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22 de junho de 2021, 17h18

Considerando que a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho


(Anamatra) tem por missão estatutária congregar magistrados do trabalho de todo o
Brasil em torno de interesses comuns e pugnar pelo crescente prestígio da Justiça do
Trabalho, além de possuir notória atuação em defesa da higidez do sistema judicial
trabalhista, nós, juízes do Trabalho, lhe dirigimos por intermédio desta carta aberta, nos
seguintes termos:

Muito embora a Justiça do Trabalho seja


instituição responsável por aplicar gama
normativa de aperfeiçoamento das relações de
trabalho e, portanto, dê concretude aos valores
sociais do trabalho e da livre iniciativa, certos
grupos que ignoram a importância dos direitos
sociais como pilar das liberdades fundamentais
e da dignidade humana vêm endossando um
coro de ataques ao sistema de Justiça
trabalhista.

Esses ataques ganharam força nos últimos anos, com o avanço de uma onda
conservadora em todo o país, e assim acabaram ecoando na legislação trabalhista e
também em inúmeras decisões do Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de
Justiça. A Lei 13.467/17, por exemplo, proibiu (na prática) o Tribunal Superior do
Trabalho e os Tribunais Regionais do Trabalho de editarem súmulas de jurisprudência
dominante, dificultando uma atuação uniforme dos tribunais trabalhistas. Por outro lado,
inexiste situação similar aplicável a qualquer ramo do Poder Judiciário.

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça também vêm negando aos
trabalhadores em geral uma proteção especializada e uniforme aos seus direitos sociais,
já que nos últimos anos vêm contribuindo para uma leitura reducionista dos dispositivos
constitucionais que dispõem sobre a atuação da Justiça do Trabalho, excluindo inúmeras
formas de trabalho do sistema de proteção trabalhista assegurado constitucionalmente,
sob o argumento de que nem todo trabalho humano remunerado poderia ser considerado
"trabalho" em sentido estrito.

Nesse sentido, não obstante no ano de 2004 a Justiça do Trabalho tenha tido sua
competência sensivelmente majorada pela Emenda à Constituição nº 45, a cúpula do
Poder Judiciário vêm reduzindo as possibilidades de atuação deste ramo de Justiça ao
reinterpretar o significado do vocábulo "trabalho" contido no artigo 114, I, da
Constituição Federal, empregando-lhe um campo semântico gravemente reduzido a
excluir de seu sentido qualquer prestação de serviço fora da hipótese prevista no artigo 3º
da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

Nos últimos anos, quando o Supremo Tribunal Federal se pronunciou sobre a


competência material da Justiça do Trabalho, quase sempre foi possível prever o
resultado, independentemente da matéria em discussão, e essa realidade não é diferente
quando se depara com as decisões do Superior Tribunal de Justiça nos conflitos de
competência entre órgãos da Justiça do Trabalho e órgãos da Justiça comum. Afinal, o
resultado veio quase sempre no sentido de se limitar ao máximo a atuação da Justiça do
Trabalho, reduzindo-se o âmbito de sua competência.

Logo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, vozes reacionárias que se


voltaram contra o sistema de regulação e proteção do trabalho tiveram considerável êxito
na aprovação de medidas legislativas que reduziram a eficácia de alguns direitos
trabalhistas assegurados constitucionalmente. No entanto, a Justiça do Trabalho,
principalmente por intermédio do Tribunal Superior do Trabalho, sempre no exercício do
que se espera de uma instituição judiciária independente, procedeu-se a compatibilização
dos diplomas legislativos restritivos com os normativos constitucionais e convencionais
vigentes, mantendo, assim, minimamente hígido o sistema constitucional e supranacional
de proteção ao trabalho.

Contudo, muito embora o artigo 114, I, da Constituição Federal garantisse uma proteção
especializada e uniforme a todos os trabalhadores no país, o Supremo Tribunal Federal
firmou entendimentos de que servidores públicos estatutários, servidores públicos
temporários e até mesmos os trabalhadores contratados pela Administração Pública de
forma irregular, não poderiam se socorrer na Justiça do Trabalho, dificultando, assim, a
adoção de soluções coesas, mesmo nos casos em que trabalhadores de vínculos distintos
mantenham-se em condições laborais análogas.

São inúmeros precedentes do Supremo Tribunal Federal que são contrários à atuação da
Justiça do Trabalho. A Suprema Corte afastou da competência da Justiça do Trabalho a
apreciação de litígios que envolvessem o trabalho de pessoas em cumprimento de penas
privativas de liberdade; a autorização de trabalho artístico infantojuvenil nos termos do
que dispõe a Lei 8069/1990; as cobranças de complementação de aposentadoria por parte
de trabalhadores às entidades de previdência privada; os litígios decorrentes de situações
pré-contratuais em concursos públicos para admissão de trabalhadores celetistas; além de
outros temas de igual relevância.

O Supremo Tribunal Federal também criou exceção à aplicabilidade do inciso II do


artigo 114 da Constituição, ao decidir que a Justiça do Trabalho não teria competência
para julgar a abusividade de greve de servidores públicos estatutários e celetistas da
Administração direta, autarquias e fundações de direito público, mesmo sendo a Justiça
do Trabalho instituição escolhida pelo constituinte para solucionar conflitos laborais
decorrentes do exercício do direito de greve, não havendo no texto constitucional
qualquer excepcionalidade quanto a isso.

Além disso, o Supremo Tribunal Federal reafirmou a tese de que a Justiça do Trabalho
não teria competência penal genérica, nem mesmo para reprimir tipos penais típicos do
mundo do trabalho, condenando-lhe, assim, a ser o único ramo do Poder Judiciário
Nacional a não exercer competência em matéria penal, não obstante a Constituição tenha
vocacionado a justiça trabalhista à instituição protetora dos bens jurídicos próprios do
mundo laboral.

No Superior Tribunal de Justiça a jurisprudência também tem sido refratária à atuação da


Justiça do Trabalho. A título de exemplo, a 2ª Seção da referida corte decidiu, ao julgar
conflito de competência entre órgãos da Justiça do Trabalho e da Justiça comum, que o
ramo judicial trabalhista não teria competência para julgar litígio entre o motorista
profissional e a plataforma digital da Uber, sob o argumento de que a relação entre
ambos não seria de emprego, mas de cunho eminentemente civil, parecendo ignorar que
o artigo 114, I, da Constituição não fala em relação de emprego, mas, sim, de relação de
trabalho.

Portanto, vozes ecoaram da cúpula do Poder Judiciário e tornaram-se hegemônicas ao


restringir consideravelmente a atuação do principal ramo judicial de proteção dos direitos
sociais, validando medidas capazes de reduzir significativamente o espectro de proteção
social estabelecido pela Constituição, fato que compromete o Estado de Direito e as
liberdades fundamentais. Sob uma falsa bandeira de liberalismo, esse quadro vem
promovendo um desmonte do Estado social estabelecido pela Constituição de 1988,
condenando dezenas de milhões de pessoas à insegurança, à opressão e à miséria, efeitos
decorrentes do trabalho precário e desregulado.

A Justiça do Trabalho, não obstante sua exemplar organização, capilarização no território


nacional e celeridade na resolução dos litígios que lhe são submetidos, está tendo sua
atuação paulatinamente reduzida, sendo reconduzida a apenas apreciar demandas
decorrentes de contrato de emprego, nos moldes celetistas, modalidade que já não
alcança nem mesmo 20% da população brasileira e tende a diminuir diante do
crescimento do trabalho informal, sobretudo daquele exercido por intermédio de
plataformas digitais.

O Brasil tem um vergonhoso passado de mais de 300 anos de escravidão


institucionalizada, o que de certa forma explica o voluntarismo de alguns setores da
sociedade brasileira em combater o desenvolvimento de um sistema legal composto por
normas materiais e processuais trabalhistas de dignificação do trabalho e emancipação
social do trabalhador.

Cabe, pois, lembrar que o desenvolvimento econômico e social do Brasil não está
dissociado do sistema de proteção e valorização do trabalho humano, haja vista que dele
depende toda a sociedade brasileira, direta ou indiretamente, já que se trata de questão
fundamental à reafirmação da liberdade e dignidade do indivíduo. Afinal, sem uma
Justiça especializada em matéria laboral teríamos um número ainda maior de pessoas
trabalhando em condições de escravidão e em longas jornadas diárias, de crianças
trabalhando em condições degradantes, e ainda mais mortes e mutilações decorrentes de
acidentes no trabalho.

É imprescindível à construção de um Estado democrático, destinado a assegurar o


exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos — tal qual descreve a Constituição Cidadã — que
seja reestabelecida a competência da Justiça do Trabalho para apreciação dos conflitos,
sejam eles cíveis ou não, que decorram de relação de trabalho, independente da
existência de vínculo empregatício, administrativo ou trabalho autônomo.

Posto isso, pedimos que a Anamatra dê atenção especial e mantenha-se circunspecta


quanto a tais fatos e convoque toda a categoria de magistrados da Justiça do Trabalho a
lutar pela preservação da competência e higidez do sistema judicial trabalhista.
Suplicamos, ainda, pela criação de grupo de trabalho específico e extraordinário, para
estudar, debater, propor soluções e manter interlocução com outras instituições públicas,
entidades da sociedade civil e membros do Congresso Nacional, sempre com o objetivo
de manter preservada a competência material estabelecida pelo artigo 114 da
Constituição Federal, com as alterações promovidas pela Emenda à Constituição nº 45.

André Luiz Marques Cunha Junior


é juiz do Trabalho Substituto da 11ª Região.
Lucas Pasquali Vieira
é juiz do Trabalho Substituto da 11ª Região.
Luiz Evandro Vargas Duplat Filho
é juiz do Trabalho Substituto da 2ª Região.
Natan Mateus Ferreira
é juiz do Trabalho Substituto da 2ª Região.
Ronaldo Antônio de Brito Júnior
é juiz do Trabalho Substituto da 3ª Região.
Walace Heleno Miranda de Alvarenga
é juiz do Trabalho Substituto da 3ª Região.

Revista Consultor Jurídico, 22 de junho de 2021, 17h18

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