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O que é Cineclube?

Apenas os dicionários e pequenos manuais para a organização de atividades cineclubísticas procuram


definir cineclube. Não existe, que eu saiba, um trabalho publicado nas fontes tradicionalmente
reconhecidas no campo acadêmico que desenvolva esse tipo de reflexão mais além das definições
dicionarizadas. Mesmo nos hoje numerosos trabalhos sobre o cineclubismo, não há uma reflexão mais
substancial sobre essa questão, parte-se geralmente da generalidade descritiva direta ou indiretamente
inspirada nos verbetes dos glossários para entrar em outros aspectos das atividades cineclubistas.
As reflexões teóricas mais conhecidas referem-se, antes, à cinefilia. Esse conceito, tal como vem sendo
tratado desde sua “redescoberta” e legitimação acadêmica ao final do século passado, abrange um
campo bem mais amplo que o do cineclubismo, mas quase sempre o aborda, em maior ou menor grau.
Em 1995, Antoine de Baecque e Thierry Frémaux publicaram um artigo “La cinéphilie ou l’invention
d’une culture” (A cinefilia ou a invenção de uma cultura) – que depois constituiria, essencialmente, a
introdução do livro do primeiro, A Cinefilia (este publicado em português). Em 1997, em um artigo
dedicado aos cineclubes – “De la Tribune libre du cinéma au Congrès de La Sarraz. La naissance du
«protocole cinéphile” e que também seria um capítulo do seu livro publicado dois anos depois, La
passion du cinéma : cinéphiles, ciné-clubs et salles spécialisées à Paris de 1920 à 1929, Christophe
Gauthier apresenta a ideia de um protocolo cinéfilo, inicialmente incluindo a projeção e o debate e
característico dos cineclubes. No livro ela retomará o tema, mas agregando outros elementos, como a
sistematicidade das sessões e a ligação com publicações, e já agora abrangendo um universo mais
amplo, como as salas especializadas, depois conhecidas como “cinemas de arte”. De fato, no período
estudado por Gauthier, todos – cineclubes, salas de arte e as publicações que lhes eram próximas estão
empenhados justamente no cinema de arte, contra o cinema comercial. Para de Baecque, a cinefilia é
uma “cultura”, que abrange os aficionados de cinema de vários tipos, mas que ele define sobretudo em
torno do grupo de cinéfilos frequentadores da Cinemateca e de alguns poucos cineclubes e cinemas de
Paris e, entre eles, especialmente as grandes personalidades que vão criar as revistas Cahiers du cinéma
e Positif e o movimento da Nouvelle Vague. A cultura cinéfila também é constituída por elementos
protocolares, que incluem desde comportamentos e ritos até uma espécie de conhecimento curricular
do cinema e a capacidade de expressão literária sobre esse tema.
Essa concepção de cinefilia como especialização, como diferenciação de um tipo de espectador foi, em
2010, contestada por Laurent Jullier e Jean-Marc Leveratto em seu livro Cinéphiles et cinéphilies que a
consideram elitista. Eles consideram que a capacidade de apreciar (tanto no sentido de gostar como no
de julgar) o cinema é inerente a todos. Mas continuam a aceitar o termo e, portanto, a pensar o cinéfilo
como um espectador com uma ligação especial com o cinema. Estes autores vão buscar nos estudos da
recepção, sobretudo os de Janet Staiger com o público proletário do cinema silencioso, uma cinefilia
comum.
A meu ver, contudo, o conceito de cinefilia é estranho aos estudos norte-americanos de cinema, com a
possível exceção de referências à cultura cinéfila dos anos 50 que influenciou alguns ambientes
novaiorquinos, como lembra com muita nostalgia Susan Sontag no seu famoso artigo de 1996 para o
New York Times, “The Decay of Cinema”.

Diversos outros campos acadêmicos tangenciam em maior ou menor grau o cineclubismo: a recepção
cinematográfica, a teoria feminista, os Estudos Culturais, entre outros. Mas, definitivamente, não se
pode falar de uma Teoria Cineclubista.
As tentativas e experiências de apropriação da imagem que chamaríamos posteriormente de cinema são
absolutamente contemporâneas dos cineclubes. Paralelamente às atividades comerciais e de
entretenimento desenvolvidas por empresários e outros aventureiros em busca de resultados
financeiros, muito cedo já se usavam projeções para acompanhar conferências e provocar debates nos
meios educacionais laicos e religiosos, assim como nos ambientes politizados de trabalhadores. Gauthier
menciona diversos casos, desde 1898 pelo menos. A primeira década do século 20 viu essas atividades
crescerem em número, mas igualmente em complexidade, em organização. Em torno de 1910 já
existiam salas e organizações constituídas política e juridicamente, mas sem o nome de cineclube.
Se Gauthier (1999) trabalha com a ideia de um protocolo cinéfilo, isto é, um conjunto de práticas que
identificam a cinefilia – projeções sistemáticas, debates, publicações – ele também elimina outras, que
sempre fizeram parte das experiências não comerciais com o cinema, como as coleções (arquivos), as
atividades educativas e, principalmente, a produção. Esse autor constrói a posteriori e valida um
conjunto de práticas estabelecido paulatinamente entre os anos 20 e 30, particularmente na França, e
depois adotado, com algumas variações, em todo o mundo. É essa “definição”, supostamente baseada
nas iniciativas de Delluc e outros, ao longo dos anos 20, nunca exatamente enunciada, mas tornada
hegemônica, que foi parar nos dicionários, sem passar por uma verdadeira avaliação crítica.
Nos anos 70 do século passado, coincidindo com uma ampla crise do modelo preponderante de
cineclube, alguns autores retomaram a ideia inicial do cineclube como uma organização do público. Essa
concepção tem a vantagem de criar um amplo campo de ações que podem ser reconhecidas como
iniciativa do público, mas também demonstra a incapacidade de estabelecer uma definição mais precisa
para cineclube.
Responder à questão: O que é um cineclube? certamente não é possível no espaço deste resumo nem
em uma exposição de alguns minutos. O mais provável é que não seja possível simplesmente encerrar a
riqueza da experiência cineclubista em algum tipo de taxonomia, mas que suas formas de organização e
suas práticas possam ser melhor compreendidas nos diferentes contextos históricos e sociais em que se
desenvolvem. Nesse sentido, como temos observado, não existe atualmente um modelo predominante
e estável de cineclube. Num contexto de transformações revolucionárias nas formas de comunicação e
expressão audiovisuais, tal situação crítica aponta possivelmente para ricas possibilidades. Gostaríamos
de retomar a experiência original do cineclubismo popular e revolucionário para pensar em novas
práticas cineclubistas em contextos midiáticos e digitais, especialmente na América Latina.
Felipe Macedo
GAUTHIER, Christophe. 1999. La passion du cinéma. Cinéphiles, cinéclubs et salles spécialisés à Paris de
1920 à 1929. Paris : Association Française de Recherche sur l’Histoire du Cinéma.

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