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a mulher moderna

u em são as m ulh eres m odernas? C om o as criou a


Q vida?
A m ulher m oderna, a m ulher que denom inam os celi­
batária, é filha do sistem a econôm ico do grande capita­
lism o. A m ulher celibatária, não com o tipo acidental, m as
um a realidad e cotid iana, u m a realidad e da m assa, um
fato que se repete de form a determ inada, nasceu com o
ruído infernal das m áquinas da usina e da sirene das fá­
bricas. A im ensa transform ação que sofreram as con d i­
ções de produção no transcu rso dos últim os anos, in clu ­
sive depois da influência das constantes vitórias da p ro ­
dução do grande capitalism o, obrigou tam bém a m ulher
a adaptar-se às n o v as condições criadas p ela realidade
que a envolve. O tipo fundam ental da m ulher está em
relação direta com o grau histórico do desenvolvim ento
Alexandra Kolontai

econôm ico por que atravessa a hum anidade. Ao m esm o


tem po que se experim enta um a transform ação das con­
dições econôm icas, sim ultaneam ente à evolução das re­
lações da produção, experim enta-se a m udança no aspec­
to psicológico da mulher. A m ulher m oderna, com o tipo,
não poderia aparecer a não ser com o aum ento quantita­
tivo da força de trabalho fem inino assalariado. Há cin-
qüenta anos, considerava-se a participação da m ulher na
vida econôm ica com o desvio do normal, com o infração
da ordem natural das coisas. As m entalidades m ais avan­
çadas, os próprios socialistas buscavam os m eios adequa­
dos para que a m ulher voltasse ao lar. Hoje em dia, so­
m ente os reacionários, encerrados em preconceitos e na
m ais som bria ignorância, são capazes de repetir essas
opiniões abandonadas e ultrapassadas há m uito tem po.
Há cinquenta anos, as nações civilizadas não conta­
vam nas fileiras da população ativa com mais do que al­
gum as dezenas, ou m esm o algum as centenas de m ilha­
res de m ulheres. A tualm ente o crescim ento da popula­
ção trabalhadora fem inina é superior ao crescim ento da
população m asculina. Os povos civilizados dispõem não
de centenas de m ilhares, m as sim de m ilhões de braços
fem ininos. M ilhões de m ulheres pertencem às fileiras
proletárias; m ilhares de m ulheres têm um a profissão,
consagram suas vidas à ciência ou à arte. Na Europa e
nos Estados U nidos as estatísticas acusam m ais de ses­
senta m ilhões de m ulheres inscritas na classe trabalha­
dora. M archa grandiosa a desse exército independente
de m ulheres! 50% desse exército é constituído por m u­
lheres do tipo celibatário, isto é, por m ulheres que na luta
pela subsistência contam apenas com suas próprias for­
a nova mulher e a moral sexual

ças; de m ulheres que não podem , segundo a tradição,


viver unicam ente depend endo de um m arido que as
m antenha.
As relações de produção, que durante tantos séculos
m antiveram a m ulher trancada em casa e subm etida ao
m arido, que a sustentava, são as m esm as que, ao arran­
car as correntes enferrujadas que a aprisionavam , im pe­
lem a m ulher frágil e inadaptada à luta do cotidiano e a
subm etem à dependência econôm ica do capital. A m u­
lher am eaçada de perder toda a assistência, diante do te­
m or de padecer privações e fome, vê-se obrigada a apren­
der a se m anter sozinha, sem o apoio do pai ou do m ari­
do. A m ulher defronta-se com o problem a de adaptar-se
rapidam ente às novas condições de sua existência, e tem
que rever im ediatam ente as verdades m orais que herdou
de suas avós. D á-se conta, com assom bro, de toda inutili­
dade do equipam ento m oral com que a educaram para
percorrer o cam inho da vida. As virtudes fem ininas —
p a s s iv id a d e , su b m issã o ,' d o ç u ra — q u e lh e fo ra m
inculcadas durante séculos, tornam -se agora com pleta­
m ente supérfluas, inúteis e prejudiciais. A dura realida­
de exige outras qualidades nas m ulheres trabalhadoras.
Precisa agora de firm eza, decisão e energia, isto é, aque­
las virtudes que eram consideradas com o propriedade
exclusiva do homem . Privada da proteção que até então
lhe prestara a fam ília ao passar do aconchego do lar para
a batalha da vida e da luta de classes, a m ulher não tem
outro remédio senão arm ar-se, fortificar-se, rapidam en­
te, com as forças psicológicas próprias do hom em , de seu
com panheiro, que sem pre está em m elhores condições
para vencer a luta pela vida. N esta urgência em adaptar-

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Alexandra Kolontai

se às novas cond ições de sua existência, a m ulher se apo­


dera e assim ila as verdades, prop riam en te m ascu lin as,
freqüentem ente sem subm etê-las a nenhum a crítica, e que,
se exam inad as m ais d etalhadam ente, são apenas verd a­
des para a classe b u rg u esa.1
A realidad e capitalista contem p orân ea parece esfor­
çar-se em criar um tipo de m ulher que, pela form ação de
seu espírito, se encontra in com p aravelm ente m ais p róxi­
m a do h om em do que da m ulher do passado. Este tipo
d e m u lh er é um a consequ ên cia natu ral e inevitável da
p articip ação da m ulher na corrente da vida econôm ica e
social. O m u n d o cap italista só recebe as m u lh eres que
sou beram desprezar, a tem po, as virtudes fem ininas e que
a s s im ila r a m a f ilo s o f ia da lu ta p e la v id a . P a ra as
in ad ap tad as, isto é, para aquelas m ulh eres pertencentes
ao tipo antigo, não há lu gar n as fileiras das hostes trab a­
lh ad oras. C ria-se d esta form a, u m a esp écie de seleção
n atu ral entre as m ulheres das diversas cam adas sociais.
A s fileiras das trabalhad oras são sem pre form adas pelas
m ais fortes e resistentes, pelas m ulheres de espírito m ais
disciplinado. A s de natureza frágil e passiva continu am

1 T o m e m o s c o m o e x e m p lo a m o ra l sim p lista d o h o m e m e m su a s r e la ­
çõ e s s e x u a is, m o ra l q u e c o n sid e ra co m o u m fa to n atu ral e in e v itá v e l...
a p ro stitu ição . D ora, a hero ín a de v an g u ard a da n o v ela d e W in itch e n co ,
A A u to lea ld a d e , é um a m u lh e r q u e se sen te in te rio rm e n te liv re e q u e
assim ila sem su b m e te r à crítica essa v erd ad e m a scu lin a d o m u n d o b u r­
g u ês. C o m u m a fin a lid a d e su p erio r, p ara d e m o n s tr a r a p ro fu n d id a d e
d e s e u s e n tim e n to p elo h o m e m q u e am a, p a ra a firm ar s u a p e rs o n a li­
d ad e e e v id e n c ia r q u ão se p a ra d o s estão seu s se n tim e n to s d e u m a s im ­
p le s a g ita ç ã o sa n g u ín e a , D o ra co m p ra u m h o m em ... A falsa v e ra c id a ­
d e m a s c u lin a d e cla sse é aceita n e s te caso p o r u m a m u lh e r q u e asp ira
a lib e rta r-se , b u s c a n d o u m a v e rd a d e su p erio r.

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a nova mulher e a moral sexual

fortem ente vinculadas ao lar. Se as necessidades m ateriais


as arrancam d o lar para lançá-las na torm enta da vida,
estas m u lh eres d eix am -se levar p elo cam in h o fácil da
prostituição legal ou ilegal, casam -se por conveniência
ou lan çam -se à rua. A s m ulh eres trabalhad oras con sti­
tuem a vanguarda de todas as m ulheres e integram em
suas fileiras representantes das diversas cam ad as sociais.
Entretanto, a im ensa m aioria dessa vanguarda fem inina
não se constitui de m ulheres do tipo de Vera N iokdinovna,
orgulhosas da sua independência, m as, por m ilhões de
M atildes envoltas em xales cinzentos, Tatianas, de R iasan,
com os pés descalços, em p urradas pela m iséria a novos
cam inhos.2 É um profundo erro pensar, no entanto, que o
n o vo tipo d e m ulher, a celib atária, é fruto de esforços
heróicos de algu m as individu alid ades fortes que tom a­
ram con sciên cia de sua p róp ria person alid ad e. N em a
vontade próp ria, nem o exem p lo au dacioso de M agda,
nem o da decidida R enata foram capazes de criar o novo
tip o de m ulher. A transform ação da m entalidade da m u ­
lher, de sua estru tu ra interior, espiritu al e sentim ental,
realizou-se prim eiro e, principalm ente, nas cam ad as m ais
profundas da sociedade, ou seja, onde se produz neces­
sariam ente a adaptação ao trabalho, nas condições radi­
calm en te transform adas de sua existência.
Estas m ulheres, as M atildes e as Tatianas, não resol­
vem nenhu m problem a. A lém disso, ainda tentam agar­
rar-se com tod as as suas forças ao passado. C om m uito
pesar se vêem obrigadas a curvar-se diante das leis da
n ecessid ad e histórica —as forças de produção —e a dar os

2 Ver ca p ítu lo A nova m u lh er na literatu ra.

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Alexandra Kolontai

prim eiros passos pelo novo cam inho. C am inham ao aca­


so, d om in ad as pela tristeza, am aldiçoand o seus p assos e
acariciand o em seu interior o sonho de um lar, onde pos­
sam d esfru tar de tranqüilas e m odestas alegrias. A h, se
fosse possível aband on ar o cam inho, voltar atrás. M as,
isto é irrealizável, pois os grupos de com p anh eiras são
cada vez m ais densos e a corrente as em p u rra cad a vez
para m ais longe do passado. É preciso adaptar-se à an ­
gu stiante falta de espaço, preparar-se para a luta, ocu par
o lugar corresponden te a cada um a; têm que defender o
direito de viver.
A m u lh er da classe operária contem p la com o nasce e
se fortalece dentro de si a consciência de sua in d ep en ­
dente in d ividu alid ade. Tem fé em suas próp rias forças.
G rad u alm en te, d e form a inevitável e p od erosa, desen-
volve-se o processo de acum u lação de novos caracteres
m orais e esp iritu ais da m ulher operária, caracteres que
lhe são indispensáveis com o representantes de um a clas­
se determ inada. H á, p orém , algo ainda m ais essencial; é
que esse processo de transform ação da estrutura interior
d a m u lh er não se redu z u nicam en te a p erson alid ad es,
m as corresponde a grandes m assas, a círculos m uito gran­
d es, cada vez m aiores. A vontade individual su bm erge e
desaparece no esforço coletivo de m ilhões de m ulheres
da classe op erária, para adaptar-se às novas cond ições
da vida. Tam bém nesta transform ação desenvolve o ca­
pitalism o um a grande atividade. A o arrancar do lar, do
berço, m ilhares de m ulheres, o capitalism o converte e s­
sas m ulh eres subm issas e p assivas, escravas obedientes
dos m arid os, num exército que luta p elos seus próprios
direitos e pelos direitos e interesses da com unidade h u ­

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a nava mulher e a moral sexual

m ana. D esp erta o espírito de protesto e ed u ca a vontade.


Tudo isto contribu i para que se desenvolva e fortaleça a
in d ivid u alid ad e da m ulher.
M a s , d e s g r a ç a d a d a o p e r á r ia , q u e c rê n a fo rç a
in v en cív e l de u m a in d iv id u alid ad e isolad a. A p esad a
carga do capitalism o a esm agará, friam ente, sem p ied a­
de. A s fileiras de m u lh eres co m b aten tes co n stitu em a
ú nica força capaz de desviar d e seu cam inho a pesada
carga do capitalism o. D este m odo, ao m esm o tem po que
se desenvolve a consciência de sua p ersonalidade e de
seus d ireitos, nasce e evolu i na m ulh er operária do novo
tip o o s e n tim e n to da c o le tiv id a d e , o se n tim e n to do
com p anh eirism o, que só se encontra, e m uito levem ente,
na m u lh er do novo tipo pertencente a outras classes so ­
ciais. Este é o sentim ento fun dam en tal, a esfera de sensa­
ções e p ensam entos que separa com um a linha divisória
definitiva as trabalhad oras das m ulheres b urgu esas, p er­
ten cen tes ao m esm o tipo celibatário. N as m u lh eres do
n ovo tipo, m as pertencentes às distintas classes, é com um
a d istinção qualitativa das m ulheres do passado. C om o
parte in tegrante das hostes de m ulheres trabalhad oras,
sua estru tu ra interior exp erim entou igual transform ação,
ou seja, logrou d esenvolver sua in teligência, reforçar sua
p ersonalid ad e e am pliar seu m undo espiritual. A esfera,
porém , de pensam entos e sentim entos, que d erivam do
conceito de classe, são os que separam , fu n d am en talm en ­
te, as m ulheres do novo tipo pertencentes às d iversas ca­
m ad as sociais. As operárias sentem o an tagon ism o de
classe com um a intensidade infinitam ente m aior que as
m ulh eres do tip o antigo, que não tinham consciência da
luta social. Para a operária, que deixou sua casa, que ex­

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Alexandra Kolontai

p erim entou sobre si m esm a toda a força das con trad i­


ções sociais e que se viu obrigada a participar ativam en­
te na luta de classes, um a ideologia de classe, clara e de­
finida, adquire a im portância de um a arm a na luta pela
existência. A realidade capitalista separa de m aneira ab­
soluta a Tatiana, de G orki, da Tatiana de N agrodskaia. É
esta realidade capitalista que leva a proprietária de um a
oficina a encontrar-se, por sua ideologia, m uito m ais se­
parada de uma de suas operárias do que a boa dona de
casa com relação a sua vizinha, a m ulher de um operário.
Esta realidade capitalista tom a aguda a sensação do an­
tagonism o social entre as m ulheres trabalhadoras. Para
esta categoria de m ulheres do novo tipo só pode haver
um ponto com um : sua distinção qualitativa da m ulher
do p assado, as propriedades específicas que caracterizam
a m ulher independente, do tipo que tem os denom inado
celibatário. As m ulheres do novo tipo, pertencentes a es­
tas duas classes sociais, passam p or um período de anta­
gonism o: as duas classes lutam pela afirm ação de sua
personalid ad e; as de um a classe, conscientem ente, por
princípio, as da outra classe, de form a elem entar, coleti­
va, sob o ju g o do inevitável.
M esm o, porém , que na nova m ulher pertencente à clas­
se operária a luta pela afirmação de seu direito e de sua
personalidade coincida com os interesses de sua classe, as
m ulheres do novo tipo pertencentes a outras classes so­
ciais têm necessariam ente que se defrontar com um obstá­
culo: a ideologia de sua classe, que é hostil à reeducação
do tipo de mulher. N o m eio burguês, a insurreição da
m ulher adquire um caráter m uito m ais agudo e os dra­
m as m orais da m ulher do novo tipo são m uito m ais vivos,

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a nova mulher e a moral sexual

tem m ais colorido, oferecem m aiores com plicações.3 No


m eio operário, não há nem podem existir conflitos agu­
dos entre a psicologia da m ulher do novo tipo, em form a­
ção, e a ideologia de sua classe. Tanto sua psicologia em
form ação com o sua ideologia de classe encontram -se em
um processo de form ação, em fase de desenvolvim ento.
O novo tipo da m ulher, que é interiorm ente livre e
independente, corresponde, plenam ente, à m oral que ela­
bora o m eio operário no interesse de sua própria classe.
A classe operária necessita, para a realização de sua m is­
são social, de m ulheres que não sejam escravas. Não quer
m ulheres sem personalidade, no m atrim ônio e n o seio
da fam ília, nem m ulheres que possuam as virtudes fem i­
ninas — passividade e subm issão. N ecessita de com pa­
nheiras com uma individualidade capaz de protestar con­
tra toda servidão, que possam ser consideradas com o um
m em bro ativo, em pleno exercício de seus direitos, e, con­
sequentem ente, que sirvam à coletividade e à sua classe.
A psicologia da m ulher do novo tipo, da m ulher in­
depend ente e celibatária, reflete sobre a das dem ais m u ­
lheres que perm anecem ainda na retaguarda em relação
a seu tem po. O s traços característicos, form ados na luta
pela vida, das trabalhadoras convertem -se pouco a pou ­
co, gradativam ente, nas características das outras m ulhe-

3 Isto e x p lica po rqu e os ro m an cistas co n tem p o rân eo s eleg em su as h ero í­


n as en tre as m u lh eres rep resen tan tes do m eio bu rg u ês. A p e n as e n co n ­
tra m o s u m a h ero ín a p e rten cen te à classe o p e rária. E n tretan to , os es­
c rito re s e n c o n tra ria m u m rico m aterial se d ecid isse m d esc er até estas
ca m a d a s da so cie d a d e , ond e a d u ra realid ad e co n te m p o râ n ea cria, não
iso lad am e n te , m as em m assa, o tipo de m u lh eres d o tad as de um a n o v a
e stru tu ra m o ra l, c o m n o v as n e ce ssid ad es e em o çõ es.

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Alexandra Kolontai

res que ficaram atrasadas. Pouco im porta que as m ulhe­


res trabalhadoras sejam apenas m inoria, que para cada
m ulher do novo tipo haja duas, talvez três m ulheres per­
tencentes ao tipo antigo. As m ulheres trabalhadoras são
as que dão tom à vida e determ inam a figura de m ulher
que caracteriza um a época determ inada.
As m ulheres do novo tipo, ao criar os valores m orais
e sexuais, destróem os velhos princípios na alm a das m u ­
lheres que ainda não se aventuraram a em preender a m ar­
cha pelo novo cam inho. São estas m ulheres do novo tipo
que rom pem com os dogm as que as escravizavam .
A influência das m ulheres trabalhadoras estende-se
m uito além dos limites de sua própria existência. As m u­
lheres trabalhadoras contam inam com sua crítica a inteli­
gência de suas contem porâneas, destróem os velhos ído­
los e hasteiam o estandarte da insurreição para protestar
contra as verdades que as subm eteram durante gerações.
As m ulheres do novo tipo, celibatário e independente, ao
se libertarem , libertam o espírito agrilhoa do, durante sé­
culos, de outras m ulheres ainda subm issas.
É certo que a m ulher do novo tipo já penetrou na lite­
ratura. M as está ainda m uito longe de haver expulsado
as heroínas de estrutura m oral pertencentes aos tem pos
passados. Tam pouco conseguiu a m ulher-individualida-
de descartar-se do tipo de m ulher esposa, eco do hom em .
Entretanto, é fácil observar que ainda nas heroínas do tipo
antigo se encontram , cada vez com m aior freqüência, as
propriedades e os traços psicológicos que possibilitaram
a vida das m ulheres do tipo celibatário e independente.
O s escritores dotam involuntariam ente suas heroínas com
sentim entos e características que não eram , de m odo al-
a nova mulher e a moral sexual

gum , próprios das heroínas da literatura do período pre­


ced ente.4
A literatura contem poránea é rica, sobretudo, em fi­
guras de m ulheres do tipo transitorio. É rica em heroínas
que têm sim ultaneam ente as características da m ulher
antiga e da m ulher nova. Por outro lado, ainda nas m u ­
lheres do tipo celibatário já form ado, observa-se um p ro­
cesso de transform ação dos novos valores, que podem
ser abafados pela tradição e por um a série de pensam en­
tos superados. A força dos séculos é dem asiado grande e
pesa m uito sobre a alm a da m ulher do novo tipo. O s sen­
tim entos atávicos perturbam e debilitam as novas sensa­
ções. As velhas concepções da vida prendem ainda o es­
pírito da m ulher que busca sua libertação. O antigo e o
novo se encontram em contínua hostilidade na alm a da
m ulher. Logo, as heroínas contem porâneas têm que lutar
contra um inim igo que apresenta duas frentes: o m un d o
exterior e suas p róp rias tend ências, herd ad as de suas
m ães e avós.
C om o disse H edw ig D ohn, "o s novos pensam entos já
nasceram em nós, mas os antigos ainda não m orreram .
O s restos das gerações passadas não perderam sua força,
ainda que possuam os a form ação intelectual, a força de
vontade da m ulher do novo tip o ." A reeducação da p si­
cologia da m ulher, necessária às novas condições de sua

4 O s traço s p sico ló g ico s iso lad o s, cara cte rístico s d a n ov a m u lher, se e n ­


co n tra m n as hero ín as d e G o rk i m u ito m ais íre q ü en te m e n te d o que
n o s ou tros escrito res ru sso s. Su a alm a sen sív el d e artista, aberta à re a ­
lid a d e fu tu ra, sab e ap o d erar-se com m u ito m ais fa cilid a d e d o q u e a
d o s ou tros e scrito re s, d o s traço s q u e escap am ao s o lh o s d o s d e m a is e
q u e se e n c o n tra m m ais estreitam e n te lig ad o s à realid ad e cap italista.

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Alexandra Kolontai

vida econôm ica e social, não pode ser realizada sem luta.
Cada passo dado nesse sentid o provoca conflitos, que
eram com pletam ente desconhecidos das heroínas anti­
gas. São esses conflitos que inundam a alm a da mulher,
os que pouco a pouco cham am a atenção dos escritores e
acabam por converter-se em m anancial de inspiração ar­
tística. A m ulher transform a-se gradativam ente. E de ob ­
jeto da tragédia m asculina converte-se em sujeito de sua
própria tragédia.
2
o amor e a nova moral

os anos de 1910 e 1911, período durante o qual d im i­


N nuiu na Rússia o interesse pelos problem as sexuais,
apareceu n a A lem anha um estudo psico-sociològico de
G rete M eisel-H ess sobre a crise sexual, livro que não foi
um êxito público. O rom ance de K arin M ichaelis, A Idade
P erigosa, p u blicad o pouco depois, livro que carece de
grande valor artístico e cuja audácia não vai além dos
lim ites perm itidos pelas conveniências de bom tom lite­
rário, relegou a segundo plano, com o seu im erecido ê x i­
to, a obra de M eisel-H ess.5 Foi qu alificado pela crítica
com o "u m livro bem escrito, m as sem nenhum valor cien ­
tífico ." U nicam ente entre as altas rodas intelectuais, en-

5 G rete M e ise i-H e ss - A crise sexu al.


Alexandra Kolontai

tre a nata da sociedade alem ã, este livro foi saud ado com
aplau sos por alguns e com m ostras de desagrado e in­
dignação p or outros, sorte com um a todo sincero investi­
gador da verdade.
O fato de que o livro de M eisel-H ess careça de um a
série de qualidades científicas, o fato de que se possa re­
provar a falta de m étodo e análise, o fato de que não siga
um procedim ento sistem ático, e que seu pensam ento seja
em algu ns m om entos inseguro e sinuoso, e que repita
coisas já expostas, não pode dim inuir de m odo algum o
valor desse trabalho.
U m hálito de frescor se desprende do livro. A in vesti­
gação da verdade enche as páginas vivas e apaixonadas
desta exposição, na qual se reflete um a vibrante alm a de
m ulher, que conhece perfeitam ente a vida. O s pensam en­
tos de M eisel-H ess não são novos, flutuam no am biente,
enchem e saturam toda a nossa atm osfera m oral.
Os problem as que M eisel exam ina nos são conhecidos.
Todos nós tem os m editado sobre eles, vivêm o-los em toda
a sua dor. N ão há nenhum a pessoa que depois de refletir
sobre esse problem a não haja chegado por um cam inho
ou por outro, às conclusões gravadas nas páginas do livro
A Crise Sexual. M as, fiéis à hipocrisia que nos dom ina, con­
tinuam os adorando publicam ente o velho ídolo: a m oral
burguesa. O m érito de M eisel-H ess é sem elhante ao do
m enino do conto de Andersen. M eisel-H ess atreveu-se a
gritar à sociedade "q u e o rei está n u ", ou seja, que a m oral
sexual contem porânea não passa de uma vã ficção.
Com efeito, as norm as m orais que regulam a vida se­
xual do hom em não pod em ter m ais do que duas finali­
dades, dois objetivos. Prim eiro, assegurar à hum anidad e

28
3 nova mulher e a moral sexual

um a descendência sã, norm alm ente desenvolvida: con ­


tribuir para a seleção natural no interesse da espécie. Se­
gundo, contribuir para o desenvolvim ento da psicologia
hu m ana, enriquecê-la com sentim entos de solid aried a­
de, de com panheirism o, de coletividade. A m oral sexual
atual, com o m oral que serve unicam ente aos interesses
da propriedade, não preenche nenhum a destas duas fi­
nalidades. Todo o código com plicado da m oral sexual
contem porânea, com o m atrim ônio m onogàm ico indisso­
lúvel, que raras vezes está b asead o no amor, e a in stitu i­
ção da prostituição, tão difundida e organizada, não só
não contribui para o saneam ento e o m elhoram ento da
espécie, com o produz efeitos contraditórios, ou seja, fa­
vorece a seleção natural em sentido inverso. A m oral con­
tem porânea não faz m ais do que conduzir a h u m anid a­
de pelo cam inho da degenerescência ininterrupta.
O s m atrim ôn ios tardios, a esterilid ad e forçada nos
períodos m ais favoráveis para a concepção, o recurso da
prostituição com pletam ente inútil do ponto de vista do
interesse da espécie, a ausência de um fator tão im p or­
tante com o o êxtase am oroso nos m atrim ônios con ven ­
cionais, no m atrim ônio legal e indissolúvel; o fato de que
os m odelos fem ininos m ais form osos, os m ais cap acita­
dos para p rovocar as em oções eróticas dos hom ens fi­
quem reduzidos à esterilidade da prostituição; a cond e­
nação à m orte que pesa sobre os filhos do am or, prod u ­
tos ilegais da espécie, freqüentem ente os m ais valiosos
p or serem os m ais sãos e vigorosos, tudo isto é resultado
direto da m oral corrente, resultado que conduz irrem e­
d iavelm ente à realidade, decadência e degenerescência
física e m oral da hum anidade.

29
Alexandra Kolontai

O propósito de M eisel-H ess, de harm onizar a m oral


sexual e o objetivo da higiene da espécie, m erece um a
grande atenção e deve interessar principalm ente aos par­
tidários da concepção m aterialista da história. A defesa
da jovem geração trabalhadora, a proteção da m aterni­
dade, da infância, a luta contra a prostituição e outras
reivindicações dos program as socialistas contêm , no es­
sencial, a higiene da espécie na sua m ais am pla acepção.
Tirar da m oral sexual a auréola do inviolável im perativo
categórico, harm onizar a m oral sexual com as necessida­
des vitais e práticas e com as exigências da vanguarda da
hum anidade, é a tarefa que deve figurar na ordem do dia
e que requer forçosam ente a atenção reflexiva e consciente
de todos os program as socialistas.
P or m u ito v a lio so s qu e sejam os p e n sam e n to s de
M eisel-H ess sobre essa questão, ultrapassaríam os indu­
bitavelm ente os lim ites do ensaio se nos dedicássem os a
analisar d etalh ad am en te esta p arte do livro. Portanto,
som ente exam inarem os, aqui, a segunda parte do pro­
blem a sexual. U nicam ente estudarem os as respostas, não
m enos valiosas e interessantes de M eisel-H ess à segunda
pergunta: atingem seus fins as form as atuais da m oral
sexual? O u seja, contribuem para desenvolver no hom em
sentim entos de solidariedade, de com panheirism o e con-
seqüentem ente para o enriquecim ento da psicologia hu­
m ana?
D epois de subm eter a um a análise sistem ática as três
form as fundam entais da união entre os sexos, o m atri­
m ônio legal, a livre união e a prostituição, M eisel-H ess
chega a um a conclusão pessim ista, porém inevitável, de
que no m undo capitalista todas essas form as, tanto um as

30
a nova mulher e a moral sexual

com o outras, m arcam e deform am a alm a hum ana e co n ­


tribuem para a perda de qualquer esperança de se conse­
guir um a felicidade sólida e duradoura, num a com u n i­
dade de alm as profundam ente hum anas: no estad o in­
variável e estagnad o da psicologia contem porânea não
há solução possível para a crise sexual.
Som ente um a transform ação fundam ental da p sico ­
logia hu m ana poderá transpor a porta proibida, som ente
o enriqu ecim ento da psicologia hu m ana no potencial do
am o r p o d e tra n sfo rm a r as re la ç õ e s en tre os se x o s e
co n v e rtê -la s em relaçõ es im p reg n ad as de v erd ad eiro
amor, dotadas de um a afinidade real, em uniões sexuais
que nos tornem felizes. Porém , um a transform ação des­
se gênero exige inevitavelm ente a transform ação funda­
m ental das relações econôm ico-sociais: isto é, exige o es­
tabelecim ento do regim e com unista.
Q uais são os defeitos fundam entais, as partes so m ­
brias do m atrim ônio legal? O m atrim ônio legal está fun­
dado em dois princípios igualm ente falsos: a indissolu-
bilidad e, por um lado, e o conceito de prop riedade, da
posse absoluta de um dos cônjuges pelo outro.
A indissolubilidade do m atrim ônio legal está baseada
num a concepção contrária a toda ciência psicológica; na
invariabilidade da psicologia hum ana no transcurso de
uma longa vida. A m oral contem porânea obriga o hom em
a encontrar sua felicidade a qualquer preço e, ao m esm o
tem po, exige dele que descubra esta felicidade na prim ei­
ra tentativa, sem equivocar-se nunca. A m oral contem po­
rânea não adm ite que o hom em se equivoque na sua esco­
lha entre m ilhares de seres que o cercam . N ecessariam en­
te o hom em tem que encontrar um a alm a que se harm oni­

31
Alexandra Kolontai

ze com a sua, um segundo ú nico eu que o fará feliz no


casam ento. Q uando um ser hum ano se equivoca na sua
escolha, principalm ente se o ser que vacila e se perde na
b usca do ideal é u m a m ulher, a sociedade, tão exigente e
deform ada pela m oral contem porânea, não o acode. Pou­
co im porta à sociedade que a alm a e o coração de um a
m ulher que se equivoca, se destrocem no fragor das de­
cepções. N ão a ajudará, m as, ao contrário, a perseguirá
com fúria vingativa para, inexoravelm ente, condená-la.
A d elicad a flor da m oral sexual é um a felicidade ad ­
quirida à custa da escravidão da m ulher à sociedade. U m a
leal separação do casal é consid erad a pela atual so cied a­
de, interessada unicam en te na idéia da propriedade e não
nos d estin os da espécie, nem sequer na felicidade in d ivi­
dual, com o a ofensa m aior que se lhe pod e infligir. En tre­
ta n to , n a d a m a is c e rto , o b serv a co m g ra n d e triste z a
M eisel-H ess, do que a sem elh ança entre o m atrim ônio e
um a casa habitada. Su as m ás cond ições só são d escober­
tas após habitá-la p or algum tem po. "Se n o s vem os obri­
gados a m udar frequ entem ente de casas sem conforto e
pou co ap rop riad as a no ssas necessid ad es, sentim o-nos
com o persegu id os pela m á estrela. M as, in d iscu tivelm en­
te, a situ ação se torna m uito m ais terrível se a n ecessid a­
de nos obriga a v iver todo o resto da existência em p éssi­
m as co n d içõ es". "A transform ação das uniões am orosas
no curso da vida h u m an a" —continu a M eisel-H ess — "e
du rante o processo de evolu ção de um a individu alid ade
é um fato que terá que ser reconhecido pela sociedade
futu ra com o algo norm al e in evitável."
"A indissolubilidade do m atrim ônio legal é ainda m ais
absurda se se leva em conta que a m aioria d os casam en ­

32
a nova mulher e a moral sexual

tos se realizam às cegas, isto é, as duas partes, o h o m em e


a m ulher, só têm u m a idéia confu sa u m a da outra. N ão é
apenas o fato de que um d os cônjuges d esconheça co m ­
p letam en te a n atu reza p sico ló g ica do ou tro, m as algo
m uito m ais grave. O s esposos ignoram , ao contrair o m a ­
trim ònio legal, que será indissolúvel, se existe entre eles
um a afinid ade física, harm onia sem a qual não é possível
a felicidade.
A s noites de provas, praticad as com tanta freqü ência
na Id ade M éd ia, diz M eisel-H ess, não são de m od o al­
gum um a absurda indecência. Praticadas em outras con­
dições e tendo com o finalid ad e o in teresse da espécie e
consid erad as um m eio de assegurar a felicidade in d ivi­
dual, pod eriam , inclusive, conqu istar direito à cidadania.
O segun d o fator que envenen a o m atrim ônio legal é a
idéia de prop ried ad e, de p osse absoluta de um dos cô n ­
ju g es pelo outro. N ão pod e haver, n a realidad e, um con-
tra-sen so m aior. D ois seres, cujas alm as só têm raros p o n ­
tos de contato, têm n ecessariam ente que ad ap tar-se um
ao outro, em tod os os diversos aspectos de seu m ú ltip lo
eu. O absolu tism o da posse encerra, irrem ed iavelm ente,
a presença contínu a desses dois seres, associação que é
tão doentia para um com o para outro. A idéia da p osse
não d eixa livre o eu, não há m om ento de solidão para a
próp ria vontade e, se a isto se acrescenta a coação exercida
pela d epend ên cia econôm ica, já não fica nem sequ er um
p equ en o recanto próprio. A presença contínua, as exig ên ­
cias in evitáveis que se fazem ào ob jeto possu íd o são a
causa de com o um ardente am or se tran sform a em in d i­
ferença, essa terrível in d iferen ça que leva d entro de si
raciocínios insuportáveis e m esquinhos. C om efeito: te­

33
Alexandra Kolontai

m os necessariam ente que estar de acordo com M eisel-


H ess quando diz que uma vida em com um dem asiado
lim itada é a causa principal que faz m urchar a delicada
flo r p rim a v e ril do m a is p u ro e n tu sia sm o am o ro so .
Q uantas precauções um a alma deve ter com a outra, que
im ensas reservas de afetuoso calor são necessárias para
que se possa colher, já no outono, os frutos saborosos de
um a profunda e indissolúvel adesão entre duas pessoas!
N ão é só isso. Os fatores de indissolubilidade e pro­
priedade, fundam entos do m atrim ônio legal, exercem um
efeito nocivo sobre a alm a hum ana. Estes dois fatores exi­
gem poucos esforços psíquicos para conservar o am or de
um com panheiro de vida, porquanto se está ligado a ele,
indissoluvelm ente, por correntes exteriores. A forma atual
do m atrim ônio legal não faz, portanto, m ais que em p o­
brecer o espírito e não contribui de m odo algum para a
acum ulação na hu m anidad e de reservas desse grande
amor que foi a profunda nostalgia de toda a vida do gê­
nio russo Tolstoi.
D eform a-se, ainda m ais, a p sicologia hum ana com
outro aspecto da união sexual: a prostituição.
Pode haver algo m ais m onstruoso do que o fato am o­
roso degradado até ao ponto de se fazer dele um a pro­
fissão?
D eixem os de lado todas as m isérias sociais que vêm
unidas à prostituição, os sofrim entos físicos, as enferm i­
dades, as deform ações e a degenerescência da raça, e
detenham o-nos som ente ante a questão da influência que
a prostituição exerce sobre a psicologia hum ana. Não há
nada que prejudique tanto as alm as com o a venda força­
da e a com pra de carícias de um ser por outro com que

|34
a nova muiher e a mora! sexual

não tem nada em com um . A prostituição extingue o am or


nos corações.
A prostituição deform a as idéias norm ais dos hom ens,
em pobrece e envenena o espírito. Rouba o que é m ais
valioso nos seres hum anos, a capacidade de sentir apai-
xonadam ente o amor, essa paixão que enriquece a perso­
nalidade pela entrega dos sentim entos vividos. A prosti­
tuição deform a todas as noções que nos levam a conside­
rar o ato sexual com o um dos fatores essenciais da vida
hum ana, com o o acorde final de m últiplas sensações físi­
cas, levando-nos a estim á-lo, em troca, com o um ato ver­
gonhoso, baixo e grosseiram ente bestial. A vida psicoló­
gica das sensações na com pra de carícias tem repercus­
sões que podem produzir conseqüências m uito graves
na psicologia m asculina. O hom em acostum ado à prosti­
tuição, relação sexual na qual estão ausentes os fatores
psíquicos, capazes de enobrecer o verdadeiro êxtase eró­
tico, adquire o hábito de se aproxim ar da m ulher com
desejos reduzidos, com um a psicologia sim plista e des­
provida de tonalidades. A costum ado com as carícias sub­
m issas e forçadas, nem sequer tenta com preender a m ú l­
tipla atividade a que se entrega a m ulher am ada durante
o ato sexual. Esse tipo de hom em não pode perceber os
sentim entos que desperta na alm a da mulher. É incapaz
de captar seus m últiplos m atizes. M uitos dos dram as têm
com o causa essa psicologia sim plista com que o hom em
se aproxim a da mulher, e que foi engendrada pelas casas
de lenocinio. A prostituição estende, de m odo inevitável,
suas asas som brias tanto sobre a cabeça da m ulher livre­
m ente am ada com o sobre a esposa ingênua e am orosa e
sobre a am ante intuitivam ente exigente. A prostituição

35 I
Alexandra Kolontai

en ven en a im p lacavelm en te a felicid ad e do am or das


m ulheres que buscam no ato sexual o desfecho de uma
paixão correspondida/ harm oniosa e onipotente.6
A m ulher norm al busca no ato sexual a plenitude e a
harm onia. O hom em , pelo contrário, form ado com o está
na prostituição, que exterm ina a m últipla vibração das
sensações do amor, entrega-se apenas a um pálido e uni­
forme desejo físico que deixa em am bas as partes, insa­
tisfação e fom e psíquica. A incom preensão m útua cresce
qu anto m ais d esenvolvid a está a in d iv id u alid ad e da
m ulher quanto maiores são suas exigências psíquicas, o
que traz com o resultado um a grave crise sexual. Portan­
to, a prostituição é perigosa, pois sua influência se esten­
de m uito além de seu próprio dom ínio.
M eisel-H ess diz:
"D eixando de lado a questão da degenerescência fisio­
lógica da hum anidade, as enfermidades venéreas, o em ­
pobrecim ento físico da espécie, levaremos em conta ainda

6 C o n v é m a ssin alar q u e as co n sid eraçõ es exp o stas p o r M e isel-H ess s o ­


b re a d efo rm ação da p sico log ia m ascu lin a, d ão a ch av e de o utro p ro ­
b lem a que até agora hav ia p erm an ecid o obscuro. O p o u co costu m e
q u e os h o m en s têm d e lev ar em con sid eração a p sicolog ia fem inina - a
in cap acid ad e para co m p re e n d e r seu s sen tim en to s - não som en te os
co n d u z a n ão p re sta r a m en or aten ção à alm a da m ulher, com o vai
a in d a m u ito m ais além : c o n d u z os h o m en s a igno rar totalm ente, co m
a m ais su rp reen d en te ig n o rân cia, as sen saçõ es fisio ló g icas d a m u lh er
d u ran te o ato m ais íntim o d e suas relações. O s m éd ico s sab em , a in sa­
tisfação das m u lh eres no ato sexual p ro v o ca, freqü en tem en te, d oen ças
n erv o sas. É su rp reen d en te que a literatu ra im p reg n ad a pela p sico lo ­
gia m ascu lin a h aja d eixad o p assar em silên cio este fato q u e exp lica
toda u m a série de d ram as fam iliares e de am or. Q u an d o M au p assan t
se atrev e a abo rd ar a questão na n o v ela " U m a Vida", sua "re v e la ç ã o "
p ro v o ca um a in g ên u a su rp resa na m aio ria dos hom en s.
a nova mulher e a moral sexual

outro fator psicológico que obscurece os impulsos morais,


m ancha e deform a o sentimento erótico e impede que o
hom em e a m ulher se com preendam cada vez m enos e
não saibam gozar sem se enganar m utuam ente."
A terceira forma das relações sexuais, a união livre,
traz dentro de si, tam bém , m uitos aspectos igualm ente
som brios. As im perfeições dessa form a sexual são de um
caráter reflexo: o hom em de nossa época vê a união livre
com um a psicologia já deform ada por um a m oral falsa e
doentia, fruto do m atrim ônio legal, por um lado, e do
lúgubre abism o da prostituição, por outro. O am or livre
choca-se com dois obstáculos inevitáveis: a incapacida­
de para sentir o am or verdadeiro, essência do nosso m u n­
do individualista, e a falta de tem po indispensável para
entregar-se aos verdadeiros prazeres m orais. O hom em
atual não tem tempo para amar. N ossa sociedade, funda­
da sobre o princípio da concorrência, sobre a luta, cada
vez m ais dura e im placável, pela subsistência, para con­
quistar um pedaço de pão, um salário ou um ofício, não
deixa lugar ao culto do amor. A pobre A spásia esperará,
inutilm ente, nos dias de hoje, sobre o leito coberto de ro­
sas, o com panheiro de seus prazeres. A spásia não pode
rep artir seu leito com um hom em grosseiro, de nível
m oral indigno dela. M as o hom em m oralm ente nobre não
tem tem po para passar as noites a seu lado.
M eisel-H ess observa, com toda razão, um fato que se
dá com extraordinária freqüência: o hom em do nosso tem ­
po considera o am or-paixão com o a m aior das desgraças
que lhe pod e acontecer. O am or-p aixão é um obstáculo
para a realização dos objetivos essenciais de sua vida: a
conquista de uma posição, de um capital, de uma coloca­

371
Alexandra Kolontai

ção segura, da glória, etc. O hom em tem m ed o dos laços


de um am or forte e sincero que o separaria, possivelm en­
te, do p rin c ip a l o b jetiv o de su a v id a. A livre u n ião , no
com plicado am bien te que nos rodeia, exige p or su a vez
um a p erd a de tem p o e de fo rças m o ra is in fin ita m e n te
m aiores do que um m atrim ônio legal ou do que as carícias
com pradas.
O s encon tros ocu pam horas preciosas para os n eg ó ­
cios. A o m esm o tem po m ilhares de dem ônios am eaçam
o casal unido unicam ente pelos laços do amor. U m a ca­
sualidade é suficiente para qu e se origine um d esacor­
do m om en tâneo e, im ed iatam ente, se prod uza a sep a­
ração. O am or livre, nas cond ições atuais da socied ad e,
term ina sem p re num a separação ou num m atrim ôn io
legal.
Segundo M eisel-H ess, não nasceu ainda o hom em for­
te e consciente que seja capaz de considerar o am or com o
parte integrante da totalidade de seus objetivos vitais. Por
esta razão, o hom em atual, absorvido por sérios traba­
lhos, prefere abrir a bolsa e m anter um a am ante ou com ­
prom eter-se com um a m ulher, dando-lhe seu nom e e to­
m ando sob sua responsabilidade a carga de um a fam ília
legal. Tudo isto é m elhor do que perder um tem po tão
valioso e dilapidar suas energias nas horas entregues aos
prazeres do amor.
A m ulher, particularm ente as m ulheres que vivem de
um trabalho in dependente (este tipo de m ulher constitui
40 ou 50% , em todos os países civilizados), tem que e n ­
frentar o m esm o dilem a que o hom em : vêem -se ob riga­
das a escolher entre o am or e a profissão. A situação da
m ulher que trabalha se com plica ainda m ais com a m a-
a nova mulher e a moral sexual

tem idade. É suficiente determ o-nos um m om ento na b io­


grafía das m ulheres que se distinguiram na vida, para
convencerm o-nos do conflito inevitável entre o am or e a
m aternidade, por um lado, e a profissão e a vocação, por
outro. Talvez o m otivo pelo qual as exigências da m ulher
independente, em relação ao hom em , aum entem cada vez
m ais, seja precisam ente o fato de que esse tipo de m ulher
deposita na balança da felicidade do am or livre, além de
sua alma, seu trabalho querido, uma profissão conquis­
tada. D evido a isto, esta m ulher exige em troca, com o
com pensação por tudo a que renunciou, o m ais rico dom:
a alma do hom em .
A união livre sofre as conseqüências da ausência de
um fato r m o ral, da falta de c o n sciê n cia e um d ever
interior. N o estado atual das relações sociais, não há m o­
tivo para se acreditar que esta forma de união sexual seja
bastante forte para ajudar a hum anidade a sair da encru ­
zilhada em que se encontra a crise sexual, solução que
esperam , entretanto, os partidários do am or livre. A solu­
ção para este com plicado problem a só é possível m edian­
te uma reeducação fundamental de nossa psicologia, ree­
ducação esta que, por sua vez, só é possível por um a trans­
form ação de todas as bases sociais que cond icionam o
conteúdo moral da H um anidade. A s m edidas e reform as
pertencentes ao dom ínio da política social, que indica
M eisel-H ess com o um rem édio, não contêm no funda­
m ental nada essencialm ente novo. C orrespondem , com ­
pletam ente, às reivindicações do program a socialista: in­
dependência econôm ica da m ulher, verdadeira proteção
e segurança à m aternidade e à infância, luta contra a pros­
tituição em sua base econôm ica, supressão da noção de
Alexandra Kolontai

filhos legítim os e ilegítim os, substituição do m atrim ônio


religioso pelo m atrim ônio civil, facilm ente anulável, re­
construção fundam ental da sociedade segundo os prin­
cípios com unistas. O m érito de M eisel-H ess não fica, pois,
nas reivindicações político-sociais, que julga necessárias
e que são análogas às dos program as socialistas. O que é
verdadeiram ente essencial em sua detalhada investiga­
ção em busca da verdade sexual, é que entrou inconscien­
tem ente, sem ser socialista m ilitante, no único cam inho
de solução possível do problem a sexual. M as, todas as
reform as sociais, condições indispensáveis para as novas
relações entre os sexos, serão insuficientes para resolver
a crise sexual se, ao m esm o tem po, não se form a um a
força criadora poderosa, capaz de aum entar o potencial
de am or da hum anidade.
A perspicácia intelectual de M eisel-H ess é o que leva
esta escritora à m esm a conclusão, de m odo com pletam en­
te intuitivo.
M eisel-H ess com p reen d eu que toda a atenção da so­
cied ad e no qu e se refere à ed u cação e à form ação do
espírito, no d om ín io das relações sexuais, d eve m odifi-
car-se.
A união dos sexos, com o a entende M eisel-H ess, isto
é, a união fundam entada num a profunda identificação,
na harm oniosa consonância de corpos e de alm as, será
por m uito tem po o ideal da hum anidade futura. Porque
não se deve esquecer que o m atrim ônio baseado no ver­
dadeiro am or é algo que se dá raram ente. O am or verda­
deiro só ocorre a poucos.
M ilhões de seres não conheceram na vida seus encan­
tos. Q ual será, pois, o destino destes deserdados? Esta­

40
a nova mulher e a moral sexual

rão para sem pre cond enados ao m atrim ònio de co n v e­


niência? N ão terão outro recurso, além da prostituição?
Terão que se p rop or eternam ente o dilem a, proposto à
atual sociedade, de enfrentar o raro am or verdadeiro ou
de padecer de fom e sexual?
M eisel-H ess prossegue na sua investigação e d esco­
bre nova solução. O nde não existe o am or verdadeiro este
é substituíd o pelo am or jogo. Para que o am or v erd ad ei­
ro chegue a ser patrim ônio de toda a h u m anid ad e é p re­
ciso p assar p or d ifícil, p orém e n o b reced o ra e sco la de
amor. O am or jog o é tam bém um a escola, é um m eio de
acum u lação do potencial do am or na psicologia h u m a­
na.
Q ue será este am or jogo, no qual M eisel-H ess b aseia
tantas esperanças?
O am or jo g o , em suas diversas form as, en con tra-se
em todas as épocas da história da hum anidade. N as rela­
ções entre a antiga hetaira e seu am igo, no am or galante
da época da R enascença entre a cortesã e seu am ante p ro ­
tetor, na am izade erótica da m odista, livre com o um p á s­
saro, e seu com panheiro estudante. Em todas estas rela­
ções pod em os encontrar facilm ente os elem entos p rin ci­
p ais deste sentim ento. N ão é o Eros que a tudo devora,
que exige a plenitude e a posse absoluta, m as tam pouco
é a brutal sexualidade reduzida m eram ente ao ato fisio­
lógico. O am or jogo que nos descreve M eisel-H ess não
pode ser tam pouco o am or nascido de um a psicologia
sim plista.
O am or jogo é exigente. Seres que se aproxim am uni­
cam ente p or causa de um a sim patia m útua, que só espe­
ram um do outro a am abilidade e o sorriso da vida, não

41
Alexandra Kolontai

podem perm itir que se torture impunemente sua alma, não


podem consentir que se esqueça sua personalidade nem
que se ignore seu m undo interior. O am or jogo, que exige
dos dois seres unidos m aior atenção mútua, m ais delica­
dezas em todas as suas relações, pode acabar no homem ,
pouco a pouco, com o egoísm o profundo, que m arca hoje
em dia, indelevelmente, todos os seus sentimentos am o­
rosos. Um a atitude solícita em relação à alma do outro,
além de servir de estím ulo aos sentim entos de simpatia,
desenvolve a intuição, a sensibilidade e a delicadeza.
Em terceiro lugar, o am or jogo, por não ter com o pon­
to de partida o princípio da posse absoluta, acostum a os
hom ens a entregar à pessoa am ada a parte m ais agradá­
vel de seu eu, a parte que faz a vida m ais agradável e
harm oniosa. A dm ite M eisel-H ess que este am or jogo in i­
ciaria os hom ens num a virtude superior. Ensiná-los-ia a
não entregar-se inteiram ente, a não ser quando encon­
trassem um sentim ento constante e profundo. A tend ên­
cia atual leva-nos a atentar contra a personalidade do
outro, desde o prim eiro beijo. Estam os dispostos a entre­
gar totalm ente nosso coração, em bora o outro ainda não
sinta nenhum a atração. É necessário não esquecer nunca
que unicam ente o sagrado am or verdadeiro pode ter su ­
ficiente força para conceder direitos.
Há ainda outras vantagens no am or jogo ou am izade
erótica. Esta relação sexual ensina os hom ens a resistir à
paixão que degrada e oprim e o indivíduo. M eisel-H ess
afirma: “este ato espantoso que podem os classificar de
penetração pela violência no eu do outro, não pode dar-
se no am or jogo. O am or jogo exclui o pecado m aior do
am or: "A perda da personalidade na corrente da paixão".
a nova mulher e a moral sexual

A hum anidade contem porânea vive sob o som brio signo


da paixão, sem pre ávida a devorar o eu do outro. N o ro­
m ance de Lassw itz, um a habitante de M arte replica à
proposição de um habitante da Terra: "N este ligeiro jogo
dos sentim entos, ter ia que descer e dobrar-m e à escravi­
dão da paixão, perder m inha liberdade, descer contigo à
Terra... vossa terra é maior, talvez, m ais bela que nosso
planeta, m as eu certam ente m orreria em sua densa a t­
m osfera. Pesados com o vosso ar são vossos corações. E
eu não sou m ais que Num a ..."
A época atual caracteriza-se pela ausência da arte de
amar. O s hom ens desconhecem em absoluto a arte de
saber conservar relações am orosas, claras, lum inosas, le­
ves. N ão sabem todo o valor que encerra a am izade am o­
rosa. O am or para os hom ens de nossa época é um a tra­
gédia que destroça a alma, ou um vaudeville. É preciso
tirar a hum anidade desse atoleiro: ensinar aos hom ens a
viver horas cheias de beleza, claras, sem grandes cuida­
dos. A psicologia do hom em não estará aberta para rece­
ber o verdadeiro amor, purificado de todos os seus as­
pectos som brios, até que passe pela escola da am izade
am orosa. Cada novo am or (não nos referim os, natural­
m ente, ao ato brutal, m eram ente fisiológico) em vez de
em pobrecer a alma hum ana, contribui para enriquecê-la.
"U m coração hum ano são e rico" - diz M eisel-H ess - "não
é um pedaço de pão que dim inui à m edida que nós o
com em os". O am or é um a força que quanto m ais se con ­
som e m ais cresce. "A m ar sem pre, am ar profundam ente,
em todos os m om entos da nossa vida, am ar sem pre e cada
vez com m aior abnegação, é o destino ardente de todo
grande coração." O am or em si é uma grande força cria-

43
Alexandra Kolontai

dora. E n grand ece e enriqu ece a alm a daquele que o sen ­


te, tanto com o a alm a de quem o inspira.
Se a hu m anid ad e não tivesse o am or, sentir-se-ia rou ­
bada, deserdada e desgraçada. O am or será segu ram en ­
te o culto da hu m anidad e futura. H oje em dia o hom em
necessita, para pod er lutar, viver, trabalhar e criar, sentir-
se afirm ad o, reconhecido. O que se sente am ado sabe que
há alguém que reconhece sua personalidade, em todo seu
valor, e, precisam ente pela consciência de sentir-se afirr
m ado, nasce a suprem a alegria de viver. M as, este reco­
n h ecim ento do eu , esta vitória sobre o fantasm a am ea­
çad or da solid ão m oral, não se pode alcançar, de m odo
algu m , com a satisfação brutal do desejo fisiológico. "S ó
o sentim ento de um a total harm on ia com o ser am ado
pod e extin gu ir esta se d e ". Só o verdadeiro am or pode
nos dar a plena satisfação. Portanto, a crise sexual é m ui­
to m ais agu da qu ando as reservas do potencial do am or
são m enores, qu ando os laços sociais são m ais lim itados,
quando a p sicologia hu m ana é m ais pobre em sen tim en ­
tos de solid ariedade.
D esen volver este im prescindível potencial do amor,
educar, preparar a psicologia hu m ana para qu e esteja em
cond ições de receber o verdadeiro am or, esta é precisa­
m ente a finalidade que deve cum prir o am or jogo ou am i­
zade erótica.
Podem os dizer que o am or jogo não é m ais que um
substituto do verdadeiro amor. "Isto não é su ficiente", di­
rão ainda alguns. N este caso, responde M eisel-H ess, que
se atrevam a olhar em tom o de si e se dêem conta com o
que substituem na sociedade m oderna o verdadeiro amor!
A prostituição disfarçada de verdadeiro amor! Q u e gran­

44
a nova mulher e a moral sexual

de hipocrisia, que terríveis reservas de m entiras sexuais


se acum ulam nesse aspecto! Vejam os um exem plo da vida
tom ada ao acaso. Dois noivos se sentem possuídos pelo
m esm o desejo. A severa m oral contem porânea proíbe sua
satisfação e lhes im põe um decisivo, ainda não. Portanto,
o noivo vai à casa da prostituta, que não deseja suas carícias,
m as que tem que entregar-se a ele, enquanto a noiva se
consom e na espera da autorização legal. Seria m uito m ais
natural, e desde logo m uito m ais m oral, que estes dois se­
res, m otivad o s por um m esm o d esejo, en con trassem a
m útua satisfação de sua carne em si próprios, sem buscar
a cum plicidade de um a terceira pessoa, com pletam ente
alheia à situação que eles m esm os criaram .
A lém dos aspectos fundam entais de caráter econôm i-
co -so cia l, a p ro stitu içã o im p lica um fator p sico ló g ico
determ inan te que está profundam ente gravado no esp í­
rito hum ano: a satisfação de um a necessidade erótica sem
outra preocu pação ulterior, a liberdade de sua alm a e de
seu futuro, sem a n ecessid ad e de se colocar aos pés de
um ser interiorm ente alheio a seu eu. É necessário dar
liberdade a esse instinto natural. N ão se pod e enforcar
um enam orad o com a corda do m atrim ônio. O am or jogo
indica o cam inho a seguir. "S e querem os sér sinceros, se
n ão adm itim os a h ip ocrisia da m oral e a m entira sexual,
não há m otivo para negar a possibilid ad e de u m a so lu ­
ção sem elh an te para a h u m an id ad e colocad a em grau
su p erior da evolu ção so cia l" —diz M eisel-H ess.
D iante de um a série de reform as sociais, que M eisel-
H css assinala com o um a condição indispensável de todas
as suas deduções m orais, que delito pode haver no fato do
êxtase erótico - lançar um ser nos braços do outro?

45
Alexandra Kolontai

Finalm ente, os lim ites da am izade erótica são m uito


am p lo s e pod em e sten d er-se ain d a m ais. O co rre com
m uita freqüência que dois seres que se aproxim aram atraí­
dos por uma livre sim p atia chegu em a conhecer-se m u ­
tu am en te, ou seja, que do am or jo g o n asça o am or v erd a­
deiro. Para que isto aconteça basta criar possibilid ades
objetivas. Q uais são, pois, as dedu ções e reivindicações
práticas a que chega M eisel-H ess?
Em prim eiro lugar, a sociedade terá que acostum ar-se a
reconhecer todas as form as de união entre os sexos, m esm o
que estas se apresentem diante dela com contornos novos
e desconhecidos. M as sem pre que corresp ond am a duas
condições: que não ofereçam p erigo para a espécie e que
seu fator determ inante não seja o jugo econôm ico. O ideal
continuará sendo a união m onogàm ica baseada num am or
verdadeiro, porém sem as características de invariabílida-
de e indissolubilidade. A m udança será tanto m ais evitável
quanto m ais diversa for a psicologia do hom em . O concu­
binato ou m onogam ia sucessiva será a form a fundam ental
do m atrim ônio. Porém , ao lado desta relação sexual existe
toda u m a série de asp ectos d iversos de uniões am orosas
sem pre dentro dos lim ites da am izade erótica.
A segunda exigência é o reconhecim ento real, não so­
m ente de palavras, m as de fato, da defesa da m atern id a­
de. A sociedade tem a obrigação de estabelecer em todo
o cam inho da v id a da m ulher, de todas as form as p o ssí­
veis, p ostos de socorro que su sten tem a m ulher, m oral e
m aterialm en te, du rante o períod o de m aior resp on sab i­
lidade em su a vida.
Por ú ltim o, a fim de que as relações m ais livres não
pareçam o desenfreio total, torna-se n ecessário rever todo

46
a nova mulher e a moral sexual

o in strum ental m oral com que se equipa a m ulher soltei­


ra qu and o entra no cam inho da vida.
A ed u cação contem p orân ea som en te tende a lim itar,
na m ulher, os sen tim en tos de am or. Esta ed u cação é a
causa dos corações destroçados, das m ulheres d esesp e­
radas, que se afogam na prim eira tem pestade. É preciso
que se abram para a m ulher as m últiplas portas da vida.
É preciso endu recer seu coração e forjar su a vontade. Já é
hora de ensinar à m ulher a não con sid erar o am or com o
a única base de sua vid a e sim com o u m a etapa, com o
um m eio de revelar seu verdadeiro eu. É necessário que
a m ulh er aprend a a sair dos conflitos do am or, não com
as asas qu ebradas e sim com o saem os hom ens, com a
alm a fortalecida. É n ecessário que a m ulh er aceite o lem a
de G oethe: “Saber desprezar o passad o no m om ento em
qu e se quer e receber a vida com o se acabasse de n ascer".
A fortu n ad am en te, já se d istingu em os novos tip os fem i­
ninos, as m u lh eres celibatárias para as quais os tesouros
que a vida p od e oferecer n ão se lim itam ao amor.
N o d om ín io dos sen tim en to s do am or esse novo tipo
de m u lh er não p erm ite qu e as co rren tes da vid a sejam
as que dirijam seu barco: o lem e está n as m ãos do tim o ­
n eiro exp erim en tad o , sua v o n tad e en rijeceu na luta p ela
su b sistên cia. A v elh a exclam ação : "É u m a m u lh er com
p a ssa d o !", é agora g lo sad a pela celib atária da segu in te
form a: "E sta m u lh er n ão tem passad o. Q u e triste d e sti­
n o o se u !" É certo qu e na realid ad e o n o v o tipo de m u ­
lh er ain d a não existe em gran d e nú m ero . É ig u alm en te
certo que a nova era sexu al, fruto de u m a o rgan ização
m ais p erfeita da socied ad e, não co m eçará im ed iatam en ­
te. A d ep rim en te crise sexu al não p o d erá resolv er-se de

47
Alexandra Kolontaì

um a só vez, não pod erá deixar o cam inho livre à m oral


do fu tu ro, sem luta. M as, é igu alm ente certo que o ca­
m in h o já foi en con trad o e que ao longe b rilh a, de par
em par, a porta desejada.
O livro de M eisel-H ess nos facilita o fio de A riadne
no labirinto com plexo das relações sexuais, nos dram as
psicológicos. N ão falta m ais nada do que u tilizar o precio­
so conjunto de pensam entos que nos oferece e extrair as
conseqüências em harm onia com as tarefas essenciais da
classe que se eleva ao prim eiro posto na sociedade. N os­
sa tarefa será, portanto, após deixar de lado pequ enos
detalhes sem im portância, depois de sanar inexatidões
insignificantes, b u scar tam bém nesse problem a, no do­
m ínio das relações entre os sexos, na psicologia do amor,
os princípios da nova cultura em m archa, cujo triunfo se
aproxim a, inevitavelm ente, isto é, os princípios da cultu ­
ra proletária.
3

as relações entre os sexos

ntre os m últiplos problem as que perturbam a hum ani­


E dade, ocupa, indiscutivelm ente, um dos prim eiros pos­
tos, o problem a sexual. N ão há uma só nação, um só povo
em que a questão das relações entre os sexos não adquira
cada dia um caráter m ais violento e doloroso. A hum ani­
dade contem porânea passa por um a crise sexual aguda.
U m a crise que se prolonga e que, portanto, é m uito m ais
grave e difícil de resolver.
No cu rso da história da hu m anidad e não en con trare­
m os, seguram ente, outra ép oca na qual os problem as se ­
xuais tenham ocupado, na vida da sociedade, um lugar tão
importante, atraindo como por arte de magia, as atenções de
m ilhões de hom ens. Em nossa época, m ais do que em n e­
nhum a outra da história, os dramas sexuais constituem fon­
te inesgotável de inspiração para os artistas de todos os gê­
neros da Arte.
Alexandra Kolontai

C om o a terrível crise sexual se prolonga, seu caráter


crônico ad qu ire m aior gravid ade e m ais in solú vel nos
parece a situação presente. Por isto, a hu m anidad e con­
tem porânea lança-se ardentem ente sobre todos os m eios
conjecturáveis que tornem possível um a solução para o
m aldito problem a. M as, a cada nova tentativa de solu­
ção, m ais se com plica o com plexo em aranhado das rela­
ções entre os sexos, dando-nos a im pressão de que seria
im possível d escobrir o ú nico fio qu e nos serviria para
desatar o com plicado nó. A hum anidad e, atem orizada,
precipita-se de um extrem o ao outro. M as, o círculo m á­
gico da qu estão sexual perm anece tão herm éticam ente
fechado com o antes.
O s elem en tos co n serv ad o res da socied ad e con clu em
que é im prescindível voltar aos felizes tem pos passados,
restabelecer os velhos costum es familiares, dar novo im pul­
so às norm as tradicionais da m oral sexual. "É preciso des­
truir todas as proibições hipócritas prescritas pelo código da
m oral sexual corrente. É chegado o m om ento de se abando­
nar esta velharia inútil e incôm oda... A consciência indivi­
dual, a vontade individual de cada ser é o único legislador
em um a questão de caráter tão ín tim o" - ouve-se esta afir­
m ação nas fileiras do individualism o burguês. "A solução
para os problem as sexuais só poderá ser encontrada com o
estabelecim ento de um a nova ordem social e econôm ica,
com uma transform ação fundam ental de nossa atual socie­
d ad e" —afirm am os socialistas. Precisam ente, porém , este
esperar pelo am anhã não indica que tam pouco nós conse­
guim os apoderar-nos do fio condutor?
A própria história das sociedades hum anas nos ofere­
ce o cam inho que devem os segu ir em nossa investiga­
a nova mulher e a moral sexual

ç ã o ; e q u e n o s é a in d a in d ic a d o p e la h is t o r ia da
in interrupta luta de classes e dos diversos grupos sociais,
opostos por seus interesses e suas tendências.
N ão é a p rim eira vez que a H u m an id ad e atravessa
um p erío d o d e agu da crise sexual. N ão é a p rim eira vez
qu e as ap aren tem en te firm es e claras p rescrições da m o­
ral cotid iana, no dom ínio da união sexual, são destru ídas
pelo aflu xo de n o vos id eais sociais. A h u m an id ad e p as­
sou p o r u m a é p o ca de crise se x u a l v e rd a d e ira m e n te
agu d a d u ran te os p erío d o s do R en ascim en to e da R e­
form a, no m om en to em que u m a form id ável m o d ifica ­
ção social relegava a segu n d o p lan o a aristocracria feu ­
dal, orgu lh osa de sua nobreza, acostu m ad a ao dom inar
sem lim itações, e em seu lu gar em ergia u m a n o v a força
social, a b u rg u esia ascen d en te, que crescia e se d esen ­
volv ia ca d a v ez m ais, com m aio r im p u lso e pod er. O
cód ig o da m oral sexu al do m u n d o feu dal, n ascid o no
seio da so cied ad e aristocrática, com u m sistem a de eco ­
n o m ia com u n al e b asead o n o s p rin cíp io s au to ritário s de
c a sta s, d e v o ra v a a v o n ta d e in d iv id u a l d os m em b ro s
dessa so cied ad e que tentavam p erm an ecer isolad os. O
velho cód igo m oral en trav a em choqu e com novos p rin ­
cíp ios, que im p u n h am à classe b u rg u esa em form ação.
A m oral sexual d a nova b u rgu esia b aseava-se em p rin ­
cíp ios rad icalm en te op o sto s aos p rin cíp io s m orais m ais
essen ciais do cód ig o feu dal. Em su b stitu ição ao p rin cí­
pio de castas, ap arecia u m a severa in d ivid u alização: os
estreitos lim ites da p equ en a fam ília b u rgu esa. O fator
de colab oração, essen cial n a socied ad e feu d al, caracte­
rística de su a econ om ia com u n al, tan to com o da e co n o ­
m ia region al, era su b stitu íd o pelo p rin cíp io da concor-
Alexandra Kolontai

rência. O s ú ltim o s vestígios de idéias com u n ais, p róp rias


dos d iv erso s grau s de e v o lu ção das castas, foram u ltra ­
p assad o s pelo triu n fan te p rin cíp io da p ro p ried ad e p ri­
v ad a. A h u m a n id a d e, p erd id a d u ra n te o p ro ce sso de
tran sição , ficou em d ú v id a, d u ran te v ários sécu lo s, e n ­
tre os dois có d ig o s sexu ais, de e sp írito tão d iv erso, e p e r­
m an eceu an sio sa p or ad ap tar-se à situ ação , até o m o ­
m en to em qu e a v id a tran sform ou as v elh as n o rm as, al­
can çan d o , p elo m en os, u m a form a h arm o n io sa, u m a so ­
lu ção q u an to ao asp ecto extern o .
P o rém , d u ran te esta ép oca de tran sição , tão viv a e
ch eia de co lo rid o , a crise sexu al, ap esar de rev estid a de
caráte r crítico , n ão se ap resen to u de u m a fo rm a tão g ra­
ve e a m eaçad o ra co m o em n o ssa ép oca. Isto se d eveu ao
fato de qu e, d u ran te os g lo rio so s dias d o R en ascim en to ,
d u ran te aq u ele n o v o sécu lo, ilu m in ad o p ela n o v a c u l­
tu ra e sp iritu al, qu e coloria o ag o n izan te m u n d o d a Id a ­
de M éd ia, p obre d e co n teú d o , ap enas um a p arte re la ti­
v a m en te red u zid a da so cie d a d e e x p e rim e n to u a crise
sexu al. O cam p esin ato , cam ad a social m ais c o n sid e rá ­
v el da ép o ca, do p on to de vista q u an titativ o , sofreu as
co n se q ü ên cia s da crise sexu al de fo rm a in d ireta, q u an ­
do, p o r len to p ro cesso secu lar se tran sfo rm av am as b a ­
ses e co n ô m icas em que esta classe se fu n d am en tav a, isto
é, u n icam en te à m ed id a em que ev o lu íam as relações
e co n ô m ica s. A s d u as ten d ên cias o p o sta s lu tav am nas
cam ad as su p erio res da socied ad e. N e ste terren o, e n fre n ­
ta v a m -se os id eais e as n o rm as das d u as co n cep çõ es d i­
v e rsa s d a so cied ad e. E era on de, p recisam en te, a crise
sex u al, cad a vez m ais g rav e e am eaçad o ra, fazia suas
v ítim as. O s cam p o n eses, rebeld es a q u alq u er in ov ação,

52
a nova mulher e a moral sexual

classe ap eg ad a a seus p rin cíp io s, co n tin u av am a p o ia n ­


d o -se n o s s u s te n tá c u lo s d as tra d iç õ e s e o c ó d ig o d a
m oral se x u a l tra d icio n a l p erm an ecia in alteráv el. Só se
tran sfo rm av a, n ã o se ab ran d av a. A d ap tav a-se às n o v as
co n d içõ es d a v id a e co n ô m ica, sob a p ressão da g ran d e
n ecessid ad e. A crise sexu al, d u ran te a lu ta en tre o m u n ­
do b u rg u ês e o m u n d o feu d al, n ão afetou a classe trib u ­
tária. E m ais, ao arru in ar-se, as trad içõ es ap eg av am -se
à classe cam p o n esa co m m aio r força. A p esar d e tod as
as te m p e stad e s que d esab av am sob re su a cab eça, qu e
ab alav am até o solo que p isav am , a classe cam p o n esa,
em geral, e p articu larm e n te , os ca m p o n eses ru sso s te n ­
taram con servar, d u ran te sécu lo s e sécu lo s, em sua for­
m a p rim itiv a , os p rin c íp io s e sse n cia is de seu có d ig o
m o ral sexu al.
O p rob lem a de nossa é p o ca ap resenta um asp ecto to ­
talm ente d istinto. A crise sexual n ão p erd oa sequer a cla s­
se cam p on esa. C om o d oen ça in fecciosa, não recon h ece
nem grau s, nem h ierarqu ias, contam in a os p alácio s, as
ald eias e os b airros op erários, on d e vivem am ontoad os
m ilhares de seres. P en etra nos lares b u rgu eses, abre ca­
m inh o até à m iserável e solitária aldeia russa, elege suas
vitim as, tan to entre os hab itan tes d a cid ad e provinciana
bu rgu esa da Eu rop a, qu anto nos ú m id os sótãos, on d e se
am on to a a fam ília op erária, e nas en egrecid as choças do
cam p onês. Para a crise sexu al não há obstácu los n em fer-
rolho. É um profu ndo erro acreditar qu e a crise sexu al só
alcança os rep resen tan tes das classes que têm u m a p o si­
ção econôm ica m aterialm ente segura. A ind efin id a in qu ie­
tação da crise sexual franqu eia, cada vez com m aio r fre­
qu ên cia, a porta das habitações o p erárias, cau san d o tris-

53
Alexandra Kolontai

tes dram as, que por sua intensidade de dor, n ão te m nada


a d ever aos conflitos p sicológicos do m u n d o b u rg u ês.
Porém , ju stam en te porque a crise sexual não ataca so­
m ente os interesses dos que tudo possuem , p recisam en ­
te porque estes problem as sexuais afetam tam b ém um a
classe social tão num erosa com o o p roletariad o d e nos­
sos tem pos, é incom preensível e im perdoável q u e esta
questão vital, essencialm ente violenta e trágica, seja con­
siderada com tanta indiferença. Entre as m ú ltip las idéias
fundam entais que a classe trabalhad ora d eve lev ar em
conta em sua luta para a conquista da so cied ad e futura,
deve estar, necessariam ente, o estabelecim ento d e rela­
ções sexuais m ais sadias e que, portanto, to m e m a h u ­
m anidad e m ais feliz.
É im perdoável nossa atitude de indiferença d ian te de
u m a d as tarefas essen ciais da classe tra b a lh a d o ra . É
in explicável e injustificável que o vital p roblem a sexual
seja relegado, hipócritam ente, ao arquivo das qu estões
pu ram ente privadas. Por que negam os a este p roblem a o
auxílio da energia e da atenção da coletividade? A s rela­
ções entre os sexos e a elaboração de um código sexual
que regulam ente estas relações aparecem na história da
hu m anidad e, de m aneira invariável, com o um d os fato­
res da luta social. N ada m ais certo do que a influência
fundam ental e decisiva das relações sexuais de um g ru ­
po social e determ inado no resultado da luta d essa classe
com outra, de interesses opostos.
O dram a da hum anidade atual é desesperador porque,
enquanto diante de nossos olhos são destruídas as form as
banais de união sexual e são desprezados os princípios
que as regiam , das cam adas m ais baixas da sociedade se

54
a nova mulher e a moral sexual

elevam frescos aromas desconhecidos, que nos fazem con­


ceber esperanças risonhas sobre um a nova form a de vida
e im pregnam o espírito hum ano com a nostalgia de ideais
futuros, m as cuja realização não parece possível- Nós, ho­
mens do século em que dom ina a propriedade capitalista,
de um século onde transbordam as agudas contradições
de classe; nós, hom ens im buídos da m oral individualista,
vivem os e pensam os sob o funesto sím bolo de invencível
alheiam ento m oral. A terrível solidão que o hom em sente
nas im ensas cidades populosas, nas cidades m odernas tão
irrequietas e tentadoras; a solidão, que não é dissipada pela
com panhia de am igos e com panheiros, é que o im pulsio­
na a buscar, com avidez doentia, a sua ilusória alm a gê­
m ea, num ser do sexo oposto, visto que só o am or possui o
m ágico poder de afugentar, em bora m om entaneam ente,
as angústias da solidão.
Em nenhu m a outra época da história os hom ens sen­
tiram com tanta intensidade a solidão m oral. N ecessaria­
m ente tem que ser assim. A noite é m uito m ais im p en e­
trável quando ao longe vem os brilhar um a luz. O s h o ­
m ens individualistas de nossa época, unidos por débeis
laços à com unidade ou a outras individualidades, vêem
brilhar ao longe um a nova luz: a transform ação das rela­
ções sexuais m ediante a substituição do cego fator fisio­
lógico pelo novo fator criador da solid ariedade, da ca­
m aradagem .
A m oral da propriedade in dividualista de nossos tem ­
pos com eça a afogar os hom ens. O hom em contem p orâ­
neo não se contenta em criticar as relações entre os sexos,
em negar as form as exteriores prescritas pelo código da
m oral vigente. Sua alm a deseja a renovação da essência

55
Alexandra Kolontai

das relações sexuais, deseja ardentem ente encontrar o ver­


dadeiro amor, essa grande força confortad ora e criadora
que é a única capaz de afugentar a solidão de qu e p ad e­
cem os in d ivid u alistas contem porâneos. Se é certo que a
crise sexual está cond icionada em suas três partes pelas
relações externas de caráter econôm ico-social, não é m e­
nos certo que a outra qu arta parte de sua intensidade é
devida, à nossa refinada psicologia in d ivid u alista, que
com tanto cuidado a dom inante ideologia b urgu esa cu l­
tivou. A h u m anid ad e contem porânea, com o disse, acer­
tadam ente, M eisel-H ess, é m uito pobre em potencial de
amor. C ada um d os sexos bu sca o outro com a única es­
p erança de consegu ir a m aior satisfação possível de p ra­
zeres espiritu ais e físicos para si. C ada um utiliza o outro
co m o sim p les in stru m en to. O am an te ou o n o iv o n ão
p en sa nos sentim entos, no trabalho psicológico qu e se
efetu a na alm a da m u lh er am ada.
Talvez não haja nenhum a ou tra relação hu m ana com o
as relações entre os sexos, na qual se m anifeste com tanta
in ten sid ad e o individu alism o grosseiro que caracteriza
nossa época. A bsu rdam ente se im agina que basta ao h o ­
m em , para escap ar à solidão m oral que o rodeia, o amor,
exigir seus direitos sobre a outra pessoa. Espera assim ,
unicam ente, obter esta sorte rara: a harm onia da afinid a­
de m oral e a com preensão entre dois seres. N ós, os in d i­
víduos dotados de u m a alm a que se fez grosseira pelo
constan te culto de nosso eu, crem os que p od em os co n ­
qu istar sem nenhum sacrifício a m aior das sortes hu m a­
nas, o verdadeiro am or, não só para nós, com o tam bém
para nossos sem elhantes. C rem os poder conqu istar isso
sem d ar em troca a nossa própria personalidade.

56
a nova mulher e a moral sexual

P reten d em os co n q u istar a totalid ad e da alm a do ser


am ad o m as, em com p en sação , som os in cap azes de res­
p e ita r a m ais sim ples fórm u la do am or: acercarm o-n os
do ou tro disp ostos a d isp en sar-lh e todo o gênero de co n ­
sid eraçõ es. E sta sim p les fórm u la nos será u n icam en te
in cu lcad a p elas n o v as relações entre o s sexos, relações
que já com eçaram a se m an ifestar e qu e estão b asead as
tam bém , em dois p rin cíp io s novos: lib erd ad e absolu ta,
por um lad o , e igu ald ad e e v erd ad eira so lid aried ad e en ­
tre co m p an h eiros, p o r outro. E n tretan to , por enqu anto,
a h u m an id ad e tem que sofrer, ainda, a solid ão m oral e
não h á o u tro rem éd io sen ão so n h a r com u m a ép o ca
m elh or na qual todas as relações h u m an as se caracteri­
zem p o r sen tim en to s de solid aried ad e, qu e serão p o ssí­
veis p or cau sa das novas cond ições da existên cia. A cri­
se sexu al é in so lú v el sem que haja u m a tran sform ação
fu n d am en tal da p sico lo g ia h u m an a; a crise sexu al só
p od e ser v en cid a pela acu m u lação de p oten cial de am or.
M as, essa tran sfo rm ação p síq u ica d ep en d e c o m p le ta ­
m ente da reorgan ização fu n d am en tal das relações e c o ­
n ô m icas sobre os fu n d am en tos co m u n istas. Se recu sar­
m os esta velha verd ad e, o p rob lem a sexual não terá s o ­
lu ção.
A pesar de todas as form as de u nião sexual qu e a h u ­
m anidad e experim enta hoje em dia, a crise sexual não se
resolveu em nenhum lugar. N ão se conheceu em n en h u ­
m a época da história tantas form as diversas de união entre
os sexos. M atrim ônio indissolúvel, com u m a fam ília s o ­
lid am ente constituída, e a seu lado a união livre, p assa­
geira; o adultério conservado no m aior segredo, ao lado
do m atrim ônio e da vida em com um de u m a m oça so l­

57
Alexandra Kolontai

teira com o seu am ante; o m atrim ônio por trás da Igreja,


o m atrim ônio de dois, o m atrim ônio triângulo e, inclusi­
ve, a form a com plicada do m atrim ônio de quatro, sem
con tar as m últiplas variantes da prostituição. Ao lado
destas form as de união, entre os cam poneses e a pequ e­
na burgu esia, encontram os vestígios dos velhos costu ­
m es de casta, m esclados com os princípios em decom po­
sição da fam ília burgu esa e individualista; a vergonha
do adultério, a vida em concubinato entre o sogro e a nora
e a liberdade absoluta para a jovem solteira. Sem pre a
m esm a m oral dupla. As form as atuais de união entre os
sexos são contraditórias e com plicadas, de tal m odo, que
nos interrogam os com o é possível que o hom em que con ­
servou em sua alm a a fé na firm eza dos princípios m o­
rais possa continuar adm itindo essas contradições e sal­
var esses critérios m orais irreconciliáveis, que necessaria­
m ente se destróem um ao outro. Precisam ente, o trab a­
lho a realizar consiste em fazer com que surja essa nova
m oral: é preciso extrair do caos as norm as sexuais con ­
traditórias da época presente, as prem issas dos princípios
que correspondem ao espírito da classe revolucionária
em ascensão.
A lém do in dividualism o extrem ado, defeito fu n d a­
m ental da psicologia da época atual, de um egocentrism o
tran sform ad o em culto, a crise sexual agrava-se m uito
m ais com outros dois fatores da psicologia contem porâ­
nea: a idéia do direito de propriedade de um ser sobre o
outro e o preconceito secular da desigualdade entre os
sexos em todas as esferas da vida.
A idéia da propriedade inviolável do esposo foi culti­
vada com todo o esm ero pelo código m oral da classe bur-

58
a nova mulher e a moral sexual

guesa, com sua fam ília in d ivid u alista encerrad a em si


m esm a, construída totalm ente sobre as bases da prop rie­
dade privada. A burguesia conseguiu com perfeição in o­
cular essa idéia na psicologia hum ana. O conceito de p ro ­
priedad e dentro do m atrim ônio vai hoje em dia m uito
além do que ia o conceito da prop riedade nas relações
sexuais do código aristocrático. N o curso do longo p erío ­
do histórico que transcorreu sobre o signo do princípio
de casta, a idéia da posse da m ulher pelo m arido (a m u ­
lher carecia de direitos de prop riedade sobre o m arido)
não se estendia além da posse física, m as sua personali­
dade lhe pertencia com pletam ente.
O s cavaleiros da Idade M édia chegavam inclusive a
reconhecer nas suas esposas o direito de ter adm iradores
platônicos e de receber o testem unho desta adoração pe­
los cavaleiros e m enestréis. O ideal da posse absoluta, da
posse não só do eu físico, m as tam bém do eu espiritual
por parte do esposo, o ideal, que adm ite um a reivin d ica­
ção de direitos de propriedade sobre o m undo espiritual
e m oral do ser am ado, é que se form ou na m en te e foi
cultivado pela burguesia com o objetivo de reforçar os
fundam entos da fam ília, para assegurar sua estabilidade
e sua força durante o período de luta para conquista de
seu p red om ín io social. Esse ideal n ão só o recebem os
com o herança, com o tam bém chegam os a pretender que
seja considerado um im perativo m oral indestrutível. A
idéia da propriedade se estende m uito além do m atri­
m ônio legal. É um fator inevitável que penetra até na
união am orosa m ais livre. O s am antes de nossa época,
apesar de seu respeito teórico pela liberdade, só se satis­
fazem com a consciência da fid elid ad e p sicoló gica da

59
Alexandra Kolontai

pessoa am ada. Com o fim de afugentar o fantasm a am ea­


çador da solidão, penetram os, violentam ente, n a alm a do
ser am ado, com uma crueldade e um a falta de delicade­
za que será incom preensível à hum anidade futura. Da
m esm a form a pretend em os fazer valer nossos direitos
sobre o seu eu espiritual m ais íntim o. O am ante contem ­
porâneo está disposto a perdoar m ais facilm ente ao ser
querido um a infidelidade física do que um a infidelidade
m oral e pretende que lhe pertença cada partícula da alm a
da pessoa am ada, que se estenda m ais além dos lim ites
de sua união livre. C onsidera tudo isto com o um desper­
dício, com o um roubo im perdoável de tesouros que lhe
pertenciam , exclusivam ente e, portanto, com o um saque
com etido à sua revelia.
Tem a m esm a origem a absurda indelicadeza que co ­
m etem constantem ente dois am antes com relação a uma
terceira pessoa. Todos tivem os ocasião de observar um
fato curioso que se repete continuam ente: dois am antes,
que m al tiveram tem po de conhecer-se em suas relações
m últiplas, apressam -se a estabelecer seus direitos sobre
as relações sexuais do outro e intervir no m ais sagrado e
no m ais íntim o de sua vida. Seres que ontem eram dois
estranhos, hoje, unicam ente porque os unem sensações
eróticas, apressam -se a apossar-se da alm a do outro, a
dispor da alm a desconhecida e m isteriosa sobre a qual o
passado gravou im agens inapagáveis e a instalar-se no
seu interior com o se estivesse em sua própria casa. Esta
idéia da posse recíproca de um casal am oroso estende
seu dom ínio de tal form a que pouco nos surpreende um
fato tão anorm al quanto o seguinte: dois recém -casados
viviam até ontem cada um com a sua própria vida; no
a nova mulher e a moral sexual

dia seguinte à sua união, cada um deles abre sem o m e­


nor escrú pu lo a correspondência do outro inteirando-se
conseqüentem ente, do conteúdo da carta procedente de
um a terceira pessoa que só tem relação com um dos es­
posos e se converte em propriedade com um . U m a inti­
m idade desse gênero só se pode adquirir com o resultado
de um a verdadeira união entre as alm as no curso de um a
longa vida em com um , de am izade posta à prova. O que
se busca, em geral, é legitim ar essa intim idade, b asean ­
do-se na idéia equivocada de que com unhão sexual en­
tre dois seres é suficiente para estender o direito de p ro ­
priedade sobre o ser m oral da pessoa am ada.
O segundo fator que deform a a m entalidade do h o­
m em contem porâneo e que agrava a crise sexual é a idéia
de desigualdade entre os sexos, desigualdade de direitos
e d esigu ald ad e no valor de suas sensações p sicofisio-
lógicas. A m oral dupla, característica do código burguês
e do código aristocrático, envenenou durante séculos a
psicologia de hom ens e m ulheres e tornou m uito m ais
difícil livrar-se de sua influência venenosa do que das
idéias referentes à prop riedade de um esposo sobre o
outro, herdadas da ideologia burguesa. A concepção de
desigualdade entre os sexos, até no dom ínio psicofisio­
lògico, obriga à aplicação constante de m edidas diversas
para atos idênticos, segundo o sexo que os haja realiza­
do. U m hom em de idéias avançadas no cam po burguês,
que soube desde algum tem po superar as perspectivas
do código da m oral em uso, será incapaz de subtrair-se à
influência do m eio am biente e em itirá um juízo com ple­
tam ente distinto, segundo s e trate do hom em ou da m u­
lher. Basta um exem plo vulgar: im aginem os que um in­

611
Alexandra Kolontai

telectu al burgu ês, um cientista, u m político, um hom em


de ativid ad es sociais, ou seja, u m a personalid ad e, se ena­
m ore de su a cozin heira {fato que, aliás, se dá com b as­
tan te freqüência) e chegu e, in clusive, a casar-se com ela.
M od ificará a socied ad e burgu esa p or este fato su a con­
duta em relação à p ersonalid ad e d esse hom em ? P orá em
qu estão sua p ersonalid ad e? D u vid ará de suas qualida­
d es m orais? N atu ralm en te, não . A g ora v ejam o s ou tro
exem p lo: u m a m u lh er pertencente à socied ad e b u rg u e­
sa, um a m ulh er respeitável, considerada, u m a p ro fesso ­
ra, m éd ica ou escritora; um a m ulher, em sum a, com p er­
son alid ad e, se enam ora de um criad o e chega ao clím ax
do escân d alo, consolidando esta questão com um m atri­
m ôn io legal. Q ual será a atitude da sociedade burgu esa
em relação a esta p essoa até agora respeitad a? A so cied a­
de, natu ralm en te, a m ortificará com seu desprezo. M as,
será m uito m ais terrível se seu m arido, o criad o, possui
um a bela fisionom ia e outros atrativos de caráter físico.
N ossa hip ócrita sociedade burgu esa ju lgará sua escolha
da seguinte form a: até onde desceu essa m ulher?
A socied ad e bu rgu esa não pod e perdoar a m ulher que
se atreve a dar à escolha do m arido um caráter individual.
Segu nd o a tradição herd ad a dos costu m es de casta, a so­
cied ad e pretend e que a m ulher continu e levand o em co n ­
ta, no m om en to de entregar-se, um a série de con sid era­
ções de graus e hierarqu ias sociais, a respeito do m eio
fam iliar e dos interesses da fam ília. A sociedade b u rg u e­
sa não pod e consid erar a m ulher independente da célula
d a fam ília; é-lh e co m p letam en te im p o ssív el ap reciá-la
com o p ersonalid ad e fora do círculo estreito das virtu des
e deveres fam iliares.

62
a nova mulher e a moral sexual

A sociedade contem porânea vai m u ito m ais longe que


a ordem antiga na tutela que exerce sobre a m ulher. N ão
só lhe p rescreve casar-se u nicam en te com hom ens d ig­
nos dela, com o lhe proíbe, inclusive, que chegu e a am ar
um ser que lhe é socialm en te inferior. E stam os a co stu ­
m ados a ver com o hom ens, de nível m oral e intelectual
m uito elevado, escolhem para com panh eira de vida um a
m u lh er in significante e vazia, sem nen hu m valor com ­
parad o ao valor do esposo. A preciam os este fato com o
com p letam en te norm al e que, portanto, não m erece se ­
quer nossa consideração. Tudo que pod e su ced er é que
os am igos "lam en tem que Ivan Ivanitch tenh a se casado
com um a m ulh er in su p o rtáv el". O caso varia tratan d o-
se de u m a m ulher. Então, nossa in d ign ação não tem lim i­
tes e a exp ressam os com frases com o a seguinte: "C o m o
é possível que um a m u lh er tão in teligente com o M aria
Petrovna possa am ar um a nu lid ade assim !... Terem os que
p or em dú vida sua in teligên cia..."
Q u e d eterm ina essa m aneira diferente de ju lg ar as co i­
sas? A que prin cípio obed ece u m a apreciação tão co n tra­
ditória? Essa diversid ad e de critérios tem origem na idéia
da d esigu ald ad e entre os sexos, idéia que tem sid o in cu l­
cada na hu m anid ad e durante séculos e séculos e que aca­
bou p or ap od erar-se de n o ssa m en ta lid ad e, o rg á n ic a ­
m ente. E stam os acostu m ados a valorizar a m ulher, não
com o p ersonalid ad e, com qu alidades e defeitos in d iv i­
du ais, independente de suas sensações p sicofisiológicas.
Para nós, a m ulher só tem valor com o acessório do h o ­
m em . O hom em , m arido ou am ante, projeta sobre a m u ­
lher sua luz; é a ele e não a ela que tom am os em con sid e­
ração com o o verdadeiro elem ento d eterm inan te da es-

63
Alexandra Kolontai

tin tu ra espiritual e m oral da m ulher. Em troca, quando


valorizam os a p erson alid ad e do hom em , fazem os p o r
antecipação um a total abstração de seus atos no que diz
respeito às relações sexuais.
A personalidade da m ulher, pelo contrário, valoriza­
se em relação à sua vida sexual. Este m odo de apreciar o
valor de um a personalidade fem inina deriva do papel
que representou a m ulher durante séculos. A revisão de
valores, neste dom ínio essencial, só se faz, ou m elhor di­
zendo, só se indica, de m odo gradual. A atenuação d es­
sas falsas e hipócritas concepções só se realizará com a
transform ação do papel econôm ico da m ulher na socie­
dade, com sua entrada nas fileiras do trabalho.
O s três fatores fundam entais que deform am a p sico­
logia hu m ana são os seguintes: o egocentrism o extrem a­
do, a idéia do direito de propriedade dos esposos entre si
e o conceito da desigualdade entre os sexos no aspecto
psicofisiològico. Esses três fatores são os que travam o
cam inho que cond uz à solução do problem a sexual. A
hu m anidad e não encontrará solução para este problem a
até que haja acum ulado em sua psicologia suficientes re­
servas de sensações depuradas, até que se haja apodera­
do de sua alm a o potencial do amor, até que o conceito
da liberdade no m atrim ônio e na união livre seja um fato
consolidado, em sum a, até que o princípio da cam arad a­
gem h aja triu n fad o sobre os conceitos trad icion ais de
d esigu aldade e de subordinação nas relações entre os se­
xos. Sem um a reconstrução total e fundam ental da p sico­
logia hu m ana é insolúvel o problem a sexual.
M as, não será essa condição prévia um a utopia des­
provida de base, utopia na qual os idealistas sonhadores
a nova mulher e a moral sexual

baseiam suas considerações ingênuas? Tentem os au m en­


tar o potencial de am or da hum anidade. A caso os sábios
de todos os povos, desde Buda e C onfúcio até C risto, não
se entregaram desde tem pos rem otos a essa tarefa?
Entretanto, há alguém que creia que o p otencial do
am or aum entou na hum anidade? R eduzir a questão da
crise sexual a u topias desse tipo, por m uito bem intencio­
nadas que sejam , não significará praticam ente um reco­
nhecim ento de im potência e um a renúncia à b u sca de
soluções possíveis?
Vejamos se isto é certo. A reeducação fundam ental do
ser hum ano no dom ínio das relações sexuais não é algo
im possível de se conseguir. A reeducação é possível por­
que não é algo que esteja em contraposição com a vida
real. P recisam en te, nos m om en tos atuais, ob servam os
com o se inicia um poderoso deslocam ento social e econô­
m ico, suficiente para engendrar novas bases de vida no
cam po dos sentim entos e que, pelas condições que surgi­
ram , estão de acordo com as exigências assinaladas acim a.
N a sociedade atual avança um novo grupo social que
tenta ocupar o prim eiro posto e deixar de lado a burgu e­
sia, com sua ideologia de classe e seu código de m oral
sexual individualista. Esta classe ascendente, de vangu ar­
da, leva necessariam ente em seu seio os germ ens de n o ­
vas relações entre os sexos, relações que, forçosam ente,
estarão ligadas a seus objetivos sociais de classe.
A com plexa evolução das relações econôm ico-sociais,
que se verifica diante de nossos olhos, que transtorna to­
das as nossas concepções sobre o papel da m ulher na vida
sexual e destrói os fundam entos da m oral sexual burgu e­
sa, traz consigo dois fatos que, à prim eira vista, parecem

RU
Alexandra Kolontai

contraditórios. Por um lado, observam os os esforços in­


fatigáveis da hu m anidad e para adaptar-se às novas con­
dições da econom ia social transform ada, esforços que ten­
dem ou a conservar as form as antigas, dando-lhe um novo
conteú do (m anutenção da form a exterior do m atrim ônio
indissolúvel e m onógam o, m as ao m esm o tem po, o reco­
nhecim ento de fato da liberdade dos esposos), ou ao con ­
trário a aceitação de novas form as que tragam em seu
interior, ao m esm o tem po, todos os elem entos do código
m oral do m atrim ônio burguês (a união livre na qual o
direito de propriedade dos dois esposos unidos livrem en­
te u ltrapassa os lim ites do direito de propriedade do m a­
trim ônio legal). Por outro lado, não podem os deixar de
assinalar o aparecim ento, vagaroso porém in vencível, de
novas form as de união entre os sexos. N ovas, não tanto
pela form a, com o pelo caráter que anim a os seus precei­
tos.
A hum anidade sonda com inquietação os novos ideais.
M as, basta exam iná-los um pouco, detalhadam ente, para
neles reconhecer, apesar de seus lim ites não estarem su ­
ficientem ente dem arcados, os traços característicos, pe­
los quais se unem as tarefas do proletariado, classe social
incum bida de se apod erar da fortaleza do futuro. A quele
que quer encontrar, no labirinto das norm as sexuais con­
traditórias, os germ ens de relações futuras entre os se­
xos, m ais sadias e que prom etam libertar a hu m anidad e
da crise sexual, tem , necessariam ente, que abandonar os
bairros onde habitam as elites, com sua refinada p sicolo­
gia in dividualista, e olhar as casas am ontoadas dos op e­
rários, nas quais, em m eio à obscuridad e e, ao horror ge­
rados pelo capitalism o, surgem , apesar de tudo, fontes

66
a nova mulher e a moral sexual

que vivificam o am or e abrem cam inho a um novo tipo


de entendim ento entre hom ens e m ulheres.
Entre a classe operária, sob a pressão de duras cond i­
ções econôm icas e o ju g o im placável da exploração cap i­
talista, observa-se o duplo processo a que nos referim os.
A in flu ên cia d estru id o ra do cap italism o, que an iq u ila
todos os fundam entos da fam ília operária, obriga o p ro ­
letariado a adaptar-se, instintivam ente, às cond ições do
m undo que o cerca e provoca, portanto, um a série de fa­
tos referentes às relações entre os sexos, análogos aos que
se produzem , tam bém , em outras cam ad as da socieda­
de. D evido aos salários reduzidos, retarda-se, contínu a e
inevitavelm ente, a idade de contrair m atrim ônio do o p e­
rário. H á um quarto de século, um operário podia casar-
se dos vinte e dois aos vinte e cinco anos. H oje em dia, o
proletariado não pode estabelecer um lar antes dos trinta
anos, aproxim ad am ente7. A lém disso, qu anto m ais de­
senvolvidas estão as necessidades culturais entre os o p e­
rários, m ais valor concedem à possibilid ade de seguir o
ritm o na vida cultural, de ir ao teatro, de assistir co n fe­
rências, ler jornais, consagrar o tem po que o trabalho não
consom e à luta sindical, à política, a um a atividade pela
qual sentem atração, à arte, à leitura, etc.
Tudo isto contribui para que o operário contraia m a­
trim ônio com m aior idade. En tretanto as necessid ad es
fisiológicas não levam em conta o estado do bolso. São
necessidades vitais das quais não se pode prescindir e o
operário solteiro, tanto quanto o burguês solteiro, resol­
ve seu problem a na prostituição. Este fato é um sintom a

7 E ste e n sa io fo i e scrito em 1918

67
Alexandra Kolontai

da ad ap tação p assiv a da classe op erária às con d içõ es


d esfavoráveis de existência- E, por causa do nível b as­
tante b aixo dos salários, a fam ília operária vê-se obriga­
da a resolver o problem a do n ascim ento dos filhos do
m esm o m od o que as fam ílias burguesas.
A freqüência dos infanticidios e o desenvolvim ento da
prostituição são fatos que podem classificar-se dentro de
um a só ordem . A m bos são m eios de adaptação passiva do
operário à espantosa realidade que o cerca. M as, o que não
se pode esquecer é que nesse processo não há nada que
caracterize, propriam ente, o proletariado. Essa adaptação
passiva é própria de todas as classes sociais envolvidas
pela evolução m undial do capitalism o.
A linha de diferenciação com eça, precisam ente, quan­
do entram em jogo os princípios ativos e criadores. A deli­
m itação com eça onde já não se trata de um a adaptação,
m as de um a reação à realidade que oprime. C om eça onde
nascem e se expressam novos ideais, onde surgem tím i­
das tentativas de relações sexuais dotadas de um espírito
novo. A inda mais: devem os assinalar que o processo de
reação se inicia, unicam ente, entre a classe operária.
Isto não quer dizer, de m odo algum , que as outras clas­
ses e cam ad as da sociedade, principalm ente a dos inte­
lectuais burgu eses que, pelas condições de sua existência
social, se encontra m ais próxim a da classe operária, não
se apoderem dos elem entos novos que o proletariado cria
e d esenvolve. A burguesia, im pulsionad a pelo d esejo ins­
tintivo de injetar vida nova às suas form as agonizantes, e
dian te da im potência de suas diversas form as de rela­
ções sexuais, aprende rapidam ente novas form as com a
classe op erária. M as, d esgraçad am en te, nem os ideais

68
a nova mulher e a moral sexual

n em o c ó d ig o da m o ra l s e x u a l, e la b o ra d o s g ra d a ti-
vam en te pelo proletariado, correspond em à m oral das
e x ig e n cia s b u rg u esas de classe. P o rtan to , e n q u a n to a
m oral sexual, nascida das necessidades da classe op erá­
ria, converte-se para ela num instrum ento novo da luta
social, os m odernism os de segunda m ão que dessa m o­
ral extrai a burguesia, não fazem m ais do que destruir,
definitivam ente, as bases de sua sup erioridade social.
A tentativa dos intelectuais burgueses de substitu ir o
m atrim ônio indissolú vel pelos laços m ais livres, m ais fa­
cilm ente desligáveis do m atrim ônio civil, atinge as bases
da estabilid ad e social da burgu esia, bases que não p o ­
dem ser outras senão a fam ília m onogàm ica b asead a no
conceito da propriedade.
Na classe operária, sucede tudo ao contrário. A m aior
liberdade na união entre os sexos condiz, totalm ente, com
as suas tarefas históricas fundam entais. E até pod em os
dizer que derivam diretam ente dessas tarefas. O m esm o
sucede com a negação do conceito de subordinação, no
m atrim ônio, rom pendo os últim os laços artificiais da fa­
m ília burguesa. O contrário acontece, na classe p roletá­
ria. O fator de subordinação de um m em bro desta classe
social a um outro é o m esm o que o conceito de p roletaria­
do. Não convém , de m odo algum , aos interesses da clas­
se revolu cionária atar um de seus m em bros, visto que
cada um de seus representantes, in d epend entes d iante
de tudo, tem a incum bência e o dever de servir aos in te­
resses de sua classe e não aos de um a célula fam iliar iso ­
lada. O dever do m em bro da sociedade proletária é antes
de tudo contribu ir para o triunfo dos interesses de sua
classe, p or exem p lo, atuar nas greves e participar em todo

69
Alexandra Kolontaì

o m om en to da luta. A m oral com que a classe trab alh a­


dora ju lg a todos estes atos caracteriza com perfeita clare­
za a b ase da nova m oral.
S u p o n h am o s q u e um rep u tad o fin an cista, m ov id o
u nicam en te por seus interesses fam iliares, retire dos ne­
gocios seu capital, nu m m om ento crítico para a em presa.
Su a ação, avaliada do ponto de vista da m oral burguesa
não pod e ser m ais evidente, porqu e os interesses da fa­
m ília devem estar em prim eiro lugar. C om p arem os ag o­
ra este ato com a atitude dos operários diante do fura-
greves, que retorna ao trabalho du rante o conflito, para
que su a fam ília não passe fom e. O s interesses da classe
figu ram em prim eiro lugar, neste exem plo. R eferim o-n os
agora a um m arido burguês que consegu iu , p o r am or e
d evoção à fam ília, m anter afastada a m ulher d e seus in ­
teresses, à exceção dos deveres de dona de casa e de m u ­
lh er dedicada com p letam en te aos cuid ad os dos filhos. O
ju lg am en to da socied ad e burguesa será: um m arido id e­
al qu e sou be criar u m a fam ília ideal. M as, qu al seria a
atitude dos operários para um m em bro consciente de sua
classe que tentasse m anter sua m ulher afastada da luta
social? A m oral da classe exige, a custo inclusive da feli­
cid ad e in dividu al, a custo da fam ília, a participação da
m u lh er na luta pela vida qu e transcorre fora dos m uros
de seu lar. M anter a m u lh er em casa, colocar em prim eiro
lu gar os interesses fam iliares, prop agar a idéia dos direi­
tos d e p ro p rie d a d e ab so lu ta de um esp oso so b re su a
m ulher, são atos que violam o prin cípio fu n d am en tal da
id eologia da classe operária, que destróem a solid aried a­
de e o com p anh eirism o, que rom pem a u nião de todo o
p roletariad o. O conceito de posse de um a p ersonalidade

70
a nova mulher e a moral sexual

sobre a outra, a idéia de subordinação e de d esigu ald ad e


dos m em bros de um a só e m esm a classe, são conceitos
qu e contrariam a essência do conceito d e cam arad agem ,
qu e é o p rin cíp io m ais fundam ental do proletariado. Este
p rin cíp io básico da ideologia da classe ascen dente é o que
dá colorido e determ ina o novo código em form ação da
m oral sexu al do proletário, pelo qual se transform a a p si­
cologia da hu m anid ad e, chegan d o a adqu irir u m a acu ­
m u lação de sentim entos de solid ariedade e de liberdade,
ao in vés do conceito de propriedade: um a acum u lação
d e com p anh eirism o ao in vés dos conceitos d e d esig u al­
dade e de subordinação.
Toda classe ascendente, nascida com o conseqü ên cia
de u m a cu ltu ra m aterial distinta daquela que a an tece­
deu no grau anterior da evolu ção econôm ica, enriqu ece
toda a hu m anidad e com um a nova ideologia que lhe é
característica. Esta afirm ativa corresponde a u m a velha
verdade. O código da m oral sexual constitui parte in te­
gran te da nova ideologia. Portanto, basta p ron u n ciar as
expressões ética proletária e m oral proletária, para esca ­
p a r da trivial argu m en tação: a m oral sexual p roletária
não é no fundo m ais do que um a superestrutura. E n q u an ­
to não se exp erim enta a total transform ação da b ase eco ­
nôm ica, não pod e h aver lu gar para ela. C om o se um a
ideologia, seja qual for o seu gênero, não se form asse até
que se prod uzisse a transform ação das relações econô-
m ico-sociais necessárias para assegurar o dom ínio da clas­
se que a gerou! A experiência da história ensin a que a
id eologia de um gru po social e, co n se q ü en te m e n te , a
m oral sexual se elaboram d u rante o próp rio p rocesso da
luta contra as forças sociais que se lhe opõem .

71
Alexandra Kolontai

A classe revolucionária só pode fortalecer suas posi­


ções sociais com a ajuda de novos valores espirituais ti­
rados de seu próprio seio e que correspondam totalmen­
te às suas tarefas de força em ascensão. Só mediante no­
vas normas e ideais pode esta classe arrebatar o poder
dos grupos sociais opostos.
A tarefa que corresponde, portanto, aos ideólogos da
classe operária é buscar o critério moral fundamental, pro­
duto dos interesses específicos da classe operária, e har­
monizar com este critério as nascentes normas sexuais.
Já é hora de compreender que, unicamente depois de
haver ensaiado o processo criador que se realiza mais
embaixo, nas profundas camadas sociais, processo que
engendra necessidades novas, novos ideais e formas, será
possível visualizar o caminho, no caos contraditório das
relações sexuais e desemaranhar a embaraçada meada
do problema sexual.
Devemos recordar que o código da moral sexual, em
harmonia com as tarefas fundamentais da classe, pode
converter-se em poderoso instrumento, que reforce a po­
sição de combate da classe revolucionária. Por que não
utilizar este instrumento no interesse da classe operária,
em sua luta para o estabelecimento do regime comunista
e, por sua vez, também, estabelecer relações novas entre
os sexos, que sejam mais perfeitas e felizes?

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