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DIREITO PENAL I

3.º ANO – NOITE/2020-2021


Regência: Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: João Matos Viana, David Silva Ramalho, Mafalda Moura Melim e Tiago Geraldo
Exame de coincidências de recurso – 16 de abril de 2021
Duração: 90 minutos

Alfredo, de nacionalidade italiana, mas residente em Portugal, e Bianca, portuguesa,


casados, foram passar umas férias prolongadas em Marrocos, em outubro de 2019. Em
Casablanca, Alfredo conheceu Carlo, cidadão italiano de 20 anos de idade, ali em turismo, com
quem iniciou uma relação amorosa.

Durante a estada em Marrocos, Alfredo decidiu matar Bianca. Comprou um veneno que
produzia efeito progressivamente e, no dia 20 de outubro, começou a administrá-lo a Bianca em
doses sucessivas. Passada uma semana, Bianca sentia-se bastante doente e decidiu antecipar o
regresso a Portugal.

Em 30 de outubro, o casal apanhou o avião da Royal Air Maroc de Casablanca para


Lisboa. Carlo vinha no mesmo voo. Bianca, que já há algum tempo desconfiava da relação entre
ambos, ao aperceber-se da presença do rival, quando o avião já sobrevoava o Algarve, começou
a insultá-lo. Carlo agrediu então Bianca. Da agressão resultou um golpe na cabeça, tendo o
comandante da aeronave intervindo, alertado pela tripulação, dando ordem a Carlo para se sentar.
Ainda assim, Carlo deu dois pontapés em Bianca, que ficou com duas costelas partidas.

À chegada a Lisboa, ainda no dia 30 de outubro, Carlo foi imediatamente detido. Bianca,
depois de ir ao hospital receber tratamento, regressou a casa. Nessa noite, Alfredo administrou-
lhe mais uma dose de veneno. Hospitalizada no dia seguinte, Bianca morreu a 2 de novembro. Só
na autópsia se descobriu a elevada concentração do veneno, que causara a morte.

Sabendo que:

a) O artigo 489.º do Código Penal (CP) marroquino pune com prisão até 3 anos qualquer
ato sexual entre pessoas do mesmo sexo;
b) Segundo o artigo 11.º do mesmo Código, os aviões das linhas aéreas marroquinas são
considerados território marroquino;
c) O artigo 132.º, n.os 1 e 2, al. i), do CP português prevê a punibilidade do homicídio por
envenenamento com prisão de 12 a 25 anos.

E supondo que:
d) O artigo 132.º, n.º 2, al. i), do CP português foi alterado, passando a prever que a
qualificação por envenenamento apenas opera quando o crime for praticado contra uma
das pessoas mencionadas nas alíneas a) e b), alteração que entrou em vigor no dia 1 de
novembro de 2019.
e) No dia 30 de outubro de 2019, estava em vigor a Lei n.º 30/2019, que determinava, por
razões de prevenção de ameaças terroristas, que qualquer desobediência a ordens de
comandante de aeronave que sobrevoe o espaço português é punível com pena de prisão
até 10 anos.
f) Em 15 de novembro de 2019, a Assembleia da República publica a Lei n.º 46/2019, que
entrou em vigor no dia seguinte, a qual passa a determinar que as condutas supra descritas
em e) são puníveis com pena de prisão até 3 anos.

1) Admitindo que a lei portuguesa é competente para julgar Alfredo pelo crime de
homicídio praticado contra Bianca, seria possível fazê-lo ao abrigo da alteração que
entrou em vigor no dia 1 de novembro de 2019? (4 valores)

2) Pronuncie-se sobre a concessão dos pedidos de extradição de Alfredo e Carlo tendo


em conta que:

i) Marrocos pede a extradição de Alfredo e de Carlo, para os julgar pelo crime previsto no
artigo 489.º do CP marroquino (2 valores);
ii) Marrocos pede ainda a extradição de Carlo, a fim de o julgar pelo crime de ofensas à
integridade física praticado contra Bianca a bordo de um avião da Royal Air Maroc (4
valores);
iii) Marrocos pede a extradição de Alfredo, para o julgar pelo crime de homicídio, alegando
que o crime foi, em parte, cometido em território marroquino. Embora o CP marroquino
preveja a pena de morte, esta nunca foi aplicada (4 valores);

3) Admitindo que Daniel assinava um cheque do livro de cheques que tinha acabado
de furtar a Filipa, para com ele pagar um fato, entregando o cheque a Eduardo,
empregado de loja, e considerando apenas os tipos dos artigos 217.º, n.º 1, e 256.º,
n.º 1, al. c), e n.º 2, do CP português, diga, fundamentando, por que crime ou crimes
deve Daniel ser punido (4 valores).

Ponderação global: 2 valores


DIREITO PENAL I
3.º ANO – NOITE/2020-2021
Regência: Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: João Matos Viana, David Silva Ramalho, Mafalda Moura Melim e Tiago Geraldo

Exame de coincidências de recurso – 16 de abril de 2021

TÓPICOS DE CORREÇÃO

1) Princípio da legalidade penal: nullum crimen, nulla poena sine lege praevia – artigos 29.º,
n.º 1 e 3, da CRP e 1.º, n.º 1, do Código Penal (CP); tempus regit actum – aplicação da
lei em vigor no momento da prática do facto: determinação do tempus delicti, com recurso
ao critério unilateral da conduta (artigo 3.º do CP): razões de segurança e culpa; em
concreto, a conduta do agente que conduziu ao resultado morte ocorreu em vários
momentos distintos, tendo tido início no dia 20 de outubro – quando foi administrada a
primeira dose; o último ato de execução foi praticado no dia 30 de outubro – data em que
Alfredo deu a última dose de veneno.
Menção à existência de uma lei posterior ao tempus delicti: alteração à redação
do artigo 132.º do CP: legislador passou a considerar que o recurso a veneno apenas é
suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade características do
homicídio qualificado quando utilizado contra pessoas muito próximas do agente.
A modificação operada pela lei consiste na adição de um elemento típico,
verificado no caso – recurso a veneno para produzir a morte do cônjuge; concretização:
segundo este regime, o agente continuaria a ser punido pela prática de um crime de
homicídio qualificado, nos termos do artigo 132.º, n.os 1 e 2, al. i), do CP português, com
uma pena de prisão fixada entre 12 e 25 anos.
Proibição da aplicação retroativa da lei penal mais severa (novatio legis in peius):
artigos 29.º, n.º 4, 1.ª parte, da CRP; artigo 2.º, n.º 1 a contrario, do CP: ao abrigo deste
princípio, encontrar-se-ia vedada a qualificação do crime pela circunstância de ter sido
usado veneno, visto que, à luz da nova redação, impunha-se valorar retroativamente uma
circunstância que não integrava esta qualificante no momento da prática do facto.
No entanto, o agente sempre responderia por homicídio qualificado, nos termos
do artigo 132.º, n.os 1 e 2, alínea b), do CP, que já estava em vigor, com idêntica redação,
no momento da prática do facto.

2)
i) Aplicação da lei penal no espaço: em particular, possibilidade de extraditar Alfredo e
Carlo, a pedido de Marrocos; aplicação da Lei n.º 144/99, sendo o pedido destinado à
instauração de procedimento penal (artigo 31.º da Lei n.º 144/99); no entanto, o crime em
causa não é punível pela lei portuguesa, pelo que não se encontra preenchido o requisito
da dupla incriminação, exigido pelo n.º 2, do mencionado artigo 31.º. Assim, haverá que
negar a entrega de Alfredo e Carlo para julgamento pelo crime previsto no artigo 489.º
do CP marroquino.
ii) Aplicação da lei penal no espaço: em particular, possibilidade de extraditar Carlo, a
pedido de Marrocos, pela prática de um crime de ofensas à integridade física de Bianca;
aplicação da Lei n.º 144/99, sendo o pedido destinado à instauração de procedimento
penal (artigo 31.º da Lei n.º 144/99); admite-se a verificação do requisito constante do
artigo 31.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99, nos termos do qual se exige que o crime em causa
seja punível pela lei portuguesa e pelo lei do Estado requerente com pena ou medida
privativas da liberdade de duração máxima não inferior a um ano (vide artigo 143.º, n.º 1,
do CP).
Porém, haverá que considerar o disposto no artigo 32.º, n.º 1, alínea a), na Lei n.º
144/99, que exclui a extradição quando o crime tiver sido cometido em território
português; in casu, Carlo agrediu Bianca dentro do avião da Royal Air Maroc – que, nos
termos do artigo 11.º do CP marroquino, é considerado território marroquino – quando
este sobrevoava o Algarve.
Assim, impõe-se constatar, ao abrigo do disposto nos artigos 3.º, alínea b), e 4.º,
n.º 1, alínea b), do Decreto-Lei n.º 254/2003, de 18 de outubro, que o crime também se
poderá considerar praticado em Portugal, visto que o local de aterragem seguinte é
território português e desde que o comandante da aeronave entregue o presumível infrator
às autoridades portuguesas competentes.
Deste modo, seria negada a extradição, instaurando-se procedimento penal pelos
factos que fundamentam o pedido, sendo solicitados ao Estado requerente os elementos
necessários (artigo 32.º, n.º 5, da Lei n.º 144/99).

iii) Aplicação da lei penal no espaço: em particular, possibilidade de extraditar Alfredo a


pedido de Marrocos, pela prática de um crime de homicídio contra Bianca; aplicação da
Lei n.º 144/99, sendo o pedido destinado à instauração de procedimento penal (artigo 31.º
da Lei n.º 144/99); cumpre-se o requisito constante do artigo 31.º, n.º 2, da Lei n.º 144/99,
nos termos do qual se exige que o crime em causa seja punível pela lei portuguesa e pelo
lei do Estado requerente com pena ou medida privativas da liberdade de duração máxima
não inferior a um ano;
O CP marroquino sanciona com a pena de morte o crime em causa, o que nos
termos do artigo 6.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 144/99 constitui um requisito geral negativo
da cooperação internacional. Deste modo, a circunstância de a pena de morte nunca ter
sido aplicada, nestes casos, não configura garantia bastante, ao abrigo do n.º 2, alínea a),
da Lei n.º 144/99, para permitir a extradição de Alfredo. De todo o modo, a extradição
sempre seria negada pela circunstância de, pelo menos parcialmente, o crime ter sido
praticado em território nacional (artigo 32.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 144/99), visto que
o resultado morte se produziu em Portugal (artigos 7.º, n.º 1 e 4.º do CP). Aplicar-se-ia,
nestes termos, o artigo 32.º, n.º 5, da Lei n.º 144/99.

3) Unidade ou pluralidade de infrações – concurso de normas ou de crimes: através da


conduta descrita, Daniel preenche dois tipos incriminadores distintos: artigo 217.º, n.º 1
(burla) e 256.º, n.º 1, al. c), e n.º 2 (falsificação de documentos) do CP.
Discussão e análise crítica do problema à luz da jurisprudência fixada pelo
acórdão 8/2000, de 23 de maio, nos termos do qual se entendeu que «no caso de a conduta
do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea
a), e do artigo 217.º, n.º 1, respetivamente, do Código Penal, revisto pelo Decreto-Lei n.º
48/95, de 15 de Março, verifica-se concurso real ou efetivo de crimes».
Valoriza-se que possa ser discutida a atualidade desta fixação de jurisprudência,
face à alteração da redação do artigo 256.º, n.º 1, do Código Penal introduzida pela Lei
n.º 59/2007, de 4/9; do mesmo modo, valoriza-se a menção ao acórdão n.º 10/2013 do
Supremo Tribunal de Justiça, que esclareceu que «a alteração introduzida pela Lei
59/2007 no tipo legal do crime de falsificação previsto no artigo 256.º do Código Penal,
estabelecendo um elemento subjetivo especial, não afeta a jurisprudência fixada nos
acórdãos de fixação de jurisprudência de 19 de fevereiro de 1992 e 8/2000 de 4 de maio
de 2000 e, nomeadamente, a interpretação neles constante de que, no caso de a conduta
do agente preencher as previsões de falsificação e de burla do artigo 256.º, n.º 1, alínea
a), e do artigo 217.º, n.º 1, do mesmo Código, se verifica um concurso real ou efetivo de
crimes».

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