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O Mito de Lilith

Shirlei Massapust

Existe relação de pertinência temática entre Isaías 13:21-22 e Isaías 34:13-14.


Em ambos os casos uma reunião acontece dentro de prédios palacianos (‫ )היכל‬habitados
por chacais (tannîn ‫תּנים‬, singular ‫)תן‬. Por que tem animais selvagens perambulando por
construções produzidas pelos humanos? Muito provavelmente não são chacais de
verdade, mas sim estátuas, bichos empalhados ou gente usando máscaras do totem
egípcio da mumificação.

Em Isaías 13:21 outra classe de pessoas ou entidades mitológicas (’ō·ḥîm ‫אחים‬,


singular ‫ )אח‬também se encontra presente. Em ambas as citações o contexto descreve a
reunião de “marinheiros” (ṣiyyîm ‫םייצ‬, singular ‫ )יצ‬e “habitantes de arquipélagos”
(iyyîm ‫םייא‬, singular ‫ )יא‬com as “filhas da gastronomia” (‫)הנעי תונב‬1 que provavelmente
eram cozinheiras encarregadas de processar os frutos do mar e alimentos importados
pelos navegantes. No Salmo 74:14, os ṣiyyîm são metaforicamente representados pelas
duas cabeças de Leviatã, monstro encouraçado que cospe fogo, criado por YHWH.

Poderás pescar o Leviatã com anzol e atar-lhe a língua com uma corda? Serás
capaz de passar-lhe um junco pelas narinas, ou perfurar-lhe as mandíbulas com um
gancho? (...) Negociá-lo-ão os pescadores, ou dividi-lo-ão entre si os negociantes?
Poderás crivar-lhe a pele com dardos, ou a cabeça com arpão de pesca? Põe-lhe em
cima a mão: Pensa na luta, não o farás de novo. (...) Quem ousou desafiá-lo e ficou
ileso? Ninguém, debaixo do céu. (...) Seu ventre coberto de cacos pontudos é uma grade
de ferro que se arrasta sobre o lodo. (...) Na terra ninguém se iguala a ele, pois foi feito
para não ter medo. (Livro de Jó 40:25-32 e 41:1-8). 2

1
A tradição posterior censurou a referência à gastronomia sobrepondo estórias sobre sexo. O Targum de
Isaías 13:2 substituiu as “filhas da gula” (‫ )הנעי תונב‬por “filhas do amor” (‫)נעמײן בנת‬.
2
A BÍBLIA DE JERUSALÉM, Paulus, julho de 1995, p 939-940.

1
Não afirmamos que Leviatã seja o nome hebreu da serpente ou dragão ʻAʼpāpī
que obstrui a passagem da barca celeste, embora ambos pareçam ser espécies
mitológicas de monstros marinhos muito difíceis de matar.

Set matando Apep – Museu Egípcio, Cairo.

Em Isaías 13:21 vários animais vivos, alcunhados de cabeludos (śĕ’îrîm ‫שעירים‬,


singular ‫ )ריעש‬desfrutam seu habitat, ao passo que em Isaías 34:14 apenas um sai à
procura dos seus iguais. A parte final de Isaías 34:14 no manuscrito 1Q Isaª diz que
“cinco lírios foram encontrados no aguida do animal” (‫)חונמ ההמל ואצמו תויליל מהש‬. Essa
informação combina com os achados arqueológicos de representação de lírios em Tel
Dan. Lírios (‫ )תויליל‬eram flores usadas em cerimônias funerárias no Egito e áreas de
influência.
A expedição arqueológica organizada por Avraham Biran extraíu duas estatuetas
de bronze de Osíris de um depósito (favissa) do complexo religioso de Tel Dan
soterradas numa camada datada entre os séculos 5 e 4 a.C. Outras peças depositadas
num jarro na Área T incluíam restos de três estatuetas de faiança representando alguém
segurando uma flor de lotos, uma pessoa ou divindade com um macaco no colo e uma
cabeça de Osíris3.

Estatuetas semelhantes à arte egípcia encontradas em Tel Dan.

3
BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 177 e 214.

2
Tudo isso indica que os israelitas conheciam o costume funerário egípcio onde
os devotos seguravam flores de lótus, o deus Thot comparecia na forma de um primata
babuíno e, após invocar o Deus dos Mortos e os quarenta e dois juízes do tribunal
divino, o espírito declarava merecer a vida eterna por não haver cometido pecados4.
Assim como os amuletos do tipo escaravelho encontrados junto aos mortos –
que imitam hieróglifos sem verdadeiro significado, divertidamente tortos e amorfos, –
cremos que muito provavelmente a imitação de todo o resto era imperfeita, adaptada e
cheia de elementos originais.

O que são os cabeludos?

O termo hebraico ‫ ריעש‬diz respeito a algo cabeludo, felpudo, peludo, fofinho.


Dentro de um contexto onde a palavra obviamente descreve objetos de culto, deduzimos
que são estátuas sedosas e peludinhas feitas de materiais perecíveis, cobertas de fios
longos no todo ou em parte. Embora a necessidade de sacrificar carne (‫ )זבח‬para os
cabeludos (‫ )שעירים‬seja atestada em Levítico 17:7, a distinção entre cabeludos (‫ )שעירים‬e
bezerros (‫ )עגלים‬em II Crônicas 11:15 indica que um bovino empalhado não tem pêlos
longos o bastante para que o totem do deus Ápis seja considerado um cabeludo. Porém
o valioso pêlo de bode (Capra hircus ancryrensis) e a pele de cordeiro (Ovis aries)
eram e ainda são usados na confecção de perucas para bonecos de luxo.

Dois bonecos do século XXI. Ele usa peruca de pêlo de bode confeccionada na Rússia
pela artesã Zhiltsova Lubov. Ela usa peruca branca de pele de cordeiro importada da
Mongólia. Na antiga Israel existia criação de caprinos e ovinos.

Provavelmente também se usava cabelo humano, rabo de eqüino, juba do leão,


etc. — Os querubins (‫ )כרובים‬compostos de partes de vários seres vivos não devem ter
entrado na mitologia israelita à toa. — O rei Jeroboão, filho de Nabat, foi um hábil
artesão criador de arte sacra que mandou construir altares do tipo bāmoṯê5 e nomeou
4
TIRADRITTI, Francesco & LUCA, Araldo De. Tesouros do Egito do Museu Egípcio do Cairo. Trd.
Maria de Lourdes Giannini. São Paulo, Manole, 1998, 301.
5
Bāmoṯê é o plural de bāmāh. A raiz bāmâ se refere aos órgãos internos, lombo ou parte carnuda do corpo
de um vertebrado, preferencialmente localizada na parte inferior do corpo, mais preferencialmente ainda
na parte traseira. Os altares de YHWH foram chamados de bām oṯê porque funcionavam como uma

3
sacerdotes para o culto dos cabeludos e bezerros empalhados (II Crônicas 11:15). O
Livro de YHWH – obra perdida cujo fragmento se encontra citado em Isaías 34:16-17 –
prometia vida próspera aos que freqüentavam o tipo de cerimônia descrita em Isaías
13:21-22 e 34:13-14.

Nenhum deles faltará, nenhum deles ficará sem o seu companheiro, porque
assim ordenou a sua boca; o seu espírito os ajuntou. Ele mesmo lançou a Sorte para
eles, a sua mão distribuiu-lhes, com o cordel, a porção de cada um. Eles a possuirão
para sempre, de geração em geração a habitarão. 6

Mais tarde os cabeludos se tornaram alvo de uma agressiva campanha de


intolerância religiosa. Incendiaram o altar edificado por Jeroboão em Betel (II Reis
23:15). Os críticos chegaram a acusar mulheres de cometer adultério (‫ )זנים‬com os
cabeludos (‫ )שעירים‬como se eles fossem bonecos de sex shop (Levítico 17:7). A
tradução grega substitui o adjetivo hebraico ‫ ריעש‬pelo grego δαιμόνια (demônio) em
Isaías 34:14 e por μάταια (banalidade) em Lev. 17:7. 7 Assim o culto foi gradualmente
extinto e suas menções camufladas.

Quando Lilith entrou na cerimônia?

Conforme exposto, a parte final de Isaías 34:14 no manuscrito 1Q Isaª diz que
cinco lírios (‫ )תויליל מהש‬foram encontrados no aguida, ninho ou toca de um cabeludo.
Na tradução livre de Áquila que originou as bíblias modernas o texto é diferente. Nela
dizia que ali lîlît (λιλιθ) repousará e encontrará um local de descanso. Estariam os textos
de Áquila e do Maskil de Ḫirbet Qumrân contaminados pela inclusão de tópicos da
teologia grega?
O mesmo parágrafo do Cântico do Maskil que admoesta os ’ō·ḥîm (‫ )אחים‬e Lilith
(‫ )לילית‬inclui na lista o ‫ שדאים‬ou dæmon (δαιμόν) da mitologia grega cujo rótulo foi
meramente transliterado para o aramaico. O líder comunitário de Qunran elaborou um
discurso para inspirar temor reverencial agregando-os aos “espíritos bastardos” (‫ממזרים‬
‫ )רוחות‬e outros “espíritos de anjos destruidores” ( ‫)חבל מלאכי רותי‬,8 malogrado o fato dos
anjos destruidores (‫ )חבל מלאכי‬atuarem como defensores da nação contra inimigos
beligerantes (1QS, coluna 4, linha 12).9 O plural de Lilith (‫ )לילית‬é lilim (‫)לילין‬. H. R.
Charles identificou uma menção aos lilim em II Baruch 10:8, atuando em cumplicidade
com os shedim (‫)שדים‬10 da mitologia israelita e dois entes da mitologia grega: A sereia

espécie de churrasqueira e eram neles que os sacerdotes sacrificavam e coziam os animais. A forma de
construir e administrar o altar de sacrifícios é descrita no Livro do Êxodo, do capítulo 25 ao 31. (LWRY,
Samuel. Maṣṣēbāh and Bāmāh in 1Q IsaiahA 6:13. Em: Journal of Biblical Literature, vol. 76, nº 3,
edição de setembro de 1957, p 225-232; FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trd.
Gerardo Novas. México, Fondo de Cultura Econômica, 1981, p 452-459).
6
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Paulus, julho de 1995, p 1213-1414.
7
LANGTON, Édouard. La Démonologie: Étude de la doctrine Juive et Chrétienne son origine et son
développement. Trd. G. Waringhien, Agrégé de L’Université. Paris, Payot, 1951, p 48.
8
A palavra Lilith (‫ )לילית‬ocorre em duas cópias do Cântico do Maskil (4Q510 e 4Q511), datadas do
século 2 a.C. A única palavra legível na primeira coluna do décimo fragmento de 4Q511 é “Lilith”. A
outra cópia manteve o vocábulo em seu contexto. (4Q510, fragmento 1:4-6 e 4Q511, fragmento 10:1. Em:
MARTINEZ, Florentio García. Textos de Qumran. Trd. Valmor da Silva. Rio de Janeiro, Vozes, 1995, p
417 e 419).
9
ANGEL, Joseph L. Maskil, Community, and Religious Experience in the Songs of the Sage (4Q510-
511). Em: Dead Sea Discoveries 19 (2012), p 19.
10
Shedim (‫ )שדים‬é o plural de Shadai (‫)שדי‬, que significa “derramador” e deriva da raiz shad (‫ )שד‬que
significa “gênio” ou “seios”. É cognato com shud (‫ )שוד‬que significa “destruir, espoliar, devastar”.

4
(Σειρῆνας) e o dragão (δράκων). No contexto o profeta solicita a vinda dos lilim do
deserto e sereias do mar para o velório dum ente querido. Depois acorda os shedim e
dragões das florestas para que todos o acompanhem no luto.11

Samael Malchîrá

Alguns textos tardios informam que Lilith é consorte de Samael cujo nome
deriva do acádio Šamaš, possivelmente cognato ao sânscrito shmashāna ( ) – altar
crematório onde se sacrificam os mortos, – unido ao sufixo ‘el (‫ ) ֵאל‬denotativo de
santidade ou divindade. De acordo com a hipótese de H. R. Charles, existem fragmentos
do livro hebraico O Martírio de Isaías (sec. 2 a.C.) dentro do livro etíope 'Ergata
Īsāyèyās. Neste registro Samael Malchîrá teria sido um personagem histórico que atuava
como ministro religioso em Israel promovendo festas tradicionais, artes mágicas,
encantamentos, agouros, adivinhações e perdoando adultérios.
S. A. Cook acredita que a alcunha Malchîrá (Μελχίας) 12, encontrada num
manuscrito do século XII, sugere a transliteração do nome Machi(j)ah (‫ )מלכיה‬ou uma
critica ao “mau governante” (‫ )מלכי־רע‬que oficiava em áreas de domínio israelita e era
conselheiro ou assessor do rei Manasseh em Judá. H. R. Charles e S. A. Cook
supuseram que este é o mesmo profeta chamado Belchîra ( ‫)קריה בעל‬, “senhor do
mundo”, noutra parte do Martírio de Isaías.13
O folclore transformou-o no anjo da morte Samael (‫ ) ַס ָּמ ֵאל‬porque este homem
teria atuado como promotor público ou sido mentor intelectual com domínio final do
fato no julgamento14 que resultou na condenação do profeta Isaías à pena de morte.15
Partindo desta idéia poderíamos questionar se outros textos em que o anjo é descrito no
exercício de atividades humanas fariam remissão esporádica à vida do personagem
histórico. Por exemplo, é sabido que o casamento com princesas estrangeiras era um
importante instrumento diplomático e constituía garantia das alianças comerciais. O
anjo Samael tem quatro esposas estrangeiras: A romana Lilith (‫ )לילית‬é sua favorita. A
libanesa Naamah (‫ )נעמה‬vive em Tiro. A portuguesa Maskit (‫ )משכית‬veio de Rhodos.

Deuteronômio 32:17 critica pessoas que sacrificam para os shedim (‫ )שדים‬e não para Eloah Elohim (‫אלהים‬
‫)אלה‬. O Salmo 106:37 fala em pessoas que sacrificam seus filhos e filhas para os shedim; em honra aos
ídolos (‫ )עצב‬de Cænä’an (‫)כנען‬.
11
CHARLES, H. R. The Apocalypse of Baruch: Translated from the Syriac. London, A. & C. Black,
1896, p 15-16.
12
Coincidentemente a alcunha Malchîrá (Μελχίας) parece com o kanji Meikira ( 迷 企 羅 ), nome atual
dum deus do fogo japonês análogo a Šamaš.
13
JOURNAL OF THE ROYAL ASIATIC SOCIETY, Jan 1901, p 168.
14
É sabido que Hezekiah incumbiu Isaías, seu velho professor, de instruir o jovem príncipe Manasseh nas
leis e costumes judaicos. Este rei declarou uma guerra santa em defesa do monoteísmo, instigado pelo
profeta, e a batalha foi vergonhosamente perdida em 701 a.C., apesar de Isaías ter garantido a vitória.
Num único dia o príncipe ficou órfão, sua mãe e irmãs foram escravizadas e levadas para longe
juntamente com funcionários do palácio, bens materiais, etc. Muita gente morreu. Manasseh se tornou rei
de um país destruído. Então demitiu Isaías e firmou tratados de paz, iniciando uma política de tolerância à
liberdade de culto e liberdades laicas. Foi necessário demonstrar a incongruência do discurso teológico de
Isaías pela retórica e condenar o profeta à morte, pois ele não aceitou o banimento e insistia em pregar
contra o governo de Manasseh. A estória da morte está contada no Martírio de Isaías , em Yebamoth 49
b, etc. (STAVRAKOPOULOU, Francesca. King Manasseh and Child Sacrifice: Biblical distortions of
historical realities. Berlin, Walter de Gruter, 2004, p 95, 122-123, etc.)
15
CHARLES, R. H. The Apocrypha and Pseudoepigrapha of the Old Testament in English: Volume II –
Pseudepigrapha. London, Oxford University Press, 1913, p 158.

5
Igrat bat Mahalath ( ‫)מחלת בת אגרת‬, era espanhola16 e tinha relações de parentesco com
Ben-Hadad III, filho de Hazael, rei de Damasco.
O comentário que revela a identidade de Asmodeus afirma que Hadad era filho
de Igrat com o Rei Davi, mas isso não se encaixa na linha do tempo. Uma lição da
escola de Shlomo ben Aderet (1235-1310) substitui Igrat por sua mãe Mahalath na lista
das esposas de Samael e explica que Ben-Hadad III é chamado de Ashmedai porque ele
adquiriu uma esposa (‫ )אִּׁשָה‬israelita e sua paixão era ardente como o fogo 'ēsh (‫)אֵׁש‬.17
Ele recebeu permissão de subir aos bāmoṯê para “acusar ou causar confusão” nas
segundas-feiras. A razão da discórdia era a negociação das núpcias com Lilith Ulemta.18
O Rabbi Isaac ben Jacob há-Cohen (1013-1103) citou uma fonte que ele chama
de Shimusha de-Hekhalot Zutartey, onde é ensinado que Samael e Lilith nasceram na
mesma hora e lugar porque estavam predestinados à união, à semelhança de Adão e
Eva. Ashmedai, o rei dos shedim, desposou outra donzela de nome Lilith Ulemta, filha
do rei Qafṣefoni com Meheṭabel bat Maṭred. Por alguma razão Samael e Lilith
começaram a disputar status com Ashmedai e Lilith Ulemta. Estes últimos tiveram um
filho chamado Alfpunias, alcunhado Harba de-Ashmedai Malka (Espada do Rei
Ashmedai) e Gurigur (por lutar contra os “Gur Aryey Yehuda”, príncipes de Judá). Este
Alfpunias nasceu no momento do nascimento do príncipe de Malchut alcunhado Harba
de-Mashiha (Espada do Messias), chamado Meshihiel e Cokhviel.19

Quem é a mulher pássaro dos relevos Sumérios?

Compare as seguintes imagens. À esquerda vemos a peça de número


2003,0718.1 no inventário do British Museum (existem outras fotos online). À direita
vemos a peça de referência AO 6501 no inventário do Louvre. Ambas são esculturas de
terracota em alto relevo. Ambas representam uma mulher nua com asas e pés de
pássaro, usando a tradicional coroa de deus, feita de quatro pares de chifres de boi e um
disco no topo. O penteado é igual: Dois pequenos rabos de cavalo presos na base do
pescoço. O par de braceletes e o colar de contas são idênticos. A perícia determinou que
a peça do British Museum foi feita na Babilônia, capital da Suméria, durante o século
18 a.C. A peça do Louvre provém da cidade de Larsa, na Suméria, e data de meados do
século 1 a.C. Isso significa que este motivo iconográfico sobreviveu com poucas
alterações durante mil e oitocentos anos.

16
SPIRA, Nathan Nata. Tuv haAretz. Venice, 1655, p 19; Zolkiev, 1781. Em: PATAI, Raphael. Gates to
the Old City. New York, Avon, 1980, p 460-461.
17
PATAI, Raphael. Gates to the Old City. Ney York, Avon Books, 1980, p 459.
18
DAN, Joseph. The Early Kabbalh. Trd. Ronald Kiener. New York, Paulist Press, 1986, p 175.
19
DAN, Joseph (org). The Early Kabbalah. Texts translated by Ronald C. Kiener. New York, Paulist
Press, 1986, p 179-180; DÁN, Róbert (org.) Occident and Orient: A tribute to the memory of Alexander
Scheiber. Boston, Brill, 1988, p 62.

6
Tanto a peça do British Museum quanto a do Louvre representam animais em
figuras simétricas em relação a um elemento central. Isto é o que se costuma chamar de
estética heráldica. A peça do British Museum tem um par de leoas e um par de corujas
sobre uma base com escamas que parece ser um ofídio. A peça do Louvre contém um
par de íbex machos. Na peça do British Museum a deusa está segurando um par de
artefatos. Isto é a mesma coisa que o deus Šamaš – sentado em seu trono de base
escamada – segura diante do Rei Hamurábi numa figura contemporânea que ilustra o
topo da estela do código de leis atualmente exposta no Louvre. 20 A hipótese de que isto
era um compasso primitivo não se sustenta porque existe pelo menos outra variante
contemporânea (a estela de nº 6034 do Louve) onde Šamaš segura um shem de haste tão
longa que o peso do galho teria prejudicado o equilíbrio da mão do escriba que o
tentasse usar para desenhar em argila. Ou seja, era insofismavelmente um conjunto de
circulo mágico e varinha de condão.21
O shem era uma figura transcendental compartilhada pela arte egípcia e suméria,
composta por objetos representados por cores diferentes em alguns afrescos coloridos.
No caso da peça 2003,0718.1 do British Museum, a mulher pássaro de pé sobre animais
selvagens utiliza magia para subjugar feras. No Egito a consciência ( , akh) da múmia
se repartia em duas metades para se locomover: Uma delas era a força vital ( , KA)
que dorme e a outra o espírito ( , BA) que usa uma ferramenta abstrata chamada shem
para se transformar em homem pássaro, voar e subjugar feras.

20
O deus Šamaš também segura o shem diante do Rei da Babilônia Nabu-apla-iddina no Tablet of
Shamash (British Library room 55) encontrado em Sippar, datado do século 9 a.C.
21
CONTENEAU, Georges. A Civilização de Assur e Babilônia. Rio de Janeiro, Ferni, 1979, p 202-203.

7
BA segurando o shem sobre sua múmia no Papyrus
Ani. (British Museum, Id. nº 10470,3)

Eu francamente não consigo entender a resistência dos psicanalistas em realizar


pesquisa interdisciplinar quando comentam achados arqueológicos. Eles fingem não ver
que as leoas sem juba representadas na peça do British Museum são de sexo feminino,
ignoram a existência de corujas de sexo masculino na natureza e a historicidade da
crença no deus Nanna (DŠEŠ.KI, DNANNA) que representava o satélite da Terra
naquela época e lugar. Contra todas as evidências, os psicanalistas insistem em rotular o
quadro como um impossível arquétipo da lua subjugando o arquétipo do macho
figurado por “leões solares” na luta pelos ideais feministas figurados por “corujas
lunares”.22
Pior ainda é quando acontece a sobreposição de mitos de duas culturas diferentes
na intenção de criar coisa nova. No livro Die große Mutter (1955) o psicólogo Erich
Neuman chamou a mulher pássaro de Lilith.23 Sua opinião foi endossada por ninguém
menos que o historiador Raphael Patai no polêmico The Hebrew Goddess (1967).24 Este
último citou um precedente para sustentar sua hipótese. Segundo a interpretação de
Samuel Noah Kramer, uma frase repetida nas linhas 43 e 84 do prólogo de Gilgamesh
afirma que Lilith (ki-sikil-lil-la-ke) fez sua casa no tronco da árvore ḫuluppu plantada
pela deusa Inanna numa propriedade particular, em Uruk, na intenção de esperar crescer
e fazer mobília de madeira. No desfecho, nas linhas 96 e 97, a invasora precisou
desfazer sua casa porque Gilgamesh derrubou a árvore a pedido de Inanna.25
O problema é que se ki-sikil-lil-la-ke fosse Lilith, conseqüentemente a expressão
a-ri-a-ri-eš deveria se referir ao campo de guerra destruído por YHWH no início da
versão de Isaías 34 da bíblia inglesa, King James Version (KJV), mas tal livro sequer
existia no século 18 a.C.26 Como a estória poderia constituir exegese de um livro que
não existe? Eles dizem que ki-sikil-lil-la-ke é uma coruja porque mora num tronco de
árvore. Quantos milhares de aves moram em troncos de árvore sem serem corujas?
Antes da publicação da bíblia inglesa mesmo a entidade do folclore judaico nunca foi
identificada como uma Tyto alba ou outra espécie de coruja; ainda que hoje em dia a
Strix butleri seja chamada de “Lilith do Deserto” (‫ )מדבר לילית‬para atrair turistas e
despertar a comoção do público sobre um belo animal em risco de extinção.
22
KOLTUV, Barbara Black. O Livro de Lilith. Trd. Rubens Rusche. São Paulo, Cultrix, 1997, p 47 e
figura 3; SICUTERI, Roberto. Lilith: A Lua Negra. Trd. Norma Telles e J. Adolpho S. Gordo. São Paulo,
Paz e Terra, 1998, p 42-43.
23
NEUMAN, Erich. The Great Mother: An analysis of the archetype. Trd. Ralph Manheim. Princeton
University Press, 1963, p 272 e pl. 126.
24
PATAI, Raphael. The Hebrew Goddess. Detroit. Wayne State University Press, 1990, p 222 e plate 31.
25
KRAMER, Samuel Noah. Gilgamesh and the Ḫuluppu-Tree: A reconstructed Sumerian Text. Chicago,
The University of Chicago Press, 1938, p 5, 8 e 9-10.
26
KRAMER, Samuel Noah. Gilgamesh and the Ḫuluppu-Tree: A reconstructed Sumerian Text. Chicago,
The University of Chicago Press, 1938, p 62.

8
A caçada de Lilith

O Targum Yerushalami modificou a redação de Números 6:24, que pede a


proteção de YHWH contra todo e qualquer malefício, especificando um medo em
particular: “O Senhor te abençoe em todo ato teu e te proteja dos Lillim”.
Seria Lilith perigosa? Numa das citações mais conhecidas do Talmude o assunto
começa com rabinos conversando sobre pessoas que andam em dupla ou em grupo para
evitar o ataque de leões. Ḥanina aplicou o mesmo raciocínio sobre o ataque de Lilith:
‫“ – יְחִידִ י ְּב ַבי ִת לִיׁשןֺ ָאסּור‬É proibido dormir sozinho numa habitação”. ‫יְחִידִ י ְּב ַבי ִת ַהּיָׁשֵן ְובָל‬
‫“ – לִילִית אֲ ָחוַּתּו‬Quem dorme sozinho numa casa é pego por Lilith” (Shabbos. 151b)27.
Lendo o texto no contexto isso não parece com uma bronca de religioso
recalcado, pregando contra o assédio das prostitutas, masturbação e sonhos eróticos.
Isso parece com a determinação de um líder comunitário preocupado com a segurança
de pessoas que dormem vulneráveis a ações violentas.

Menção a Lilith como personagem de comédia

É proibido pronunciar o nome de deus YHWH (‫ )הוהי‬porque este nome é usado


para voar e subir ao céu. M. Gaster traduziu um manuscrito do século XIV, pertencente
ao acervo da Bodleian Library, em 1899, no qual se afirma que Šemîḥazah obteve a
permissão de deus para encarnar em forma humana e ensinar o nome a quem estivesse
interessado na conversão religiosa:

XXV. Shemḥazai viu uma jovem cujo nome era Esṭirah (‫ )איםמירה‬e falou a ela
(...), mas ela respondeu: "Não te escutarei a menos que me ensine o nome cuja
pronúncia permite subir ao céu". Ele rapidamente a ensinou o nome inefável. Ela então
subiu ao céu pronunciando o nome inefável. Deus disse: "Como ela parou de pecar,
coloque-a entre as estrelas". É ela quem brilha no meio das sete estrelas de Plêiades. Ela
sempre será lembrada porque Deus a colocou entre as Plêiades 28.

O livro de comédia Alphabetum Siracidis (sec. 8 d.C.) narra uma estória sobre o
uso da magia por Lilith. O tópico abre quando Bem Sira faz um amuleto para curar o
filho adoentado de Nabucodonosor, escrevendo o nome de YHWH junto a três anjos
representados “por seus nomes, formas e imagens; por suas asas, mãos, e pés”. O conto
foi parcialmente baseado na tradição popular – pois o costume é atestado inclusive por
Johanne Prætorius que, em 1666, viu judeus escreverem a imprecação “Adam, Chava,
Chuz, Lilith” nas paredes para proteger crianças.29 – Este é o conteúdo do quinto quesito
(23 a-b):

Os nomes dos anjos encarregados da medicina são Snvi, Snsvi, e Smnglof.


Depois que deus criou o homem, que estava solteiro, ele disse: “Não é bom que o
homem viva sozinho” (Gênese 2:18). Então ele criou uma mulher para Adão,
modelando o barro, da mesma forma que havia criado o próprio Adão, e chamou-a de
Lilith. Imediatamente Adão e Lilith começaram a brigar. Ela disse: “Eu não vou transar

27
GOLDWURN, R’ Hersh. Talmud Bavili Tractate Shabbos: The Schottenstein Daf Yomi Edition.
Brooklyn, Mesorah Publications, 2004, p 151b3.
28
THE CHRONICLES OF JERAḤMEEL. Trd. M. Gaster, Ph.D. London, Oriental Translation Fund,
1899, p 52-53.
29
PRÆTORIUS, Johanne. Anthropodemus Plutonicus. Das ist, Eine Neue Welt-beschreibung Von
allerley Wunderbahren Menschen. Magdeburg, Lüderwald, 1666, Vol 1, p 19.

9
deitada debaixo de você”. Ele respondeu: “Eu não transo com você sentada no meu
colo. Só faremos sexo se você ficar por baixo porque é assim que todas as outras fêmeas
fazem e eu sou o macho que deve estar acima”. Lilith retrucou: “Nós somos iguais em
direitos, pois ambos fomos feitos de barro”. O casal não chegou a um consenso. Então
Lilith fez o seguinte: Ela pronunciou o nome inefável e foi embora voando. Adão
começou a rezar diante de seu criador: “Soberano do universo”, ele disse, “a mulher que
você me deu fugiu”. Então o Santo Deus, bendito seja, enviou aqueles três anjos para
trazer ela de volta.
O Santo Deus falou para Adão: “Se ela concordar em voltar, tudo bem. Caso
contrário ela deverá permitir que cem dos seus filhos morram diariamente”. Os anjos
partiram em perseguição até encontrar Lilith no meio do mar, nas poderosas águas onde
os Egípcios estavam destinados a se afogar. Eles repetiram as palavras de deus, mas ela
não quis voltar. Os anjos disseram: “Nós te afogaremos no mar”.
“Me deixem em paz”, ela disse. “Eu fui feita apenas para causar doenças em
crianças. Quando o bebê é menino tenho poder sobre ele durante oito dias a partir de seu
nascimento e, se for menina, durante vinte dias”. Quando os anjos escutaram as palavras
de Lilith, eles a incentivaram a voltar. Mas ela jurou em nome de deus: “Sempre que eu
ver seus nomes ou suas formas pintadas num amuleto, eu não terei poder sobre a
criança”. Ela também concordou que cem filhos seus morressem por dia. Por esta razão
cem lilim morrem diariamente e, pela mesma razão, nós escrevemos os nomes dos anjos
nos amuletos dos bebês. Quando Lilith vê tais nomes ela se lembra do juramento e a
criança recupera a saúde30.

O Alphabetum Siracidis é um livro de comédia com piadas sobre o Rei Salomão


depilando as pernas cabeludas da Rainha de Sabá, sobre uma filha de Nabucodonozor
que soltava cem puns por hora, etc. Portanto o que se diz sobre Lilith não deve ser
levado demasiadamente a sério. Os anjos esperavam que Lilith cumprisse um
mandamento semelhante ao dispositivo do § 131 do Código de Hammurabi: “Se o
marido acusou sua esposa, mas não houve flagrante de adultério, ela pronunciará o
juramento de deus e voltará para sua casa”. Contudo Lilith preferiu cumprir um ordálio
semelhante à prova de inocência do § 132 e demonstrou ser capaz de nadar no Mar
Vermelho.31
Ato contínuo, Lilith se comprometeu com o encargo de sacrificar cem crianças
diariamente, exceto os varões passíveis de serem resgatados a partir do oitavo dia de
vida por um rito de passagem chamado Metzitzah B’Peh onde o sacerdote mohel (‫)מוהל‬
amputa o prepúcio do bebê ou do converso e bebe o sangue tal como fizera Moises,
devidamente incorporado por HYHW, com seu filho primogênito (Êxodo 4:24-26).
Quem não compreende ou é antagonista de tal rito costuma inventar estórias de
vampiros! Daí a critica oculta nos detalhes do figurino do filme Drácula (1931), da
Universal, onde o nobre vampiro (Bela Lugosi) usa a Estrela de Davi atuando diante
duma taça para kiddush enquanto hipnotiza Renfield (Dwight Frye). Pois, de fato, o
título masculino Chátan Dämiym (‫)דמים חתן‬, em Êxodo 4:26, é uma expressão mais
adequada para definir alguém bebendo o sangue de outrem do que Álûqäh (‫)עלוקה‬,
usada em Provérbios 30:15 contra fêmeas em sentido figurado depreciativo.

30
THE ALPHABET OF BEN SIRA. Em: STERN, David & MIRSKY, Mark J. Rabbinic Fantasies. New
Haven and London, Yale University Press, 1990, p 183-184.
31
LARAIA, Roque de Barros. Jardim do Éden Revisitado. Em: REVISTA DE ANTROPOLOGIA: Vol. 40,
n º 1. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1997, p 162, nota 5; BOUZON, Emanuel. O Código de
Hammurabi. Petrópolis, Vozes, 2001, p 141-142.

10
Baixo relevo helenístico retratando uma
mulher pássaro sobre um homem.

Voltemos à análise da Questão 5 do Alphabetum Siracidis. A promessa de Lilith


sobre o encargo de sacrificar meninas até os vinte dias de vida jaz sobre causa
indecifrável, incerta e não sabida, a menos que indique a observância dum ritual
análogo, de influência árabe, chamado khafḍ ou khifaḍ, onde se amputa o clitóris do
bebê. Ibn-al Athir, na sua história pré-islâmica, afirma que Maomé costumava dizer que
“a circuncisão é uma ordem para homens e uma honra para mulheres”. 32 Porém
ninguém bebe o sangue de fêmeas circuncidadas, não há resgate da alma (só da
reputação da menina) e os ritos não estão fundamentados nas mesmas bases
doutrinárias.

A morte de alguns filhos de Lilith

Um relato do Talmude afirma que um filho de Lilith arrumou encrenca ao


exibir-se publicamente fazendo acrobacias em luares inapropriados. Este momento foi
testemunhado por Rabba Bar Ḥana:

Certa vez eu vi Hormin, filho de Lilith, correndo no topo das fortificações da


muralha de Mahoza. Um cavaleiro estava passando abaixo da muralha e não conseguiu
capturá-lo. Ao mesmo tempo selaram para ele duas mulas nas duas pontes do rio
Rognag. Ele pulou de uma à outra, indo e vindo. Segurou dois copos de vinho o tempo
todo, passando o vinho de um para outro, e não caiu nada no chão. (B. Bab. Bath. 73a-
b).33

Por acaso ocorreu uma tremenda tempestade que deixou o mar revolto. A
ressaca deve ter causado prejuízo aos marítimos e os supersticiosos acharam que o
garoto acrobata tinha produzido o mau tempo. Quando o governador de Mahoza foi
posto a par da ocorrência ele mandou matá-lo “porque não é costume entre os demônios
exibir-se aos humanos e revelar seus segredos”.34 A bíblia hebraica narra outras estórias
de heróis que abateram pessoas com seis dedos em cada mão, estatura demasiadamente
alta, etc. Mas o povo do norte não tinha medo dos deficientes. Asmodaios tomou por
auxiliar um pai de gêmeos siameses enfermo de ranseníase e empregou-o como

32
LAURINI, Mons. Heládio Correia e outros. A Circuncisão: o mito e o rito. Rio de Janeiro, Editora
Documentário, 1974, p 65.
33
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 184.
34
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 185.

11
“governante dos espíritos”. A capacidade daquele médium para comover o público era
notória:

Qafqafoni é seu nome e sua jovem companheira é Sar‘ita’ (princesinha,


diminutivo de Sarai, princesa), com quem ele coabita por metade do ano. Na outra
metade ele coabita com outra companheira cujo nome é Sagrirta’. Sua descendência
assume diferentes formas. Existem corpos que parecem ter duas cabeças. Os filhos de
Sar‘ita’ possuem a imagem dos leprosos. Alguns eruditos da tradição dizem que todos
os leprosos são resultado desta descendência espúria. Os filhos de Sagrita’ tem faces
cheias de úlceras e eles brigam muito entre si. Espíritos malignos abundam no éter e
todo tipo de tempestades e horrores advém do poder desta miscigenação (Sefer ha-
Malbush).35

Com certeza Sarita morreu de parto e César não inventou a cesariana, se os


gêmeos siameses sobreviveram! Se Qafqafoni desposou Sagrita sabendo de sua
enfermidade na intenção de gerar prole de aspecto diferenciado é porque o impacto
visual destes médiuns deveria estar gerando um lucro fabuloso. Para alguns eles
pareceriam uma prova viva da existência de monstros mitológicos.

Doze caçadoras de crianças

Uma adaptação do amuleto de proteção do bebê incircunciso ou recém nascido


não judeu (goy ‫ )גוי‬do século VIII era popular entre os sefarditas e asquenazes da
primeira metade do século XX. Durante pesquisa de campo em Mogador, Agadir e
Marrakech, o etnólogo G. E. Hamwas verificou o costume de fixar um impresso no
quarto de mulher que deu à luz, contendo o desenho do hamsá (talismã contra o mau
olhado em forma de mão) e da carpa com um olho em cada escama (outro amuleto
tradicional contra o mau olhado). Depois de felicitar a mãe pelo nascimento do bebê, a
redação informa que o souvenir foi recebido como um “dom” de Israel bem Eliezer
(1700-1760), chamado pela alcunha Baal Shem Tov, que teria ensinado como Eliahu
HaNavi (‫)הנביא אליהו‬, o profeta Elias, conseguiu impedir Lilith de matar um recém
nascido. Esta estória é seguida pelo Salmo 151, mais bênçãos e votos de fecundidade.36

BOA SORTE --------------------------------------- CONGRATULAÇÕES

Este souvenir protege a criança e a mulher comum.


Dom do grande santo Rabi Baal Shem Tov, em nome do grande Deus de Israel.

Eliahu HaNavi seguia por um caminho. Encontrou Lilith e lhe disse: — “Onde tu vais, malvada?”
Ela respondeu: — “À casa duma mãe chamada ‘Fulana de Tal’, para tomar o filho, beber o sangue e
chupar os miolos, e só depois abandonarei o seu corpo”. Eliahu respondeu: “Em nome do grande
Deus, tu te tornarás uma pedra muda”. Lilith rogou-lhe que a deixasse partir. Ele então pediu que
não fizesse mal às mães nem às crianças. Lilith jurou que não teria forças para entrar no local,
quando encontrasse uma parturiente, caso visse os seguintes nomes: Citrino, Lilith, Albita, Amorfa,
Kle Ödem, Aïk, Tempestade de Vento, Vôo Veloz, Patota, Abce, Kta Kli, Btenna, Tilo Pritz. E todas
as pessoas que conhecem seu nome e o afixam no quarto das mães terão protegido mães e filhos para
sempre.

35
DAN, Joseph. The Early Kabbalh. Trd. Ronald Kiener. New York, Paulist Press, 1986, p 175-176.
36
FRIEIRO, Eduardo. O mito de Lilite. Em: KRITERION, nº 35-36. Belo Horizonte, Faculdade de
Filosofia da Universidade de Minas Gerais, Janeiro a Junho de 1956, p 93. || FERVEL, Dr. J. Réflexions
sur la circuncision. Em: PSYCHÉ, nº 64. Paris, P. et O. Lussaud Frères, févier 1952, p 98-102.

12
A.A.A. --------------------------------------- S.S.S.

Traduzir termos corrompidos é tremendamente difícil. Sabemos que em


português e espanhol existia a gíria “Patota”, certamente integrada ao uso coloquial no
idioma ladino, a qual se referia ao integrante duma quadrilha ou bando engajado em
atividades ilícitas. Imagino que transliterar isto do espanhol para iídiche e, depois, do
iídiche para francês bastou para transformar Patota em “Ptota” e “ti Ptrota”. Emendando
“Kheh Odem” para “Kle Ödem” teríamos uma “criança sarnenta” ou coisa parecida
(ödem é “edema” em alemão).
Até o presente momento ninguém conseguiu interpretar determinado epíteto
transliterado alternadamente como “Tillo Prtacha” e “Tltoi Pritsa”, a menos que se
refira ao nome masculino Tilo Pritz comum na Alemanha e suas áreas de influência.
Btenna e Bt Enna também são nomes comuns. Ignoro o que seja Aïk, Abce e Kta Kli.
Theodor Herzl Gaster (1906-1992) compilou uma variante onde cada nome corresponde
a uma das doze integrantes do bando de Lilith. Alguns nomes são diferentes. Ele
traduziu “Vento de Tempestade” (Podo/Ikpodo), “Vôo Veloz” (Ayylo), “Mulher com
asas” (Khods), “Noturna” (Abnukta), “Ladra de crianças” (Kle Ptuza) e Bruxa (Strix).
Nesta versão Lilith fala ao profeta Elías: “Estou a caminho da casa da Senhora X, que
espera uma criança. Vou mergulhá-la no sono da morte, pegar seu filho, sugar-lhe o
sangue, secar-lhe a medula e lacerar-lhe a carne”. O profeta ameaça lançar uma
maldição que a transformará numa pedra muda e ela se rende.

“Isso não!”, implorou a bruxa. “Pelo amor de Deus, livra-me dessa maldição e
irei embora; e eu te prometo, pelo nome de Jeová, Deus dos exércitos de Israel, desistir
de meu intento contra essa mulher e sua criança. 37

A ameaça de transformar Lilith numa “pedra muda” atinge uma nova dimensão
se considerarmos que ela também se chama “Chétrino” e “Abito” (tanto o citrino quanto
a albita são minerais usados em joalheria). Seria esta Lilith uma estátua viva que pode
ser paralisada para sempre, como a mulher de Ló que jaz transformada em estátua de
sal? (Gênese 19:26)
Charles Godfrey compilou uma variante do mesmíssimo conto folclórico,
transmitida por ciganos da Romênia em 1891, onde a bruxa de “doze nomes e meio”
avistou Maria com seu filho recém nascido e tentou beber o sangue do menino Jesus,
disfarçada na forma de mosca hematófaga, mas um exorcista a impediu. 38 O Maleus
Maleficarum (1484) menciona a condenação dos bruxos de Berna pelo homicídio de
crianças não batizadas – crime supostamente praticado na intenção de eliminar a chance
dos menores experimentarem o rito de passagem cristão. – Uma das mulheres
interrogadas pelo Juiz de Boltingen confessou como a seita fizera para causar a morte de
treze recém nascidos:

Armamos nossas armadilhas principalmente contra as crianças não batizadas,


embora também contra as que já foram batizadas, especialmente quando não se acham
sob a proteção do sinal da cruz e das orações. (...) São mortas através de nossos
37
GASTER, Theodor Herzl. The Holy and the Profane. Nova York, Willian Morrow & Co., 1980, p 22.
Citado em: KULTUV, Bárbara Black. O Livro de Lilith. Trd. Rubens Rusche. São Paulo, Cultrix, 1997, p
137.
38
LELAND, Charles Godfrey. Magia Cigana: Encantamentos, Ervas Mágicas e Adivinhação. Trd. Ana
Zelma Campos. São Paulo. Bertrand Brasil, 1993, p 81.

13
malefícios e de nossas palavras mágicas nos próprios berços ou quando estão dormindo
junto aos pais. De sorte a parecer que morreram asfixiadas pelo próprio peso ou por
alguma outra causa natural. Depois as desenterramos sigilosamente e as cozinhamos
num caldeirão, até que toda a carne se desprenda dos ossos e se transforme num caldo,
fácil de ser bebido. Da matéria mais sólida fazemos uma pomada que nos é de grande
valia em nossos ritos, em nossos prazeres e em nossos vôos; com o líquido, enchemos
um cantil ou odre. Quem dele bebe, durante certos ritos, adquiri imediatamente
profundo conhecimento de nossa seita e se transforma numa de nossas líderes. 39

Os inquisidores James Sprenger e Heinrich Kramer asseguravam que as bruxas


podem matar crianças ainda no útero da mãe, sendo capazes de causar o aborto e a
morte do feto a um simples toque no ventre.40
O rabino Naftali Hertz ben Yaakov Elchanan acreditava que Lilith não pode
matar qualquer criança. Ela só tem permissão de deus para resgatar as almas oprimidas
que foram concebidas acidentalmente durante sexo recreativo ou as que são fruto de
adultério. Quando um bebê ri41 durante o sono, Lilith está jogando com ele. É preciso
cortar a respiração apertando o nariz do bebê por um breve momento, três vezes
seguidas, e falar para Lilith que ela não terá descanso (‫ )חונמ‬habitando aquele corpo;
parafraseando Isaías 34:14.42

Os Benimerines e o imposto infantil

Em 1648 o rabino Naftali Hertz ben Yaakov Elchanan escreveu que Lilith tem
quarenta nomes e facções malignas ordenadas para matar crianças. Os asquenazes
falantes de idioma alemão dizem que foi ela quem instrui os “Kinder Benimerines” para
este feito (Emeq HaMelekh 140b).43 Charles Godfrey também ouviu falar em “judeus,
que acreditam nas Benemmerinnen ou bruxas que assombram as mulheres durante o
parto, assim como fazia Lilith”. 44
Benimerines é o nome castelhano da dinastia Banu Marin que governou
Marrocos entre 1244 e 1465, exercendo influência na Espanha muçulmana. O império
otomano cobrava imposto infantil dos povos conquistados. Parte da progênie de toda a
gente era levada para haréns ou treinamento de guerra. Portanto o mito dos Benimerines
que carregam crianças alemãs pode ter sido alimentado pelo medo do tráfico de pessoas.
Lujo Bassermann acredita que judeus e ciganos contribuíram com os requintes do
Oriente:
39
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Trd. Paulo Fróes. Rio de
Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991, p 217.
40
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Trd. Paulo Fróes. Rio de
Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991, p 43 e 215.
41
Jonathan Kirsch comparou o uso do verbo t’sahak (‫)צתק‬, traduzido como “rir” ou “brincar”, nas
referências a Ismael e Rebeca rindo com Isaac (Gênese 21:9 e 26:8). O que Abimeleque viu pela janela
bastou para provar que Rebeca era esposa de Isaac, não sua irmã. Por isso o historiador concluiu que rir
desse jeito era um comportamento abusivo e intolerável entre irmãos. Sara toma providencias urgentes
quando vê que “Ismael está tomando com o seu irmão menor uma liberdade que ela considera chocante
demais para tolerar”. (KIRSCH, Jonathan. As Prostitutas na Bíblia: Algumas histórias censuradas. Trd.
Roberto Raposo. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1998, p 64-65).
42
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 466-
467; UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. Trd. Paulo Geiger. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1994, p 154.
43
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 458-
459.
44
LELAND, Charles Godfrey. Magia Cigana: Encantamentos, Ervas Mágicas e Adivinhação. Trd. Ana
Zelma Campos. São Paulo. Bertrand Brasil, 1993, p 80.

14
No ano de 973 d.C., Ibraim Ibne Jacó, judeu espanhol convertido ao islamismo,
percorreu a Boêmia, a Alemanha Central e as terras costeiras do Mar Báltico. (...) É
possível deduzir (...) que ele tivesse tentado comerciar prisioneiros louros das tribos
guerreiras eslavas do Báltico. (...) Os germânicos do norte vendiam mulheres aos
comerciantes árabes, especialmente as que não fossem mais consideradas virgens. Os
Viquingues, ainda pagãos naquela época, e os árabes, seus parceiros de comércio,
conjuntamente – e de forma lucrativa – resolveram o problema das mulheres devassas.”
45

Mais tarde a legislação austo-húngara passou a punir o camponês que vendia


crianças para os turcos. Um registro de 1645 atesta que o culpado era costurado nu
dentro de um cavalo morto, sem entranhas, deixando somente a cabeça do lado de fora,
sob a cauda do cavalo. Então o homem apodrecia vivo junto com o animal. 46
Ocasionalmente a mídia hodierna ainda retrata Lilith como objeto do desejo dos
pedófilos. O personagem protagonista do livro Lolita (1955), escrito pelo russo
Vladimir Nabokov, é um padrasto pedófilo apaixonado pela filha de sua esposa. O
nome da rapariga é Dolores Haze; uma mistura de latim com hebraico que significa “o
segredo da dor”. Este personagem enfrenta um dilema moral antes de se render à
tentação de burlar as leis.

Humbert fez tudo o que podia para ser bom... Tinha o maior respeito pelas
crianças comuns, com sua pureza e vulnerabilidade, e em circunstância alguma atentaria
contra a inocência de uma menina... Mas como batia seu coração quando, no meio de
um bando inocente, ele divisava algum pequeno demônio, “enfant charmante et fourbe”,
olhar velado, lábios úmidos, dez anos de cadeia se simplesmente repararem que você
está olhando para ela. E assim seguia a vida. Humbert estava perfeitamente apto a
possuir Eva, mas era por Lilith que ansiava.47

Lilith era, no mundo das idéias, o que Dolores Haze lhe parecia ser no universo
empírico: Um verdadeiro demônio entre os infantes.

Entre os limites de idade de nove e catorze anos, virgens há que revelam a


certos viajores enfeitiçados, bastante mais velhos do que elas, sua verdadeira natureza
— que não é humana, mas nínfica (isto é, diabólica). A essas criaturas singulares
proponho dar o nome de “ninfetas”.
O leitor terá notado que substituo a noção de espaço pela de tempo. De fato,
gostaria que ele visse “nove” e “catorze” como os pontos extremos — as praias
refulgentes e os róseos rochedos — de uma ilha encantada onde vagam essas minhas
ninfetas cercadas pelas brumas de vasto oceano. Será que todas as meninas entre esses
limites de idade são ninfetas? Claro que não. Se assim fosse, nós que conhecemos o
mapa do tesouro, que somos os viajantes solitários, os ninfoleptos, teríamos há muito
enlouquecido. Tampouco a beleza serve como critério; e a vulgaridade, ou pelo menos
aquilo que determinados grupos sociais entendem como tal, não é necessariamente
incompatível com certas características misteriosas, a graça preternatural, o charme
imponderável, volúvel, insidioso e perturbado que distingue a ninfeta das meninas de
sua idade, as quais, incomparavelmente mais sujeitas ao mundo concreto dos fenômenos
45
BASSERMANN, Lujo. História da Prostituição: Uma interpretação cultural. Trd. Rubens
Stuchenburk. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968, p 107-108.
46
LABOUREUR, Jean Le. Histoire et relation du voyage de la reine de Pologne et du retour de la
maréchale de Guébriant par la Hongrie, Carinthie, Styrie, etc., 1645. Em: PENROSE, Valentine. A
Condessa Sanguinária. Trd. Regina Grisse de Agostino. São Paulo, Paz e Terra, 1992, p 34.
47
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 21.

15
que se medem com relógios, não têm acesso àquela intangível ilha de tempo mágico
onde Lolita brinca com suas companheiras. Dentro dos mesmos limites de idade, o
número de genuínas ninfetas é muitíssimo inferior ao das meninas provisoriamente sem
atrativos, ou apenas “bonitinhas” e até mesmo “adoráveis”, que são criaturas
essencialmente humanas — comuns, rechonchudas, informes, de pele fria e barriguinha
proeminente, usando tranças —, capazes ou não de transformar-se em mulheres de
grande beleza (basta ver aquelas garotas gordotas, de meias pretas e chapéus brancos,
que se metamorfoseiam em estonteantes estrelas do cinema). Confrontado com a
fotografia de um grupo de escolares ou escoteiras e solicitado a apontar a mais bonita
entre elas, um homem normal não escolherá necessariamente a ninfeta. É necessário ser
um artista ou um louco, um indivíduo infinitamente melancólico, com uma bolha de
veneno queimando-lhe as entranhas e uma chama supervoluptuosa ardendo eternamente
em sua flexível espinha (ah, quantas vezes a gente se encolhe de medo, se esconde!), a
fim de discernir de imediato, com base em sinais inefáveis — a curva ligeiramente
felina de uma maçã do rosto, uma perna graciosa coberta de fina penugem, e outros
indícios que o desespero, a vergonha e lágrimas de ternura me impedem de enumerar
—, o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais. Elas não a reconhecem
como tal, e a própria ninfeta não tem consciência de seu fantástico poder. 48

Ao longo da trama “uma guria monstruosamente balofa49” causou repúdio em


Humbert e “um espécime de irretocável beleza 50” serviu apenas para uma noite de sexo.
Não bastava que a figura prostituída fosse menor de idade para despertar a libido do
pedófilo. Humbert não gostava de bunda grande. Para ele “não há nada mais
repugnante” do que “a pélvis pesada e saliente, as grossas barrigas da perna e a pele
deplorável da típica estudante universitária”.51 Logo nos primeiros capítulos ele se sente
atraído pelos pêlos no sovaco de uma colegial. Noutras ocasiões se encanta por roupas
sujas, linguagem vulgar e ancas “tão estreitas quanto as de um rapazinho”. 52 Não é de
admirar que cedo ou tarde acabasse atrelado a algo com pênis na noite em que sonhou
com “uma absurda e horrivelmente cansativa relação sexual com um minúsculo
hermafrodita cabeludo”.53

Distorções de textos e contextos

A maior parte da propaganda feminista ou feminina atual leva em conta a


Questão 5 do Alphabetum Siracidis quando fala sobre Lilith. Hoje em dia Lilith virou
um ícone da cultura pop e aparece até nos pacotes das balas de maça verde fabricadas
pela indústria de produtos alimentícios Cory Ltda, com sede em Arreburgo (MG). Essa
boa gente afirma adotar como primeiro valor o de “agir coerentemente com as crenças”
em sua página na internet.54

48
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 18-19.
49
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 25.
50
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 22.
51
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 2003, p 177.
52
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 2003, p 178.
53
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 2003, p 111.
54
IND. PROD. ALIMENTÍCIOS CORY LTDA: www.cory.com.br

16
De acordo com o Zohar, o rabi Shimon bar Yochai aconselhava aos homens que
evitassem olhar para quaisquer mulheres que não fossem suas esposas: “Se vocês não
procederem assim, poderá acontecer-lhes de ficarem pensando nela quando estiverem
nos momentos de intimidade com a esposa de vocês e assim o demônio terá parte na
concepção”.55 O Evangelho Segundo Felipe enuncia igualmente que quando a mulher
coabita com seu marido estando apaixonada por outro, o filho terá a aparência do outro
homem.56
A concepção de um bastardo é o pior problema conjugal que existe. Como nem
sempre a traição era de fácil comprovação culpava-se o incubo ou o boto quando a
criança nascia com a cara do professor de piano.
No campo do mito, as duas esposas principais de Samael criaram um
complicado esquema onde primeiro Nahemah provoca sonhos eróticos em homens
casados. Suas vítimas acordam excitadas e solicitam suas esposas. O produto da união é
filho de Nahemah porque o pai estava pensando nela no momento da concepção. Logo,
de acordo com Daniel Lifschitz, qualquer casal deveria evitar o início e o fim da noite e
qualquer outro momento em que as pessoas, ainda acordadas ficam de ouvidos ligados.
“Tais circunstâncias poderiam suscitar pensamentos lascivos nas pessoas e concederiam
ao demônio o poder de ter parte em cada filho eventualmente concebido”.57
Nahemah não cria seu próprio filho. O infante é entregue aos cuidados de Lilith
que, quando não o mata, vem brincar e dar má educação à criança para que siga a
inclinação esquerda. Ou seja, ela desvia do ensino religioso tradicional para os prazeres
da vida. Então espera como alguém que plantou uma videira, regou e cuidou até poder
colher uvas. Cedo ou tarde seus caminhos levam para a morte, que libera as almas para
serem anexadas.

Senhor do Mundo, quando uma criança tem apenas um dia de vida, será
julgada? Essas são as lágrimas dos oprimidos, que não encontram consolo. Há muitos
tipos diferentes entre eles, mas todos derramam lágrimas. Por exemplo, há a criança
nascida do adultério. Logo que ela vem ao mundo é separada da comunidade do povo
sagrado, se lamenta e derrama lágrimas perante o Senhor e reclama: “Senhor do mundo,
se meus pais pecaram, que culpa tenho eu? Tentei praticar apenas o bem perante Vós”.
Mas o maior sofrimento de todos é o desses “oprimidos” que são apenas bebês que
foram afastados dos seios de suas mães... Mas por que é preciso que esses pobres
pequeninos, que não têm culpa ou pecado, morram? Onde está agora o julgamento
verdadeiro e justo do Senhor do mundo? Se eles devem morrer por causa dos pecados
de seus pais, certamente “não encontrarão consolo”. No entanto, na verdade as lágrimas
desses oprimidos intercedem pelos vivos e os protegem, e devido à sua inocência e ao
seu poder de mediação é preparado um lugar para eles que nem mesmo os inteiramente
justos podem conquistar ou ocupar; porque na verdade Deus os ama de um modo
55
LIFSCHITZ, Daniel. Homem e Mulher Imagem de Deus – O Sábado. São Paulo, 1998. Paulinas, p 89.
56
TRICCA, Maria Helena de Oliveira. Apócrifos: Os Proscritos da Bíblia. Vol II. São Paulo, Mercuryo,
1992, p 198.
57
LIFSCHITZ, Daniel. Homem e Mulher Imagem de Deus – O Sábado. São Paulo, 1998. Paulinas, p 89.

17
especial e particular. Deus se une a eles e prepara-lhes um lugar superior, muito perto
Dele. É com respeito a esses pequeninos que está escrito: “Pela boca das crianças e
bebês tu o firmaste, qual fortaleza” (Salmo 8:3). (Zohar 11, 113b). 58

Quando o bastardo sobrevive, o demônio vem reclamar sua prole a cada lua
nova. Essa não terá um lugar especial reservado ao lado do trono:

Às vezes acontece de Naamah avançar no mundo para fazer-se ardente para os


filhos do homem, e um homem se descobre numa conexão de luxúria com ela. Ele
desperta de seu sono, agarra sua esposa e deita-se com ela. Este desejo vem daquela
luxúria que ele teve em seu sonho. Então a criança que ela gera vem do lado de
Naamah, porque o homem foi movido até ela por sua luxúria. E quando Lilith vem e vê
aquela criança, ela entende o que aconteceu. Ela se junta a ele e educa-o como todos os
outros filhos de Naamah. Ela fica com ele muitas vezes, mas não o mata. Este é o
homem que se torna marcado em toda Lua Nova, porque ela nunca desiste dele. Porque
mês após mês, quando a lua torna-se nova no mundo, Lilith vem, visita todos aqueles
que ela educou, brinca com eles; e por isso aquela pessoa é marcada naquele tempo
(Zohar 3:76b-77ª, citado por Alan Hulm).

Numa época em que não existia pílula anticoncepcional, camisinha nem


qualquer outro método contraceptivo até da “tabelinha” quem não queria ter filhos
praticava o sexo recreativo durante as regras menstruais da mulher; período
metaforicamente chamado de “Lua Nova”.

58
ROSEMBERG, Roy A. Guia Conciso do Judaísmo: História, Prática e Fé. Trd. Maria Clara De Biase
W. Fernandes. Rio de Janeiro, IMAGO, 1992, p 121-122.

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