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CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO – FAVENI

A POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL E SEGURANÇA


PÚBLICA

ESPIRITO SANTO
SUMÁRIO

1 ASSISTÊNCIA SOCIAL .............................................................................. 2

1.1 Princípios e diretrizes ........................................................................... 3

2 BREVE HISTÓRICO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL ...................................... 4

2.1 A assistência como beneficência privada ............................................. 4

2.2 A assistência como benemerência estatal (1930-1988) ....................... 6

3 A ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS 1988 ......................................................... 8

3.1 A assistência social na Constituição Federal de 1988 ......................... 8

3.2 A assistência como direito social e suas implicações jurídicas .......... 10

3.3 A organização da assistência social – a Lei no. 8.742/1993 (LOAS) . 13

4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................................................. 14

4.1 Origem Histórica ................................................................................. 18

4.2 O Surgimento do Estado .................................................................... 19

4.3 Estado de Direito e seus Fundamentos.............................................. 21

5 O SISTEMA DE JUSTIÇA......................................................................... 25

5.1 O acesso à justiça .............................................................................. 25

5.2 O sistema de justiça ........................................................................... 33

6 SEGURANÇA PÚBLICA ........................................................................... 45

6.1 Quem é responsável pela segurança pública? ................................... 45

6.2 Governo Federal ................................................................................ 46

6.3 Governos Estaduais ........................................................................... 46

6.4 Governos Municipais .......................................................................... 46

6.5 A segurança pública no brasil ............................................................ 47

6.6 O direito à segurança pública como direito fundamental .................... 48

7 BIBLIOGRAFIA ......................................................................................... 51

1
1 ASSISTÊNCIA SOCIAL

A Assistência Social está garantida no art. 203 da CF: “será prestada a quem
dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social”.
Deve ser prestada independentemente de contribuição, o que afasta o
cumprimento de carências.

Fonte: www.pma.es.gov.br

São objetivos da Assistência Social (art. 203 da CF): a proteção à família, à


maternidade, à adolescência e à velhice; o amparo às crianças e adolescentes
carentes; a promoção da integração ao mercado de trabalho; a habilitação e a
reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à
vida comunitária; a garantia de um salário mínimo mensal à pessoa portadora de
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.
Pelos objetivos enumerados, constata-se que a Assistência Social não é, na
verdade, meramente assistencialista, porque não se destina apenas a dar socorro
provisório e momentâneo ao necessitado. O que pretende a Constituição é que a
Assistência Social seja um fator de transformação social. Deve promover a integração
e a inclusão do assistido na vida comunitária, fazer com que, a partir do recebimento

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das prestações assistenciais, seja “menos desigual” e possa exercer atividades que
lhe garantam a subsistência.
A Lei n. 8.742, de 7-12-1993, denominada Lei Orgânica da Assistência Social
— LOAS, regulamentou o art. 203 da CF e definiu a assistência social como Política
de Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada
através de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para
garantir o atendimento às necessidades básicas.
Provê os mínimos sociais, ou seja, deve garantir ao assistido o necessário para
a sua existência com dignidade. Destina-se ao enfrentamento da pobreza, ao
provimento de condições para atender a contingências sociais e à universalização dos
direitos sociais. Realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, através de um
conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade (art. 2º, parágrafo
único, da LOAS).
A LOAS foi regulamentada pelo Decreto n. 1.744, de 8-121995, revogado pelo
Decreto n. 6.214, de 26-9-2007.
A participação da comunidade se dá por entidades e organizações de
assistência social, que surgem na sociedade atendendo a demandas específicas da
comunidade carente: são as Organizações Não Governamentais — ONGs. O art. 3º
da LOAS as define como “aquelas que prestam, sem fins lucrativos, atendimento e
assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta lei, bem como as que atuam
na defesa e garantia de seus direitos”.

1.1 Princípios e diretrizes

Os princípios regentes da assistência social, além daqueles que a CF elencou,


estão previstos no art. 4º da LOAS. São normas que devem orientar as políticas
públicas destinadas à cobertura pela assistência social.
Os incisos I a V do art. 4º são, a nosso ver, desdobramentos dos princípios
próprios da seguridade social, bem como do respeito à dignidade da pessoa humana.
É de extrema importância o disposto no inciso III, que determina o respeito à
dignidade do cidadão, à sua autonomia e ao seu direito a benefícios e serviços de
qualidade. Quis o legislador que a assistência social não seja imposta, mas, sim,
prestada em razão da vontade manifestada do necessitado, quando suas condições
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pessoais o permitirem. A prestação da assistência não pode se tornar discriminatória,
mas, sim, tem que ser redutora das desigualdades sociais. Também por isso o mesmo
inciso proíbe qualquer comprovação vexatória de necessidade.
A transparência da utilização dos recursos destinados ao financiamento da
assistência social está prevista no inciso V, que impõe a ampla divulgação dos
benefícios, serviços e projetos assistenciais e dos critérios para sua concessão.
As diretrizes da organização da assistência social estão no art. 5º da LOAS:
descentralização político-administrativa, participação da população e primazia da
responsabilidade do Estado na condução da política de assistência social.

2 BREVE HISTÓRICO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL

2.1 A assistência como beneficência privada

A prática da assistência ao outro está presente na história da humanidade


desde os tempos mais remotos, não se limitando nem à civilização judaico-cristã, nem
às sociedades capitalistas. Sob a ótica da solidariedade social, pobres, viajantes,
incapazes e doentes eram alvos de ações que assumiram formas variadas nas
diferentes sociedades, sempre motivadas pela compreensão de que entre os homens
nunca deixarão de existir os mais frágeis, carecedores de ajuda alheia.
Na Grécia e Roma antigas já havia registros de ações de assistência social
estatal, com a distribuição de trigo aos necessitados.
Com a civilização judaico-cristã, a ajuda toma a expressão de caridade e
benemerência ao próximo, como força moral de conduta. No intuito de conformar as
práticas de ajuda e apoio aos aflitos, grupos filantrópicos e religiosos começaram a se
organizar, dando origem às instituições de caridade (Sposati et al., 2007, p. 40).
Na Idade Média, a forte influência do Cristianismo, através da doutrina da
fraternidade, incentivou a prática assistencial com a difusão das confrarias que
apoiavam às viúvas, os órfãos, os velhos e os doentes (Carvalho, 2006, p. 15).
Com a expansão do capital e a precarização do trabalho, a pobreza se torna
visível, incômoda e passa a ser reconhecida como um risco social. A benemerência,

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como um ato de solidariedade, passa a se constituir em práticas de dominação, que
destituem o alvo das ações de caridade da condição de sujeito de direitos.
A caridade e a beneficência acabavam por despir o público alvo da assistência
social da condição de cidadão, de indivíduo capaz, ou seja, sujeito de direitos,
transformando-o em incapaz, carente e necessitado da benevolência dos mais
abastados da sociedade. A pobreza era considerada um atributo individual daqueles
que não se esforçavam para superá-la e que, portanto, eram tidos como responsáveis
pela situação de miséria em que se encontravam.
Nesse contexto, a assistência será incorporada pelo Estado sob duas formas:
“uma que se insinua como privilegiada para enfrentar politicamente a questão social;
outra, para dar conta de condições agudizadas de pauperização da força de trabalho”
(Sposati et al., 2007, p. 41).
Contudo, essa apropriação da prática assistencial pelo Estado se dará como
expressão de benemerência, lançando-se para a seara das instituições privadas de
fins sociais, em especial os organismos atrelados às igrejas de diferentes credos, as
ações assistenciais. Ao Poder Público caberia somente catalisar e direcionar os
esforços de solidariedade social da sociedade civil.
No Brasil, até 1930 não se apreendia a pobreza enquanto expressão da
questão social, mas sim como uma disfunção pessoal dos indivíduos. Tal fato é
revelado pelo atendimento social dado aos indivíduos, os quais eram encaminhados
para o asilamento ou internação.
A pobreza era tratada como doença. Como afirma Sposati,

“(...) os pobres eram considerados como grupos especiais, párias da


sociedade, frágeis ou doentes. A assistência se mesclava com as
necessidades de saúde, caracterizando o que se poderia chamar de binômio
de ajuda médico-social. Isto irá se refletir na própria constituição dos
organismos prestadores de serviços assistenciais, que manifestarão as duas
faces: a assistência à saúde e a assistência social. O resgate da história dos
órgãos estatais de promoção, bem-estar, assistência social, traz, via de regra,
esta trajetória inicial unificada” (Sposati et al., 2007, p. 42).

Ressalte-se, inclusive, que o primeiro hospital construído no Brasil e na


América Latina foi a Santa Casa da Misericórdia de Santos, em 1543. Como se sabe,
os hospitais das Santas Casas de Misericórdia foram referência no acolhimento dos
pobres.

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As organizações de beneficência mantinham a compreensão da assistência
como um gesto de benevolência e caridade para com o próximo.
A partir da crise mundial do capitalismo (1929), o Estado se reposiciona frente
a sociedade, inserindo-se na relação capital-trabalho, o que será fundamental para a
acumulação, consolidação e expansão do capital. No caso brasileiro em especial, o
Estado passa progressivamente a reconhecer a pobreza como questão social e,
portanto, questão política a ser resolvida sob sua direção (Sposati et al., 2007, p. 42),
conforme abordado posteriormente.

2.2 A assistência como benemerência estatal (1930-1988)

Fonte: www.michelteixeira.com.br

Os anos de 1930 e 1943 podem ser caracterizados como os anos de introdução


da política social no Brasil. Conforme afirma Behring & Boschetti, o Movimento de
1930, que culminou com a assunção de Getúlio Vargas ao governo, embora não tenha
sido a Revolução Burguesa no Brasil, foi sem dúvida “um momento de inflexão no
longo processo de constituição de relações sociais tipicamente capitalistas no Brasil”
(Behring & Boschetti, 2006, p. 105).

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Iniciou-se com Vargas um processo de regulamentação das relações de
trabalho no país, cujo objetivo principal era transformar a luta de classes em
colaboração de classes, apontando uma estratégia legalista na tentativa de interferir
autoritariamente, ainda que via legislação, a fim de se evitar conflitos sociais.
Paralelamente à ação estatal, desenvolve-se a saúde privada e filantrópica, no
que se refere ao atendimento médico hospitalar (Bravo apud Behring e Boschetti,
2006, p. 107).
Deste modo, boa parte dos benefícios sociais – saúde, previdência, etc. -
giravam em torno do trabalho (emprego). Conforme afirma Sposati (2007, p.12) “no
pensamento idealizado liberal permanecia a ideia moral pela qual atribuir benefícios
ao trabalhador formal era um modo de disciplinar e incentivar a trabalhar o trabalhador
informal, tido por vadio”.
Assim, uma vez que a maior parte da população não possuía vínculo
empregatício, restringia-se a poucos o acesso aos direitos sociais. Aos
desempregados restava a caridade das instituições filantrópicas.
Além disso, é importante ressaltar que o acesso às políticas sociais da época
só era proporcionado aos trabalhadores urbanos, encontrando-se em posição
desprivilegiada os trabalhadores rurais.
A assistência social, até esse momento, não possuía qualquer visibilidade,
inexistindo no campo de atuação governamental.
Em 1º. de julho de 1938, por meio do Decreto-lei no. 525, Getúlio Vargas
instituiu o Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), vinculado ao Ministério de
Educação e Saúde, chefiado pelo então Ministro Gustavo Capanema. Este conselho
era composto por sete membros “notáveis”, tendo como funções primordiais a
elaboração de inquéritos sociais, a análise das adequações de entidades sociais e de
seus pedidos de subvenções e isenções, além de dizer das demandas dos mais
desfavorecidos.
Nesse contexto, os usuários da assistência social não possuíam voz ou
qualquer direito de participação na consecução de eventuais projetos/ programas de
enfrentamento à pobreza.
Entretanto o CNSS tampouco chegou a ser um organismo atuante,
caracterizando-se mais pela manipulação de verbas e subvenções, como mecanismo

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de clientelismo político. Anos depois, suas funções passariam a ser exercidas na
prática pela Legião Brasileira de Assistência (LBA).
Criada em 1942, sob a coordenação da primeira dama Darcy Vargas, a LBA
seria a primeira grande instituição nacional de assistência social.
Instalada em nível federal e registrada no Ministério da Justiça e Negócios
Interiores como entidade civil de finalidades não econômicas, a LBA terá como
objetivos básicos:

“1. executar seu programa, pela fórmula do trabalho em colaboração com o


poder público e a iniciativa privada;
2. congregar os brasileiros de boa vontade, coordenando-lhes a ação no
empenho de se promover, por todas as formas, serviços de assistência social;
3. prestar, dentro do esforço nacional pela vitória, decidido concurso ao
governo;
4. trabalhar em favor do progresso do serviço social no Brasil.” (Iamamoto &
Carvalho, 2007, p. 250)

Com o passar dos anos e as sucessivas mudanças políticas do país, a situação


da assistência social permanece a mesma: práticas clientelistas, assistemáticas, de
caráter focalizado e com traços conservadores, sendo operado por sujeitos
institucionais desarticulados, com programas sociais estruturados na lógica da
concessão e da dádiva, contrapondo-se ao direito (Couto, 2006, p. 71, 107, 108). As
heranças clientelista e patrimonialista estatais impediam que se rompesse com a
natureza assistencialista das políticas sociais.

3 A ASSISTÊNCIA SOCIAL PÓS 1988

3.1 A assistência social na Constituição Federal de 1988

A Carta Magna de 1988 é considerada um divisor de águas no campo dos


direitos de cidadania. Conforme expresso em seu preâmbulo, a nova ordem
constitucional será destinada a assegurar o exercício dos direitos sociais como um de
seus valores supremos.
A cidadania passa a ser um dos fundamentos da República Federativa do Brasil
(art. 1º., II, CRFB). Esta terá ainda como objetivo fundamental, dentre outros, a

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construção de uma sociedade livre, justa e solidária; a erradicação da pobreza e da
marginalização e a redução das desigualdades sociais.
Nesse contexto, o constituinte originário inovou ao destinar um capítulo próprio
aos direitos sociais e ao estabelecer um sistema de proteção social, por meio da
seguridade social. Mais do que isso: atribuiu à assistência social, até então, “parente
pobre” das políticas sociais, sempre relegada à benemerência dos seus agentes, o
status de direito social: “Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho,
a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à
infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. ” (CRFB,
1988).
A assistência passa a integrar o tripé seguridade social, juntamente com os
direitos à saúde e à previdência social, deixando para trás seu caráter subsidiário, de
política complementar:

“Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações


de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar
os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social.
Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a
seguridade social, com base nos seguintes objetivos:
I – universalidade da cobertura e do atendimento;
II – uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações
urbanas e rurais;
III – seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços;
IV – irredutibilidade do valor dos benefícios;
V – equidade na forma de participação no custeio;
VI – diversidade da base de financiamento;
VII – caráter democrático e descentralizado da administração, mediante
gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores,
dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.” (CRFB, 1988)

Como se vê, a seguridade social assumiu, como sistema de proteção social


brasileiro, duas vertentes: uma contributiva (contrapartida dos rendimentos do
trabalho assalariado para sua garantia) e outra não contributiva (para todos os
cidadãos que dela necessitem). A esta última vertente, vincula-se o direito social à
assistência.
A noção de seguridade social supõe um conjunto de certezas e seguranças que
cubram, reduzam ou previnam situações de risco ou vulnerabilidade sociais, as quais
qualquer indivíduo pode ser submetido.

“Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar,


independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:
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I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;
II – o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III – a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária;
V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora
de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à
própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a
lei.” (CRFB, 1988)

Uma vez filiada pela Carta Magna ao grupo dos direitos sociais, a assistência
social assume diversas características que nunca antes lhe foram atribuídas. Para
entendermos melhor a importância de tal realização, passaremos agora ao breve
estudo acerca do significado e das implicações jurídicas de sua definição como direito
social.

3.2 A assistência como direito social e suas implicações jurídicas

Segundo Silva, os direitos sociais são, como dimensão dos direitos


fundamentais do homem, “prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou
indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores
condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de
situações sociais desiguais” (2005, p. 286).
Os direitos sociais diferenciam-se dos direitos individuais, uma vez que estes,
tratando-se de “direitos de liberdade”, nascem contra o superpoder do Estado – e,
portanto, com o objetivo de limitar o poder --, enquanto que aqueles exigem, para sua
realização prática (passagem da declaração puramente verbal à sua proteção efetiva),
precisamente o contrário, isto é, a ampliação dos poderes do Estado (Bobbio, 2004,
p. 72).
Tradicionalmente, os direitos sociais se dirigiam como exigências ao Estado.
Assim, voltavam-se não a uma abstenção estatal, mas a uma ação, assumindo a
característica de prestações positivas. Contudo, tais direitos possuem duas
dimensões: uma defensiva, identificada pela exigência de abster-se de condutas que
possam lesionar ou ameaçar os bens jurídicos por ele tutelados, e uma prestacional,
correspondente a deveres comissivos atribuídos ao polo passivo da relação
(Sarmento, 2006, p. 292).

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Como se sabe, os direitos sociais se prestam a realizar a “equalização” de
situações desiguais. Uma das essências das normas que os expressam é o fato delas
conterem elementos sócioideológicos que revelam o compromisso das constituições
contemporâneas na edificação do Estado Democrático de Direito; são elas
garantidoras da dignidade humana, consolidando, dessa forma a liberdade, igualdade
e fraternidade.
Deste modo, representam verdadeiros pressupostos de gozo dos direitos
individuais, na medida em que criam condições materiais para exercício dos mesmos.
Como se falar em garantia de direito à vida diante da ausência de condições que
possibilitem uma vida digna?
“Não é livre quem não detém autossuficiência material. Não há garantia do
direito à vida enquanto não se figura juridicamente a fome como uma negação do
sistema constitucional organizador da vida política no Estado. (...) Não é livre o homem
ausente de nome que a sua própria mão desenhe. Como saber de seu direito sem
letra, ou sinal conhecido, o homem sem nome de gente? Não há direito para o qual a
cegueira analfabeta ofereça luz (...).” (Rocha, 1999, p. 6 e 7)
Nesse contexto, encontra-se hoje o direito à assistência. Seu principal objetivo
é a efetivação do Estado Democrático de Direito, por meio da promoção dos direitos
sociais, contribuindo para a redução da exclusão social ao propiciar oportunidades de
emancipação àqueles que, sem tal assistência, não os alcançariam.
Ao ser consagrada pela CRFB como direito social, a assistência será retirada
do campo da caridade ou mera liberalidade para alçar a condição de direito subjetivo
público e, agora sim, proporcionar a emancipação dos indivíduos.
Afirma Reale que direito subjetivo é “a possibilidade de exigir-se, de maneira
garantida, aquilo que as normas de direito atribuem a alguém como próprio” (2001, p.
262).
Dizia nosso Código Civil de 1916, em seu art.75: “A cada direito corresponde
uma ação, que o assegura”. Direito subjetivo é, pois, direito de ação. A falta de tutela,
ou a falta de ação disponível, significa de fato a inexistência ou a inexigibilidade do
direito subjetivo.
As normas jurídicas de conduta caracterizam-se por sua bilateralidade,
dirigindo-se a duas partes e atribuindo a uma delas a faculdade de exigir da outra
determinado comportamento. Forma-se, desse modo, um vínculo, uma relação
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jurídica, que estabelece um elo entre dois componentes: de um lado, o direito
subjetivo, a possibilidade de exigir; de outro, o dever jurídico, a obrigação de cumprir.
Quando a exigibilidade de uma conduta se verifica em favor do particular em face do
Estado, diz-se existir um direito subjetivo público.

Fonte: jatv.com.br

Os direitos tidos como subjetivos possuem algumas características: a eles


correspondem sempre deveres jurídicos; eles são violáveis, ou seja, existe a
possibilidade de que a parte contrária deixe de cumprir o seu dever; a ordem jurídica
coloca a disposição de seu titular um meio jurídico – que é ação judicial – para exigir-
lhes o cumprimento, deflagrando os mecanismos coercitivos e sancionatórios do
Estado (Nader, 2003, p. 302).
Como direito subjetivo, a assistência social enquadra-se nesse esquema
conceitual, a saber: dever jurídico, violabilidade e pretensão. Dela resulta, portanto,
para os seus beneficiários – os titulares do direito – situações jurídicas imediatamente
desfrutáveis, a serem materializadas em prestações positivas ou negativas. Tais
prestações são exigíveis do Estado ou de qualquer outro eventual destinatário da
norma (dever jurídico) e, se não forem entregues espontaneamente (violação do
direito), conferem ao titular do direito a possibilidade de postular-lhes o cumprimento
(pretensão), inclusive e especialmente por meio de uma ação judicial.

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3.3 A organização da assistência social – a Lei no. 8.742/1993 (LOAS)

Os anos que seguiram a promulgação da Carta Constitucional de 1988 foram


marcados por um amplo processo de debates e lutas para que se regulamentasse os
direitos prenunciados pela Constituição. Somente em 1990 é que se reiniciará o que
Sposati denomina de “contrações pré-parto para consolidar a democracia social”
(2007, p. 44), com a aprovação pelo novo Congresso eleito de várias leis
regulamentadoras, dentre as quais a Lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do
Adolescente), Lei 8.080/1990 (Lei Orgânica da Saúde) e Lei 8.142/1990 (Sistema
Único de Saúde).
A assistência social será a última área da seguridade social a ser
regulamentada. Segundo Zucco,

“(...) seu processo de regulamentação demonstrou o movimento de afirmação


e negação que permeia a assistência. Ao ser encaminhado o Projeto de Lei
no. 48 de 1990, que dispunha sobre a Lei Orgânica de Assistência Social, à
Câmara Federal sofreu vários embates e críticas, o que o levou a ser vetado
pelo Presidente Fernando Collor de Mello, em 17 de setembro de 1990, com
a alegação de vícios de inconstitucionalidade e de sustentação financeira
para sua implantação” (1997, p. 43)

Enfim, em 7 de dezembro de 1993 será aprovada a Lei Orgânica da Assistência


Social – LOAS, que vem regulamentar o disposto nos arts. 203 e 204 da CRFB. Em
42 artigos, a referida Lei dispõe sobre a organização da assistência social, no que diz
respeito, dentre outros assuntos:
I – aos seus princípios e diretrizes;
II – à forma de organização e gestão das ações;
III – às competências das esferas de governo;
IV – ao caráter e composição das instâncias deliberativas;
V – à instituição e competências do Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS);
VI – às competências do órgão nacional gestor da Política Nacional de
Assistência Social (PNAS);
VII – ao conceito de benefícios, serviços, programas e projetos; VIII – ao
financiamento da política.

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Em consonância aos preceitos constitucionais, a LOAS define em seu artigo 1º.
a assistência social como direito do cidadão e dever do Estado, Política de Seguridade
Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um
conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o
atendimento às necessidades básicas.
A fim de conformar as ações assistenciais à nova realidade de “direito do
cidadão”, optou o legislador por regê-las por alguns princípios, dispostos no art. 4º. da
referida lei, dentre os quais, a universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o
destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas.
Nesse sentido, seria o direito à assistência um mecanismo de distribuição de
todas as políticas; mais do que isso, mecanismo de deselitização e consequente
democratização das políticas sociais.
Para tanto, o legislador estabelecerá como base da organização assistencial a
descentralização político-administrativa para os entes federados; a participação da
população, por meio de organizações representativas, na formulação e controle das
políticas de assistência e a primazia da responsabilidade do Estado na condução da
política de assistência social em cada esfera de governo (art. 5º.), o que será de
extrema relevância para a já mencionada finalidade colimada não só pela LOAS, mas
também pelo constituinte originário.

4 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito, que significa a exigência de reger-se pelo


Direito e por normas democráticas, com eleições livres, periódicas e pelo povo bem
como o respeito das autoridades públicas aos direitos e garantias fundamentais,
proclamado no caput do artigo 1º da Constituição Federal de 1988, adotou, igualmente
em seu parágrafo único, o denominado princípio democrático, ao afirmar que “todo
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição”.
O termo "Estado democrático de direito" conjuga dois conceitos distintos que,
juntos, definem a forma de mecanismos tipicamente assumidos pelo Estado de
inspiração ocidental. Cada um destes termos possui sua própria definição técnica,

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mas, neste contexto, referem-se especificamente a parâmetros de funcionamento do
Estado Ocidental moderno.
Em sua origem grega, "democracia" quer dizer "governo do povo". No sistema
moderno, no entanto, não é possível que o povo governe propriamente (o que
significaria uma democracia direta). Assim, os atos de governo são exercidos por
membros do povo ditos "politicamente constituídos", por meio de eleição. No Estado
Democrático Brasileiro, as funções típicas e indelegáveis do Estado são exercidas por
indivíduos eleitos pelo povo para tanto, de acordo com regras preestabelecidas que
regerão o pleito eleitoral.

Fonte: www.filoinfo.net

O aspecto do termo "de Direito" refere-se a que tipo de direito exercerá o papel
de limitar o exercício do poder estatal. No Estado democrático de direito, apenas o
direito positivo (isto é, aquele que foi codificado e aprovado pelos órgãos estatais
competentes, como o Poder Legislativo) poderá limitar a ação estatal, e somente ele
poderá ser invocado nos tribunais para garantir o chamado "império da lei". Todas as
outras fontes de direito, como o Direito Canônico ou o Direito natural, ficam excluídas,
a não ser que o direito positivo lhes atribua esta eficácia, e apenas nos limites
estabelecidos pelo último.
Nesse contexto, destaca-se o papel exercido pela Constituição. Nela delineiam-
se os limites e as regras para o exercício do poder estatal (onde se inscrevem os
chamados "Direitos e Garantias fundamentais"), e, a partir dela, e sempre a tendo

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como baliza, redige-se o restante do chamado "ordenamento jurídico", isto é, o
conjunto das leis que regem uma sociedade. O Estado democrático de direito não
pode prescindir da existência de uma Constituição.
No entanto, toda a conceitualização não deverá restringir o elemento
democrático à limitação do poder estatal e a democracia ao instituto da representação
política. Esta, em virtude de seus inúmeros defeitos, não pode fundamentar o Estado
Democrático de Direito, pelo menos não como ele deveria ser, já que o princípio
democrático não se reduz a um método de escolha dos governantes pelos
governados.
O Estado Democrático envolve necessariamente, a soberania popular.
Conforme expõe José Afonso da Silva, o Estado Democrático se funda no princípio
da soberania popular que ‘impõe a participação efetiva e operante do povo na coisa
pública, participação que não se exaure, como veremos, na simples formação das
instituições representativas, que constituem um estágio da evolução do Estado
Democrático, mas não o seu completo desenvolvimento.
Assim, a substância da soberania popular deve ser representada pela
autêntica, efetiva e legítima participação democrática do povo nos mecanismos de
produção e controle das decisões políticas, em todos os aspectos, funções e variantes
do poder estatal. Friedrich Müller apregoa que, a ideia fundamental da democracia é
a determinação normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já
que não se pode ter o autogoverno na prática quase inexequível, pretende-se ter ao
menos a auto codificação das prescrições vigentes com base na livre competição
entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes
de sancionamento político
Para José Joaquim Gomes Canotilho, o esquema racional da estadualidade
encontra expressão jurídico–política adequada num sistema político normativamente
conformado por uma constituição e democraticamente legitimado. Por outras
palavras: o Estado concebe-se hoje como Estado Constitucional Democrático, porque
ele é conformado por uma Lei fundamental escrita (= constituição juridicamente
constituída das estruturas básicas da justiça) e pressupõe um modelo de legitimação
tendencialmente reconduzível à legitimação democrática.
O Estado Democrático deve ser transformador da realidade, ultrapassando o
aspecto material de concretização de uma vida digna para o homem. Este Estado age
16
como fomentador da participação pública em vários seguimentos. O Estado deve
sempre ter presente a ideia de que a democracia implica necessariamente a questão
da solução do problema das condições materiais de existência. Portanto, foi criado
para ultrapassar a ideia utópica de transformação social, assumindo o objetivo da
igualdade, a lei aparece como instrumento de reestruturação social, não devendo
atrelar-se a outros fins como à sanção ou à promoção.
A democracia como realização de valores de convivência humana de
igualdade, liberdade e dignidade da pessoa é conceito mais abrangente do que
“Estado Democrático de Direito” que surgiu como expressão jurídica da democracia
liberal.
Além disso, é certo que o Estado Democrático deve aparecer com a função de
reduzir antíteses econômicas e sociais e isto se torna possível com a devida aplicação
da Constituição Federal (colocada no ápice de uma pirâmide jurídica escalonada), que
representa o interesse da maioria.
Em suma, após essa reflexão pode-se elencar os elementos que julgamos
essenciais no Estado Democrático de Direito, sendo o seu fundamento e principal
aspecto a soberania popular:
1 - A necessidade de providenciar mecanismos de apuração e de efetivação da
vontade do povo;
2 – Ser um Estado Constitucional, ou seja, dotado de uma constituição material
legítima, rígida, emanada da vontade do povo;
3 - A existência de um órgão guardião da Constituição e dos valores
fundamentais da sociedade, que tenha atuação livre e desimpedida,
constitucionalmente garantida;
4 - A existência de um sistema de garantia dos direitos humanos, em todas as
suas expressões;
5 - Realização da democracia com a consequente promoção da justiça social;
6 - Observância do princípio da igualdade;
7 - Existência de órgãos judiciais, livres e independentes, para a solução dos
conflitos entre a sociedade, entre os indivíduos e destes com o Estado.

17
4.1 Origem Histórica

A ideia de Estado Democrático tem raízes no séc. XVIII, e está ligado a ideia
de certos valores da dignidade humana, organização e funcionamento do Estado e a
participação popular. No entanto, na antiguidade, o indivíduo tinha valor relativo; só
alguns participavam das decisões, ou seja, apenas os cidadãos, aqueles que eram
homens e tinham bens; ou segundo Aristóteles (384 – 322 a. C), no seu livro III, de “A
Política”, cidadão era aquele que tivesse autoridade deliberativa ou judiciária, jamais
um artesão ou mercenário, isso porque a virtude política, que é a sabedoria para
mandar e obedecer, só pertence àquele que não tem necessidade de trabalhar para
viver.
Percebe-se que a ideia de povo é restrita a cidadão, não sendo compatível com
a ideia de povo do século XVIII, época em que “...a burguesia, economicamente
poderosa, estava às vésperas de suplantar a monarquia e a nobreza no domínio do
poder político.”
Dalmo de Abreu Dallari destaca ainda que a base do conceito de Estado
Democrático, está na noção de governo do povo, e que tal locução deriva
etimologicamente do termo democracia. Ainda, faz menção aos três grandes
movimentos político-sociais responsáveis pela condução ao Estado Democrático,
quais seriam: a Revolução Inglesa, com a influência de John Locke e expressão mais
significativa no Bill of Rights de 1689; a Revolução Americana com seus princípios
expressos na Declaração de Independência das treze colônias americanas em 1776,
e a Revolução Francesa, com influência de Rousseau, dando universalidade aos seus
princípios, devidamente expressos na Declaração dos Direitos do Homem e do
Cidadão de 1789.
Com relação à Revolução Inglesa, aludido autor ressalta dois pontos básicos,
tinham por objetivo assegurar a proteção dos direitos naturais dos indivíduos; a
intenção de estabelecer limites ao poder absoluto do monarca e a influência do
protestantismo. Quanto à Declaração da Independência, o autor destaca a garantia
de supremacia da vontade do povo, a liberdade de associação e a possibilidade de
manter um permanente controle sobre o governo.
No tocante à Revolução Francesa, afirma ser um movimento consagrador das
aspirações democráticas. Este movimento evidencia a sociedade política que tem por
18
fim a preservação da liberdade do homem e a inexistência da imposição de limites
que não seja decorrentes de lei (expressão da vontade geral), bem como o direito dos
cidadãos de concorrer, pessoalmente ou através de seus representantes, para a
formação da vontade geral.

4.2 O Surgimento do Estado

De acordo com Dalmo de Abreu Dallari, a origem do Estado Moderno remonta


ao Absolutismo e a ideia de Estado Democrático aparece no século XVIII, através dos
valores fundamentais da pessoa humana, a exigência de organização e
funcionamento do Estado enquanto órgão protetivo daqueles valores.
A doutrina diverge sobre as origens e surgimento do Estado. Dalmo de Abreu
Dallari registra que existem três teorias básicas a respeito da época do aparecimento
do Estado. Pela primeira, o Estado, assim como a sociedade, sempre teria existido,
considerando que o Estado seria uma organização social, dotada de poder e com
autoridade para determinar o comportamento de todo o grupo. Pela segunda, a
sociedade humana teria inicialmente existido sem o Estado, tendo este sido
constituído gradual e localmente para atender as necessidades ou as conveniências
dos grupos sociais. E, finalmente, pela terceira teoria, somente se pode falar em
Estado como uma sociedade política dotada de certas características bem definidas,
como conceito histórico concreto, com a ideia e a prática da soberania, o que somente
ocorreu no século XVII, existindo autores que apontam o ano de 1648, como a data
oficial em que o mundo ocidental se apresenta organizado em Estados.
Assim se descrevem os princípios que passaram a nortear os Estados, como
exigência e cumprimento da democracia:
1) a supremacia da vontade popular (a participação popular no governo);
2) a preservação da liberdade (o poder de fazer tudo o que não incomodasse
o próximo e como o poder de dispor de sua pessoa e de seus bens, sem interferência
do Estado;
3) a igualdade de direitos (a proibição de distinções no gozo de direitos,
sobretudo por motivos econômicos ou de discriminação entre classes sociais).
Hodiernamente, podemos compreender o Estado como sendo um
agrupamento social politicamente organizado, gerido por objetivos em comum,
19
obviamente segundo determinadas normas jurídicas em um território certo e definido,
sob a total tutela de um poder soberano, representado por um governo independente.
Assim sendo, a consolidação do Estado surge à medida em que coexistem interesses
similares de uma coletividade e o devido ânimo de colocá-los em prática.
Consoante o pensamento de Jean Dabin, que expressa a essência primordial
do Estado: chegou um momento em que os homens sentiram o desejo, vago e
indeterminado, de um bem que ultrapassa o seu bem particular e imediato e que ao
mesmo tempo fosse capaz de garanti-lo e promovê-lo. Esse bem é o bem comum ou
bem público e consiste num regime de ordem, de coordenação de esforços e
intercooperação organizada. Por isso o homem se deu conta de que o meio de realizar
tal regime era a reunião de todos em um grupo específico, tendo por finalidade o bem
público. Assim, a causa primária da sociedade política reside na natureza humana,
racional e perfectível. No entanto, a tendência deve tornar-se um ato; é a natureza
que impele o homem a instituir a sociedade política, mas foi a vontade do homem que
instituiu as diversas sociedades políticas de outrora e de hoje. O instinto natural não
era suficiente, foi preciso a arte humana.
Assim, conclui-se que os objetivos do Estado são a ordem e a defesa social,
em suma, o bem estar social, o bem público; sendo os seus três elementos precípuos
o povo, o território e o poder político. No dizer de Darcy Azambuja, "Estado é a
organização político-jurídica de uma sociedade para realizar o bem público, com
governo próprio e território determinado”. Dalmo de Abreu Dallari entende o Estado
como sendo "organização jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um
povo situado em determinado território". Importante ressaltar que na correta acepção
do termo Estado, mister se faz ressaltar que "o fenômeno estatal revela-se no
elemento pessoal (Estado–Comunidade) como no elemento poder (Estado-aparelho
ou Estado-poder)" nos dizeres de Kildare Carvalho.
O conceito de Estado moderno, portanto, assenta-se sobre quatro elementos
básicos: a soberania, o território, o povo e a finalidade. Ele é definido como a ordem
jurídica soberana que tem por fim o bem comum de um povo situado em determinado
território.

20
4.3 Estado de Direito e seus Fundamentos

Para alcançar uma compreensão do Estado de Direito, não se pode prescindir


uma análise da distinção entre direito natural e direito positivo, considerando que essa
é uma dicotomia estabelecida pelo pensamento jurídico ocidental, e que influenciou e
ainda influencia fortemente as relações sociedade-Estado e Estado-indivíduo, sendo
que não se pode falar da instituição Estado sem falar no Direito. Dessa divisão teórica
resultam vários questionamentos quando se perquire da relação do Estado com o
Direito.
Norberto Bobbio esclarece que a distinção entre direito natural e direito positivo
já havia sido identificada até mesmo na antiguidade, com Platão e Aristóteles. Este
último utilizou-se de dois critérios para chegar a tal diferenciação:
1 - O direito natural é aquele que tem em toda parte a mesma eficácia,
enquanto o direito positivo tem eficácia apenas nas comunidades políticas singulares
em que é posto;
2 - O direito natural prescreve ações cujo valor não depende do juízo que sobre
elas tenha o sujeito, mas existe independentemente do fato de parecerem boas ou
más a outros. Prescreve ações cuja bondade é objetiva. O direito positivo, ao
contrário, é aquele que estabelece ações que, antes de serem reguladas, podem ser
cumpridas indiferentemente de um modo ou de outro, mas uma vez reguladas pela
lei, importa (isto é: é correto e necessário) que sejam desempenhadas do modo
prescrito pela lei.
Os filósofos da Idade Média também discorreram sobre o assunto, deixando
assente que existe uma clara distinção entre direito natural e direito positivo, tendo
este a característica de ser posto pelos homens, em contraste com o primeiro que não
é posto por esses, mas por algo (ou alguém) que está além desses, como a natureza
(ou o próprio Deus).
Essa distinção, que perdura até hoje, ganha importância no tocante à questão
do exame do Estado de Direito e, em última análise, do Estado Democrático de Direito,
quando se sabe que o positivismo jurídico reduziu todo o Direito a direito positivo,
afastando o direito natural da categoria do Direito, pois essa corrente doutrinária não
considera Direito, outro que não seja aquele posto pelo Estado, sendo este o único
detentor do poder de estabelecer as normas jurídicas que irão reger a sociedade.
21
Por outro lado, quando se fala de Estado de direito no âmbito da doutrina liberal
do Estado, deve-se acrescentar à definição tradicional uma determinação ulterior: a
constitucionalização dos direitos naturais, ou seja, a transformação desses direitos em
direitos juridicamente protegidos, isto é, em verdadeiros direitos positivos.
Vale acrescentar que Hans Kelsen, o precursor máximo do positivismo jurídico,
defende que o Direito é um sistema de normas jurídicas, postas pelo Estado, num
escalonamento de autoridade legal hierárquica, em que a Constituição de um Estado
se encontra na camada jurídico-positiva mais alta.
Portanto, concluímos que o Estado de direito é aquele em que vigora o
chamado "império da lei", porém este termo engloba alguns aspectos significados:
primeiro aspecto é o de que, neste tipo de Estado, as leis são criadas pelo próprio
Estado, através de seus representantes politicamente constituídos; o segundo
aspecto é que, uma vez criadas pelo Estado, as leis passam a serem eficazes, isto é,
aplicáveis, o próprio Estado fica adstrito ao cumprimento das regras e dos limites por
ele mesmo impostos; o terceiro aspecto, que se liga diretamente ao segundo, é a
característica de que, no Estado de direito, o poder estatal é limitado pela lei, não
sendo absoluto, e o controle desta limitação se dá através do acesso de todos ao
Poder Judiciário, que deve possuir autoridade e autonomia para garantir que as leis
existentes cumpram o seu papel de impor regras e limites ao exercício do poder
estatal.
Na origem, o Estado de Direito tinha um conceito tipicamente liberal, daí falar-
se Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: a) a submissão ao
império da lei, lei esta, emanada do Poder Legislativo, composto por representantes
do povo; b) a divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os
poderes legislativos, judiciário e executivo; c) um enunciado de direitos fundamentais.
Daí a importância do chamado Estado de Direito, pois após os movimentos
liberalistas, o Estado revestiu-se de outras características marcadas principalmente
pela divisão dos poderes, como técnica que assegure a produção das leis ao
Legislativo e a independência e a imparcialidade do Judiciário em face aos demais
poderes e dos interesses particulares de toda sociedade.
Segundo ensinamentos de José Afonso da Silva: a superação do liberalismo
colocou em debate a questão da sintonia entre o Estado de Direito e a sociedade
Democrática. A evolução desvendou sua insuficiência e produziu o conceito de Estado
22
Social de Direito, nem sempre de conteúdo democrático. Chega agora o ‘Estado
Democrático de Direito’ que a constituição acolhe no art. 1º como um conceito-chave
do regime adotado.
O conceito de “Estado de Direito” foi ganhando “sinônimos” com o tempo e
muitos desses foram concepções deformadoras. Com a superação do liberalismo, a
expressão Estado de Direito, que inicialmente convertia os súditos em cidadãos livres,
tornou-se insuficiente, pois, segundo Carl Schmitt: “Estado de Direito pode ter tantos
significados distintos como a própria palavra ‘Direito’ e designar tantas organizações
quanto as que se aplica a palavra ‘Estado’”. Assim, acrescenta ele, há um Estado de
Direito feudal, outro burguês, outro nacional, além de outros conformes com o Direito
natural, com o Direito racional e com o Direito histórico.
Entende-se, portanto, que o Estado de Direito é sinônimo de Estado de Justiça,
que por sua vez, nada tem a ver com o estado submetido ao poder judiciário, sendo
este apenas um elemento que compõe o Estado de Direito. Estado submetido ao juiz
é Estado cujos atos legislativos, administrativos e também judiciais ficam sujeitos ao
controle jurisdicional no que tange à legitimidade constitucional e legal
Na concepção jurídica de Hans Kelsen, o conceito de Estado de Direito também
é “deformado”. Para ele, Estado e Direito são conceitos idênticos. Na medida em que
ele confunde Estado e ordem jurídica, todo Estado, para ele, há de ser Estado de
Direito. Como, na sua concepção, só é Direito o Direito positivo, como norma pura,
desvinculada de qualquer conteúdo, tem-se uma ideia formalista do Estado de Direito
ou Estado Formal de Direito que serve também a interesses ditatoriais, pois, se o
Direito acaba se confundindo com o mero enunciado formal da lei, destituído de
qualquer conteúdo, sem compromisso com a realidade política, social, econômica e
ideológica, todo Estado acaba sendo Estado de Direito.
Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho: os três grandes princípios
encontráveis num Estado submetido ao Direito são: o princípio da legalidade, o
princípio da igualdade e o princípio da justicialidade. O princípio da legalidade, que
contém a afirmação da liberdade do indivíduo como regra geral, seria a fonte única de
todas as obrigações dentro de um Estado de Direito. A lei vincula o Poder Executivo,
que não pode exigir condutas que não estejam previstas em lei, submete a função do
Judiciário, que não pode impor sanção sem que esta esteja definida em lei, e embasa
a atuação do Legislativo, que nada pode prescrever senão por meio de uma lei. A
23
igualdade é princípio informador do conceito de lei no Estado de Direito, posto que
suas formulações legais devem ser iguais para todos, proibindo o arbítrio, tratando os
iguais de forma igual e os desiguais de forma desigual, na medida em que se
desigualam. A justicialidade, vista como princípio também, é o controle dos atos do
Estado de Direito, que deve conter um procedimento contencioso para decidir os
litígios, sejam estes entre as autoridades superiores do Estado, ou entre autoridades
e particulares, ou, num Estado federal, entre a Federação e um Estado-membro, ou
entre Estados-membros etc.
Portanto, o reconhecimento e a institucionalização do Estado de Direito tende
a produzir, de forma geral, a eliminação do arbítrio no exercício dos poderes públicos,
a submissão do poder ao império do direito e o reconhecimento de direitos e garantias
fundamentais, que são, em última análise, a materialização de uma ideia de justiça
presente na constituição de um Estado. Por isso, podemos afirmar que o Estado de
direito possui várias dimensões essenciais. A primeira dimensão essencial é que o
Estado de Direito é um Estado subordinado ao direito. Isso significa, mais
concretamente, três coisas: a) o Estado está sujeito ao direito, em especial a uma
Constituição (por isso, que constituição é, segundo José Joaquim Gomes Canotilho,
o estatuto jurídico do político); b) o Estado atua através do direito; c) o Estado está
sujeito a uma ideia de justiça.
As demais dimensões essenciais são, resumidamente, que o Estado de Direito
é um Estado de direitos fundamentais, ou seja, com um conjunto de normas
constitucionais superiores, que obrigam o legislador a respeitá-las, observando o seu
núcleo fundamental, sob pena de nulidade das próprias leis e da declaração de sua
inconstitucionalidade; além disso, deve observar o princípio da razoabilidade, ou seja,
é um Estado de justa medida porque se estrutura em torno do princípio material
normalmente chamado de princípio da proibição de excesso. Além disso, destacamos
que o Estado de Direito é um Estado que estabelece o princípio da legalidade da
administração pública, isto é, um Estado que estabelece a ideia de subordinação à lei
dos titulares dos órgãos, funcionários e agentes do Estado que responde pelos seus
atos, ou seja, é um Estado que civilmente é responsável por danos incidentes na
esfera jurídica dos particulares. O Estado de Direito é um Estado que garante a via
judiciária, ou seja, o acesso ao poder judiciário no caso de ameaça ou de lesão de
direito. Esse princípio é complementado, entre outros pressupostos, pela garantia de
24
um juízo regular e independente, pela observância do princípio do contraditório e da
ampla defesa, pela institucionalização do direito de escolher um defensor e pelo
reconhecimento do cidadão ter a assistência obrigatória de um advogado quando
processado pelo Estado.
Outro ponto fundamental e essencial do Estado de Direito é um Estado
estruturado a partir da divisão de poderes, isto é, do fracionamento do Poder do
Estado e da independência de seus três poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário.
Nesse sentido, o Estado de Direito é também, como regra, um Estado
descentralizado, mesmo quando se configura como um Estado unitário.

5 O SISTEMA DE JUSTIÇA

Fonte: blog.projetoexamedeordem.com.br

5.1 O acesso à justiça

Tem se tornado lugar comum na literatura e no noticiário sobre a sociedade


brasileira o alto potencial de conflito existente. Cenas de violência têm habitado o
cotidiano, ao lado de um sem número de comportamentos vistos como destoantes de
uma vida minimamente civilizada. As causas são inúmeras e entre elas, as mais

25
repetidas, tanto nas análises acadêmicas como pelos meios de comunicação, são
aquelas provocadas por questões estruturais.
Ainda que não haja evidência empírica que apoie a hipótese segundo a qual a
pobreza, a crise econômica, o desemprego estejam diretamente relacionados a taxas
de criminalidade, não há como negar que formam um terreno propício à ebulição de
conflitos. De fato, a complexidade da sociedade brasileira e, sobretudo, a sua má
distribuição da renda, têm sido fatores que estimulam o alto potencial de conflito e a
escalada da violência, mesmo que não expliquem nem comportamentos que
dificultam o convívio social e menos ainda a descrença nas instituições. O quadro
social é dramático, marcado por profundas desigualdades.
Segundo dados oficiais, os pobres chegam à casa dos milhões, representando
cerca de 30% da população. A distância entre ricos e pobres é abismal e tem
aumentado nos últimos anos (em 1960, os 10% mais ricos tinham renda 34 vezes
superior à dos mais pobres; em 1990, a diferença mais do que duplicou, passando a
ser de 78 vezes; e em 1998, segundo dados do Banco Interamericano de
Desenvolvimento, os 10% mais ricos possuíam quase a metade – 47% – de toda a
renda nacional).
Por outro lado, houve uma significativa mudança no que se refere aos
indicadores de urbanização. Enquanto em 1940 a população urbana representava
31%, em 1970 atingiu a casa dos 68% e em 1990 passou a 79%. Entre os anos 40 e
80 surgiram no país mais de 400 novas cidades (em 1950 o Brasil contava com 96
cidades com mais de 20 mil habitantes, em 1985 já eram 500). Ou seja, em um
intervalo de menos de 30 anos, a população brasileira transformou-se de
predominantemente rural em urbana. O ritmo e a forma como este processo se
verificou provocou desenraizamento, desagregações de famílias, perda de laços
primários e a consequente atomização de indivíduos em cidades grandes, inchadas,
desordenadas, com cinturões de miséria e gritantes deficiências na prestação de
serviços.
Ao lado desses traços, outras características não estruturais poderiam ser
igualmente listadas como responsáveis pela magnitude dos indicadores relativos à
criminalidade e a toda sorte de conflitos: a corrupção, a impunidade, os baixos índices
de escolaridade, práticas ilegais perpetradas por agentes estatais, a descrença nas
instituições e nas leis.
26
Diante deste quadro, marcado por uma excessiva potencialidade de explosão
de conflitos, seria de se supor que a instituição encarregada de resolvê-los ocupasse
um lugar central tanto no cotidiano dos cidadãos quanto nas preocupações dos
acadêmicos em geral.
No entanto, não é isto o que ocorre. No que diz respeito aos estudos de
cientistas sociais ainda é bastante reduzido o número de pesquisas e de textos
traduzindo esforços de investigação e análises sobre o Judiciário ou sobre o sistema
de justiça como um todo. No que se refere à população, os dados indicam uma forte
descrença tanto nas leis quanto nas instituições encarregadas de sua aplicação.
Assim, tanto o Judiciário como as demais instituições de justiça – Ministério Público,
Polícia, Defensoria Pública – têm recebido avaliações muito negativas. Por outro lado,
as leis não são vistas como universais, como balizadoras de comportamentos, mas,
sobretudo, como instrumentos para punir os “fracos” e redimir os poderosos.
De fato, os meios de comunicação têm dado um espaço crescente aos
conflitos, sobretudo à violência. Diariamente toda sorte de crimes compõem a pauta
tanto de jornais como da mídia eletrônica, chegando a haver, inclusive, programas
centrados neste tema, divulgando atos violentos, não poupando o espectador ou o
ouvinte das mais cruéis perversidades. Holofotes buscam o crime, onde quer que ele
esteja, nem que, para isso, tenham que forjar um bandido. As complexas relações
entre o delito e os meios de comunicação, sem dúvida, mereceriam ser exploradas.
Por outra parte, deve-se acentuar também a importância do esquecimento e da
vergonha nos depoimentos dos entrevistados. Como se sabe, diante do pesquisador
muitos entrevistados vacilam em registrar suas respostas. Culturalmente, o conflito é
visto de forma bastante negativa. Assim, não seria surpreendente a deliberada ou
inconsciente omissão de envolvimento em situações desta natureza. Some-se a estas
ponderações o que poderia ser caracterizado como banalização da violência, isto é, o
fato de que cenas de violência passaram a habitar com tanta frequência o cotidiano,
que só são registradas quando ultrapassam determinados limites, limites estes cada
vez mais amplos.
Saliente-se, ainda, que dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), publicada em 1988, indicam que, do total de pessoas envolvidas em algum
tipo de conflito no ano anterior, mais do que a metade não procurou a justiça estatal –
apenas 45% dos entrevistados o fizeram. Isto é, 55% dos que sofreram algum tipo de
27
problema sequer chegaram às portas do judiciário. O fato de um grande número de
pessoas não procurar a justiça formal deve ser sublinhado, na medida em que indica
tanto que muitos problemas não vêm sendo resolvidos pela instituição encarregada
de fazê-lo, como que outros canais podem estar ocupando este espaço.
A resolução pacífica de conflitos pode ser atingida por mais de um mecanismo:
por técnicas extrajudiciais, organizações da sociedade civil ou por decisão judicial. As
técnicas extrajudiciais de solução de controvérsias são: a mediação, a conciliação e a
arbitragem. As organizações da sociedade civil resolvem problemas quer através da
intervenção direta de suas lideranças, quer em assembleias, nas quais se busca o
consenso ou o predomínio da vontade da maioria dos associados. Por fim, o último
mecanismo – decisão judicial – supõe, antes de mais nada, o império da lei, a crença
nas instituições judiciárias e um mínimo de conhecimento a respeito delas, das leis e
de sua aplicabilidade. No linguajar comum este conhecimento aparece nas
expressões: “eu sei dos meus direitos”, “vou procurar os meus direitos”, ou “vou até
um tribunal”. Quando “direitos” não são entendidos como tais, ou quando são vistos
como “favores” não constituem pauta para reivindicações. Ou ainda, quando se sabe
que, apesar de haver um direito, de nada adianta o recurso aos canais estatais, porque
a apelação estará fadada a não provocar efeitos, configura-se uma situação na qual
seria pouco “racional” o apelo aos órgãos do sistema de justiça.
Desta forma, deve-se indagar por que grande parte da população não procura
um árbitro, pago pelo poder público, para dirimir conflitos. Ou ainda, como e quais são
os mecanismos alternativos que vêm sendo utilizados.
Estas questões são fundamentais, já que da resposta obtida podem-se
configurar duas situações polares: uma caracterizada pelo apelo à lei do “mais forte”,
dada a descrença e/ou inoperância das instituições estatais que deveriam distribuir
justiça e, no outro extremo, a presença de organizações públicas, não estatais, com
legitimidade para dirimir conflitos de forma pacífica, indicadoras de uma sociedade
civil bastante organizada. No primeiro caso têm-se os linchamentos, os massacres,
os extermínios, as matanças, a justiça feita com as próprias mãos e um vasto número
de mecanismos que operam à margem e contra a lei; no outro, há entidades públicas,
mas não estatais, que operam resolvendo disputas. Os exemplos mais típicos, nesta
última situação, são aqueles nos quais igrejas, clubes, sociedades de amigos de
bairro, enfim, entidades da sociedade civil têm a legitimidade de seus membros para
28
arbitrar conflitos. Em ambas as situações o sistema de justiça estatal não é ativado,
mas as consequências para a sociedade, em um ou outro extremo, são muito distintas.
Enquanto uma configura a ausência total de civilidade e praticamente traduz a “guerra
de todos contra todos” hobbesiana, a outra propicia, tanto padrões de comportamento
comunitários, como de guetos, com baixa integração societal.
Caberia discutir em qual destes extremos seria possível enquadrar a sociedade
brasileira. Os dados indicam que estamos distantes de uma situação caracterizada
pela presença de fortes organizações da sociedade civil, muito embora não se possa
negar a existência de tais instituições. Tem sido mais frequente do que normalmente
se admite a atuação de lideranças comunitárias, de sociedades de amigos de bairro,
de igrejas, de associações voluntárias, na solução de certos conflitos. Neste sentido,
é particularmente comum que membros de certas igrejas, em especial as evangélicas,
busquem a resolução de seus problemas junto às suas respectivas lideranças. Este
canal faz com que os conflitos vivenciados por membros destas comunidades não
ultrapassem as suas fronteiras. Por outro lado, a incapacidade do sistema estatal de
impor-se e de dar respostas rápidas e eficientes aos inúmeros conflitos tem
estimulado a proliferação de organizações para estatais, que têm imposto sua própria
“lei”, tornando a vida, em certos centros urbanos, muito próxima da suposição descrita
por Hobbes, da situação em que se encontrariam os homens antes da presença do
Estado, de um quadro de barbárie e de guerra selvagem.
Esses dois extremos descrevem situações polares, “típico-ideais” na
terminologia weberiana, nas quais as pessoas preferem ou são levadas a buscar a
resolução de suas controvérsias totalmente fora do sistema de justiça estatal. Há,
contudo, uma parte considerável da população que recorre ao sistema estatal, sem,
contudo percorrer todos os passos que compõem um processo judicial. Nesta
alternativa, têm se destacado as figuras do delegado de polícia e do promotor público,
que acabam exercendo também as funções de conselheiro e árbitro, solucionando
muitos dos problemas que chegam até eles. De fato, uma pesquisa feita em Recife,
relatada por Joaquim Falcão, conclui que uma vara de justiça penal resolve apenas
13% do número de casos penais que um comissário resolve. Da mesma forma,
pudemos observar em várias das comarcas visitadas que muitas desavenças são
resolvidas “extrajudicialmente”, quer por delegados, quer por promotores, ou mesmo
por funcionários qualificados de fóruns como, por exemplo, assistentes sociais. Ou
29
seja, muito embora alguns milhares de problemas não cheguem até a justiça formal,
entendendo por isto todo o percurso que termina com a sentença final proferida por
um integrante do poder judiciário, isto não significa que sejam inteiramente “expulsos”
do sistema. Pode significar que muitos conflitos encontraram solução através da
intervenção de agentes do sistema, sem, no entanto, sujeitaram-se a todas as
formalidades que caracterizam um processo judicial. Assim, o fato de um problema
não chegar até o juiz não quer dizer, necessariamente, que não foi de alguma forma
processado pelo sistema de justiça.

Fonte: editoraboreal.com.br

Enfocando-se exclusivamente o total de pessoas que entraram com ação


judicial, “verifica-se que a utilização da justiça preponderou nos conflitos por pensão
alimentícia (73.4%), nas questões trabalhistas (66.6%), nas separações conjugais
(53.7%) e nos conflitos pela posse da terra (51.3%). Entretanto, em relação aos
conflitos de vizinhança (85.1%), aos problemas criminais (72%) e às cobranças de
dívida (71.5%) foi alta a proporção de pessoas que não se utilizou da justiça para a
solução de seus problemas” (FIBGE, Participação Político-Social 1988, volume 1,
Justiça e Vitimização, pag. XXXI).
Como se depreende desses percentuais, a busca por uma solução judicial deu-
se em maior proporção exatamente nos tipos de problemas em que são mais

30
concretas, mais rápidas e efetivas as consequências da sentença judicial. Assim, o
estabelecimento de uma pensão alimentícia redunda compulsoriamente em um
montante a ser pago a uma das partes, daí a necessidade imperiosa de uma decisão
judicial.
Por outro lado, em relação aos problemas criminais, por exemplo, grande parte
das vítimas sequer recorre à justiça porque sabe das dificuldades em se encontrar o
criminoso e que, na eventualidade dele vir a ser encontrado, são amplas as
possibilidades de que não venha a ser punido, especialmente se possuir recursos
financeiros. Estas dificuldades são sintetizadas nas expressões: “É mais fácil
encontrar um ladrão de galinha na prisão do que alguém que provocou danos
maiores”; “a polícia prende e a justiça solta”; “a polícia quando quer, acha o criminoso,
o problema é querer”. Em outras palavras e resumindo: os dados oficiais revelam que
o Judiciário é mais procurado exatamente para arbitrar aquelas questões em que
sabidamente sua resposta é mais eficiente e mesmo imprescindível; e é menos
procurado precisamente quando se trata de solucionar problemas para os quais sua
eficiência tem sido muito baixa.
Esta hipótese é confirmada quando se examina a distribuição das pessoas que
moveram ação judicial, por ano de estudo. Nas questões em que as respostas da
justiça têm sido mais eficientes, não apenas há um maior número de ações como a
distribuição por escolaridade dos que entraram na justiça praticamente reproduz a da
população como um todo. Ou seja, o ideal de uma justiça eficiente e igual para todos
está menos distante da realidade quando se trata de questões para as quais o
judiciário está mais equipado e vem demonstrando maior eficiência.
Explicando: pode-se sustentar que a distribuição da população por
escolaridade desenha uma curva semelhante à da distribuição por renda. Quando a
procura por justiça se dá em torno de médias que reproduzem a da população,
significa que a sua credibilidade é mais alta e perpassa de forma semelhante todos os
estratos sociais.
Supondo-se que um determinado problema não é exclusivo de nenhum
segmento social e que o acesso à justiça é igual para todos, todos deveriam procurá-
la em igual proporção. É exatamente isto o que acontece no que se refere à pensão
alimentícia. Observa-se, em relação a este problema, que há, de fato, uma maior
proporção de pessoas com os níveis mais baixos de escolaridade. Esta distribuição
31
reproduz a da população. A única exceção diz respeito àqueles que não têm instrução
e que são exatamente os que não teriam o que reclamar na justiça, por ausência de
renda.
Nas questões em que o Judiciário é mais deficiente, ocorre o inverso: é menor
o percentual de pessoas que o procuram e, quando o fazem, as causas encaminhadas
concentram-se em parcelas especificas da população. Por fim, não se pode descartar
a hipótese segundo a qual para alguns setores da população é exatamente a falta de
eficiência da justiça que estimula a sua procura. Isto é, como se sabe que a justiça é
lenta, muitos preferem transferir para o judiciário a solução de suas disputas, uma vez
que, desta forma, ganham tempo. Questões que envolvem dívidas e trabalhistas
representam os melhores exemplos para o exame desta hipótese.
A variável renda coloca outro problema igualmente importante quando se
examina a procura por justiça. O acesso à justiça é, teoricamente, igual para todos.
Entretanto, diferenciais de recursos econômicos podem explicar distintas motivações
para ingressar na justiça. Parece ser exatamente isto o que vem ocorrendo. Segundo
dados do FIBGE, do total de pessoas que se envolveram em ações judiciais 62%
pagaram pelo serviço de justiça enquanto 38% o utilizaram gratuitamente. Os conflitos
de vizinhança e as ações por pensão alimentícia foram as questões em que mais se
recorreu ao serviço gratuito de justiça. Em todos os outros tipos de conflito
preponderaram os serviços pagos, especialmente aqueles que envolveram a posse
de bens, como cobrança de dívida, herança, desocupação de imóvel e posse da terra.
O reduzido percentual daqueles que se utilizaram gratuitamente da prestação
jurisdicional contribui para propagar a imagem popular que se tem da justiça – uma
justiça cara, elitista, feita para os ricos, para os que têm posse. Esta representação de
uma justiça desigual é ainda agravada pelo fato inquestionável de que é muito
diferente o empenho dos advogados contratados, daquele dos advogados dativos
(nomeados pelo Estado) ou da defensoria pública na defesa dos interesses de seus
representados. Daí a crença de que rico não fica na cadeia, que presídios foram
construídos para os pobres, para aqueles que não têm condições de pagar seus
próprios advogados.
Ora, um dos supostos do Estado democrático é a igualdade de direitos. As
desigualdades no acesso e na utilização da justiça acentuam as desigualdades
econômicas e sociais. A democratização no acesso à justiça constitui-se em pauta
32
fundamental para a efetivação dos direitos que formam a cidadania. Desta forma, o
sistema de justiça opera não apenas como garantidor de direitos, mas também como
um espaço no qual há a possibilidade de redução das iniquidades decorrentes das
desigualdades de renda e prestígio.

5.2 O sistema de justiça

Como afirmado, o sistema de justiça é mais amplo do que o poder judiciário. A


rigor, o juiz é apenas uma peça de um todo maior. O sistema de justiça envolve
diferentes agentes: o advogado, pago ou dativo; o delegado de polícia; funcionários
de cartório; o promotor público e, por fim, o juiz. Uma controvérsia para transformar-
se em uma ação judicial percorre um caminho que tem início ou na delegacia de
polícia, ou na promotoria, ou por meio de um advogado. Cabe ao juiz examinar esta
questão quando ela deixou de ser uma disputa entre particulares, ou entre particulares
e órgãos públicos, ou entre diferentes órgãos públicos e transformou-se em uma ação.
Daí a expressão: o juiz pronuncia-se sobre os autos e não sobre o que está fora deles.
Este sistema possui uma organização espacial. O critério territorial define as
comarcas, que são a menor unidade judicial. As comarcas, por sua vez, classificam-
se pelo volume de feitos que abrigam, variando da menor para a maior. Este critério
determinará se se trata de uma comarca de primeira entrância ou inicial, de segunda
ou intermediária, de terceira ou final, e ainda especial. Esta designação varia de
estado para estado, mas todas as unidades da federação distinguem as entrâncias
menores das maiores.
Há ainda um critério processual, que definirá o tipo de vara. Caso as questões
sejam criminais – vara criminal, caso cíveis – vara cível.
Teoricamente, uma comarca do interior, de primeira entrância (ou entrância
inicial, como é designada em alguns estados da federação), abrigando uma ou mais
cidades de pequeno porte, possui uma demanda judicial relativamente menor. Esta
comarca tem apenas um juiz que deve julgar todos os tipos de processo – civil ou
criminal.
As comarcas maiores, ou seja, aquelas que possuem um maior número de
feitos são divididas em pelo menos duas varas: uma cível e outra criminal, a cada uma
correspondendo um juiz. Nas comarcas de terceira entrância e nas especiais estas
33
varas desdobram-se em outras, formando a 1ª, a 2ª, a 3ª vara cível; e o mesmo
podendo ocorrer no que se refere às questões criminais. Além dessa multiplicação de
varas cíveis e criminais, nas entrâncias finais têm-se varas especializadas, como a da
família, da infância etc.
A organização do judiciário prevê ainda uma instância de recurso, designada
segunda instância, ou os Tribunais estaduais.
Esta organização judicial é acompanhada pelas organizações do Ministério
Público e parcialmente pelas Delegacias de Polícia.
Esse complexo sistema judicial é bastante desconhecido da população. O
público, em geral, desconhece não apenas o seu funcionamento como também é
incapaz de distinguir os papéis e as funções de cada um de seus agentes. Pode-se
afirmar que o grau de desconhecimento é universal, não havendo correlação positiva
entre escolaridade e conhecimento. Ou seja, mesmo pessoas com grau universitário
não possuem conhecimentos mínimos sobre o sistema de justiça e seus diferentes
operadores. Não é raro que ignorem a existência de dois agentes inteiramente
distintos como o são o juiz e o promotor. O delegado de polícia sequer é visto como
pertencente ao sistema de justiça.
Tal desconhecimento por parte da população é reconhecido, com certo
desconforto, por juízes, promotores e delegados. Assim, inúmeras vezes, durante a
pesquisa, ouvimos promotores queixarem-se de que eram constantemente indagados
sobre quando seriam promovidos, tornando-se um juiz. Ou, mesmo um juiz, entre
indignado e surpreso, relatando que era cobrado por não ter saído de seu gabinete e
prendido um criminoso. E, ainda, um delegado referindo-se à expectativa de que
proferisse uma sentença, determinando a pena de um suposto culpado.
Em contraste com a ausência de correlação entre grau de escolaridade e
conhecimento sobre o sistema de justiça, verificou-se, durante a pesquisa, que quanto
menor o município maior a probabilidade de que seus habitantes conhecessem
minimamente as diferenças entre os vários integrantes do sistema de justiça.
Efetivamente, nas cidades pequenas, além de ser comum a distinção entre as figuras
do juiz, do promotor e do delegado, há noções razoavelmente claras sobre as funções
de cada um. Nas comarcas maiores, ao contrário, o mundo da justiça tende a se
distanciar de tal forma do cotidiano do cidadão, que dificilmente escapa de

34
apreciações negativas, nas quais todos os seus agentes e atribuições encontram-se
misturados.
Para a maior parte da população a figura do juiz resume todo o sistema de
justiça. O judiciário é percebido não apenas como o poder que profere sentenças,
julgando, mas, também, como uma instituição responsável por fornecer respostas às
mais variadas demandas por justiça. Atribui-se ao juiz amplas funções: iniciar uma
questão, identificar o culpado, prendê-lo, puni-lo e reparar o mal. E, mais ainda, sua
sentença deveria obedecer aos cânones de uma justiça rápida, independente das
provas, sensível à opinião pública.

Fonte: 1.bp.blogspot.com

Enfim, espera-se do judiciário, justiça no sentido mais amplo do termo, como


se coubesse ao juiz pronunciar-se tanto sobre questões que constam dos autos como
sobre toda e qualquer iniquidade social. Ignora-se, quase inteiramente, que o juiz é
um agente passivo, que só opera quando provocado (quer pela promotoria, quer por
advogados), baseia-se em provas que constem do processo, e que só pode agir
segundo os ditames da lei. Em questões criminais, o judiciário, além de ser ativado,
depende de investigações que têm origem em uma delegacia de polícia e de
informações colhidas por um cartório. Estes constrangimentos, contudo, são
normalmente desconsiderados.

35
Entre os agentes do sistema de justiça, o mais conhecido da população é o
delegado de polícia, menos por suas competências formais e mais por encontrar-se
mais próximo do cotidiano do homem comum. Um respeito recheado de medo
confere-lhe autoridade. Delegados, com frequência, sobretudo em cidades pequenas,
extrapolam suas atribuições: agem arbitrando conflitos, sendo procurados até mesmo
para dissuadir a continuidade de disputas.
O promotor, em contraste com as figuras do delegado e do juiz, é do ponto de
vista de suas atribuições, o mais desconhecido, principalmente nas cidades de porte
médio e grande. Sabe-se apenas que se trata de uma autoridade, mas seu perfil é
uma incógnita. Deste ponto de vista, está em uma posição ainda mais difícil do que a
do juiz. Pois é como se não existisse, como se representasse uma personagem que
recebe um título que poucos sabem dizer para que serve. É bem verdade que nas
cidades menores há uma inversão: o promotor é bastante conhecido, recebendo as
mais diversas demandas, participando ativamente do cotidiano da população.
Estas observações têm validade para o país como um todo,
independentemente de suas variações regionais. Contudo, como afirmamos, a
realidade observada em comarcas menores tende a diferir substancialmente daquela
que pode ser apreciada nas maiores. O maior grau de conhecimento sobre o sistema
de justiça ou ao menos sobre seus agentes nas comarcas de primeira e segunda
entrância tem, provavelmente, a ver com o fato de que nas circunscrições menores as
relações pessoais preponderam sobre as impessoais.
Para começar, nas comarcas menores o fórum sempre ocupa um lugar de
destaque na organização física da cidade. Ao lado da sede do poder executivo, da
câmara dos vereadores, da delegacia de polícia e da igreja é uma referência
geográfica obrigatória. Isto, quando não é o caso do fórum coabitar o mesmo espaço
físico da prefeitura, como acontece em muitas das pequenas cidades do interior. De
toda forma, em ambas as situações, o juiz é conhecido, é identificável e sabe-se até
mesmo o seu nome. É uma autoridade reconhecida, e que certamente faz parte da
elite local. O mesmo pode ser dito no que se refere ao promotor. Com frequência, o
promotor é ainda mais conhecido do que o juiz, já que, por dever de oficio,
habitualmente reserva pelo menos dois dias da semana para um contato mais direto
com o público. Da mesma forma, a delegacia de polícia é facilmente localizável e
costuma ser um local para o qual as pessoas se dirigem em busca de soluções para
36
os mais variados problemas, inclusive para aqueles que pouco têm a ver com uma
delegacia de polícia, como por exemplo, internamento hospitalar, abrigo, queixas
contra certos serviços públicos, pedido de alimentação.
Nestas comarcas de menor tamanho, o fórum, como dissemos, distingue-se
por ser um dos prédios públicos de melhor qualidade. Este traço, se por um lado
contribui para montar a imagem da justiça como algo importante, por outro, pode
funcionar como um fator de inibição. As pessoas não entram neste espaço público
sem demonstrar recato e, mesmo, constrangimento. Estrategicamente, as salas
reservadas ao juiz não são de fácil acesso. Normalmente, localizam-se no segundo
andar, situação espacial que estimula a imagem do juiz como de alguém distante,
fechado em seu gabinete, uma autoridade com a qual não se mantém contato,
insensível a pressões. O juiz não recebe o público, só entra em relação direta com a
população quando a pessoa passou para uma das seguintes categorias: vítima,
acusado ou testemunha. E mesmo nestes casos, as pessoas não falam o que
desejam, mas respondem às questões por ele formuladas e sempre em um tom
bastante formal. A reverência devida ao juiz é estimulada pelos funcionários que
dividem com o juiz o espaço do fórum. Estes tratam o juiz com deferência, cerimônia
e respeito e, em geral, dificultam o acesso do público às salas ocupadas pela
magistratura. É de fácil constatação que todo o cenário montado, mais a forma de se
vestir e de falar do juiz, sobretudo nestas comarcas de primeira entrância, contribuem
para que os juízes sejam vistos pela população como uma personalidade de máxima
importância, em tudo distinto do cidadão comum.
Há juízes que estimulam esta reverência que lhes é conferida. Em primeiro
lugar, porque os juízes trabalhando nas comarcas de primeira entrância são, em geral,
magistrados recém-ingressos no judiciário. Vindos de fora, são uma incógnita para a
população. Nada se sabe sobre sua infância, seus hábitos, sua família. Esta situação,
ao mesmo tempo em que marca o início de carreira, é mais sujeita ao controle dos
órgãos de cúpula do poder judiciário. Por outro lado, a própria insegurança
característica das fases iniciais de carreira estimula um comportamento de maior
fechamento à vida social e até de autoritarismo. Além disso, por paradoxal que pareça,
assim que um juiz inicia a sua carreira é designado para uma comarca menor, na qual
é obrigado a acumular todos os tipos de julgamento, tanto cíveis como penais.

37
Situação que o obriga a ser um “generalista”, como classificaram vários dos juízes
entrevistados.
Uma das características da carreira da magistratura (assim como dos
integrantes do Ministério Público) é que a ascensão é feita das entrâncias menores
para as maiores. Isto pode significar, e com frequência significa que um juiz
permanece um espaço de tempo muito curto nas comarcas iniciais ou de primeira
entrância. Nestas comarcas são, em geral, muito baixos os estímulos para a sua
permanência. São, na maior parte das vezes, cidades pobres, com poucos atrativos
culturais e sociais, além de forçarem o juiz a um maior isolamento. Desta forma, assim
que pode, o juiz solicita sua transferência para uma comarca maior e mais próxima de
sua cidade de origem. Este fato contribui tanto para que o juiz não construa vínculos
nas comarcas menores, como para que veja esta situação como uma etapa transitória,
de passagem. Isto provoca consequências: as mais visíveis, entre elas, são a falta de
conhecimento sobre a realidade em que o juiz atua e a tendência de transformar o
ofício de julgar em uma questão excessivamente burocrática e técnica. Para a
população, por seu lado, esta grande rotatividade favorece a construção da imagem
do juiz como a de alguém distante, hierarquicamente superior, que tem o poder de
julgar, sem compromisso com a cidade.
Neste sentido, o perfil do juiz distingue-se radicalmente daquele do político.
Este busca a proximidade, o contato, empenha-se para mostrar-se igual e está
sempre disponível para receber seus eleitores e para fazer favores. Toda a
performance do juiz, ao contrário, acaba por colocá-lo, aos olhos da população, em
uma posição de superioridade, inalcançável até mesmo pelas autoridades eleitas da
localidade.
A curta permanência dos juízes nas comarcas deve-se, em grande parte, ao
fato de que, especialmente nos últimos anos, a ascensão na estrutura do Judiciário
vem sendo feita de forma muito rápida. Um juiz pode ficar menos de seis meses em
uma comarca antes de ser promovido. A abertura de novos postos e a carência no
número de magistrados fazem com que esta mobilidade seja intensa. A alta
rotatividade, que vem marcando a fase inicial da carreira, e a atitude dos juízes face
a ela, permitiu-nos distinguir duas estratégias diferentes entre os membros da
magistratura.

38
Há aqueles que, de fato, estão apenas de passagem e que ambicionam chegar
o mais rapidamente possível em uma comarca de terceira entrância e, por outro lado,
aqueles que têm por objetivo ser sempre o que designam um “juiz de interior”. Estes
últimos, em geral, são mais sensíveis aos problemas sociais da localidade e enxergam
a magistratura como uma vocação. Constroem a imagem de si mesmos e da profissão
como de sacrifício, de sacerdócio, de alguém que foi alçado à posição de árbitro, que
cultiva a imparcialidade e que deve viver no isolamento. O fato da profissão dar-lhes
o privilégio de julgar seus semelhantes, decidindo sobre suas vidas, compõe o núcleo
central do argumento. No primeiro caso, diferentemente, salientam-se as más
condições de trabalho, suas próprias qualidades intelectuais e a intenção de ascender
aos mais altos postos da magistratura. Neste modelo, mais do que a posição de
árbitro, chama-se atenção para a importância da instituição judiciária, vista como uma
instituição que deveria desfrutar de mais prestígio e poder – traços nunca
suficientemente reconhecidos pelos que são externos a ela.
Mas, tanto no que se refere a um tipo como ao outro – o “juiz sacerdote” e o
“juiz de carreira” –, é sempre possível encontrar um forte denominador comum,
demonstrando como tem sido exitosa a socialização feita pela instituição na
construção do modelo de profissional desejado. Assim, apesar destas distinções, o
grau de semelhança no discurso dos juízes é apreciável. As diferenças são tênues e
sempre aparecem naquilo que os próprios juízes designam como pormenor e que o
pesquisador só é capaz de salientar depois de um convívio mais longo e de entrevistas
em profundidade. De fato, pesquisa realizada pelo IDESP junto à magistratura em
1993 demonstra a existência de uma extraordinária homogeneidade entre os
integrantes da magistratura, quer quando manifestam sua opinião sobre o judiciário
quer sobre sua missão básica, independentemente do tempo na carreira ou da
entrância em que estavam servindo no momento das entrevistas.
Apesar desta homogeneidade é possível detectar movimentos que veem
questionando o mito tradicional do “bom juiz como um ser distante da realidade”,
propondo uma maior abertura às transformações sociais e refletindo uma
preocupação com um papel mais ativo da magistratura. Não apenas são significativas
as atuações de um grupo ligado ao chamado “direito alternativo”, ou “juízes para a
democracia”, como nas próprias escolas oficiais de preparo dos juízes têm sido
notáveis essas mudanças.
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O dia a dia de um fórum distingue, separando acentuadamente, o desempenho
do juiz e do promotor, apesar de ambos atuarem no mesmo espaço físico. Enquanto
o juiz ou está em seu gabinete, fechado, examinando processos ou na sala de
audiências em sessão, o promotor, durante a maior parte do tempo, encontra-se em
sua sala, tem as portas abertas, recebe a população. Um e outro se orientam por
diferentes concepções sobre a imagem ideal de seu respectivo papel profissional: o
bom juiz é aquele que não se pronuncia sobre os problemas, não emite opinião; o
bom promotor, ao contrário, é aquele que é comprometido com as causas sociais, um
defensor do interesse público, está sempre atento às possíveis transgressões à Lei.

Fonte: www.mpgo.mp.br

Tais imagens produzem consequências na percepção que cada um deles tem


sobre o outro. Os mais críticos em cada uma das instituições sublinham as diferenças,
de forma a valorizar o seu próprio papel. Assim, o juiz vê o promotor como um agente
que retarda a sentença, como alguém que pode dificultar o seu trabalho, já que tem
atribuições que interferem no processo e, no limite, como alguém estranho à justiça e
sem responsabilidade. Tais críticas tenderam a se acentuar após a Constituição de
1988, que conferiu maiores poderes ao Ministério Público, tornando-o independente
tanto do Executivo quanto do Judiciário. O promotor crítico, de seu lado, identifica no
juiz um burocrata do julgamento, um agente passivo, ao contrário dele, que tem o

40
poder de iniciar uma ação. Estas imagens sofrem diferenças de um estado para outro.
Em São Paulo, por exemplo, são acentuadas as críticas da magistratura ao Ministério
Público. As conhecidas ligações do Ministério Público com o Executivo,
particularmente durante os governos Quércia e Fleury, contribuíram para estimular
uma imagem negativa da instituição, ainda que se reconheça a importância das
mudanças legais. As relações com o executivo são vistas de forma crítica pelos juízes,
considerando-as um malefício, já que implicam, de acordo com seu julgamento, uma
politização da instituição e de seus membros. Esta percepção foi atenuada nos últimos
anos, após o início do primeiro governo Covas, quando o Ministério Público passou a
exibir uma imagem de maior independência em relação ao executivo.
Formalmente, o promotor é o representante da sociedade, cabendo a ele
acusar em nome da justiça pública, promover a ação penal pública, requisitar da
polícia o inquérito policial e diligências investigatórias, zelar para que o poder público
respeite os direitos assegurados pela Constituição, conduzindo inquéritos civis e
propondo ações civis públicas para a defesa dos interesses individuais indisponíveis
e dos interesses sociais. Para cumprir seu papel legal, os integrantes do Ministério
Público reservam um tempo em sua agenda para um contato direto com a população.
De fato, nas cidades de tamanho pequeno e médio que visitamos, pode-se
observar o desempenho da promotoria no atendimento ao público. São antessalas
repletas de populares, filas pelos corredores, pessoas trazendo problemas na
esperança de vê-los resolvidos. Este atendimento, na maior parte das vezes, funciona
como um filtro para as questões que são passíveis de se transformar em uma ação
judicial. Assim, é um casal que deseja se separar e que vai em busca de uma solução,
a senhora que reclama do marido alcoólatra, o senhor que quer regularizar a posse
de sua terra, a mulher que se julga traída, o homem que deseja rever seus filhos, a
senhora que reclama do esgoto a céu aberto em frente de sua casa, a associação de
bairro que quer a construção de um ginásio para prática de esportes etc. Há, por parte
do promotor, um trabalho de distinguir os casos; de recomendar como e o que deve
ser feito para que se chegue a uma solução judicial; indicar o procedimento para a
nomeação de um advogado dativo quando a parte ou as partes não possuem recursos
para pagar um profissional do direito. Em suma, promotores informam, orientam, dão
encaminhamento a demandas, recebem denúncias e reclamações. Este contato direto
com o público transforma o promotor, sobretudo nas cidades pequenas, em um agente
41
estatal muito especial: uma autoridade de fácil acesso, com poderes de resolver uma
série de questões, “defensor” dos fracos.
As mudanças constitucionais na concepção do Ministério Público, definindo-o
não mais como um órgão do executivo, mas como uma função essencial à Justiça,
ampliaram sobremaneira suas atribuições. O novo estatuto legal do Ministério Público
representou, a rigor, um ganho para os setores mais progressistas da instituição.
Assim, estes têm procurado dar publicidade às suas novas funções e à importância
de seu papel como guardiões de uma ordem democrática e justa. Tais alterações têm
reflexos tanto na sua atuação junto à população como em sua relação com os
membros da magistratura e da delegacia de polícia.
Em relação à população, verificou-se um acentuado estímulo para o trabalho
em causas que envolvem interesses coletivos. Passou a ser comum, encontrar
promotores atentos a questões que envolvem o meio ambiente, o consumidor, a
improbidade administrativa, o patrimônio histórico e cultural, direitos relacionados à
educação, à saúde, à habitação. Assim como tornou-se habitual encontrar promotores
proferindo palestras em escolas, clubes, câmaras municipais, discorrendo sobre
direitos da população e o papel do Ministério Público.
No que se refere aos demais operadores do sistema de justiça, os ganhos
institucionais acrescidos da vitória no antigo esforço dos promotores de se
equipararem aos juízes, colocou-os em uma posição vista com desconfiança tanto
pela magistratura como pelos delegados de polícia. Estes últimos, sobretudo,
apontam os promotores como os organizadores do maior lobby durante os trabalhos
da Constituinte e não escondem seu receio de que venham a ser subordinados ao
Ministério Público.
Por fim, restaria falar do advogado, um agente do sistema de justiça. As
insuficiências dos cursos jurídicos produzem consequências em todos os profissionais
que atuam no sistema de justiça: magistratura, promotoria, advocacia, delegados de
polícia, defensorias, procuradorias oficiais. No que se refere especificamente aos
advogados é notável como se encontram exatamente nesta carreira os dois extremos:
os melhores preparados e os que apresentam as maiores deficiências na formação.
Existe uma interpretação, bastante difundida e compartilhada no meio dos
advogados, segundo a qual os melhores alunos dos cursos de direito optam

42
profissionalmente pelo exercício da advocacia privada. Competem no mercado e o
sucesso de suas carreiras depende das causas e dos clientes que representam.
Esta interpretação claramente privilegia o lugar do advogado, vendo todos os
demais agentes como inferiores. De toda forma, é possível destacar que no mercado,
de fato, uma elite de advogados chega a perceber honorários bastante superiores aos
dos juízes e promotores, desfrutando de alto prestígio. No entanto, a média destes
profissionais não corresponde à imagem propagada pela elite. Ao contrário, é comum
encontrar advogados não militantes, exercendo outras atividades e um grande número
tanto de advogados assalariados como daqueles que se convencionou chamar de
“porta de prisão”.

Fonte: blog.contratanet.com.br

Os advogados são os porta-vozes de todos os que batem às portas do


Judiciário. Embora criticados, são insubstituíveis. Atuam como representantes de seus
clientes, dominando um saber que os habilita a defender interesses. Formam o maior
grupo profissional de nível superior no Brasil. Apenas no Estado de São Paulo somam
mais de 150 mil os que possuem registro na OAB, estando, portanto habilitados ao
exercício da advocacia. Os bacharéis em direito são em número ainda muito maior,
estimando-se que ultrapassem um milhão. Número desta magnitude explica a

43
heterogeneidade do grupo e os repetidos esforços da entidade em garantir direitos
exclusivos à profissão.
A Ordem dos Advogados do Brasil é a entidade que representa os advogados,
possuindo seccionais em todos os estados da federação. Seu poder e influência são
reconhecidos e podem ser mensurados pelos privilégios que conquistou ao longo do
tempo. De fato, os advogados contam com prerrogativas que nenhuma outra categoria
profissional possui. Para começar, a OAB não está obrigada a prestar contas ao
Tribunal de Contas pelas taxas que recolhe de seus associados. Constitucionalmente
pode propor ação direta de inconstitucionalidade, prerrogativa compartilhada com o
Presidente da República, governadores, representantes do Legislativo, e Procurador-
Geral da República. Tem o poder de indicar juízes e ministros dos tribunais, pelo
“quinto constitucional”.
No cotidiano do fórum, é possível ver atuar principalmente os advogados
dativos, nomeados e pagos pelo Estado. O empenho destes profissionais assemelha-
se bastante à imagem difundida sobre o funcionário público. São, em geral, ou recém-
formados, em busca de experiência, ou ao contrário, velhos senhores, que claramente
não conseguiram brilhar em suas carreiras.
Em comarcas pequenas, quando postos ao lado de juízes e promotores, os
advogados dativos demonstram dois tipos distintos de comportamento. De um lado,
há aqueles com muito mais experiência do que os membros do Ministério Público e
da Magistratura, e, de outro, os que recém saíram da faculdade e se deixam
inteiramente dominar. É muito comum observar nestas comarcas de primeira
entrância que o advogado é muito mais velho do que o juiz e do que o promotor, e
que tem um maior domínio das técnicas do processo e de julgamento. Além disso, por
ser habitante da cidade, em geral, conhece tanto a vítima quanto o réu e as
testemunhas. Sua familiaridade com a população permite-lhe, muitas vezes, mais do
que orientar, determinar o prosseguimento de um interrogatório.
Nos grandes centros a realidade é bastante diferente. Não apenas porque aí
encontram-se os juízes e os promotores mais experientes, como o perfil dos
advogados dativos acaba por colocá-los em uma posição de franca desvantagem
tanto perante os agentes do sistema de justiça como ante os advogados pagos.
Finalizando, pode-se apontar que as enormes carências na prestação
jurisdicional dificilmente serão resolvidas apenas com alterações na estrutura do
44
sistema de justiça, muito embora estas sejam imprescindíveis para tornar a justiça
mais acessível, rápida e eficiente. Victor Nunes Leal chamava a atenção para a
importância da vontade política nos operadores do direito. De fato, observa-se que
diferenças no desempenho de juízes, promotores, delegados, advogados provocam
apreciáveis diferenças nas avaliações que a população faz sobre a justiça.

6 SEGURANÇA PÚBLICA

Fonte: www.noticiasdeitauna.com.br

6.1 Quem é responsável pela segurança pública?

De acordo com o artigo 144 da Constituição Federal, a segurança pública é


dever do Estado brasileiro, direito e responsabilidade de todos. Ou seja, é uma
responsabilidade compartilhada entre os governos federal, estadual e municipal. Ela
é exercida para a proteção das pessoas e do patrimônio, bem como a preservação da
ordem pública. Tais ações se dão através das diversas polícias, como a rodoviária
federal, a polícia civil, a polícia militar e também o corpo de bombeiros.

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Sendo a segurança pública uma responsabilidade de todos, cada esfera do
governo tem o compromisso de realizar investimentos para melhorar esta área. Veja
o que cada uma dessas esferas pode fazer:

6.2 Governo Federal

O governo federal é responsável por executar o policiamento das fronteiras e


combater o tráfico internacional e interestadual de drogas. É também a União quem
realiza o patrulhamento das rodovias federais.

6.3 Governos Estaduais

Os governos estaduais e do Distrito Federal são responsáveis pelo


policiamento ostensivo, aquele que produz na população uma percepção de
segurança. Cabe aos estados a manutenção e organização das polícias Militar e Civil,
assim como dos outros órgãos que investigam os crimes comuns.

6.4 Governos Municipais

Por sua vez, o governo municipal pode desenvolver ações de prevenção à


violência, por meio da instalação dos equipamentos públicos, como iluminação e
câmeras. Além disso, também pode criar guardas municipais para a proteção de bens,
serviços e instalações. Uma boa manutenção da cidade contribui para a inibição da
criminalidade. Quando a administração municipal investe em iluminação e em uma
boa pavimentação das ruas, por exemplo, tem-se uma diminuição na ocorrência de
assaltos.
É preciso lembrar que a segurança pública faz parte da organização
administrativa. Por isso, a gestão em cada esfera política é responsabilidade dos
chefes do executivo, ou seja, do Presidente, dos governadores e dos prefeitos.

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6.5 A segurança pública no brasil

Na última década, a questão da segurança pública passou a ser considerada


problema fundamental e principal desafio ao estado de direito no Brasil. A segurança
ganhou enorme visibilidade pública e jamais, em nossa história recente, esteve tão
presente nos debates tanto de especialistas como do público em geral.

Fonte: gestaopublicaeficiente.org.br

Os problemas relacionados com o aumento das taxas de criminalidade, o


aumento da sensação de insegurança, sobretudo nos grandes centros urbanos, a
degradação do espaço público, as dificuldades relacionadas à reforma das instituições
da administração da justiça criminal, a violência policial, a ineficiência preventiva de
nossas instituições, a superpopulação nos presídios, rebeliões, fugas, degradação
das condições de internação de jovens em conflito com a lei, corrupção, aumento dos
custos operacionais do sistema, problema relacionados à eficiência da investigação
criminal e das perícias policiais e morosidade judicial, entre tantos outros, representam
desafios para o sucesso do processo de consolidação política da democracia no
Brasil.

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A amplitude dos temas e problemas afetos à segurança pública alerta para a
necessidade de qualificação do debate sobre segurança e para a incorporação de
novos atores, cenários e paradigmas às políticas públicas.
O problema da segurança, portanto, não pode mais estar apenas adstrito ao
repertório tradicional do direito e das instituições da justiça, particularmente, da justiça
criminal, presídios e polícia. Evidentemente, as soluções devem passar pelo
fortalecimento da capacidade do Estado em gerir a violência, pela retomada da
capacidade gerencial no âmbito das políticas públicas de segurança, mas também
devem passar pelo alongamento dos pontos de contato das instituições públicas com
a sociedade civil e com a produção acadêmica mais relevante à área.
Em síntese, os novos gestores da segurança pública (não apenas policiais,
promotores, juízes e burocratas da administração pública) devem enfrentar estes
desafios além de fazer com que o amplo debate nacional sobre o tema transforme-se
em real controle sobre as políticas de segurança pública e, mais ainda, estimule a
parceria entre órgãos do poder público e sociedade civil na luta por segurança e
qualidade de vida dos cidadãos brasileiros.
Trata-se na verdade de ampliar a sensibilidade de todo o complexo sistema da
segurança aos influxos de novas ideias e energias provenientes da sociedade e de
criar um novo referencial que veja na segurança espaço importante para a
consolidação democrática e para o exercício de um controle social da segurança.

6.6 O direito à segurança pública como direito fundamental

Com a evolução da sociedade tem-se originado complexidades nas relações


humanas e sociais. Surgem direitos e perspectivas de direitos, e como consequência,
acontece uma disputa de interesses de modo que se exterioriza no comportamento
do indivíduo, de tal modo que atinge o íntimo de não só um indivíduo, mas de uma
coletividade.
Assim, a fim de resolver esta instabilidade de convivência social, o Estado
intervém através de seus órgãos competentes, para que a ordem seja estabelecida.
Isso se dá pela segurança pública. (MORAES, 2010, p.79). Neste sentido, Moraes,
ainda em seu magistério, define a segurança pública como:

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“Elemento necessário à prática democrática, é indissoluvelmente
compatibilizada com a manutenção da ordem pública. Através desta se
garante a incolumidade das pessoas e o patrimônio público e privado. Os
objetivos mencionados consubstanciam um dever do Estado para com os
seus cidadãos, que têm direito à própria segurança, vinculando-se, contudo,
às responsabilidades que dela decorrem. A lei disciplina a organização e o
funcionamento dos órgãos de segurança pública, tendo em vista a eficiência
de suas atividades”. (MORAES, 2010, p.80)

A segurança pública está positivada na Constituição Federal de 1988, no caput


do artigo 144, em que diz: “A segurança pública, dever do Estado, direito e
responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da
incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:” (BRASIL,
1988). Portanto, a segurança pública, em tal lógica de fundamentalidade dos direitos,
é uma incumbência estatal de pacificar o povo e trazer a ordem na sociedade, também
é de responsabilidade de todas as pessoas zelar pela segurança, fortalecendo assim
o progresso de uma nação.

Fonte: www.faculdadefig.com.br

No art. 5º caput da Constituição Federal de 1988, como direito fundamental


individual diz que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos

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seguintes:” (BRASIL, 1988). Já no art. 6º da Constituição Federal de 1988, como
direito fundamental social diz que: “São direitos sociais a educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na
forma desta Constituição.” (BRASIL, 1988).
Percebe-se que a própria Constituição Federal Brasileira garante a segurança
como direito fundamental individual e social, que é protegido pelo Estado de forma
que as pessoas possam viver com dignidade. Considera-se o direito à segurança
como um direito de terceira dimensão. A segurança pública é dever do Estado, assim,
existe uma obrigação do poder público de agir quando for preciso para que se garanta
essa segurança, que é um direito difuso, e cujos titulares são todos, não há
individualização desta titularidade. Andrade, em complemento ao exposto, também
concorda com essa classificação, quando diz que:

“O Direito Fundamental à Segurança Pública logicamente requer a


necessidade de prestações positivas do Estado, mas na perspectiva de
direitos coletivos, direitos difusos, direitos vinculados à vida em sociedade,
está atualmente ligado à fraternidade, e não como outrora, relacionado a
segunda geração de direitos vinculados à igualdade. Portanto, está inserido
na seara dos Direitos Fundamentais de Terceira Geração devido à
titularidade difusa e o caráter transindividual, onde a titularidade é de todos,
sem poder especificar exatamente quem o seja”. (ANDRADE, 2014, p.33)

Outro fator que se confirma a segurança pública como direito fundamental é


que é esse assunto é abrangido por diversos tratados internacionais sobre direitos
humanos, onde alguns têm força de emenda constitucional no ordenamento jurídico
brasileiro, como cita Moraes:

“A segurança pública, como se percebe, é vital a todas as pessoas, sem


distinção. O aspecto pessoal (físico) da segurança pessoal é amplamente
regrado em diversos tratados internacionais sobre Direitos Humanos, dentre
os quais os mais importantes são a Declaração Universal dos Direitos do
Homem (art. 3º), a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem
(art. 1º e 28º), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 9º) e a
Convenção Americana de Direitos Humanos - Pacto de San José da Costa
Rica (art. 7º). É válido reportar que, dentre esses importantes documentos
protetores dos direitos fundamentais, somente o Pacto de San José da Costa
Rica foi ratificado pelo governo brasileiro. Portanto, tendo em vista que a
Constituição Federal, no parágrafo 3º do seu art. 5º, determina que os
tratados e convenções internacionais que forem aprovados pelo Congresso
Nacional serão equivalentes às Emendas Constitucionais, se conclui que a
atuação da segurança pública também está vinculada ao disposto no referido
“Pacto””. (MORAES, 2010, p.83-84)

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Cabe ressaltar que, em relação à segurança, não há de se falar de sua
diminuição de implementação ou não aplicação, haja vista que isso resultará numa
insegurança urbana. Ora, para o desenvolvimento da sociedade é preciso uma ordem
mínima, com o escopo de salvaguardar a população do aumento da violência e da
criminalidade, bem como assegurar que, por meio do direito em destaque, a gama de
direitos fundamentais fique preservada e capaz de produzir efeitos. Assim, quando a
segurança, na condição de direito fundamental, é inobservada ou mesmo renegada a
segundo plano, há, por via de consequência, a desconsideração do próprio ser
humano, conforme bem observa Moraes. (2010, p.84-85)

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