Shirlei Massapust
Poderás pescar o Leviatã com anzol e atar-lhe a língua com uma corda? Serás
capaz de passar-lhe um junco pelas narinas, ou perfurar-lhe as mandíbulas com um
gancho? (...) Negociá-lo-ão os pescadores, ou dividi-lo-ão entre si os negociantes?
Poderás crivar-lhe a pele com dardos, ou a cabeça com arpão de pesca? Põe-lhe em
cima a mão: Pensa na luta, não o farás de novo. (...) Quem ousou desafiá-lo e ficou
ileso? Ninguém, debaixo do céu. (...) Seu ventre coberto de cacos pontudos é uma grade
de ferro que se arrasta sobre o lodo. (...) Na terra ninguém se iguala a ele, pois foi feito
para não ter medo. (Livro de Jó 40:25-32 e 41:1-8). 2
1
A tradição posterior censurou a referência à gastronomia sobrepondo estórias sobre sexo. O Targum de
Isaías 13:2 substituiu as “filhas da gula” ( )הנעי תונבpor “filhas do amor” ()נעמײן בנת.
2
A BÍBLIA DE JERUSALÉM, Paulus, julho de 1995, p 939-940.
1
Não afirmamos que Leviatã seja o nome hebreu da serpente ou dragão ʻAʼpāpī
que obstrui a passagem da barca celeste, embora ambos pareçam ser espécies
mitológicas de monstros marinhos muito difíceis de matar.
3
BIRAN, Avraham. Biblical Dan. Jerusalem, Israel Exploration Society, 1994. p 177 e 214.
2
Tudo isso indica que os israelitas conheciam o costume funerário egípcio onde
os devotos seguravam flores de lótus, o deus Thot comparecia na forma de um primata
babuíno e, após invocar o Deus dos Mortos e os quarenta e dois juízes do tribunal
divino, o espírito declarava merecer a vida eterna por não haver cometido pecados4.
Assim como os amuletos do tipo escaravelho encontrados junto aos mortos –
que imitam hieróglifos sem verdadeiro significado, divertidamente tortos e amorfos, –
cremos que muito provavelmente a imitação de todo o resto era imperfeita, adaptada e
cheia de elementos originais.
Dois bonecos do século XXI. Ele usa peruca de pêlo de bode confeccionada na Rússia
pela artesã Zhiltsova Lubov. Ela usa peruca branca de pele de cordeiro importada da
Mongólia. Na antiga Israel existia criação de caprinos e ovinos.
3
sacerdotes para o culto dos cabeludos e bezerros empalhados (II Crônicas 11:15). O
Livro de YHWH – obra perdida cujo fragmento se encontra citado em Isaías 34:16-17 –
prometia vida próspera aos que freqüentavam o tipo de cerimônia descrita em Isaías
13:21-22 e 34:13-14.
Nenhum deles faltará, nenhum deles ficará sem o seu companheiro, porque
assim ordenou a sua boca; o seu espírito os ajuntou. Ele mesmo lançou a Sorte para
eles, a sua mão distribuiu-lhes, com o cordel, a porção de cada um. Eles a possuirão
para sempre, de geração em geração a habitarão. 6
Conforme exposto, a parte final de Isaías 34:14 no manuscrito 1Q Isaª diz que
cinco lírios ( )תויליל מהשforam encontrados no aguida, ninho ou toca de um cabeludo.
Na tradução livre de Áquila que originou as bíblias modernas o texto é diferente. Nela
dizia que ali lîlît (λιλιθ) repousará e encontrará um local de descanso. Estariam os textos
de Áquila e do Maskil de Ḫirbet Qumrân contaminados pela inclusão de tópicos da
teologia grega?
O mesmo parágrafo do Cântico do Maskil que admoesta os ’ō·ḥîm ( )אחיםe Lilith
( )ליליתinclui na lista o שדאיםou dæmon (δαιμόν) da mitologia grega cujo rótulo foi
meramente transliterado para o aramaico. O líder comunitário de Qunran elaborou um
discurso para inspirar temor reverencial agregando-os aos “espíritos bastardos” (ממזרים
)רוחותe outros “espíritos de anjos destruidores” ( )חבל מלאכי רותי,8 malogrado o fato dos
anjos destruidores ( )חבל מלאכיatuarem como defensores da nação contra inimigos
beligerantes (1QS, coluna 4, linha 12).9 O plural de Lilith ( )ליליתé lilim ()לילין. H. R.
Charles identificou uma menção aos lilim em II Baruch 10:8, atuando em cumplicidade
com os shedim ()שדים10 da mitologia israelita e dois entes da mitologia grega: A sereia
espécie de churrasqueira e eram neles que os sacerdotes sacrificavam e coziam os animais. A forma de
construir e administrar o altar de sacrifícios é descrita no Livro do Êxodo, do capítulo 25 ao 31. (LWRY,
Samuel. Maṣṣēbāh and Bāmāh in 1Q IsaiahA 6:13. Em: Journal of Biblical Literature, vol. 76, nº 3,
edição de setembro de 1957, p 225-232; FRAZER, J.G. El Folklore em el Antiguo Testamento. Trd.
Gerardo Novas. México, Fondo de Cultura Econômica, 1981, p 452-459).
6
A BÍBLIA DE JERUSALÉM. Paulus, julho de 1995, p 1213-1414.
7
LANGTON, Édouard. La Démonologie: Étude de la doctrine Juive et Chrétienne son origine et son
développement. Trd. G. Waringhien, Agrégé de L’Université. Paris, Payot, 1951, p 48.
8
A palavra Lilith ( )ליליתocorre em duas cópias do Cântico do Maskil (4Q510 e 4Q511), datadas do
século 2 a.C. A única palavra legível na primeira coluna do décimo fragmento de 4Q511 é “Lilith”. A
outra cópia manteve o vocábulo em seu contexto. (4Q510, fragmento 1:4-6 e 4Q511, fragmento 10:1. Em:
MARTINEZ, Florentio García. Textos de Qumran. Trd. Valmor da Silva. Rio de Janeiro, Vozes, 1995, p
417 e 419).
9
ANGEL, Joseph L. Maskil, Community, and Religious Experience in the Songs of the Sage (4Q510-
511). Em: Dead Sea Discoveries 19 (2012), p 19.
10
Shedim ( )שדיםé o plural de Shadai ()שדי, que significa “derramador” e deriva da raiz shad ( )שדque
significa “gênio” ou “seios”. É cognato com shud ( )שודque significa “destruir, espoliar, devastar”.
4
(Σειρῆνας) e o dragão (δράκων). No contexto o profeta solicita a vinda dos lilim do
deserto e sereias do mar para o velório dum ente querido. Depois acorda os shedim e
dragões das florestas para que todos o acompanhem no luto.11
Samael Malchîrá
Alguns textos tardios informam que Lilith é consorte de Samael cujo nome
deriva do acádio Šamaš, possivelmente cognato ao sânscrito shmashāna ( ) – altar
crematório onde se sacrificam os mortos, – unido ao sufixo ‘el ( ) ֵאלdenotativo de
santidade ou divindade. De acordo com a hipótese de H. R. Charles, existem fragmentos
do livro hebraico O Martírio de Isaías (sec. 2 a.C.) dentro do livro etíope 'Ergata
Īsāyèyās. Neste registro Samael Malchîrá teria sido um personagem histórico que atuava
como ministro religioso em Israel promovendo festas tradicionais, artes mágicas,
encantamentos, agouros, adivinhações e perdoando adultérios.
S. A. Cook acredita que a alcunha Malchîrá (Μελχίας) 12, encontrada num
manuscrito do século XII, sugere a transliteração do nome Machi(j)ah ( )מלכיהou uma
critica ao “mau governante” ( )מלכי־רעque oficiava em áreas de domínio israelita e era
conselheiro ou assessor do rei Manasseh em Judá. H. R. Charles e S. A. Cook
supuseram que este é o mesmo profeta chamado Belchîra ( )קריה בעל, “senhor do
mundo”, noutra parte do Martírio de Isaías.13
O folclore transformou-o no anjo da morte Samael ( ) ַס ָּמ ֵאלporque este homem
teria atuado como promotor público ou sido mentor intelectual com domínio final do
fato no julgamento14 que resultou na condenação do profeta Isaías à pena de morte.15
Partindo desta idéia poderíamos questionar se outros textos em que o anjo é descrito no
exercício de atividades humanas fariam remissão esporádica à vida do personagem
histórico. Por exemplo, é sabido que o casamento com princesas estrangeiras era um
importante instrumento diplomático e constituía garantia das alianças comerciais. O
anjo Samael tem quatro esposas estrangeiras: A romana Lilith ( )ליליתé sua favorita. A
libanesa Naamah ( )נעמהvive em Tiro. A portuguesa Maskit ( )משכיתveio de Rhodos.
Deuteronômio 32:17 critica pessoas que sacrificam para os shedim ( )שדיםe não para Eloah Elohim (אלהים
)אלה. O Salmo 106:37 fala em pessoas que sacrificam seus filhos e filhas para os shedim; em honra aos
ídolos ( )עצבde Cænä’an ()כנען.
11
CHARLES, H. R. The Apocalypse of Baruch: Translated from the Syriac. London, A. & C. Black,
1896, p 15-16.
12
Coincidentemente a alcunha Malchîrá (Μελχίας) parece com o kanji Meikira ( 迷 企 羅 ), nome atual
dum deus do fogo japonês análogo a Šamaš.
13
JOURNAL OF THE ROYAL ASIATIC SOCIETY, Jan 1901, p 168.
14
É sabido que Hezekiah incumbiu Isaías, seu velho professor, de instruir o jovem príncipe Manasseh nas
leis e costumes judaicos. Este rei declarou uma guerra santa em defesa do monoteísmo, instigado pelo
profeta, e a batalha foi vergonhosamente perdida em 701 a.C., apesar de Isaías ter garantido a vitória.
Num único dia o príncipe ficou órfão, sua mãe e irmãs foram escravizadas e levadas para longe
juntamente com funcionários do palácio, bens materiais, etc. Muita gente morreu. Manasseh se tornou rei
de um país destruído. Então demitiu Isaías e firmou tratados de paz, iniciando uma política de tolerância à
liberdade de culto e liberdades laicas. Foi necessário demonstrar a incongruência do discurso teológico de
Isaías pela retórica e condenar o profeta à morte, pois ele não aceitou o banimento e insistia em pregar
contra o governo de Manasseh. A estória da morte está contada no Martírio de Isaías , em Yebamoth 49
b, etc. (STAVRAKOPOULOU, Francesca. King Manasseh and Child Sacrifice: Biblical distortions of
historical realities. Berlin, Walter de Gruter, 2004, p 95, 122-123, etc.)
15
CHARLES, R. H. The Apocrypha and Pseudoepigrapha of the Old Testament in English: Volume II –
Pseudepigrapha. London, Oxford University Press, 1913, p 158.
5
Igrat bat Mahalath ( )מחלת בת אגרת, era espanhola16 e tinha relações de parentesco com
Ben-Hadad III, filho de Hazael, rei de Damasco.
O comentário que revela a identidade de Asmodeus afirma que Hadad era filho
de Igrat com o Rei Davi, mas isso não se encaixa na linha do tempo. Uma lição da
escola de Shlomo ben Aderet (1235-1310) substitui Igrat por sua mãe Mahalath na lista
das esposas de Samael e explica que Ben-Hadad III é chamado de Ashmedai porque ele
adquiriu uma esposa ( )אִּׁשָהisraelita e sua paixão era ardente como o fogo 'ēsh ()אֵׁש.17
Ele recebeu permissão de subir aos bāmoṯê para “acusar ou causar confusão” nas
segundas-feiras. A razão da discórdia era a negociação das núpcias com Lilith Ulemta.18
O Rabbi Isaac ben Jacob há-Cohen (1013-1103) citou uma fonte que ele chama
de Shimusha de-Hekhalot Zutartey, onde é ensinado que Samael e Lilith nasceram na
mesma hora e lugar porque estavam predestinados à união, à semelhança de Adão e
Eva. Ashmedai, o rei dos shedim, desposou outra donzela de nome Lilith Ulemta, filha
do rei Qafṣefoni com Meheṭabel bat Maṭred. Por alguma razão Samael e Lilith
começaram a disputar status com Ashmedai e Lilith Ulemta. Estes últimos tiveram um
filho chamado Alfpunias, alcunhado Harba de-Ashmedai Malka (Espada do Rei
Ashmedai) e Gurigur (por lutar contra os “Gur Aryey Yehuda”, príncipes de Judá). Este
Alfpunias nasceu no momento do nascimento do príncipe de Malchut alcunhado Harba
de-Mashiha (Espada do Messias), chamado Meshihiel e Cokhviel.19
16
SPIRA, Nathan Nata. Tuv haAretz. Venice, 1655, p 19; Zolkiev, 1781. Em: PATAI, Raphael. Gates to
the Old City. New York, Avon, 1980, p 460-461.
17
PATAI, Raphael. Gates to the Old City. Ney York, Avon Books, 1980, p 459.
18
DAN, Joseph. The Early Kabbalh. Trd. Ronald Kiener. New York, Paulist Press, 1986, p 175.
19
DAN, Joseph (org). The Early Kabbalah. Texts translated by Ronald C. Kiener. New York, Paulist
Press, 1986, p 179-180; DÁN, Róbert (org.) Occident and Orient: A tribute to the memory of Alexander
Scheiber. Boston, Brill, 1988, p 62.
6
Tanto a peça do British Museum quanto a do Louvre representam animais em
figuras simétricas em relação a um elemento central. Isto é o que se costuma chamar de
estética heráldica. A peça do British Museum tem um par de leoas e um par de corujas
sobre uma base com escamas que parece ser um ofídio. A peça do Louvre contém um
par de íbex machos. Na peça do British Museum a deusa está segurando um par de
artefatos. Isto é a mesma coisa que o deus Šamaš – sentado em seu trono de base
escamada – segura diante do Rei Hamurábi numa figura contemporânea que ilustra o
topo da estela do código de leis atualmente exposta no Louvre. 20 A hipótese de que isto
era um compasso primitivo não se sustenta porque existe pelo menos outra variante
contemporânea (a estela de nº 6034 do Louve) onde Šamaš segura um shem de haste tão
longa que o peso do galho teria prejudicado o equilíbrio da mão do escriba que o
tentasse usar para desenhar em argila. Ou seja, era insofismavelmente um conjunto de
circulo mágico e varinha de condão.21
O shem era uma figura transcendental compartilhada pela arte egípcia e suméria,
composta por objetos representados por cores diferentes em alguns afrescos coloridos.
No caso da peça 2003,0718.1 do British Museum, a mulher pássaro de pé sobre animais
selvagens utiliza magia para subjugar feras. No Egito a consciência ( , akh) da múmia
se repartia em duas metades para se locomover: Uma delas era a força vital ( , KA)
que dorme e a outra o espírito ( , BA) que usa uma ferramenta abstrata chamada shem
para se transformar em homem pássaro, voar e subjugar feras.
20
O deus Šamaš também segura o shem diante do Rei da Babilônia Nabu-apla-iddina no Tablet of
Shamash (British Library room 55) encontrado em Sippar, datado do século 9 a.C.
21
CONTENEAU, Georges. A Civilização de Assur e Babilônia. Rio de Janeiro, Ferni, 1979, p 202-203.
7
BA segurando o shem sobre sua múmia no Papyrus
Ani. (British Museum, Id. nº 10470,3)
8
A caçada de Lilith
XXV. Shemḥazai viu uma jovem cujo nome era Esṭirah ( )איםמירהe falou a ela
(...), mas ela respondeu: "Não te escutarei a menos que me ensine o nome cuja
pronúncia permite subir ao céu". Ele rapidamente a ensinou o nome inefável. Ela então
subiu ao céu pronunciando o nome inefável. Deus disse: "Como ela parou de pecar,
coloque-a entre as estrelas". É ela quem brilha no meio das sete estrelas de Plêiades. Ela
sempre será lembrada porque Deus a colocou entre as Plêiades 28.
O livro de comédia Alphabetum Siracidis (sec. 8 d.C.) narra uma estória sobre o
uso da magia por Lilith. O tópico abre quando Bem Sira faz um amuleto para curar o
filho adoentado de Nabucodonosor, escrevendo o nome de YHWH junto a três anjos
representados “por seus nomes, formas e imagens; por suas asas, mãos, e pés”. O conto
foi parcialmente baseado na tradição popular – pois o costume é atestado inclusive por
Johanne Prætorius que, em 1666, viu judeus escreverem a imprecação “Adam, Chava,
Chuz, Lilith” nas paredes para proteger crianças.29 – Este é o conteúdo do quinto quesito
(23 a-b):
27
GOLDWURN, R’ Hersh. Talmud Bavili Tractate Shabbos: The Schottenstein Daf Yomi Edition.
Brooklyn, Mesorah Publications, 2004, p 151b3.
28
THE CHRONICLES OF JERAḤMEEL. Trd. M. Gaster, Ph.D. London, Oriental Translation Fund,
1899, p 52-53.
29
PRÆTORIUS, Johanne. Anthropodemus Plutonicus. Das ist, Eine Neue Welt-beschreibung Von
allerley Wunderbahren Menschen. Magdeburg, Lüderwald, 1666, Vol 1, p 19.
9
deitada debaixo de você”. Ele respondeu: “Eu não transo com você sentada no meu
colo. Só faremos sexo se você ficar por baixo porque é assim que todas as outras fêmeas
fazem e eu sou o macho que deve estar acima”. Lilith retrucou: “Nós somos iguais em
direitos, pois ambos fomos feitos de barro”. O casal não chegou a um consenso. Então
Lilith fez o seguinte: Ela pronunciou o nome inefável e foi embora voando. Adão
começou a rezar diante de seu criador: “Soberano do universo”, ele disse, “a mulher que
você me deu fugiu”. Então o Santo Deus, bendito seja, enviou aqueles três anjos para
trazer ela de volta.
O Santo Deus falou para Adão: “Se ela concordar em voltar, tudo bem. Caso
contrário ela deverá permitir que cem dos seus filhos morram diariamente”. Os anjos
partiram em perseguição até encontrar Lilith no meio do mar, nas poderosas águas onde
os Egípcios estavam destinados a se afogar. Eles repetiram as palavras de deus, mas ela
não quis voltar. Os anjos disseram: “Nós te afogaremos no mar”.
“Me deixem em paz”, ela disse. “Eu fui feita apenas para causar doenças em
crianças. Quando o bebê é menino tenho poder sobre ele durante oito dias a partir de seu
nascimento e, se for menina, durante vinte dias”. Quando os anjos escutaram as palavras
de Lilith, eles a incentivaram a voltar. Mas ela jurou em nome de deus: “Sempre que eu
ver seus nomes ou suas formas pintadas num amuleto, eu não terei poder sobre a
criança”. Ela também concordou que cem filhos seus morressem por dia. Por esta razão
cem lilim morrem diariamente e, pela mesma razão, nós escrevemos os nomes dos anjos
nos amuletos dos bebês. Quando Lilith vê tais nomes ela se lembra do juramento e a
criança recupera a saúde30.
30
THE ALPHABET OF BEN SIRA. Em: STERN, David & MIRSKY, Mark J. Rabbinic Fantasies. New
Haven and London, Yale University Press, 1990, p 183-184.
31
LARAIA, Roque de Barros. Jardim do Éden Revisitado. Em: REVISTA DE ANTROPOLOGIA: Vol. 40,
n º 1. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1997, p 162, nota 5; BOUZON, Emanuel. O Código de
Hammurabi. Petrópolis, Vozes, 2001, p 141-142.
10
Baixo relevo helenístico retratando uma
mulher pássaro sobre um homem.
Por acaso ocorreu uma tremenda tempestade que deixou o mar revolto. A
ressaca deve ter causado prejuízo aos marítimos e os supersticiosos acharam que o
garoto acrobata tinha produzido o mau tempo. Quando o governador de Mahoza foi
posto a par da ocorrência ele mandou matá-lo “porque não é costume entre os demônios
exibir-se aos humanos e revelar seus segredos”.34 A bíblia hebraica narra outras estórias
de heróis que abateram pessoas com seis dedos em cada mão, estatura demasiadamente
alta, etc. Mas o povo do norte não tinha medo dos deficientes. Asmodaios tomou por
auxiliar um pai de gêmeos siameses enfermo de ranseníase e empregou-o como
32
LAURINI, Mons. Heládio Correia e outros. A Circuncisão: o mito e o rito. Rio de Janeiro, Editora
Documentário, 1974, p 65.
33
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 184.
34
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 185.
11
“governante dos espíritos”. A capacidade daquele médium para comover o público era
notória:
Eliahu HaNavi seguia por um caminho. Encontrou Lilith e lhe disse: — “Onde tu vais, malvada?”
Ela respondeu: — “À casa duma mãe chamada ‘Fulana de Tal’, para tomar o filho, beber o sangue e
chupar os miolos, e só depois abandonarei o seu corpo”. Eliahu respondeu: “Em nome do grande
Deus, tu te tornarás uma pedra muda”. Lilith rogou-lhe que a deixasse partir. Ele então pediu que
não fizesse mal às mães nem às crianças. Lilith jurou que não teria forças para entrar no local,
quando encontrasse uma parturiente, caso visse os seguintes nomes: Citrino, Lilith, Albita, Amorfa,
Kle Ödem, Aïk, Tempestade de Vento, Vôo Veloz, Patota, Abce, Kta Kli, Btenna, Tilo Pritz. E todas
as pessoas que conhecem seu nome e o afixam no quarto das mães terão protegido mães e filhos para
sempre.
35
DAN, Joseph. The Early Kabbalh. Trd. Ronald Kiener. New York, Paulist Press, 1986, p 175-176.
36
FRIEIRO, Eduardo. O mito de Lilite. Em: KRITERION, nº 35-36. Belo Horizonte, Faculdade de
Filosofia da Universidade de Minas Gerais, Janeiro a Junho de 1956, p 93. || FERVEL, Dr. J. Réflexions
sur la circuncision. Em: PSYCHÉ, nº 64. Paris, P. et O. Lussaud Frères, févier 1952, p 98-102.
12
A.A.A. --------------------------------------- S.S.S.
“Isso não!”, implorou a bruxa. “Pelo amor de Deus, livra-me dessa maldição e
irei embora; e eu te prometo, pelo nome de Jeová, Deus dos exércitos de Israel, desistir
de meu intento contra essa mulher e sua criança. 37
A ameaça de transformar Lilith numa “pedra muda” atinge uma nova dimensão
se considerarmos que ela também se chama “Chétrino” e “Abito” (tanto o citrino quanto
a albita são minerais usados em joalheria). Seria esta Lilith uma estátua viva que pode
ser paralisada para sempre, como a mulher de Ló que jaz transformada em estátua de
sal? (Gênese 19:26)
Charles Godfrey compilou uma variante do mesmíssimo conto folclórico,
transmitida por ciganos da Romênia em 1891, onde a bruxa de “doze nomes e meio”
avistou Maria com seu filho recém nascido e tentou beber o sangue do menino Jesus,
disfarçada na forma de mosca hematófaga, mas um exorcista a impediu. 38 O Maleus
Maleficarum (1484) menciona a condenação dos bruxos de Berna pelo homicídio de
crianças não batizadas – crime supostamente praticado na intenção de eliminar a chance
dos menores experimentarem o rito de passagem cristão. – Uma das mulheres
interrogadas pelo Juiz de Boltingen confessou como a seita fizera para causar a morte de
treze recém nascidos:
13
malefícios e de nossas palavras mágicas nos próprios berços ou quando estão dormindo
junto aos pais. De sorte a parecer que morreram asfixiadas pelo próprio peso ou por
alguma outra causa natural. Depois as desenterramos sigilosamente e as cozinhamos
num caldeirão, até que toda a carne se desprenda dos ossos e se transforme num caldo,
fácil de ser bebido. Da matéria mais sólida fazemos uma pomada que nos é de grande
valia em nossos ritos, em nossos prazeres e em nossos vôos; com o líquido, enchemos
um cantil ou odre. Quem dele bebe, durante certos ritos, adquiri imediatamente
profundo conhecimento de nossa seita e se transforma numa de nossas líderes. 39
Em 1648 o rabino Naftali Hertz ben Yaakov Elchanan escreveu que Lilith tem
quarenta nomes e facções malignas ordenadas para matar crianças. Os asquenazes
falantes de idioma alemão dizem que foi ela quem instrui os “Kinder Benimerines” para
este feito (Emeq HaMelekh 140b).43 Charles Godfrey também ouviu falar em “judeus,
que acreditam nas Benemmerinnen ou bruxas que assombram as mulheres durante o
parto, assim como fazia Lilith”. 44
Benimerines é o nome castelhano da dinastia Banu Marin que governou
Marrocos entre 1244 e 1465, exercendo influência na Espanha muçulmana. O império
otomano cobrava imposto infantil dos povos conquistados. Parte da progênie de toda a
gente era levada para haréns ou treinamento de guerra. Portanto o mito dos Benimerines
que carregam crianças alemãs pode ter sido alimentado pelo medo do tráfico de pessoas.
Lujo Bassermann acredita que judeus e ciganos contribuíram com os requintes do
Oriente:
39
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Trd. Paulo Fróes. Rio de
Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991, p 217.
40
KRAMER, Heinrich e SPRENGER, James. O Martelo das Feiticeiras. Trd. Paulo Fróes. Rio de
Janeiro, Rosa dos Tempos, 1991, p 43 e 215.
41
Jonathan Kirsch comparou o uso do verbo t’sahak ()צתק, traduzido como “rir” ou “brincar”, nas
referências a Ismael e Rebeca rindo com Isaac (Gênese 21:9 e 26:8). O que Abimeleque viu pela janela
bastou para provar que Rebeca era esposa de Isaac, não sua irmã. Por isso o historiador concluiu que rir
desse jeito era um comportamento abusivo e intolerável entre irmãos. Sara toma providencias urgentes
quando vê que “Ismael está tomando com o seu irmão menor uma liberdade que ela considera chocante
demais para tolerar”. (KIRSCH, Jonathan. As Prostitutas na Bíblia: Algumas histórias censuradas. Trd.
Roberto Raposo. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1998, p 64-65).
42
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 466-
467; UNTERMAN, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. Trd. Paulo Geiger. Rio de Janeiro,
Jorge Zahar Editor, 1994, p 154.
43
PATAI, Raphael. Gates to the Old City: A Book of Jewish Legends. New York, Avon, 1980, p 458-
459.
44
LELAND, Charles Godfrey. Magia Cigana: Encantamentos, Ervas Mágicas e Adivinhação. Trd. Ana
Zelma Campos. São Paulo. Bertrand Brasil, 1993, p 80.
14
No ano de 973 d.C., Ibraim Ibne Jacó, judeu espanhol convertido ao islamismo,
percorreu a Boêmia, a Alemanha Central e as terras costeiras do Mar Báltico. (...) É
possível deduzir (...) que ele tivesse tentado comerciar prisioneiros louros das tribos
guerreiras eslavas do Báltico. (...) Os germânicos do norte vendiam mulheres aos
comerciantes árabes, especialmente as que não fossem mais consideradas virgens. Os
Viquingues, ainda pagãos naquela época, e os árabes, seus parceiros de comércio,
conjuntamente – e de forma lucrativa – resolveram o problema das mulheres devassas.”
45
Humbert fez tudo o que podia para ser bom... Tinha o maior respeito pelas
crianças comuns, com sua pureza e vulnerabilidade, e em circunstância alguma atentaria
contra a inocência de uma menina... Mas como batia seu coração quando, no meio de
um bando inocente, ele divisava algum pequeno demônio, “enfant charmante et fourbe”,
olhar velado, lábios úmidos, dez anos de cadeia se simplesmente repararem que você
está olhando para ela. E assim seguia a vida. Humbert estava perfeitamente apto a
possuir Eva, mas era por Lilith que ansiava.47
Lilith era, no mundo das idéias, o que Dolores Haze lhe parecia ser no universo
empírico: Um verdadeiro demônio entre os infantes.
15
que se medem com relógios, não têm acesso àquela intangível ilha de tempo mágico
onde Lolita brinca com suas companheiras. Dentro dos mesmos limites de idade, o
número de genuínas ninfetas é muitíssimo inferior ao das meninas provisoriamente sem
atrativos, ou apenas “bonitinhas” e até mesmo “adoráveis”, que são criaturas
essencialmente humanas — comuns, rechonchudas, informes, de pele fria e barriguinha
proeminente, usando tranças —, capazes ou não de transformar-se em mulheres de
grande beleza (basta ver aquelas garotas gordotas, de meias pretas e chapéus brancos,
que se metamorfoseiam em estonteantes estrelas do cinema). Confrontado com a
fotografia de um grupo de escolares ou escoteiras e solicitado a apontar a mais bonita
entre elas, um homem normal não escolherá necessariamente a ninfeta. É necessário ser
um artista ou um louco, um indivíduo infinitamente melancólico, com uma bolha de
veneno queimando-lhe as entranhas e uma chama supervoluptuosa ardendo eternamente
em sua flexível espinha (ah, quantas vezes a gente se encolhe de medo, se esconde!), a
fim de discernir de imediato, com base em sinais inefáveis — a curva ligeiramente
felina de uma maçã do rosto, uma perna graciosa coberta de fina penugem, e outros
indícios que o desespero, a vergonha e lágrimas de ternura me impedem de enumerar
—, o pequeno e fatal demônio em meio às crianças normais. Elas não a reconhecem
como tal, e a própria ninfeta não tem consciência de seu fantástico poder. 48
48
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 18-19.
49
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 25.
50
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 200, p 22.
51
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 2003, p 177.
52
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 2003, p 178.
53
NABOKOV, Vladimir. Lolita. Trd. Jorio Dauster. Rio de Janeiro, O Globo, 2003, p 111.
54
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De acordo com o Zohar, o rabi Shimon bar Yochai aconselhava aos homens que
evitassem olhar para quaisquer mulheres que não fossem suas esposas: “Se vocês não
procederem assim, poderá acontecer-lhes de ficarem pensando nela quando estiverem
nos momentos de intimidade com a esposa de vocês e assim o demônio terá parte na
concepção”.55 O Evangelho Segundo Felipe enuncia igualmente que quando a mulher
coabita com seu marido estando apaixonada por outro, o filho terá a aparência do outro
homem.56
A concepção de um bastardo é o pior problema conjugal que existe. Como nem
sempre a traição era de fácil comprovação culpava-se o incubo ou o boto quando a
criança nascia com a cara do professor de piano.
No campo do mito, as duas esposas principais de Samael criaram um
complicado esquema onde primeiro Nahemah provoca sonhos eróticos em homens
casados. Suas vítimas acordam excitadas e solicitam suas esposas. O produto da união é
filho de Nahemah porque o pai estava pensando nela no momento da concepção. Logo,
de acordo com Daniel Lifschitz, qualquer casal deveria evitar o início e o fim da noite e
qualquer outro momento em que as pessoas, ainda acordadas ficam de ouvidos ligados.
“Tais circunstâncias poderiam suscitar pensamentos lascivos nas pessoas e concederiam
ao demônio o poder de ter parte em cada filho eventualmente concebido”.57
Nahemah não cria seu próprio filho. O infante é entregue aos cuidados de Lilith
que, quando não o mata, vem brincar e dar má educação à criança para que siga a
inclinação esquerda. Ou seja, ela desvia do ensino religioso tradicional para os prazeres
da vida. Então espera como alguém que plantou uma videira, regou e cuidou até poder
colher uvas. Cedo ou tarde seus caminhos levam para a morte, que libera as almas para
serem anexadas.
Senhor do Mundo, quando uma criança tem apenas um dia de vida, será
julgada? Essas são as lágrimas dos oprimidos, que não encontram consolo. Há muitos
tipos diferentes entre eles, mas todos derramam lágrimas. Por exemplo, há a criança
nascida do adultério. Logo que ela vem ao mundo é separada da comunidade do povo
sagrado, se lamenta e derrama lágrimas perante o Senhor e reclama: “Senhor do mundo,
se meus pais pecaram, que culpa tenho eu? Tentei praticar apenas o bem perante Vós”.
Mas o maior sofrimento de todos é o desses “oprimidos” que são apenas bebês que
foram afastados dos seios de suas mães... Mas por que é preciso que esses pobres
pequeninos, que não têm culpa ou pecado, morram? Onde está agora o julgamento
verdadeiro e justo do Senhor do mundo? Se eles devem morrer por causa dos pecados
de seus pais, certamente “não encontrarão consolo”. No entanto, na verdade as lágrimas
desses oprimidos intercedem pelos vivos e os protegem, e devido à sua inocência e ao
seu poder de mediação é preparado um lugar para eles que nem mesmo os inteiramente
justos podem conquistar ou ocupar; porque na verdade Deus os ama de um modo
55
LIFSCHITZ, Daniel. Homem e Mulher Imagem de Deus – O Sábado. São Paulo, 1998. Paulinas, p 89.
56
TRICCA, Maria Helena de Oliveira. Apócrifos: Os Proscritos da Bíblia. Vol II. São Paulo, Mercuryo,
1992, p 198.
57
LIFSCHITZ, Daniel. Homem e Mulher Imagem de Deus – O Sábado. São Paulo, 1998. Paulinas, p 89.
17
especial e particular. Deus se une a eles e prepara-lhes um lugar superior, muito perto
Dele. É com respeito a esses pequeninos que está escrito: “Pela boca das crianças e
bebês tu o firmaste, qual fortaleza” (Salmo 8:3). (Zohar 11, 113b). 58
Quando o bastardo sobrevive, o demônio vem reclamar sua prole a cada lua
nova. Essa não terá um lugar especial reservado ao lado do trono:
58
ROSEMBERG, Roy A. Guia Conciso do Judaísmo: História, Prática e Fé. Trd. Maria Clara De Biase
W. Fernandes. Rio de Janeiro, IMAGO, 1992, p 121-122.
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