer da oração
consciente não só a cúpula, mas o fundamento e a
estrutura de tôda a nossa vida, interior e exterior.
Quando a oração explícita e consciente não assenta
nessa base preliminar e fundamental da oração implícita e
subconsciente, caímos em pleno formalismo. Rezar não é
pronunciar certas fórmulas. Essas fórmulas são
necessárias, são mesmo essenciais, mas como a Regra é
essencial à perfeição de uma vida monástica. A regra pela
regra não vale nada. Como a fórmula pela fórmula não
tem sentido algum. A Regra só se torna fecunda e
fundamental, para a vida de perfeição monástica, quando
vivida segundo o seu espírito, como um meio e não como
um fim em si.
Assim se dá com a vida de oração, com essa quarta
dimensão do nosso mundo interior, que fornece a chave do
segrêdo de nossa vida total.
Se excluímos a oração explícita, caímos no falso
misticismo, no subjetivismo autocêntrico, que faz da
oração uma ginástica mental ou uma espécie de adoração
de si mesmo, num panteísmo que representa o cúmulo do
orgulho, a negação de Deus e a falsa deificação do
homem. A oração explícita é a conclusão, natural e
sobrenatural, da oração implícita. Viver em Deus os
nossos atos cotidianos e, mais do que êles, os nossos
sofrimentos, físicos e morais, é a preparação para a nossa
vida individual como em nossa vida coletiva. Pois são
êsses os dois momentos básicos ou antes as duas
expansões substânciais da nossa vida coletiva.
Pois são êsses os dois momentos básicos ou antes as
duas expansões substanciais da nossa vida de oração
explícita: a oração individual e a oração coletiva.
A oração individual é a entrega expressa e explícita
de tôda a nossa vida a Deus, como quem restitui a seu
dono aquilo de que é depositário. Não somos donos de
nossas vidas. Somos apenas guardiães. Temos de dar
contas continuadas, cotidianas, minuciosas, ao seu
verdadeiro dono. Temos de contar a Deus o que estamos
fazendo dêsse imenso tesouro que Êle confiou a cada um
de nós, como imagem que somos do próprio Criador. A
responsabilidade de cada criatura humana não é apenas a
do valor de uma alma, de sua alma, de um pequenino
fragmento da Criação. A responsabilidade de cada alma é
de tôdas as almas, de tôda a criação. Cada alma que se
perde, é o mundo todo das almas que se sacrifica. Daí a
comunhão dos méritos, como a comunhão dos pecados.
Merecemos por todos e pecamos por todos. A
responsabilidade de cada um é total.
A oração individual, portanto, não é apenas um
colóquio secreto da alma com Deus. É isso e mais alguma
coisa. É a confidência, é a intimidade, é a confiança, é o
repouso, o pedido, a gratidão. É a colocação de nossa
maior intimidade nas mãos do nosso Amigo, a revelação
explícita daquilo que Êle já conhece mas que deseja ouvir
de novo de nosso próprio coração, no silêncio augusto da
prostação pessoal do homem no seio do seu Criador. E é
ainda mais do que isso, porque é a entrega de tôda a
espécie humana representada, em cada caso, por uma alma
individual, nas mãos de Quem a criou e a escolheu para a
incarnação do seu próprio Filho.
De modo que a oração secreta está intimamente
ligada à oração pública, a oração individual se completa
naturalmente na oração geral, na prece coletiva, em união
com os outros fiéis, com os verdadeiros irmãos em carne e
em espírito. E é por isso que a oração individual explícita,
fruto da preparação preliminar da oração implícita, normal
ou excepcional, se realiza plenamente na Missa, na forma
mais perfeita de oração, que é a participação dos orantes,
uns nos outros e de todos em comunidade, no próprio
Cristo, na renovação incruenta do Seu sacrifício único e
cruento.
A Missa é, pois, a plenitude da vida interior. Nela as
exterioridades são meras aparências. Os sinais visíveis, na
côr, na mesa, na fumaça, nos gestos, nas palavras rituais,
no canto, no Pão e no Vinho, são apenas símbolos da
realidade invisível -- na qual se transformam pelo mistério
da Transubstanciação --, da verdadeira realidade do
Sacrifício do Verbo, que tem, ao mesmo tempo, um
sentido totalmente individual, para cada participante, e um
sentido universal, de renovação do mistério singular da
Incarnação, que vale pela espécie humana, toda ela.
A oração coletiva, por conseguinte, especialmente no
Côro e na Missa, é a plenitude da vida interior de cada fiel,
de cada comungante, de cada participante. Ali a vida
exterior se confunde com a vida interior. Desaparece tôda
separação. Dentro e fora se interpenetram nessa
transfiguração em que vida interior e vida exterior se
tornam uma só vida, a Vida do homem oferecida a Deus
pelo Cristo, o corpo e sangue de Cristo recebidos pela
humanidade na pessoa de cada homem, de cada fiel que
leva ao altar a oblação de sua vida interior, como de sua
vida exterior, para receber a Vida, pela comunhão, e levá-
la ao mundo, ao próximo e a si mesmo, nessa rotação
perene de Deus ao homem e do homem a Deus, que só
cessará na plenitude dos tempos e será substuída então
pela Visão na Glória ou pela perpétua privação do Amor.