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O verde

(Inácio de Loyola Brandão)


Estranha é a cabeça das pessoas.
Uma vez, em São Paulo, morei numa rua que era dominada por uma árvore
incrível. Na época da floração, ela enchia a calçada de cores. Para usar um lugar-comum,
ficava sobre o passeio um verdadeiro tapete de flores; esquecíamos o cinza que nos envolvia
e vinha do asfalto, do concreto, do cimento, os elementos característicos desta cidade.
Percebi certo dia que a árvore começava a morrer. Secava lentamente, até que amanheceu
inerte, sem folha. É um ciclo, ela renascerá, comentávamos no bar ou na padaria. Não
voltou. Pedi ao Instituto Botânico que analisasse a árvore, e o técnico concluiu: fora
envenenada. Surpresos, nós, os moradores da rua, que tínhamos na árvore um verdadeiro
símbolo, começamos a nos lembrar de uma vizinha de meia-idade que todas as manhãs
estava ao pé da árvore com um regador. Cheios de suspeitas, fomos até ela, indagamos, e ela
respondeu com calma, os olhos brilhando, agressivos e irritados:
— Matei mesmo essa maldita árvore.
— Por quê? 
— Porque na época da flor ela sujava minha calçada, eu vivia varrendo essas
flores desgraçadas.
 A Carteira 
Machado de Assis

“DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixar-se,
apanhá-la e guardá-la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um
homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:
-- Olhe, se não dá por ela; perdia-a de uma vez.
-- É verdade, concordou Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem
de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos mil-réis, e a carteira trazia
o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de
Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas,
segundo as circunstâncias, e as dele não podiam ser piores. Gastos de família
excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher,
que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta
cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou-
se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos,
duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os
bailes a darem-se, e os jantares a comerem-se, um turbilhão perpétuo, uma
voragem.
-- Tu agora vais bem, não? dizia-lhe ultimamente o Gustavo C..., advogado e
familiar da casa.
-- Agora vou, mentiu o Honório.
A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes
remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, cm que fundara
grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou
alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos
jornais.”
O trecho do conto machadiano também exemplifica o tipo narrativo. Nesse
fragmento, é possível identificar a situação inicial da história, pela retomada ao
tempo passado do personagem central Honório. Antes de dar seguimento ao que
ocorre após o encontro com o objeto, o narrador constrói o contexto da
personagem, revelando as informações que serão relevantes ao enredo.
 
Por Talliandre Matos
Professora de Redação
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